Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01723/08.1BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:04/24/2024
Tribunal:TAF do Porto
Relator:VIRGÍNIA ANDRADE
Descritores:FACTOS ESSENCIAIS;PRINCÍPIO DA ESPECIALIZAÇÃO DOS EXERCÍCIOS;
CONSTITUIÇÃO DE PROVISÕES PARA DEPRECIAÇÃO DE EXISTÊNCIAS;
VÍCIO DE VIOLAÇÃO DE LEI – NÃO É QUESTÃO DE CONHECIMENTO OFICIOSO
Sumário:
I. Os factos essenciais são aqueles que integram a causa de pedir ou o fundamento da exceção e cuja falta determina a inviabilidade da ação ou da excepção

II. Os factos instrumentais, probatórios ou acessórios são aqueles que indiciam os factos essenciais e que podem ser utilizados para a prova indiciária destes últimos.

III. São factos complementares e factos concretizadores aqueles cuja falta não constitui motivo de inviabilidade da ação ou da exceção, mas que participam de uma causa de pedir ou de uma exceção complexa e que, por isso, são indispensáveis à procedência dessa ação ou exceção.

IV. O vício de violação de lei é o “vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objeto do ato e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis”.
A violação do princípio da justiça consubstancia vício de violação de lei. Nessa medida, não é questão de conhecimento oficioso, não sendo de apreciá-la e decidi-la porque consubstancia uma questão nova.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte

1 – RELATÓRIO
[SCom01...], Lda. vem interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou improcedente a impugnação intentada pela aqui Recorrente contra a liquidação de IRC n.º 2008............947 do exercício de 2005, no montante de €58.527,42.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:
“A) O fundamento único da sentença recorrida é ter considerado existir uma violação do princípio da especialização dos exercícios por a Recorrente ter constituído uma provisão para depreciação de existências no exercício de 2005 tendo utilizado para estimar o valor a provisionar uma «proposta de compra» recebida em 8 de Abril de 2006.
B) Uma vez que este é o único fundamento acolhido pela decisão recorrida não há mais que considerar outros fundamentos invocados pela AT no RIT.
C) Embora não expressamente dado como provado, há que aceitar (dando-se como expressamente provado, se se considerar necessário) que a identificação das peças cujo valor de mercado era inferior ao contabilístico foi feita com referência a 31/12/2005.
D) A proposta de compra de tais peças, recebida em 8 de Abril de 2006, não é o facto gerador do direito à constituição de uma provisão para depreciação de existências, mas tão só um elemento coadjuvante para a fixação do valor da provisão que se pretendia efectuar.
E) O facto constitutivo do direito à provisão é, tão só e apenas, o de tais peças, no fim de 2005, terem o valor contabilístico superior ao seu valor de mercado em tal data (31/12/2005), facto que não foi objecto de qualquer contestação, quer no RIT, quer no presente processo.
F) A lei não obriga a que aquele que constitui uma provisão para depreciação de existências tenha, na data a que se refere a provisão, documentação comprovativa da razoabilidade do valor registado a tal título.
G) A prova do montante de um dano pode ser obtida em momento posterior ao da ocorrência desse dano.
H) Seria impossível à Recorrente (e a qualquer sujeito passivo) obter, em 31/12/205, uma avaliação das peças que, com referência a essa mesma data, foram consideradas como estando «desvalorizadas», o que mostra bem o absurdo da fundamentação da sentença recorrida.
I) Os princípios gerais da contabilidade sempre obrigaram a que, em nome da verdade da informação contabilística, fosse levada em consideração a informação relevante obtida entre o fecho de um exercício e a aprovação das contas a ele relevantes
J) Essa obrigação tem hoje consagração expressa na NCRF 24, e é plenamente aplicável na constituição das provisões fiscalmente relevantes.
K) A Recorrente cumpriu plenamente com o princípio da especialização dos exercícios pois registou a perda potencial (efetuou o registo da provisão) nas contas do exercício em que constatou tal perda.
L) A Recorrente cumpriu plenamente com o princípio da prudência, uma vez que constituiu a provisão por valor inferior ao resultante da proposta de compra recebida.
M) A Requerente cumpriu com o princípio da fiabilidade da informação contabilística, pois teve em consideração toda a informação relevante, mesmo a obtida no período entre o termo do exercício de 2005 «fecho» das contas a ele referentes.
N) Mesmo que tivesse havido uma violação do princípio da especialização do exercício, nas circunstâncias apuradas, a mesma deveria ser desconsiderada em nome do princípio da justiça.
O) Assim entende a melhor doutrina e, em especial, a jurisprudência – recente mas reiterada – do STA.
P) Pelo que deve ser revogada a sentença recorrida e anulada a liquidação impugnada.”

