Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01817/21.8BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/05/2024
Tribunal:TAF do Porto
Relator:ROGÉRIO PAULO DA COSTA MARTINS
Descritores:ACÇÃO PARA A PRÁTICA DO ACTO DEVIDO; AUSÊNCIA DE ACTO OPOSTO À PRETENSÃO; ACTOS CONSOLIDADOS NA ORDEM JURÍDICA;
ACTOS DE PROCESSAMENTO DE VENCIMENTO;
ALÍNEA A) DO N.º 4 DO ARTIGO 67º DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS (DECRETO-LEI N.º 214-G/2015, DE 02.10);
ARTIGO 58.°, N.° 2, B) DO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS;
Sumário:
1. O facto de a pretensão deduzida na acção para prática de acto devido não se materializar directamente, apenas, com a aplicação da lei, necessitando da prática de actos administrativos para o efeito não retira a situação a última previsão legal da alínea a) do n.º 4 do artigo 67º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, com a redaçcão dada por este Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02.10.

2. Pelo contrário: precisamente por ser necessária a prática de um acto que verta para a situação jurídica concreta a previsão legal é que há a necessidade de condenação à prática do acto devido. E, como qualquer acto administrativo, também o acto administrativo devido pressupõe a definição em concreto da situação jurídica do interessado, ou seja, a aplicação da norma ao caso concreto, o mesmo é dizer, a afirmação de que o interessado preenche os requisitos ou pressupostos para a aplicação da norma.

3. Só faltaria o pressuposto de o direito resultar directamente da lei se envolvesse algum juízo discricionário por parte da Administração porque aí entre a lei e a situação jurídica concreta dos interessados se interporia a vontade da Administração.

4. No que diz respeito aos actos de processamento de vencimento, sempre foi entendimento maioritário o de que tais actos, para se consolidarem na ordem jurídica, devem preencher dois requisitos: 1º - devem constituir uma definição inovatória e voluntária relativamente ao processamento do vencimento, "em determinado sentido e com determinado conteúdo"; 2º - o acto de processamento inovatório deve ser notificado ao interessado tal como os demais actos administrativos, ou seja, em obediência ao disposto nos artigos 68º do Código de Procedimento Administrativo.

5. Não tendo sido praticado qualquer acto administrativo, não se aplica ao caso o prazo geral de impugnação de três meses, previsto no artigo 58.°, n.° 2, b) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, ou qualquer outro, pelo que não se pode concluir pela existência de acto consolidado na ordem jurídica oposto à pretensão deduzida em juízo, para efeitos do disposto no artigo 38º, n.º2 do mesmo diploma.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

O Sindicato dos Professores do Norte veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto – Juízo Social -, de 30.08.2022, pela qual foi rejeitada a petição inicial na acção que, em representação de «AA» e outros associados seus, intentou contra o Ministério da Educação, a Caixa Geral de Aposentações e o Instituto da Segurança Social , I.P., para condenação das Entidades Demandadas a reconhecerem o direito dos seus representados à manutenção como subscritores da Caixa Geral de Aposentações e praticarem os actos e operações necessários à manutenção destes docentes nessa qualidade com efeitos à data em que foram ilegalmente inscritos na Segurança Social.

Invocou para tanto, em síntese, que, ao contrário do decidido, na presente acção não está em causa nem a impugnação do acto administrativo (alínea a) do nº 1 do artigo 37º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos) nem a condenação à prática do ato administrativo devido (alínea b) do nº 1 do Artigo 37º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), mas tão somente o reconhecimento da situação jurídica subjectiva directa, decorrente de normas jurídico-administrativas independentemente da existência prévia de um requerimento dirigido ao Réu ou da existência de uma notificação de eventual acto administrativo, pelo que é manifesto interesse em agir por parte dos associados do Autor, os quais pretendem a manutenção da sua inscrição na CGA, ao que acresce a adequação da forma do processo à pretensão dos representeados pelo Recorrente.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.
*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:

1 – O recorrente é uma associação sindical e intentou a presente ação em defesa dos interesses e direitos legalmente protegidos dos seus associados, todos professores contratados pelo Ministério da Educação com contrato de trabalho em funções públicas.

2 – No âmbito dessa relação laboral, os associados do Recorrente foram inscritos (aquando do seu primeiro contrato) no regime da Caixa Geral de Aposentações, atual regime social convergente.

3 – Por verificar que foram erradamente inscritos no regime geral da segurança social aquando de uma interrupção entre contratos, o recorrente interpôs a presente ação de reconhecimento do direito, pugnando pelo reconhecimento do direito dos seus associados como subscritores da CGA e pedindo a condenação à materialização desse direito.

