Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01307/23.4BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:10/03/2024
Tribunal:TAF do Porto
Relator:IRENE ISABEL GOMES DAS NEVES
Descritores:LEGITIMIDADE ACTIVA;
GARANTIA DA TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA;
Sumário:
I. O artigo 20º, nº 1 da CRP dispõe sobre o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, asseverando que a todos é assegurado “o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.

II. Todavia, o acesso ao direito mediante a utilização do processo judicial próprio carece da observação das regras previstas quanto à legitimidade para o efeito, pelo que a limitação de tal acesso, atentas as regras da legitimidade, não é suscetível de configurar uma qualquer denegação do acesso à justiça previsto no artigo 20º, nº 5 da CRP.

III. Recai sobre o interessado o ónus de alegar os factos que integram a sua legitimidade que, no caso da impugnação de atos de liquidação se limitam à sua identificação no ato como sujeitos passivos do tributo liquidado.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência, os juízes que constituem a Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:


1. RELATÓRIO
1.1. «AA», (Recorrente), notificado da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, datada de 11..10.2023, que julgando procedente a excepção de ilegitimidade processual do ora Recorrente, indeferiu liminarmente a impugnação judicial intentada pelo mesmo contra Autoridade Tributária e Aduaneira.
Alegou, formulando as seguintes conclusões:
«(…)
I.
Vem o presente recurso interposto da, aliás douta, sentença proferida nos autos que indeferiu liminarmente a impugnação judicial apresentada pelo Impugnante.
II.
Para tal, a decisão em mérito julgou o Impugnante parte ilegítima para a presente ação, julgando procedente a exceção dilatória invocada – ilegitimidade ativa. Ora,
III.
Salvo o devido respeito, que se diga, é todo, não se pode o Impugnante conformar com tal decisão, uma vez que, entende e sustenta que detém a legitimidade necessária para intervir nos presentes autos.
IV.
Ao decidir de modo diverso, a decisão em mérito violou, entre outros comandos normativos, o estabelecido no artigo 9.º do CPPT.
V.
Em causa nos presentes autos está uma impugnação judicial deduzida pelo Impugnante contra o ato de liquidação adicional efetuado contra a sociedade comercial [SCom01...], S.A., relativamente ao período de tributação de 200507M.
VI.
O Impugnante, à data dos factos, integrava os órgãos de administração da referida sociedade comercial.
VII.
Pelo cargo que ocupava, o Impugnante, apesar de nunca ter sido citado, viu dívidas tributária da mencionada sociedade comercial constarem da sua página da Administração Fiscal (dívidas contra si revertidas).
POR OUTRO
VIII.
Relativamente à mesma sociedade comercial e relativamente ao mesmo período de tributação em discussão nos autos, contra o Impugnante foi instaurado processo-crime, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal e fraude fiscal.
IX.
A liquidação adicional que originou a liquidação adicional aqui em mérito é a mesma que sustentou o despacho de acusação proferido no processo-crime na qual a sociedade comercial é arguida, conjuntamente com o impugnante.
X.
Onde lhe vem imputada factualidade desenvolvida pela sociedade comercial objeto da liquidação adicional e repercutida na sua pessoa pelo facto de ter integrado os órgãos sociais da mesma.
XI.
O mesmo sucedendo em matéria exclusivamente tributária, onde o aqui Impugnante, viu ser contra si revertido ou projetado reverter dívidas da sociedade comercial [SCom01...], S.A., nas quais, por certo, se incluem os períodos a que respeita a liquidação adicional aqui sindicada.
XII.
O que, só por si, é suficientemente demonstrativo e elucidativo da legitimidade do Impugnante em sindicar o ato de liquidação adicional aqui sob escrutínio.
XIIII.
Nos termos do disposto no n° 1 do artigo 9. ° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), “Têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provém interesse legalmente protegido.”
XIV.
O n° 4 do mesmo preceito legal estabelece que: “Têm legitimidade no processo judicial tributário, além das entidades referidas nos números anteriores, o Ministério Público e o representante da Fazenda Pública.”
XV.