Não houve contra-alegações.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Com dispensa dos vistos legais dos Exmos. Desembargadores Adjuntos ao abrigo do disposto no artigo 657.º n.º 4 do Código de Processo Civil, submete-se desde já à conferência o julgamento do presente recurso.

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Objecto do recurso

O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta do artigo 608.º n.º 2, artigo 635.º, n.º 4 e 639.º n.º 1, todos do Código de Processo Civil.
Assim, considerando o teor das conclusões apresentadas, importa apreciar e decidir do erro de julgamento da matéria de facto e do erro de julgamento de direito.

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2 - Fundamentação
2.1. Matéria de Facto
O Tribunal a quo decidiu a matéria de facto da seguinte forma, que aqui se reproduz: “
1. A Impugnante exerce a atividade comercial sob a forma de sociedade por quotas tendo iniciado a atividade em 12/12/1984, estando registada pelo exercício de atividade de comercio a retalho de relógios e artigos de ourivesaria – RIT em anexo;
2. Ao abrigo da OS interna n.º OI2007...83 de 15/05/2007 foi realizada inspeção ao exercício de 2005 - RIT em anexo;
3. Foi elaborado o relatório de inspeção tributária, em anexo, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
4. No âmbito da referida inspeção a AT detetou a constituição de provisões para depreciação de existências no exercício de 2005, no montante global de €200.000 – RIT em anexo;
5. Tendo por base uma proposta de compra efetuada em 08/04/2006 por [SCom02...], S.L., pelo preço de €380.000,00 – RIT e acordo (artigo 46 e ss., da p.i.);
6. O valor de aquisição das peças foi de €614.794,92 – RIT;
7. O negocio não foi realizado – acordo;
8. A AT procedeu a correção aritmética do lucro tributável da Impugnante em sede de IRC de 2005, no montante de €200.000,00, através da liquidação n.º 2008............947 – fls. 11, dos autos e PA;
9. Efetuou ainda a liquidação de juros n.º 2008..........204 – fls. 12. * Com interesse para a decisão causa não foram apurados factos não provados.
*
MOTIVAÇÃO
Os factos provados foram fixados com base nos elementos documentais constante dos presentes autos e do processo administrativo apenso, nomeadamente os relativos ao procedimento de inspeção tributária, os quais não foram impugnados e mereceram credibilidade, conforme discriminado nos vários pontos do probatório. A prova testemunhal também foi valorada, da forma seguinte:
As testemunhas, roc e funcionários da Impugnante, depuseram de forma credível tendo declarado que a impugnante dispunha de um lote de peças de joalharia que não se vendiam, vulgo monos, sobre as quais foi apresentada uma proposta de compra por parte de uma empresa espanhola, que não aceitaram.
As testemunhas também declararam que as ditas peças foram vendidas posteriormente em 2007, 2008 não sabendo concretizar os valores nem que peças eram em concreto.
Todavia estes depoimentos são vagos já que a as testemunhas não foram capazes de indicar o valor pelo qual foram vendidas as peças em questão.”
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2.2 – O direito
Constitui objecto do presente recurso a sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou improcedente a impugnação intentada pelo aqui Recorrente contra a liquidação de IRC n.º 2008............947 do exercício de 2005.

