Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01081/07.1BECBR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/22/2012
Tribunal:TCAN
Relator:Maria do Céu Dias Rosa das Neves
Descritores:ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Sumário:O enriquecimento sem causa, face ao que a doutrina e jurisprudência vêm expendendo, tendo em vista o enunciado nos artºs 473º e 474º do CC, depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos (i) a existência de um enriquecimento, (ii) que esse enriquecimento não tenha causa que o justifique; (ii) (iii) que ele seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição; (iv) que não haja um outro acto jurídico entre o acto gerador do prejuízo deste e a vantagem obtida pelo enriquecido.*
*Sumário elaborado pelo Relator
Data de Entrada:09/22/2011
Recorrente:Município de Mira
Recorrido 1:M. ...
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Ordinária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:a) Nega provimento ao recurso interposto do despacho saneador; b) Concede parcial provimento ao recurso interposto da sentença final
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
1 – RELATÓRIO:
O MUNICÍPIO DE MIRA, no âmbito da presente acção administrativa comum com base em enriquecimento sem causa, intentada por MJ. …, MG. …, CG. … e JG. …, na qualidade de herdeiros de CR. …, em que reclamam o pagamento da quantia de 48.420,91€ interpôs recurso jurisdicional das seguintes decisões:
(i) do despacho saneador proferido em 04/03/2010 [que decidiu as excepções da ilegitimidade passiva, da competência em razão da matéria dos TAF para conhecer do mérito, da não realização da tentativa de conciliação extra judicial prevista no nº 1 do artº 260º do DL nº 59/99 de 02/03 e da preterição das formalidades exigidas pelo DL nº 197/99 de 08/06];
(ii) da sentença proferida em 17/05/2011 que condenou o Município a pagar aos AA./ora recorridos a quantia de 37.232,82€ a título de enriquecimento sem causa, por obras efectuadas e não pagas.
*
O recorrente apresentou, para o efeito, as seguintes CONCLUSÕES que aqui se reproduzem:
«1. O presente recurso vem do douto despacho saneador e da douta decisão do TAF de Coimbra que julgou a acção (parcialmente) procedente, condenando o recorrente a pagar aos recorridos a quantia de 37.232,82€, acrescida de juros moratórios, contados à taxa legal, devidos desde a citação até integral pagamento, bem como nas custas processuais, não tendo sequer atendido no decaimento dos AA. no seu pedido inicial, para efeito de repartição de custas, o que, caso a decisão se viesse a manter, o que não se concede, sempre haveria que revogar a sentença em conformidade.
2. O douto despacho saneador não fez um correcto enquadramento dos factos, tendo na realidade, feito uma análise simplista das questões colocadas e suscitadas nos autos a propósito das excepções invocadas pelo recorrente, o que, salvo o devido respeito, que é muito, levou a um menor acerto na decisão.
3. De facto, ficou provado que o Município de Mira não celebrou com a A. qualquer contrato de empreitada. E, na verdade, alegou a A. no artigo 17º da P.I. que os serviços referidos no artigo 2º do mesmo articulado foram solicitados pelos ex-responsáveis da Câmara Municipal, não identificando quem, o que igualmente e em sede de julgamento não se veio a apurar.
4. Deste modo, deveria desde logo no despacho saneador, julgar-se procedente a excepção de ilegitimidade passiva do R. Município de Mira e, ao não fazê-lo, violou as disposições conjugadas dos artigos 493º, nº 1 e 2 e 494º, al. e), ambos do CPC, por não ter absolvido o recorrente da instância.
5. Além do mais, não se verificando nos presentes autos estarmos perante uma questão sobre interpretação, validade ou execução de contrato de empreitada de obras públicas, os Tribunais Administrativos são incompetentes em razão da matéria para decidir a presente questão.