E ao falar de entidades ao cimo referidas, o legislador refere-se aos responsáveis solidários e subsidiários.
XVI.
Por outro lado, o artigo 105. ° do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) no seu nº 1 estatui que “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”
XVII.
O n° 4 do mesmo preceito legal determina que:
“4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”
XVIII.
Ora, a notificação a que respeita este n° 4 do artigo 105.° do RGIT inserta no do artigo respeitante ao crime de abuso de confiança fiscal (imputado ao impugnante e à respetiva sociedade comercial) estabelece como condição de punibilidade a notificação para regularização da falta de entrega do imposto.
XIX.
Sendo que tal notificação terá impreterivelmente de ser feita à sociedade arguida e, bem assim, ao responsável subsidiário (aquele que ocupa o cargo de gestão da sociedade) e a falta de pagamento, faz o responsável subsidiário incorrer em responsabilidade criminal como co-autor do crime de abuso de confiança fiscal.
XX.
Por tudo isto, e tendo o aqui Impugnante, sido notificado no Processo-crime n° ..6/0....IDPRT nos termos do disposto no artigo 105.°, n° 4, alínea b) do RGIT, bem como tendo sido contra este deduzido despacho de acusação e despacho de pronuncia sempre enquanto responsável subsidiário da sociedade comercial, mostra-se de todo incompreensível que o Tribunal a quo, considere que o mesmo não tem legitimidade, em virtude de não ter um interesse legalmente protegido.
XXI.
Mais, ao ser solicitado ao mesmo o pagamento do imposto, sob pena de prosseguimento do procedimento criminal, as liquidações objeto dos presentes autos, projeta inequivocamente os seus efeitos na esfera jurídica e patrimonial do aqui Impugnante.
XXII.
É de todo incompreensível, que o Impugnante tenha legitimidade e seja considerado responsável subsidiário, no procedimento criminal, e que no processo judicial tributário não tenha qualquer legitimidade – não obstante de já por diversas vezes terem sido revertidas ou projetadas reversões contra o aqui Impugnante.
XXIII.
Desta forma, andou mal o Tribunal a quo, ao considerar não só que o Impugnante não tem um interesse legalmente protegido, bem como que os atos impugnados não produzem efeitos na esfera jurídica do Impugnante.
XXIV.
Pois que, se uma pessoa que possa vir a ser condenado por crime de abuso de confiança fiscal, pelo imposto aqui em causa, não tem legitimidade, por não ter interesse legítimo em demandar, quem terá?
XXV.
Mas mais, como não pode ter legitimidade para censurar uma liquidação adicional em resultado de uma inspeção tributária alguém que se perfila como devedor subsidiário e que “amanhã” tem contra si revertida tal dívida – e, não podendo impugnar, apenas poderá mais tarde vir a reagir a por via da oposição à execução.
XXVI.
Que, como sabemos, os fundamentos em sede de oposição à execução estão limitados aos estabelecidos no artigo 204.° do CPPT, o que consubstancia uma clara e ostensiva violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais, ínsito no artigo 20.° da CRP.
XXVII.
Reitere-se que o Impugnante era o administrador da sociedade comercial [SCom01...], S.A. no período a que se referem as liquidações adicionais sindicadas, tal como era, aquando da notificação das respetivas liquidações adicionais.
XXVIII.
Estando, assim, na contingência de ser condenado num processo de abuso de confiança fiscal, por dívidas que emergem de uma inspeção tributária e cujo método de apuramento do imposto devido mostra-se desconforme com as regras legalmente previstas.
XXIX.
Padecendo o relatório de inspeção tributária de manifesto erro de apuramento das quantias supostamente omitidas, resulta indubitável que as liquidações adicionais que lhe seguiram e aqui se mostram sindicadas, se encontram totalmente inquinadas pelo vício que lhes precede.
XXX.
De ressaltar ainda que a sociedade comercial [SCom01...], S.A., já se mostra dissolvida logo, a legitimidade para sindicar qualquer ato contra a mesma proposta, terá de ser sindicado pelo seu legal representante, ou seja, o aqui Impugnante.
