Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00132/10.7BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/22/2015
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Luís Migueis Garcia
Descritores:RESPONSABILIDADE. INUNDAÇÃO.
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO.
Sumário:I) – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente : (i) sob pena de rejeição, especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; (ii) sob pena de imediata rejeição na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados.
II) – É aplicável à responsabilidade civil extracontratual das autarquias locais, por actos de gestão pública, a presunção de culpa prevista no art.º 493.º/1 do CC; esta presunção é afastada quando se prove que no dia do acidente ocorreu uma quantidade de precipitação anormalmente elevada e que o Município tinha em correcto funcionamento a sua rede de esgotos e que, por isso, não foi por deficiente funcionamento desta rede que a água que se acumulou que o sinistro ocorreu.*
*Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:MABP
Recorrido 1:Município de V...
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Sumária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:MABP (R....) interpõe recurso jurisdicional de decisão do TAF de Penafiel, que julgou improcedente acção administrativa comum sob a forma sumária intentada contra Município de V... (Avª...).

O recorrente formula as seguintes conclusões:

1. Existiu erro de julgamento nos presentes autos;

2. A douta sentença decidiu contra a lei expressa e, contra os factos apurados, dando factos como provados, quando deveriam ser não provados e, não provados alguns que deveriam ser provados.

3. Deu como provado que “13. O Réu, através dos seus serviços verifica periodicamente o funcionamento e, o estado das caixas de escoamento e das grelhas. (resposta dada ao ponto 15) da BI) 19.As infra estruturas existentes no local foram executadas para escoar uma precipitação superior à normal. (Resposta das ao ponto 21) da B.1.).

4. Este factos jamais poderiam ser dados como provados.

5. As testemunhas do Autor afirmaram todas que a rua estava sempre suja, e a testemunha V..., inclusive viu os funcionários da Câmara varrer as folhas para os bueiros,

6. Por outro lado, as testemunhas do Réu, não viam as ruas a ser limpas ou, sequer supervisionavam a zona. Sabendo apenas, que existir um plano de limpeza.

7. Por outro lado, foi referido por 2 das testemunhas do Autor que as infra estruturas não eram suficientes para suportar as chuvas normais, muito menos ma situação anormal, como foi o caso.

8. Ficando assim provado que a Câmara Municipal não procedeu à limpeza da rua, da forma necessária no local, tendo em conta a existência de várias árvores, bem como a inclinação na Rua.

9. Não cuidou de verificar que as infra estruturas não se encontravam adaptadas às alterações climatéricas.

10. Não cumpriu assim, a Câmara com o seu dever de vigilância e assistência aos município.

11. Se a Câmara Municipal tivesse cumprido o seu dever de vigilância e assististência, não teria ocorrido uma inundação com as características da que ocorreu e, consequentemente não teria o Autor sofrido os danos que sofreu.

12. Não foram dados como provados os factos descritos nos quesitos, 9 e 10 e 11 e 12, quando deveriam ter sido dados como provados,. Uma vez que, foram juntos aos autos documentos para prova dos mesmos, que não foram impugnados pelo Réu.

13. Documentos esses, em que provavam e descreviam a relação directa entre a inundação e os danos causados na viatura, que careceu de reparação pelo valor peticionado.

14. Deve assim, ser revogada a douta sentença, com as legais consequências.


O recorrido contra-alegou, concluindo :

1º Não pode conhecer-se do recurso na parte em que o Recorrente conclui que a sentença ”a quo" decidiu contra lei expressa;

2º Não pode conhecer-se do recurso na parte em que o Recorrente concluir por um alegado erro de julgamento da matéria de fato, no que diz respeito às respostas dadas aos pontos 15) e 21) da B.I.

3º Não merece qualquer censura a resposta dada pelo tribunal "a quo" aos pontos 15 e 21 da B.I.

4º A sentença recorrida não merece qualquer censura na resposta dada aos pontos 9; 10; 11 e 12 da B.I.