2.2.1. O erro de julgamento da matéria de facto

A Recorrente vem recorrer da decisão da matéria de facto, como decorre da conclusão C do presente recurso, considerando que deveria ter sido dado como provado que “a identificação das peças cujo valor contabilístico era superior ao valor de mercado foi feita com referência a 31 de Dezembro de 2005”.
Nessa medida, defende que tal facto deveria ter sido dado como provado i) face à presunção da verdade da contabilidade, ii) porque não foi questionado pela AT em sede de julgamento e/ou pela Inspecção Tributária, devendo ser fixado por acordo e ainda iii) porque é perfeitamente absurdo (um absurdo de que o Tribunal a quo não se terá apercebido) pretender que uma avaliação feita em Abril de 2006 pudesse servir de base à constituição de uma provisão relativa a depreciação de existências referente ao exercício de 2006, pela simples razão de que, entre Abril e Dezembro desse ano, o valor de mercado de tais peças se poderia alterar.Vejamos.
Como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 5.º do CPC “às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.”
Acresce que, estatui também o n.º 2 deste preceito legal que “Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.”
Ora, os factos essenciais são aqueles que integram a causa de pedir ou o fundamento da exceção e cuja falta determina a inviabilidade da ação ou da excepção. Por outro lado, os factos instrumentais, probatórios ou acessórios são aqueles que indiciam os factos essenciais e que podem ser utilizados para a prova indiciária destes últimos. Finalmente, são factos complementares e factos concretizadores aqueles cuja falta não constitui motivo de inviabilidade da ação ou da exceção, mas que participam de uma causa de pedir ou de uma exceção complexa e que, por isso, são indispensáveis à procedência dessa ação ou exceção – cfr. Teixeira de Sousa, (in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, pág. 70).
No mesmo sentido vide Abílio Neto, (in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., Janeiro de 2014, págs. 24 e 25), onde se lê “(…) seriam factos principais aqueles que integram o facto ou factos jurídicos que servem de base à ação ou exceção. Por seu turno, estes factos dividir-se-iam em essenciais e complementares, sendo os primeiros os que constituem os elementos típicos do direito que se pretende atuar em juízo e os segundos aqueles que, de harmonia com a lei, lhes conferem a eficácia jurídica necessária para fazer essa atuação. Ou seja, aquele denominador comum abrangeria não só a causa de pedir (os factos essenciais), mas também a procedibilidade da ação (os factos complementares). Tomemos como exemplo a separação de facto por um ano consecutivo como fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges (…); será este o facto essencial. Mas, para a procedência da ação ter-se-á ainda de prova que durante esse ano não existiu comunhão de vida entre os cônjuges e que houve da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer (…); estes serão os factos complementares”
Parafraseando Teixeira de Sousa (in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, pág. 70), “a cada um destes factos corresponde uma função distinta: - os factos essenciais realizam uma função constitutiva do direito invocado pelo autor ou da exceção deduzida pelo réu; sem eles não se encontra individualizado esse direito ou exceção, pelo que a falta da sua alegação pelo autor determina a ineptidão da petição inicial por inexistência de causa de pedir; os factos complementares possibilitam, em conjugação com os factos essenciais de que são complemento, a procedência da ação ou da exceção: sem eles a ação ou exceção não pode ser julgada procedente; por fim os factos instrumentais destinam-se a ser utilizados numa função probatória dos factos essenciais ou complementares”.
No caso presente, a Recorrente pretende que seja aditado ao probatório assente que: “a identificação das peças cujo valor contabilístico era superior ao valor de mercado foi feita com referência a 31 de Dezembro de 2005”.
No entanto, consideramos que tal facto não consubstancia um qualquer facto essencial, instrumental ou sequer complementar.
Isto porque, tal facto não se mostra necessário i) à procedência da pretensão formulada, ii) à prova indiciária dos factos essenciais e/ou iii) integrante da causa de pedir complexa, e que por isso seja indispensável à procedência.
Com efeito, no caso sob apreciação, os serviços da Inspecção Tributária procederam a correcções meramente aritméticas à matéria tributável por terem considerado que o custo respeitante à constituição de provisões para depreciação de existências não poderia ser reconhecido na medida em que “o ajustamento foi feito com base numa proposta efectuada 4 meses após o termo do exercício de 2005 e, (…) não tiveram por base elementos oficiais reportados à data de 31 de Dezembro de 2005 nem fonte considerada idónea ou de controlo inequívoco (…)”.
Assim, saber se “a identificação das peças cujo valor contabilístico era superior ao valor de mercado foi feita com referência a 31 de Dezembro de 2005”, é completamente inócuo à decisão da causa.
Nesta senda, improcedendo os fundamentos de recurso invocados pela Recorrente, mantém-se inalterada a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo.