XXXI.
Isto posto, tendo o aqui Impugnante sido notificado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do RGIT, ou seja, foi notificado para proceder ao pagamento do montante constante das liquidações adicionais supra mencionadas e sendo consabido que o pagamento excluí a punibilidade dos factos, tem por isso, o Autor, interesse legítimo para impugnar os atos de liquidação adicional de IVA objeto dos presentes autos.
XXXII.
Ora, o Impugnante, ao ser notificado nos termos do disposto na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do Regime Geral das Infrações Tributárias, é notificado para efetuar o pagamento dos valores constantes das liquidações sindicadas.
XXXIII.
Logo, existe aqui, uma exigência de cumprimento da obrigação tributária.
XXXIV.
E, se tem legitimidade para pagar, não tem legitimidade para sindicar essa liquidação?
AINDA POR OUTRO LADO,
XXXV.
Também não será despiciendo referir que atento os fundamentos expostos na impugnação judicial aqui deduzida a mesma, assume-se como uma questão prejudicial à resolução do processo penal tributário.
XXXVI.
Porquanto, a definição da situação jurídico tributária em resultado da apreciação do mérito da impugnação judicial deduzida pelo Impugnante, inelutavelmente se irá refletir e repercutir no enquadramento jurídico-criminal do Impugnante e da sociedade comercial no processo-crime Proc. nº ..6/0....IDPRT, que corre termos no Juízo Central Criminal do Porto Juiz ....
XXXVII.
E, também, por essa via, o Impugnante se mostra legitimado a deduzir a impugnação judicial subjacente aos presentes autos – por ter legitimidade para o fazer nos termos do artigo 9.º do CPPT.
SEM PRESCINDIR,
XXXVIII.
A interpretação desenvolvida na douta decisão recorrida do artigo 9.° do CPPT, no sentido do administrador da sociedade comercial a quem foi feita a liquidação adicional não ter legitimidade de impugnar judicialmente tal ato de liquidação, não obstante de estar a ser criminalmente perseguido pelos factos e valores constantes da mencionada liquidação adicional sindicada, deve ser declarada inconstitucional por impedir o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa – inconstitucionalidade que desde já se deixa aqui invocada, nos termos e para os efeitos do artigo 70.°, n° 1, alínea b) da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro.
TERMOS EM QUE,
Concedendo provimento ao recurso agora interposto e revogando a douta decisão recorrida, farão Vossas Excelências a acostumada,
JUSTIÇA!»
1.2. A Recorrida (Autoridade Tributária e Aduaneira), notificada da apresentação do presente recurso não apresentou contra-alegações:
1.3. O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer a fls. 263 e ss do SITAF, pugnando pela improcedência do recurso.
1.4. Com dispensa dos vistos legais dos Exmos. Desembargadores Adjuntos (cf. artigo 657º, n.º 4 do Código de Processo Civil (CPC), submete-se desde já à conferência o julgamento do presente recurso.
Questões a decidir:
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta do disposto no artigo 608.º n.º 2, artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º n.º 1, todos do Código de Processo Civil. Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir do erro no julgamento do Tribunal a quo ao decidir pela rejeição liminar.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 De facto
2.1.1 Matéria de facto dada como provada na 1ª instância e respectiva fundamentação:
«1. Foi emitida em nome da sociedade “[SCom01...], S.A.” a liquidação adicional de IVA n.° ...72, referente ao período de 200507M, no valor de € 62.853,24 cfr. o doc. 1 junto com a p.i..
2. A dívida correspondente à liquidação mencionada na alínea antecedente não foi revertida pela Autoridade Tributária contra «AA» cfr. informação do Serviço de Finanças ..., a fls. 52 do SITAF.
3. No inquérito n.° ..6/0....IDPRT, que corre termos no Departamento de Investigação e Ação Penal do Porto, está em causa o cometimento de factos ilícitos que poderão integrar a prática por «AA» de crimes de fraude fiscal, debruçando-se a investigação, entre outras sociedades, sobre a “[SCom01...], S.A.” cfr. o doc. 2 junto com a p.i.