4 – Sucede que o Tribunal recorrido considerou a existência da exceção inominada de falta de interesse em agir, absolvendo consequentemente da instância.

5 – Fê-lo por considerar que os docentes representados pelo Recorrente deviam ter lançado mão de uma forma de ação impugnatória.

6 – Sucede que de acordo com o pedido formulado, o Autor pretende que os Réus sejam condenados a reconhecer o direito dos docentes seus associados a manter a sua inscrição e vínculo na CGA e da sua qualidade de subscritora na CGA (integrando-a, assim, no regime de proteção social convergente) e a proceder à reposição da situação legalmente devida.

7 - Estando em causa o reconhecimento do direito à manutenção da inscrição e vínculo dos Autores na CGA e, consequentemente, no regime de proteção social convergente, “está em causa o reconhecimento de situações jurídicas subjetivas diretamente decorrentes de normas jurídico administrativas [artº 37º, nº 1, f) do CPTA] e a condenação da Administração ao cumprimento de deveres de prestar que igualmente decorrem de normas jurídico-administrativas, não envolvendo a necessidade de emissão de um ato administrativo impugnável, e que, no caso, terá por objeto e objetivo o pagamento de uma quantia [artº 37º, nº 1, j) do CPTA].

8 – Ou seja, contrariamente ao que foi decidido, a ação adequada à satisfação da pretensão formulada será atualmente a ação administrativa não impugnatória.

9 – Acresce que dos autos resulta que os Réus não proferiram ou entregaram/notificaram aos associados do Autor qualquer ato administrativo que recusasse a sua pretensão.

10 – Sendo a forma de processo determinada em função da pretensão deduzida no âmbito de uma determinada causa de pedir, estamos no âmbito da ação prevista no artº 37º, nº 1, do CPTA, alíneas f) e j), respetivamente:

“f) Reconhecimento de situações jurídicas subjetivas diretamente decorrentes de normas jurídico-administrativas ou de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo” e “j) Condenação da Administração ao cumprimento de deveres de prestar que diretamente decorram de normas jurídico-administrativas e não envolvam a emissão de um ato administrativo impugnável, ou que tenham sido constituídos por atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo, e que podem ter por objeto o pagamento de uma quantia, a entrega de uma coisa ou a prestação de um facto”.

11 – Em suma, na presente ação não está em causa nem a impugnação do ato administrativo [cfr. al. a) do nº 1 do Artigo 37º do CPTA], nem a condenação à prática do ato administrativo devido [cfr. al. b) do nº 1 do Artigo 37º do CPTA], mas tão somente o reconhecimento da situação jurídica subjetiva direta, decorrente de normas jurídico-administrativas independentemente da existência prévia de um requerimento dirigido ao Réu ou da existência de uma notificação de eventual ato administrativo.

12 – Concluímos, portanto, pelo manifesto interesse em agir por parte dos associados do Autor, os quais pretendem a manutenção da sua inscrição na CGA, ao que acresce a adequação da forma do processo à pretensão do Recorrente.

13 – Em função do exposto, não assiste razão à sentença recorrida.

Nestes termos deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a douta sentença recorrida, cumprindo o Direito e fazendo a Justiça!

*

II – A decisão recorrida.

Este é o teor da decisão recorrida na parte aqui relevante:

“(…)

Atento o pedido deduzido, a presente ação não pode deixar de ser configurada como uma ação administrativa de condenação à prática de ato devido.

Um dos tipos de situações em que pode ser deduzido o pedido de condenação à prática de ato administrativo devido é, precisamente, aquele que se encontra previsto no n.º 1 do artigo 67.º do CPTA.

Assim, sempre que um interessado seja titular do poder de exigir a prática de um ato administrativo, a propositura da ação de condenação à prática desse ato pressupõe, portanto, nos termos do n.º 1 do artigo 67.º do CPTA, a prévia apresentação, junto da autoridade administrativa competente, de um requerimento dirigido à prática desse ato. O artigo 67.º, n.º 1, do CPTA, para que o processo possa ser utilizado, começa por exigir um procedimento prévio, de iniciativa do interessado, em regra, um requerimento dirigido ao órgão competente, com a pretensão de obter a prática de um ato administrativo.