2.2.2. O erro de julgamento de direito

A Juíza do Tribunal a quo julgou improcedente a impugnação judicial deduzida pela Recorrente, por ter entendido que ficou demonstrado que a constituição da provisão para o exercício de 2005 assentou numa proposta de compra das existências em causa efectuada em 2006, tendo assim ficado demonstrada a violação do princípio da especialização.
A Recorrente, discorda do assim decidido, sustentando, no essencial, que a lei não obriga a que, na data da provisão haja documentação comprovativa da razoabilidade do valor registado a tal título, podendo a prova do montante de um dano ser obtida em momento posterior ao da ocorrência desse dano, tendo cumprido plenamente com o princípio da especialização dos exercícios pois registou a perda potencial (efetuou o registo da provisão) nas contas do exercício em que constatou tal perda.
Ademais, defende que, mesmo que tivesse havido uma violação do princípio da especialização do exercício, nas circunstâncias apuradas, a mesma deveria ser desconsiderada em nome do princípio da justiça.
Vejamos.
Como dispunha à data dos factos o artigo 18.º n.º 1 do Código do Imposto sobre as Pessoas Colectivas (CIRC) “Os proveitos e os custos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao exercício a que digam respeito, de acordo com o princípio da especialização dos exercícios.”
Ora, “O princípio da especialização dos exercícios, consagrado no artigo 18.º do C.I.R.C. tem uma densidade vinculativa elevada, não tolerando – fora dos casos expressamente consignados na lei – qualquer margem de manobra do contribuinte na afectação temporal dos movimentos económico-financeiros da empresa. A razão é evidente: trata-se de impedir práticas de manipulação do resultado fiscal que resultem na imputação de mais proveitos nos exercícios em que se verificam prejuízos fiscais ou lucros mais reduzidos e mais custos nos exercícios que geraram maiores lucros” - cfr. Acórdão do TCA Norte de 15.02.2012, rec. 00486/07.2BEVIS.
Desta forma, os proveitos e custos são contabilizados nos exercícios que são obtidos e suportados e não nos exercícios em que o recebimento ou pagamento ocorra. Neste sentido vide Acórdão do STA de 2.03.2016, rec. 01204/13.
Isto porque, “ princípio da especialização dos exercícios visa tributar a riqueza gerada em cada exercício e daí que os respectivos proveitos e custos sejam contabilizados à medida que sejam obtidos e suportados, e não à medida que o respectivo recebimento ou pagamento ocorram” – cfr. Acórdão do STA de 14.03.2018, proferido no processo n.º 0716/13.
“De salientar, de resto, que o princípio da especialização dos exercícios é um subprincípio do da tributação do rendimento líquido. Que, por sua vez, concretiza ou densifica uma determinada ideia de igualdade tributária (neste sentido, vd. «Manual de Direito Fiscal» do Prof. J.L. Saldanha Sanches, 3.ª ed. pág. 370). Sendo as concepções mais recentes do princípio da igualdade tributária apontam precisamente para lhe atribuir de uma dimensão positiva e conformadora, dela fazendo uma «genuína expressão de justiça». (cit. «O Princípio da Equivalência como Critério de Igualdade Tributária», do Prof. Sérgio Vasques, pág. 70). O que confirma que a rigidez estrutural do princípio da especialização dos exercícios não pode comprometer ou afrontar os valores gerais que serve e exprime nem conduzir a uma solução materialmente injusta” – cfr. Acórdão do TCA Norte de 15.02.2012, rec. 00486/07.2BEVIS.
Como tal, o fim do princípio da especialização dos exercícios é a afectação no mesmo exercício dos rendimentos face aos gastos incorridos, impedindo assim que num determinado exercício se verifique desequilíbrio entre os proveitos auferidos e os custos incorridos.
Relativamente às provisões, estabelecia à data a alínea b) do n.º 1 do artigo 34.º do CIRC que “1 - Podem ser deduzidas para efeitos fiscais as seguintes provisões: (…) b) As que se destinarem a cobrir as perdas de valor que sofrerem as existências (…)”