2.2 De direito
In casu, importa apreciar a conformidade legal da decisão judicial que julgou verificada a excepção dilatória de ilegitimidade activa e indeferiu liminarmente a impugnação judicial deduzida.
O impugnante, ora recorrente, deduziu, em nome próprio, impugnação judicial contra a liquidação adicional de IVA respeitante à sociedade “[SCom01...], SA” e relativa ao período de 2005/07, no montante global de € 62.853,24 pedindo que fosse anulado o respectivo acto tributário.
Alegou para tanto, nomeadamente para sustentar a sua legitimidade na impugnação judicial apresentada, e em síntese que:
- à data dos factos a que a liquidação respeita, integrava os órgãos de gestão da mencionada sociedade;
- a dívida constante da mencionada liquidação adicional por certo estará a ser exigida em sede de processo de execução fiscal por via da reversão da dívida da mesma constante;
- está a ser perseguido criminalmente, pela prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. nos termos do artigo 103.° do RGIT, e no qual lhe vem assacada a responsabilidade pelos factos integrantes na mencionada previsão normativa em coautoria com a sociedade “[SCom01...], S.A.” encontrando-se o referido processo-crime a correr termos no Juízo Central Criminal do Porto – Juiz ..., Proc. n° ..6/0....IDPRT;
e que
- foi por via da imputação que lhe vem sendo feita que foi informado da possível existência da liquidação referente ao período de Julho de 2005.
Da decisão sob recurso, julgando verificada a ilegitimidade processual do Impugnante, indeferindo liminarmente a petição inicial, discorreu nos seguintes termos:
«“Nos termos do disposto nos n°s. 1 e 4 do art. 9° do CPPT, têm legitimidade no processo judicial tributário, além da AT, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais, quaisquer pessoas que provem interesse legalmente protegido, o Ministério Público e o representante da Fazenda Pública.
Em particular, estabelece-se no art. 9.°, n.° 3 do CPPT que, relativamente aos responsáveis subsidiários, a sua legitimidade para intervenção no processo tributário depende de contra eles ter sido ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários.
Ora, no que respeita à liquidação adicional de IVA aqui em causa, o Impugnante não é contribuinte direto (antes o é a sociedade “[SCom01...], S.A.” – cfr. o item 1) dos factos provados), nem é substituto (não está em causa o incumprimento de qualquer obrigação de retenção na fonte), nem é responsável subsidiário (de acordo com a informação prestada pelo Serviço de Finanças ..., não foi contra si ordenada a reversão da execução fiscal... - cfr. o item 2) dos factos provados), informação que, aliás, é corroborada pelo próprio Impugnante no requerimento apresentado nos autos, em que refere a reversão contra si de dívidas «da sociedade comercial «AA», LDA.» e não da “[SCom01...], S.A.”, admitindo que as dívidas revertidas não incluam o período aqui em causa.
Sendo certo que as pessoas subsidiariamente responsáveis poderão reclamar ou impugnar a dívida cuja responsabilidade lhes for atribuída nos mesmos termos do devedor principal, devendo a impugnação ser apresentada no prazo de três meses contados a partir da sua citação em processo de execução fiscal [cfr. o artigo 22.°, n.° 5 da Lei Geral Tributária (LGT) e artigo 102.°, n.° 1, al. c) do CPPT].
Acresce que o Impugnante também não demonstra qualquer interesse legalmente protegido que lhe confira legitimidade em processo judicial tributário, pois a instauração e pendência do inquérito n.° ..6/0....IDPRT (cfr. o item 3) dos factos provados) não incorpora qualquer liquidação de imposto operada em nome do Impugnante nem é equivalente a um ato de declaração de reversão contra si da dívida, além de que o Impugnante não demonstra que tenha sido notificado como sujeito passivo para o respetivo pagamento, sendo de realçar que não está impedido de, em sede de processo crime, fazer a prova de que não praticou os factos por que é acusado.