5º O Recorrente não logrou provar que os alegados danos da sua viatura foram consequência da inundação;

6º A sentença recorrida não merece qualquer censura, tendo feito uma correta aplicação de direito aos fatos dados como provados nos autos.



O recorrente, confrontado com a arvorada rejeição do recurso, respondeu, em síntese dando como satisfeitos os seus ónus.
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O Exmº Procurador-Geral Adjunto, notificado para efeitos do art.º 146º do CPTA, nada ofereceu em Parecer.
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Dispensando vistos, cumpre decidir.
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As conclusões de recurso delimitam as questões a decidir, que passam pela averiguação de imputado(s) erro(s) no julgamento de facto - brandindo o recorrido rejeição por não satisfação dos ónus a cargo do recorrente - e, quanto ao direito, saber se a decisão recorrida decidiu ou não bem quanto à imputada responsabilidade do recorrido por violação de dever de vigilância, assistência ou cuidado.
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Os factos, que a decisão recorrida consignou como provados:
1. É da responsabilidade do Réu proceder à limpeza das caixas de saneamento e de águas pluviais.

2. No inverno de 2009/2010 choveu mais que o habitual.

3. A elevada precipitação que se fez sentir no dia 22.12.2009 provocou inundações em todo país.

4. Tais inundações que ocorreram a nível nacional foram noticiadas pelos diversos meios de comunicação social.

5. Aliás, a própria Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC) previa possibilidade de chuva, e como tal colocou todos os distritos do país em "alerta amarelo".

6. No dia 22.12.2009, entre as 20:00Horas e as 21:00 horas, na Rua VS, em frente ao n° 41, no lugar do S..., no concelho de V... ocorreu uma inundação naquela via pública. (Resposta dada ao ponto 01) da Base Instrutória - BI-)

7. Tendo a água atingido alguns centímetros de altura. (Resposta dada ao ponto 02) B.I.)

8. As caixas de escoamento de águas pluviais e as tampas de escoamento das águas pluviais encontravam-se cobertas com folhas de árvores. (Resposta dada ao ponto 03) B.I.)

9. Os Bombeiros chegaram levantaram as tampas de escoamento das águas pluviais da via pública que se encontravam com folhas das árvores e as grelhas cobertas com folhas de árvores. (Resposta dada ao ponto 05) da B. I.)

10. O Autor tinha o veículo ligeiro de passageiros com matricula 6786 GB, de marca BMW, modelo 630I, cor amarela, sua propriedade estacionado naquela via mesmo em frente à sua residência. (Resposta dada ao ponto 07) da B.I.)

11. Com a inundação a água espalhou-se no interior do carro do Autor. (Resposta dada ao ponto 08) da B. I.)

12. O Autor em 19 de Janeiro de 2010 entregou a viatura para reparação na B...-Comercio de Automóveis, SA, altura em que solicitou o respectivo orçamento, tendo que pagar a título de sinal o montante de €4.000,00. (Resposta dada ao ponto 13) da B. I.)

13. O Réu, através dos seus serviços verifica periodicamente o funcionamento e o estado de conservação das caixas de escoamento e das grelhas. (Resposta dada ao ponto 15) da B.I.)

14. O Réu não procedeu a qualquer reparação depois do dia 22.12.2009 às referidas condutas, para além das normais inspecções que faz habitualmente. (Resposta dada ao ponto 16) da B.I.)

15. Apesar de ter continuado a chover durante os meses de Janeiro e Fevereiro de 2010, não ocorreu qualquer outra inundação no local de que o Réu tenha tido conhecimento. (Resposta dada ao ponto 17) da B.I.)

16. No passado dia 22 de Dezembro de 2009 verificou-se uma precipitação acima da média, anormal em todo território nacional que proporcionou, por um lado um caudal mais abundante e por outro uma queda de folhas maior do que é habitual. (Resposta dada ao ponto 18) da B.I.)