Segundo Mário Aroso de Almeida “Da apresentação do requerimento depende a constituição da Administração no dever de praticar o acto devido – pelo menos para o efeito (processual) de habilitar o interessado à propositura da correspondente acção de condenação, dado que a apresentação de requerimento representa, nestes casos, um requisito de cuja observância depende a existência de uma situação de necessidade de tutela judicial e, portanto, a constituição de um interesse em agir em juízo. Na ausência da apresentação de requerimento, faltará, portanto, no tipo de situação a que nos estamos a referir, o requisito do interesse processual, pelo que uma eventual acção de condenação que seja proposta nessas circunstâncias deverá ser, em princípio, rejeitada por falta desse pressuposto processual” – cfr. autor cit., Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2.ª edição, 2016, páginas 306 e 307. No mesmo sentido, cfr, Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa Lições, Almedina, 14.ª edição, 2015, páginas 266 e 267.

O interesse em agir, que Manuel de Andrade apelida de “interesse processual” [cfr. Noções Elementares do Processo Civil, 1979, página 79] – havendo quem fale de “causa legítima da acção” [Invrea, «Interesse e Azione» na «Revista di Diritto Processuale Civile», V , 1928, I, p 320], ou em “motivo justificativo dela”, “necessidade de agir ou necessidade de tutela jurídica” – consiste, basicamente, e como resulta de todas estas designações, no interesse de utilizar a máquina judiciária, ou na necessidade de recorrer ao processo. Por isso, diz Manuel de Andrade, o mesmo consiste em estar “o direito do demandante carecido de tutela judicial; é o interesse de utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo”.

No caso concreto, o Autor não alega, nem demonstrou, após convite do Tribunal para o efeito, a apresentação de requerimento consentâneo com o pedido de condenação à prática de ato devido, ónus esse que lhe competia (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil). Mesmo que tivesse apresentado aquele requerimento, que não se concebe, ainda assim teria ainda de se apreciar se se encontravam cumpridos os prazos de propositura da ação.

Inexistindo requerimento que tivesse sido rececionado nos serviços das Entidades Demandadas, impera concluir que as mesmas não ficaram constituídas no dever legal de decidir, para o efeito de habilitar o Autor à propositura da presente ação de condenação.

Logo, não se verifica na situação em apreço necessidade de tutela judicial, nem, por conseguinte, interesse em agir em juízo.

Resta acrescentar que apesar do primeiro pedido deduzido pelo Autor, a presente ação não pode ser qualificada como uma ação para reconhecimento de direito.

O CPTA só prevê a possibilidade de uma ação administrativa para reconhecimento de direito, no caso previsto nos artºs 2º, nº 2, alíneas f) e g) e 37º, nº 1, alíneas f) e g), v.g. “reconhecimento de situações jurídicas subjetivas diretamente decorrentes de normas jurídico-administrativas ou de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo” e “reconhecimento de qualidades ou do preenchimento de condições”.

Atendendo a que estas ações não estão dependentes de prazo de propositura, o seu âmbito de aplicação é extremamente restrito.

Como referem Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2020, págs. 252 e ss.: “As alíneas f) e g) do n.º 1 abarcam as pretensões dirigidas à obtenção de sentenças meramente declarativas ou de simples apreciação, que se destinem ao “reconhecimento de direitos ou interesses legítimos” e ao “ reconhecimento de qualidades ou do preenchimento de condições”. Em qualquer dos casos, o pedido corresponde tipicamente a uma ação de simples apreciação, destinando-se a obter uma sentença que torne certo o direito ou interesse que está em causa. Por isso é que só existe interesse processual na propositura da ação se se puder invocar uma incerteza objetiva sobre a situação jurídica que o autor pretende fazer valer (cfr. artigo 39.º, n.º 1).

Como se reconheceu no acórdão do STA de 31 de maio de 2005, processo n.º 78/04, “o pedido de reconhecimento de um direito pressupõe sempre a existência de uma anterior norma legal onde radica o direito a reconhecer, ou seja, de uma norma que, desde que verificados determinados pressupostos ou requisitos, projeta diretamente na esfera jurídica do destinatário o direito que pretende seja reconhecido”. Temos, assim, que a existência do direito deverá encontrar-se já subjetivada na esfera jurídica do interessado. Por isso se entende que não é suscetível de reconhecimento através de uma ação deste tipo um direito cujo conteúdo esteja dependente de futura regulamentação ainda não publicada, visto que o poder judicial não pode substituir-se para esse efeito ao poder administrativo, sob pena de violação do princípio de separação de poderes (...) .

Do mesmo modo, não se encontra preenchido o requisito da alínea f) do n.º 1 quando o direito que se pretende ver reconhecido se não encontre definido na norma administrativa com o mínimo de clareza ou precisão e careça ainda da formulação dum juízo valorativo próprio do exercício da função administrativa ou apenas possa ser efetivado através de um pedido do interessado dirigido à Administração, caso em que o meio processual próprio é, consoante os casos, a ação de impugnação de ato de conteúdo positivo desfavorável ou a ação de condenação à prática de ato devido, no caso de a pretensão do interessado ter sido indeferida ou não ter sido objeto de decisão

(...).