Neste mesmo sentido, veja-se o decidido nos Acórdãos do TCA Norte, de 22/06/2023, processo n.° 00055/22.7BEPRT e do TCA Sul de 11/03/2021, processo n.° 1971/16.0BELRS.
Resulta, assim, do exposto que para além de deduzir intempestivamente (por antecipação) a presente impugnação (pois não foi contra si proferido despacho de reversão), o Impugnante também a deduziu sem para tanto ter legitimidade processual.
Ora, por opção legislativa, a ilegitimidade singular é considerada uma exceção dilatória [cf. art. 89.°, n.° 4, alínea e), do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, aplicável subsidiariamente à impugnação judicial, ex vi alínea c) do art. 2.° do CPPT] que, sendo insuprível e tendo sido detetada em sede de apreciação liminar, conduz ao indeferimento da petição inicial, nos termos do 110.° do CPPT e do art.° 590, n.° 1 do CPC ex vi art.° 87.°, n.° 9 do CPTA.
Inconformado, com o assim decidido, insiste o Recorrente que “apesar de nunca ter sido citado, viu dívidas tributárias da mencionada sociedade comercial constarem da sua página da Administração Fiscal (dívidas contra si revertidas)” (conclusão 7ª), e contra ele foi instaurado processo-crime, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal e fraude fiscal. (conclusão 8ª), sendo esta liquidação adicional que sustentou o despacho de acusação.
Referiu que “viu ser contra si revertido ou projetado reverter dívidas da sociedade comercial [SCom01...], S.A., nas quais, por certo, se incluem os períodos a que respeita a liquidação adicional aqui sindicada” (conclusão 11ª), o que demonstra a sua legitimidade para sindicar esta liquidação.
Considerou que a decisão recorrida violou o disposto no artigo 9º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, pois foi notificado no Processo-crime n° ..6/0....IDPRT, nos termos do disposto no artigo 105º do RGIT, uma vez que integrava os órgãos sociais da sociedade comercial [SCom01...], S.A. no período a que se reporta a tributação em causa, sendo ambos arguidos no processo crime que abarca factos relativos ao período de tributação em causa nestes autos. Deste modo, sendo responsável subsidiário no procedimento criminal tem legitimidade no processo judicial tributário pois tem um interesse legalmente protegido uma vez que os actos impugnados produzem efeitos na sua esfera.
Salientou que a sociedade em causa foi dissolvida pelo que a legitimidade para sindicar a liquidação recai sobre ele na qualidade de legal representante (conclusão 30ª), e o seu interesse legítimo para impugnar resulta da notificação para pagamento, sendo que o pagamento exclui a punibilidade dos factos.
Considerou que a impugnação judicial “assume-se como uma questão prejudicial à resolução do processo penal tributário” e “a definição da situação jurídico tributária em resultado da apreciação do mérito da impugnação judicial deduzida pelo Impugnante, inelutavelmente se irá refletir e repercutir no enquadramento jurídico-criminal do Impugnante e da sociedade comercial no processo-crime – Proc. nº ..6/0....IDPRT” – (conclusão 35ª e 36ª).
Invocou a inconstitucionalidade da interpretação do artigo 9º do Código de Procedimento e de Processo Tributário efectuada na sentença recorrida “no sentido do administrador da sociedade comercial a quem foi feita a liquidação adicional não ter legitimidade de impugnar judicialmente tal ato de liquidação, não obstante de estar a ser criminalmente perseguido pelos factos e valores constantes da mencionada liquidação adicional sindicada, deve ser declarada inconstitucional por impedir o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa”.
Vejamos.
Ora, a presente situação é semelhante à decidida no recentíssimo acórdão desta instância, datado de 09.05.2024, proferido no processo n.º 1010/23.5BEBRG, de entre todos aqueles proferidos neste TCA, entre outros, acórdão de 09.05.2024, processo n.º 977/23.8BEPRT, de 25.05.2024, processo n.º 1304/23.0PRT, de 12.09.2024, processo n.º 394/23.0BEPRT, de 11.07.2024, processo n.º 460/23.1BEPRT, de 19.09.2024, processo n.º 973/23.5BEPRT, processo n.º 976/23.5BEPRT.