17. Essa precipitação foi abundante e extraordinária. (Resposta dada ao ponto 19) da B.I.)

18. As infra estruturas existentes no local não foram suficientes para escoar tal precipitação. (Resposta dada ao ponto 20) da B.I.)

19. As infra estruturas existentes no local foram executadas para escoar uma precipitação superior à normal. (Resposta dada ao ponto 21) da B.I.)


*
Do mérito da apelação:
O recorrido sustenta a rejeição do recurso na parte em que o recorrente aduz que “A douta sentença decidiu contra a lei expressa”.
Isto, perante as exigências constantes do art.º 640º do CPC.
Ora, situados na economia do discurso narrativo, levando em devida conta o seu encadeamento no corpo das alegações, a afirmação, quanto a nós, mais facilmente se identifica com um aforismo da praxe - com um sentido que equaciona em termos gerais e à laia de introdução a afirmação de um erro de julgamento -, que exactamente com uma destacada e particular questão participante da crítica impugnatória, um concretizado fundamento de recurso.
E assim, nada altera ou acrescenta à genérica afirmação de erro, a que o regime do art.º 640º do CPC pretende levar que seja formulado em termos de fundamentos devidamente consubstanciados, com guião nas especificações aí constantes.
Nada se autonomizando, pois é aí, no respeito desse regime, na evidenciação desses fundamentos, ou não, que o erro ganha corpo, ou não, do mesmo passo que participando das objecções que a cada propósito o recorrido dirige.
Carece, pois, de sentido, uma autónoma apreciação quanto a uma rejeição parcial.

I) – Da matéria de facto:
O recorrente aponta que não poderiam ter sido dados como provadas as circunstâncias levadas a 13º e 19º do probatório supra, a saber:
13º: «O Réu, através dos seus serviços verifica periodicamente o funcionamento e o estado de conservação das caixas de escoamento e das grelhas. (Resposta dada ao ponto 15) da B.I.)»;
19º: «As infra estruturas existentes no local foram executadas para escoar uma precipitação superior à normal. (Resposta dada ao ponto 21) da B.I.)
Bem assim entende que os factos descritos nos quesitos, 9º, 10º, 11º e 12º, que o tribunal “a quo” não teve como provados, antes deveriam ter sido dados como provados.
Em tais quesitos procurava-se saber:
9.º - A água provocou estragos na viatura e que foram:
- no colector de escape;
- no volante de duas massas;
- na embraiagem;
- no motor;
- na culassa?
10.º - Foi necessário proceder à sua substituição, designadamente, parafusos de alumínio, parafuso ISA, colector de escape AT com, filtros, óleo na direcção, volante de duas massas e Kit de peças da embraiagem?
11.º - Foi necessário substituir o motor, desmontar a culassa, desmontar e montar todo o interior da viatura para secagem da água?
12.º - A reparação dos estragos provocados pela entrada de água pluvial da inundação estima-se em € 15.838,97?
Como resulta do art.º 640, nºs. 1, b) e 2, a), do CPC, e sob pena de rejeição, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, sendo que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
No que se refere à primeira crítica (circunstâncias sob 13º e 19º dadas como provadas):
- o A./recorrente embora faça referência aos pontos de facto que no seu entender se mostram como incorrectamente julgados não motiva, todavia, tal entendimento nos termos em que a lei de processo o prescreve, pois que no apelo aos depoimentos testemunhais com que baseia a impugnação, gravados que foram, lhe incumbia “indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda”, do que completamente se alheou; a instituição universal desse sistema de registo, não prescindindo do princípio da oralidade e/mas compatibilizando com manifesta intenção de garantia de uma efectiva segunda jurisdição quanto ao julgamento da matéria de facto, explica a determinação de lei nessa indicação, sendo aí que o tribunal de 2ª instância vai buscar convicção própria, não pela mera transcrição, a qual a lei admite “dos excertos” que a parte considere relevantes; conforme Ac. do STJ, de 14-09-2006, proc. nº 06B1998, «Deve ser rejeitado o pedido de alteração da matéria de facto formulado na apelação que se refira unicamente aos depoimentos de determinadas testemunhas, mas omita os concretos pontos gravação das declarações daquelas que impunham uma decisão diversa sobre os trechos da matéria de facto impugnada», jurisprudência que se mantém actual;
- pelo que, nesta parte, resulta imediata rejeição.
No que se refere à segunda (quesitos, 9º, 10º, 11º e 12º julgados não provados):
- o A./recorrente não especificou “os concretos meios probatórios”, limitando-se a remeter para os documentos juntos sem individualizar, de modo a compreender onde pretende lançar âncora;
- confrontado com as contra-alegações do recorrido sobre a possível rejeição, mostrou entender não estar em falha, pelo que inútil é qualquer convite;
- impõe-se, pois, também, a rejeição (não se deixará de assinalar - obter dictum -, que a lei exige que os concretos meios probatórios imponham decisão diversa da recorrida; e que, na regra definida a respeito dos documentos particulares apenas o declaratário pode invocar o documento, como prova plena, contra o declarante que emitiu uma declaração contrária aos seus interesses, e apenas nessa medida e relação se consideram provados os factos nela compreendidos; nas relações com terceiros, essa declaração só vale como elemento de prova a apreciar livremente pelo Tribunal).