As provisões são assim registos contabilísticos de verbas destinadas a fazer face a um encargo imputável a determinado exercício, mas de comprovação futura, ou já comprovado, mas de montante incerto.
“Sobre a noção de provisão, esclarece o Prof. Rui Morais (in “Apontamentos ao IRC, Almedina”, 2009, págs. 119-120.) que “As provisões são registos contabilísticos de verbas destinadas a fazer face a um encargo imputável ao exercício, mas de comprovação futura, ou já comprovado mas de montante incerto. Tal como uma pessoa cautelosa, quando confrontada com uma despesa previsível, põe antecipadamente de lado o dinheiro necessário para a satisfazer, também uma empresa previdente deve preservar certa fracção dos seus resultados para se precaver contra perdas que reputa de prováveis. Note-se, porém, que na constituição de uma provisão não está, directamente, em causa a criação de uma “reserva monetária”, mas a consideração de um custo, o que tem como consequência que o lucro apurado (e, portanto, também o lucro distribuível) seja menor. A consideração de uma provisão como custo de um determinado exercício dá tradução prática a dois dos sãos princípios da contabilidade: - o princípio da prudência (tomam-se em consideração, no apuramento dos resultados do exercício, os riscos previsíveis e as perdas eventuais derivadas de um facto nele ocorrido); - o princípio da especialização dos exercícios (imputa-se ao exercício em que o facto ocorreu o seu – ainda que só meramente possível – custo). A não constituição da provisão num dado exercício (ou a sua constituição por valor insuficiente) resulta numa violação deste princípio, na medida em que terá como efeito deslocar para outros exercícios custos pertencentes àquele. A constituição de provisões envolve um elevado grau de subjectividade por parte da empresa, v.g., na apreciação dos factos que, no seu entender, poderão gerar, no futuro, perdas. Ou seja, uma empresa cautelosa tenderá – e bem – a efectivar provisões, decidindo quais os factos que as devem legitimar e respectivo montante. Por ser este um procedimento correcto, compreende-se a intencional flexibilidade das regras contabilísticas. Porém, a lei fiscal tem que assumir uma perspectiva mais restritiva. Caso fossem aceites como custo fiscal a totalidade ou, pelo menos, a generalidade das provisões que a empresa decidiu constituir, estaria aberto caminho fácil para se evitar ou, pelo menos, adiar a tributação (para se conseguir uma redução artificial do lucro tributável, através da constituição de provisões excessivas). Daí que as regras fiscais se afastem das contabilísticas, sendo muito mais densas, ou seja, resulte, em muito, reduzida a projecção fiscal dessa margem de discricionariedade contabilística. O mesmo é dizer que será normal existirem provisões registadas na contabilidade que não são aceites como custo fiscal, que, também nesta medida, o resultado final seja diferente do contabilístico” – cfr. Acórdão do STA de 28.01.2015, rec. 652/14.
Acresce que, o n.º 1 do artigo 36.º do CIRC, sob a epígrafe “Provisão para depreciação de existências”, dispunha que “A provisão a que se refere a alínea b) do nº 1 do artigo 34º corresponde à diferença entre o custo de aquisição ou de produção das existências constantes do balanço no fim do exercício e o respectivo preço de mercado referido à mesma data, quando este for inferior àquele” e o seu n.º 2 que “Para efeitos do disposto no número anterior, entende-se por preço de mercado o custo de reposição ou o preço de venda, consoante se trate de bens adquiridos para a produção ou destinados a venda”
Por último, estabelecia o n.º 3 do artigo 26.º do CIRC que “São havidos por preços de venda os constantes de elementos oficiais ou os últimos que em condições normais tenham sido praticados pela empresa ou ainda os que, no termo do exercício, forem correntes no mercado, desde que sejam considerados idóneos ou de controlo inequívoco”
No caso em apreço, os Serviços de Inspecção Tributária entenderam não ser de acolher para efeitos fiscais o custo respeitante à constituição de provisões para depreciação de existências no exercício de 2005, por não estarem preenchidos os requisitos previstos nos artigos 35.º e 36.º do CIRC.