Portanto, atendendo ao disposto no n.º 3 do art.º 8.º do CC, consideramos ser de transpor para a presente situação os fundamentos e conclusões proferidos no citado acórdão de 09.05.2024, proferido no processo n.º 1010/23.5BEBRG, com as necessárias adaptações, mormente, de que no presente caso, a liquidação em causa diz respeito ao período de julho de 2005 e foi emitida em nome da [SCom01...], S.A..
Assim, naquele relatou-se que:
« […]
Senão, vejamos.
O art. 20º, nº 1 da CRP dispõe sobre o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, asseverando que a todos é assegurado “o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.
Todavia, o acesso ao direito mediante a utilização do processo judicial próprio carece da observação das regras previstas quanto à legitimidade para o efeito, pelo que a limitação de tal acesso, atentas as regras da legitimidade, não é suscetível de configurar uma qualquer denegação do acesso à justiça previsto no art. 20º, nº 5 da CRP, pelo que, falece razão ao recorrente quando invoca que a sentença recorrida ao decidir como decidiu lhe nega o acesso à justiça.
Por outro lado, o art. 9º do CPPT dispõe que:
“1 - Têm legitimidade no procedimento tributário, além da administração tributária, os contribuintes, incluindo substitutos e responsáveis, outros obrigados tributários, as partes dos contratos fiscais e quaisquer outras pessoas que provem interesse legalmente protegido.
2 - A legitimidade dos responsáveis solidários resulta da exigência em relação a eles do cumprimento da obrigação tributária ou de quaisquer deveres tributários, ainda que em conjunto com o devedor principal.
3 - A legitimidade dos responsáveis subsidiários resulta de ter sido contra eles ordenada a reversão da execução fiscal ou requerida qualquer providência cautelar de garantia dos créditos tributários.
4 - Têm legitimidade no processo judicial tributário, além das entidades referidas nos números anteriores, o Ministério Público e o representante da Fazenda Pública.”.
Como facilmente se constata da norma transcrita, a lei é clara quando define quem tem legitimidade para o procedimento e para processo tributário, não deixando margem para qualquer dúvida.
Sendo a impugnação judicial um processo de natureza judicial e de acordo com o disposto no art. 9º do CPPT, o recorrente não reúne nenhuma das qualidades que ali vêm mencionadas, quer para o procedimento, quer para o processo tributário.
Efetivamente, tal como resulta da sentença sob escrutínio, o recorrente não é o contribuinte visado (mas sim a sociedade), não é obrigado tributário, parte de contratos fiscais ou pessoa que tenha interesse legalmente protegido.
Tal como dispõe o art. 18º, nº 3 da LGT “O sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva…que nos termos da lei está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável”, nada disto sucedendo com o recorrente.
Ora, tal como resulta do probatório a liquidação adicional de IVA referente ao período de 0411, no valor de €2.237,69, foi emitida em nome da sociedade “«AA», Lda.”2 , o mesmo sucedendo com a liquidação relativa aos juros compensatórios (ponto 1 do probatório). Tal dívida não foi revertida contra o, aqui, recorrente (cf. ponto 2 do probatório), pelo que o mesmo não é devedor originário e muito menos devedor subsidiário, porquanto, ainda nenhuma reversão operou contra si. Também não temos eco nos autos de que o recorrente seja substituto tributário tal como está previsto no art. 20º e 28º da LGT.
Acresce, que o recorrente não provou nos autos ter qualquer interesse legalmente protegido, pois não prova que a dívida que está a ser imputada à supra identificada sociedade lhe esteja a ser exigida por qualquer dos títulos já identificados.
Diga-se, ainda, que apesar de o recorrente alegar no recurso que a sociedade devedora do imposto foi dissolvida e que a representa, tal configura matéria nova nunca antes alegada e que não foi alvo de apreciação na sentença, pois da petição inicial o que resulta no ponto 2 e 3 é que “à data dos factos integrava os órgãos de gestão da mencionada sociedade, mais concretamente, como gerente juntamente com «BB»” e que “Apesar do cargo exercido, nunca teve conhecimento da liquidação adicional… uma vez que, havia cessado as funções ali exercidas em 27/01/2005”.