Fora do domínio específico do reconhecimento de direitos e interesses legítimos, estão, à partida, as situações de violação de direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos que resultem da prática ou omissão de ato administrativo ou regulamento, ou da celebração de um contrato, que serão dirimidas por via do processo impugnatório ( artigos 50.º e 72.º), da ação de condenação ( artigos 66.º e 77.º) (...).

A ação para reconhecimento de um direito pode ser utilizada em todos os casos em que não tem de existir um ato administrativo, pelo que o particular não está obrigado a apresentar um requerimento prévio à Administração para provocar a prática desse ato

(...)

Nos tipos de situações enunciados, não está em causa a prática de actos administrativos, mas a realização de simples actuações ou actos reais, para utilizar a terminologia alemã, isto é, a realização de prestações a que a Administração se encontra obrigada, sem dispor do poder de as recusar através de uma pronúncia susceptível de ser qualificada como um acto administrativo de indeferimento.

Buscando ainda, porque necessário à questão que aqui nos ocupa, qual será o alcance da densificação dos casos em que tem de existir um ato administrativo devido, em contraposição com um mero direito reconhecido pela sentença a proferir pelo Tribunal, que será, forçosamente, uma sentença de simples apreciação, citaremos ainda as palavras de Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2020, págs. 119 e ss.: “Como é natural, só uma parcela reduzida das prestações que aqui se enquadram é dirigida à emissão de sentenças meramente declarativas ou de simples apreciação. Com efeito, estas sentenças proporcionam apenas o reconhecimento da existência ou inexistência de direitos ou factos, o que, tal como sucede em processo civil, por regra, só em situações excecionais se justifica, do ponto de vista da existência do necessário interesse processual.”

No caso dos autos, como o Autor bem explicitou no seu pedido, o objeto da ação é a condenação da administração a “praticar os atos e operações necessários à manutenção daqueles docentes como subscritores da Caixa Geral de Aposentações, com efeitos à data em que foram ilegalmente inscritos na Segurança Social”. Por conseguinte, o reconhecimento, por parte do Tribunal, de que os representados do Autor teriam, eventualmente, direito à manutenção da sua inscrição na Caixa Geral de Aposentações, insere-se na apreciação do mérito da ação no quadro dos argumentos expendidos pelas partes, desaguando, a final essa apreciação, se a favor dos representados do Autor, na condenação dos Réus à prática dos atos necessários à reconstituição da situação contributiva daqueles, caso se concluísse que as contribuições que lhe foram descontadas deveriam ter sido entregues à CGA e não à Segurança Social. Tudo isto porque, como se explicitou acima, a pretensão dos representados do Autor não se materializa diretamente apenas com a aplicação da lei, necessitando da prática de atos administrativos para o efeito, que decidam se os mesmos preenchem ou não todos os requisitos para verem satisfeita a sua pretensão.

É que aqui nem se põe a hipótese de existir omissão de um ato que materializasse o direito a que os representados do Autor se arrogam, pelo contrário, existiu um ato administrativo que determinou a sua inscrição na Segurança Social que os mesmos, como já se disse, nunca colocou em causa, até agora.

Assim, só se poderá concluir pela falta de interesse em agir do Autor na presente ação, por não ter dirigido requerimento prévio à administração para a prática do ato devido.

E mesmo que assim não se entendesse, existiria ainda outro obstáculo intransponível à apreciação do mérito da pretensão, já aqui aflorado, designadamente, a impossibilidade de ser obtido, por outros meios processuais o efeito que resultaria da anulação de ato inimpugnável, cfr. artº 38º, nº 2 do CPTA, atendendo a que os representados do Autor não atacaram, a montante, o ato que alterou o seu regime de descontos para regimes de proteção social, da Caixa Geral de Aposentações, para a Segurança Social.

A falta de interesse em agir ou de interesse processual constitui uma exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, que, por ser detetada em sede liminar, dá origem à rejeição liminar da Petição Inicial, nos termos do disposto nos artºs 89º do CPTA e 590º, nº 1 do CPC, ex vi art.º 1º do CPTA.

Pelo que a presente ação terá de ser rejeitada.

(…).

*

III - Enquadramento jurídico; o mérito do recurso.

Como se refere na decisão recorrida um dos tipos de situações em que pode ser deduzido o pedido de condenação à prática de ato administrativo devido é aquele que se encontra previsto no n.º 1 do artigo 67.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, em que foi deduzido um pedido em sede administrativa que foi, tácita ou expressamente, parcial ou totalmente indeferido.