Com efeito, foi considerado que i) a contabilização do ajustamento não respeitou o princípio da especialização e ii) o ajustamento não teve por base elementos oficiais reportados à data de 31.12.2005, nem fonte considerada idónea ou de controlo inequívoco.
Isto porque, a constituição da provisão teve por base uma proposta de compra efectuada em 8.04.2005 por potencial cliente, cujo preço oferecido (€380.000,00) foi inferior ao preço de aquisição (€614.794,92).
A decisão recorrida, na senda do considerado pelos Serviços de Inspecção Tributária, considerou que a Recorrente, ao fazer o ajustamento no exercício de 2005 violou o princípio da especialização.
A Recorrente, no entanto, vem defender que o Tribunal confundiu o momento em que é constatada a verificação de uma perda com o momento em que é estimado o valor de tal perda, não obrigando a lei a obtenção prévia de provas da razoabilidade do valor provisionado.
Não podemos concordar com o assim considerado, isto porque, como aqui já demos conta, o n.º 1 do artigo 36.º do CIRC obriga a que a provisão corresponda à diferença do custo de aquisição no fim do exercício e o preço de mercado dessa mesma data.
Nessa medida, o factor determinante para a constituição da provisão teria que ter sido determinado até 31.12.2005, o que não se verificou.
Com efeito, e tal qual nos dá conta os autos, o ajustamento efectivado no exercício de 2005 ocorreu na sequência de proposta de compra efectuada em 8.04.2006, isto é, decorridos 4 meses do final do exercício em questão.
Por outro lado, também não colhe a posição da Recorrente quando defende que o facto constitutivo do direito à provisão é, tão só e apenas o de tais peças, no fim de 2005, terem o valor contabilístico superior ao seu valor de mercado em tal data (31.12.2005) e não a proposta de compra recebida em 8.04.2006
Se assim fosse, não se vislumbraria qual o fundamento da constituição da provisão, isto porque, tal como decorre do disposto no n.º 3 do artigo 26.º do CIRC os preços de venda são os constantes de elementos oficiais ou os últimos que em condições normais tenham sido praticados pela empresa ou ainda os que, no termo do exercício, forem correntes no mercado, o que in casu não se verifica, na medida em que, não vem alegado e/ou comprovado qualquer facto nesse sentido.
A Recorrente não alegou nem comprovou que o preço de mercado à data de 31.12.2005 fosse aquele, nem demonstrou ter efectuado qualquer venda naqueles termos.
Nessa senda, a Recorrente, ao ter realizado ajustamento com base em proposta efectuada 4 meses após o termo do exercício de 2005 violou o princípio da especialização dos exercícios, pelo que deveria ter acrescido no quadro 07, campo 752 da declaração Modelo 22 de IRC do exercício de 2005 tal valor, o que não logrou fazer.
Pelo exposto, impõe-se concluir que a sentença recorrida não enferma do erro de julgamento que lhe vem assacado, sendo de negar provimento no que esta alegação contende.
Acresce que, vem também a Recorrente invocar que mesmo que se verificasse uma violação do princípio da especialização dos exercícios, nas circunstâncias apuradas, a mesma deveria ser desconsiderada em nome do princípio da justiça.
No entanto, tal fundamento não foi invocado em sede da petição inicial, mas tão só em sede do presente recurso.
Vejamos.
Como decorre do disposto no artigo 635.º do CPC, sob a epígrafe “Delimitação subjetiva e objetiva do recurso”, “3 - Na falta de especificação, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente”
Assim, “a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas. Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estes sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. (…) A assunção desta regra encontra na jurisprudência numerosos exemplos: a) As questões novas não podem ser apreciadas no recurso, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos, pois estes destinam-se a reapreciar questões e não a decidir questões novas, pois estes destinam.se a reapreciar questões, e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprimir um ou mais órgãos de jurisdição.. Ac. do STJ, de 1-10-02, CJ, t. III, p.65”- cfr. António Santos Abrantes Geraldes (in Recursos em processo Civil, 7ª Edição atualizada, Almedina, pag. 139 a 141).