6. Pelo que, o douto despacho saneador deveria igualmente e pelas razões invocadas absolver o R. da instância, tendo violado as disposições conjugadas dos artigos 493º, nºs 1 e 2 e 494º, al. a), ambos do CPC.
7. Ficou abundantemente provado, até pela posição das partes no processo que houve violação de lei, a que se refere o regime jurídico de aquisição de bens e serviços, a que se refere o DL nº197/99, de 8/06, que não foi pelo Município de Mira mas, por alguém, quem não se descortinou a sua autoria.
8. A violação de lei configura uma situação de nulidade insanável, facto que constitui excepção peremptória e que haveria desde logo de determinar a absolvição do Município de Mira do pedido. O despacho saneador ao não fazê-lo violou o disposto no DL nº 197/99, de 8/06 e artigo 493º, nº 3 do CPC.
9. Por fim e nesta sede, invocou o R. a inadmissibilidade da presente acção, uma vez que tendo sido requerido pela A. a tentativa de conciliação extrajudicial nos termos do DL nº59/99, de 2/03, acerca da questão controvertida nos presentes autos, e tendo o R. apresentado resposta escrita, a mesma não se chegou a realizar. Estabelece o artigo 260º, nº 1 do mesmo DL que as “Acções a que se refere o artigo 254º, deverão ser precedidas de tentativa de conciliação extrajudicial…”. Apenas e no caso de se frustrar a possibilidade da realização da tentativa de conciliação ou na falta de acordo na mesma, é que dando-se cumprimento ao estabelecido no artigo 263º do mesmo DL, seria entregue à A. cópia do auto respectivo, a fim de a mesma poder interpor a respectiva acção.
10. Assim, por falta do aludido pressuposto processual a presente acção é legalmente inadmissível. Tal facto constitui, igualmente, matéria de excepção dilatória que determinaria desde logo a absolvição do R. da instância. Violou assim, o douto despacho saneador o disposto no artigo 493º, nº 2 do CPC.
11. Por outro lado, a douta decisão do Meritíssimo Tribunal a quo de que se recorre enferma de erro de julgamento da matéria de facto, e até mesmo de insuficiência da matéria de facto com vista à resolução de questões jurídicas implicadas na apreciação e decisão da causa, mas também erro de julgamento de direito com violação de normas legais.
12. A A. alegou, por diversas vezes ao longo da sua P.I.:
Que … por várias vezes o R. decidiu contratar, com o representado pela A., a realização de várias obras no concelho de Mira, que a seguir se discriminam: …- cfr. artº 2º da P.I.
Que … baseada numa pretensa irregularidade formal na contratualização, a ré, dona da obra tem vindo a eximir-se ao pagamento de tais empreitadas”- cfr. artº 11º da P.I.
Que … foram solicitados pelos ex-responsáveis da Câmara Municipal o que levou à expectativa da celebração do contrato administrativo e que, pior ainda, levaram a que o requerente o tivesse considerado como existente, já que executou os trabalhos correspondentes - cfr. artº 17º da P.I.
Que … o valor das empreitadas identificadas em 2º, deste articulado, foi acordado entre empreiteiro e dono da obra, sendo considerado por ambos um valor equilibrado para os trabalhos prestados” - cfr. artº 24º da P.I.
Que … o empreiteiro sempre confiou no pontual pagamento das empreitadas…”- cfr. artº 25º da P.I.
13. Ora, o eixo central da modelação da figura do enriquecimento sem causa é a inexistência de causa para o enriquecimento. Isto é, não pode haver causa justificativa que legitime o enriquecimento de acordo com a ordenação jurídica dos bens aceite pelo sistema (P. Lima e A. Varela, in C.C. Anotado, 2ª ed., pág.401).
14. Ora, haverá causa que justifique o enriquecimento sempre que entre o empobrecido e o enriquecido tenha havido uma relação jurídica contratual que o segundo não chegou total ou parcialmente a cumprir (é o que resulta de todo o acervo probatório vertido na sentença recorrida, em conformidade com a alegação da A. na sua P.I.). Em tal hipótese, a vantagem ilegítima obtida pelo devedor deriva directamente do contrato incumprido. É essa, pois, a causa para o seu enriquecimento.