Ainda assim, diga-se que apesar de invocar que integrava os órgãos sociais, tal facto por si só não lhe confere legitimidade, pois, a liquidação apenas produziu efeitos na esfera jurídica do sujeito passivo de IVA, no caso em apreço da dita sociedade, e não na esfera jurídica e patrimonial do recorrente, mesmo admitindo que pudesse ser o representante legal da sociedade, o que in casu não se prova, tanto mais que o recorrente apresenta os autos em nome próprio e não em representação da sociedade “«AA», Lda.”.
No que tange ao processo de inquérito crime a que alude, os direitos que eventualmente pretenda exercer terão que ser ali expressamente exercidos e não através da presente impugnação, por não ser o meio próprio para esse efeito, sendo certo que a sua ilegitimidade nos presentes autos não coíbe ou restringe a sua defesa naquele processo crime.
Cumpre, ainda, referir que a legitimidade do recorrente sempre será assegurada quando e se contra ele for revertida a dívida, sendo nesse momento que lhe é conferida a legitimidade para impugnar graciosa e/ou judicialmente a liquidação revertida ou opor-se à execução (art. 22º, nº 5, da LGT e 102º, nº 1, al. c) do CPPT ou 204º do mesmo diploma legal).
In casu, e como vimos dizendo, não ocorreu a reversão da dívida alvo da impugnação, nem é o mesmo responsável pela mesma seja a que titulo for, pelo que resta concluir, como concluiu a sentença recorrida, que o recorrente não tem legitimidade para impugnar judicialmente a liquidação visada nos autos. Ressuma do que vem dito que improcedem todas as conclusões do recurso, mostrando-se este votado ao insucesso. […]» [fim de transcrição]
Assim, também na presente situação, teremos que fazer apelo aos fundamentos referenciados na decisão desta instância acima referidos, dando-se nota que inexiste qualquer alegação ou elemento probatório que nos permita aqui concluir que a responsabilidade pelo cumprimento da obrigação de pagamento da liquidação adicional de IVA aqui em questão, tenha, por alguma forma, sido imputada ao Recorrente.
Por outro lado, como bem refere sentença recorrida o sujeito passivo do IVA é a sociedade [SCom01...], S.A., pelo que apenas esta teria legitimidade ativa para impugnar a liquidação aqui em causa.
Assim, como refere J. Lopes de Sousa, in “Código do Procedimento e Processo Tributário – Anotado e Comentado”, (I volume, 6.ª edição, anotação 2 ao art.º 9.º, pág. 113) “Recai sobre o interessado o ónus de alegar os factos que integram a sua legitimidade que, no caso da impugnação de actos de liquidação se limitam à sua identificação no acto como sujeitos passivos do tributo liquidado. (…)”.
Por isso, também teremos que concluir que a sentença recorrida não padece dos erros de julgamento imputados pela Recorrente, nem a interpretação nela feita ofende os princípios constitucionais por este aqui invocados.
2.3 Conclusões (nos termos do n.º 7 do art.º 663.º do CPC)
I. O artigo 20º, nº 1 da CRP dispõe sobre o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, asseverando que a todos é assegurado “o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.
II. Todavia, o acesso ao direito mediante a utilização do processo judicial próprio carece da observação das regras previstas quanto à legitimidade para o efeito, pelo que a limitação de tal acesso, atentas as regras da legitimidade, não é suscetível de configurar uma qualquer denegação do acesso à justiça previsto no artigo 20º, nº 5 da CRP.
III. Recai sobre o interessado o ónus de alegar os factos que integram a sua legitimidade que, no caso da impugnação de atos de liquidação se limitam à sua identificação no ato como sujeitos passivos do tributo liquidado.
3. DECISÃO
Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção Comum da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso.
Custas a cargo do Recorrente, sem prejuízo da decisão de apoio judiciário concedida.

Porto, 03 de outubro de 2024

Irene Isabel das Neves
Virgínia Andrade
Paulo Moura