No mesmo sentido vide Acórdão do STA de 29.10.2014, proc. 0833/14.
Nesta senda, não vindo invocada questão de conhecimento oficioso, não pode o Tribunal superior apreciar uma questão nova.
Ora, no caso presente somente foi invocada a violação do princípio da justiça em sede de alegações do presente recurso.
Parafraseando Freitas do Amaral (in Curso de Direito Administrativo, Volume II, Almedina, 10ª reimpressão da edição de 2001, 2018, páginas 390/391 - com a colaboração de Lino Torgal), o vício de violação de lei é o “vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objeto do acto e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis. O vício de violação de lei, assim definido, configura uma ilegalidade de natureza material: neste caso, é a própria substância do ato administrativo, é a decisão em que o ato consiste, que contraria a lei. (…). Não há, pois, correspondência entre a situação abstratamente delineada na norma e os pressupostos de facto e de direito que integram a situação concreta sobre a qual a Administração age, ou coincidência entre os efeitos de direito determinados pela Administração e os efeitos que a norma ordena. O vício de violação de lei produz-se normalmente quando, no exercício de poderes vinculados, a Administração decida coisa diversa do que a lei estabelece ou nada decida quando a lei mande decidir algo.”
Nesta medida, quando seja infringido princípio geral que limita ou condiciona, de forma genérica, a discricionariedade administrativa, como seja a violação do princípio da justiça, estamos perante vicio de violação de lei – cfr. Freitas do Amaral, obra supra citada, pag. 392.
Assim, estando-se perante um vício de violação de Lei, tal questão não é de conhecimento oficioso, por não se enquadrar em nenhuma das situações elencadas no artigo 578.º e artigo 579.º, ambos do CPC, ou consubstanciar questão que deva ser conhecida ao abrigo do disposto no artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa. Neste sentido vide Helena cabrita (in “A sentença cível”, 2ª Edição revista e actualizada, Almedina, pag. 51 a 53).
Nesta senda, sendo a questão que vem colocada - violação do princípio da justiça - uma questão nova, por não ter sido invocada, apreciada e/ou decidia pelo Tribunal a quo e não sendo de conhecimento oficioso, não irá ser conhecida por este Tribunal, por impossibilidade legal.
Nestes termos, concluímos pela total improcedência do recurso.






Nos termos do disposto no artigo 663.º nº 7 do Código de Processo Civil, elabora-se o seguinte SUMÀRIO:


I. Os factos essenciais são aqueles que integram a causa de pedir ou o fundamento da exceção e cuja falta determina a inviabilidade da ação ou da excepção
II. Os factos instrumentais, probatórios ou acessórios são aqueles que indiciam os factos essenciais e que podem ser utilizados para a prova indiciária destes últimos.
III. São factos complementares e factos concretizadores aqueles cuja falta não constitui motivo de inviabilidade da ação ou da exceção, mas que participam de uma causa de pedir ou de uma exceção complexa e que, por isso, são indispensáveis à procedência dessa ação ou exceção.
IV. O vício de violação de lei é o “vício que consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objeto do ato e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis”.
V. A violação do princípio da justiça consubstancia vício de violação de lei. Nessa medida, não é questão de conhecimento oficioso, não sendo de apreciá-la e decidi-la porque consubstancia uma questão nova.

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3 – Decisão

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal em negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida.

Custas pela Recorrida.

Porto, 24 de Abril de 2024


Virgínia Andrade
Serafim José da Silva Fernandes carneiro
Graça Valga Martins