15. Não há enriquecimento se houver causa e tal é o que acontece no caso sub judice, atenta a alegação da A. e o que ficou provado na douta sentença recorrida –cfr. pontos 5 a 12 dos factos provados.
16. Donde, não poderia o Tribunal deixar de ter em conta, como o fez, não só a causa de pedir, como os próprios elementos caracterizadores do instituto do enriquecimento sem causa.
17. Na situação em apreço e tendo sempre por base a alegação da A. e a matéria que a decisão recorrida deu como provada, havia causa para o enriquecimento (contrato incumprido). E, dada a natureza subsidiária do instituto do enriquecimento sem causa, falha um dos pressupostos para a A. intentar a Acção com fundamento em tal instituto.
18. Efectivamente, dado o carácter subsidiário do instituto do enriquecimento sem causa, nos termos do disposto no artigo 474º do CC, não tem cabimento a sua invocação quando, como é o caso vertente, haveria a possibilidade de demandar fundada nos alegados contratos verbais e empreitadas - (A. Varela, R.L.J., ano 102º/253, nota 1 e “Das Obrigações em Geral”, I, 9ª ed., págs. 513, 514, nota 1 e 517; Pires de Lima e A. Varela, in C.C. Anotado, I, 2ª ed., pág. 404, na anotação 1ª no artigo 474º do CC; Mário de Brito, in CC Anotado, I, pág. 364; Leite de Campos, in “A subsidiariedade da obrigação de restituir”, pág. 194 e segs; Assento do STJ de 28/03/95, in BMJ nº 445/67; também ACS. do STA de 25/02/87, rec. nº 073610; 10/10/2002, rec. nº02B2462; 23/01/2003, rec. nº 02B4126).
18. O que quer dizer que, havendo causa para o enriquecimento, a restituição de que trata o artigo 473º, nº 1 do CC não seria o sancionamento adequado.
19. Pelo que, a acção terá necessariamente de improceder no seu todo, tendo a douta decisão recorrida feito uma errada valoração da prova produzida e, consequentemente, incorrecta subsunção dos factos ao direito aplicável, violando as regras contidas nos artºs 473º, 474º e 479º, todos do Código Civil.
20. Já quanto à matéria de custas processuais, também a decisão recorrida jamais poderia condenar o R. no pagamento da totalidade, mas sempre em função do decaimento dos AA. no seu pedido, caso não se viesse a revogar a decisão na sua totalidade, com custas a cargo dos AA».
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Os recorridos contra-alegaram e apresentaram as seguintes CONCLUSÕES:
«1º Da suposta ilegitimidade passiva do Réu Município de Mira:
O Ilustre Tribunal a quo decidiu bem ao considerar, em sede de audiência preliminar, “que tal como foi configurada a acção pelos AA. (…) o Município é parte na relação material controvertida, porque representa os interesses contrapostos aos do autor, uma vez que será ele a pessoa cuja esfera jurídica é directamente atingida pela providência requerida.
De facto, nos termos legais, o interesse directo em demandar e em contradizer resulta no primeiro da utilidade que deriva da procedência da acção e no segundo do prejuízo que dessa procedência advenha. Devendo ser considerados titulares do interesse relevante para efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Pelo que deve improceder a alegada ilegitimidade passiva do Réu, mantendo-se a douta decisão recorrida.
2º Da suposta incompetência material do tribunal “a quo”:
O pedido formulado pelos AA. tem por base o enriquecimento sem causa do R. Município de Mira, sendo pacífico, tanto doutrinária como jurisprudencialmente, o entendimento de que tal pedido deva ser feito no Tribunal Administrativo.