Mas não é essa a situação dos autos pois não foi deduzido qualquer pedido em sede administrativa.

Mas, com a alteração legislativa operada com o Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02.10 (com início de vigência em 1 de Dezembro de 2015), passou a prever-se uma outra situação em que é possível a dedução de pedido de condenação à prática do acto devido sem que tenha havido previamente qualquer pedido deduzido em sede administrativa.

A prevista na alínea a) do n.º 4 do artigo 67º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, com a redaçcão dada por este Decreto-Lei:

“(…)

A condenação à prática de acto administrativo também pode ser pedida sem ter sido apresentado requerimento, quando:

a) Não tenha sido cumprido o dever de emitir um acto administrativo que resultava diretamente da lei.

(…)”

Precisamente a situação dos autos.

O facto de a pretensão não se materializar directamente, apenas, com a aplicação da lei, necessitando da prática de actos administrativos para o efeito não retira a situação desta última previsão legal.

Pelo contrário: precisamente por ser necessária a prática de um acto que verta para a situação jurídica concreta dos associados do Autor a previsão legal é que há a necessidade de condenação à prática do acto devido.

E, como qualquer acto administrativo, também o acto administrativo devido pressupõe a definição em concreto da situação jurídica do interessado, ou seja, a aplicação da norma ao caso concreto, o mesmo é dizer, a afirmação de que o interessado preenche os requisitos ou pressupostos para a aplicação da norma.

Só faltaria o pressuposto de o direito resultar directamente da lei se envolvesse algum juízo discricionário por parte da Administração porque aí entre a lei e a situação jurídica concreta dos interessados se interporia a vontade da Administração.

O que não é o caso.

Por outro lado, também ao contrário do decidido não foi praticado qualquer acto administrativo, susceptível como tal de se consolidar na ordem jurídica, que tenha alterado o regime de descontos dos representados pelo Autor da Caixa Geral de Aposentações para a Segurança Social.

No que diz respeito aos actos de processamento de vencimento, sempre foi entendimento maioritário o de que tais actos, para se consolidarem na ordem jurídica, devem preencher dois requisitos (ver neste sentido o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 3.12.2002, no recurso 042/02): 1º - devem constituir uma definição inovatória e voluntária relativamente ao processamento do vencimento, "em determinado sentido e com determinado conteúdo"; 2º - o acto de processamento inovatório deve ser notificado ao interessado tal como os demais actos administrativos, ou seja, em obediência ao disposto nos artigos 68º do Código de Procedimento Administrativo.

Posição acompanhada no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 24.11.2005, no processo 07158/03, com o mesmo relator.

Ora nem do presente processo judicial nem do processo administrativo resulta a prática de qualquer acto que se possa configurar como uma definição da situação jurídica dos representados pelo Autor, feita de forma unilateral por qualquer das Entidades Demandadas.

Nem, consequentemente, resulta que os representados pelo Autor tenham sido notificados de uma qualquer decisão sobre a sua na Segurança Social.

Existem, isso sim, as simples operações materiais de inscrição dos representados pelo Autor no regime geral da Segurança Social e de efectivação de descontos no vencimento neste regime.

Não tendo sido praticado qualquer acto administrativo, não se aplica ao caso o prazo geral de impugnação de três meses, previsto no artigo 58.°, n.° 2, b) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, ou qualquer outro, pelo que não se pode concluir pela existência de acto consolidado na ordem jurídica oposto à pretensão deduzida em juízo, para efeitos do disposto no artigo 38º, n.º2 do mesmo diploma.

Neste sentido e numa situação idêntica, este Tribunal Central Administrativo Norte, em acórdão de 15.12.2023, no processo 50/22.6 PNF, pronunciou-se no sentido de inexistir matéria de excepção que obstasse ao conhecimento de mérito, conhecimento de mérito que a Primeira Instância tinha efectuado, no sentido da procedência do pedido.

Termos em que se impõe conhecer de mérito da acção, devendo esta seguir os trâmites legais, designadamente de instrução e julgamento, caso nada mais a tal obste.

Ao contrário do decidido.

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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em CONCEDER PROVIMENTO AO RECURSO, pelo que revogam a decisão recorrida determinando a baixa dos autos ao Tribunal a quo para que aí prossiga os seus termos legais com vista ao conhecimento de mérito, se nada mais a tal obstar.

Custas pelo Recorrido.

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Porto, 05.04.2024

Rogério Martins
Isabel Costa
Paulo Ferreira de Magalhães