II) – Do Direito:
O A./recorrente peticionou que fosse "...a Ré condenada: Responsável pela inundação ocorrida na via publica e, consequentemente condenada a pagar ao Autor o montante de 15.838,97 a título de danos patrimoniais, acrescida de juros legais, ou, em alternativa pagar ao Autor o montante de 4.000,00 euros correspondente ao sinal por ele já pago e, o remanescente que vai até ao montante de 15.83897 €, pagar à B... - Comércio Automóveis, SA.".
Face aos factos apurados, e no que foi o enquadramento legal mais próximo de que o tribunal “a quo” se socorreu, Lei nº 67/2007, de 31/12, e artºs. 483º e 493º do CC, julgou improcedente os pedidos.
Em síntese, e à luz do que interessava ao instituto em causa, de responsabilidade, teve-a como não presente, pois entendeu como afastada a (presunção de) culpa, e mesmo que não resultava a violação de um dever.
Teve correcto julgamento.
Dos factos provados não resulta dever violado.
E bem assim também se há-de ter como afastada a presunção de culpa que convocada foi ao caso.
Na linha do que é jurisprudência.
Cfr. Ac. do STA, de 11-09-2008, proc. nº 037/08:
I - O facto ilícito gerador da culpa de uma pessoa colectiva, como o município, pode resultar de um conjunto, ainda que imperfeitamente definido, de factores próprios da deficiente organização ou falta de controlo, de vigilância exigíveis em determinadas funções, ou de outras falhas que se reportam ao serviço como um todo.
II - Sucederá tal tipo de culpa quando o Município não procede à fiscalização da rede de colectores dos esgotos por forma a evitar a inundação da respectiva rede viária.
III - É aplicável à responsabilidade civil extracontratual das autarquias locais, por actos de gestão pública, a presunção de culpa prevista no art.º 493.º/1 do CC.
IV - Esta presunção é afastada quando se prove que no dia do acidente ocorreu uma quantidade de precipitação anormalmente elevada e que o Município tinha em correcto funcionamento a sua rede de esgotos e que, por isso, não foi por deficiente funcionamento desta rede que a água que se acumulou que o sinistro ocorreu.
Não se mostra, pois, que advenha responsabilidade sobre o recorrido.

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Pelo exposto, acordam em conferência os juízes que constituem este Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso.
Custas: pelo recorrente.
Porto, 22 de Maio de 2015.
Ass.: Luís Migueis Garcia
Ass.: Frederico Branco
Ass.: Joaquim Cruzeiro