O artigo 37º, 2, i) do CPTA prescreve que seguem a forma de Acção Administrativa Comum os processos que tenham por objecto litígios relativos a enriquecimento sem causa.
Não merece pois, qualquer reparo, a douta decisão de primeira instância, pelo que também em relação a esta matéria, deve ser por V. Exªs mantida.
3º Da suposta excepção (?) baseada na preterição das formalidades exigidas pelo Regime Jurídico da Aquisição de Bens e Serviços, previsto no Decreto-Lei nº 197/99 de 8 de Junho.
O R. volta a alegar uma suposta excepção (?) baseada no facto de não terem sido, no caso sub Júdice, cumpridos os procedimentos legais necessários à execução de um ou vários contratos de empreitada.
Como doutamente é expresso no despacho proferido na audiência preliminar, tal questão não constitui matéria de excepção, mas sim de mérito da acção.
Mais uma vez a decisão do insigne tribunal de primeira instância foi criteriosa e justa devendo ser mantida.
4º Da alegada inadmissibilidade da acção pela não realização da tentativa de conciliação extrajudicial:
O artigo 18º do DL nº 18/2008, de 29 de Janeiro, que aprovou o CPC revogou os artigos 260º a 264º do DL 59/99, de 2 de Março, não sendo os mesmos aplicáveis aos contratos já celebrados.
O Meritíssimo Tribunal Administrativo de Coimbra, acompanhado aliás por vastíssima base doutrinária e jurisprudencial (vide por todos Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo com o nº de documento SA120040422062, publicado in Dgsi. pt), decidiu que no caso concreto, tendo por base o enriquecimento sem causa do R. ficaria destituída de sentido recorrer à tentativa de conciliação extrajudicial.
Pelo que também neste caso deve a douta decisão recorrida ser mantida.
Ainda assim se dirá que foi realizada a tentativa extrajudicial de conciliação, estando junta ao processo a Acta da reunião da Comissão e Auto de Não Conciliação por Impossibilidade de Diligência (atenta a falta de comparência do R., devidamente convocado).
Pelo que, até pelo que fica dito, a decisão recorrida fez uma acertada aplicação das normas legais, devendo, em consequência, ser mantida.
5º Do alegado erro no julgamento da matéria de facto e da insuficiência da matéria de facto:
As alegações de recurso do R. padecem de uma contradição insanável acerca da existência ou não de um contrato na base das obras efectuadas pelo representado pelos AA.
De facto, se, para efeitos de alegação de uma pretensa incompetência material do Tribunal a quo o Réu afirma a inexistência de qualquer contrato, já afirma a seguir a existência de um pretenso contrato, o que impediria, na sua óptica, a invocação do instituto do enriquecimento sem causa.
Ora, a presente acção tem na base o enriquecimento sem causa do R.
Nos termos do artigo 473º, nº 1 do Código Civil, “aquele que, sem causa justificativa, enriquece à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.
Verifica-se pois a plena concordância entre a matéria de facto provada e as condições de modelação do instituto do enriquecimento sem causa.
No caso concreto, o R. enriqueceu ao não pagar os trabalhos de construção civil que foram efectuados pelo representado dos AA.
Esse enriquecimento não tem causa que o justifique, já que nunca houve a outorga de um contrato, sendo realizados trabalhos, de forma urgente, pelas próprias circunstâncias do local ou pela proximidade temporal de eleições (como aliás doutamente descrito na fundamentação das respostas aos artigos 1º, 2º e 3º da base instrutória), a solicitação dos responsáveis camarários em funções.
Tal enriquecimento foi ainda obtido à custa do empobrecimento dos AA., já que estes viram as suas despesas acrescidas ao executarem os trabalhos.
Por fim, não era possível o recurso a outro acto que sanasse o vício ou compensasse o representado pelos AA. pois não era possível proceder à anulação, à conversão, à revogação ou à resolução de um contrato inexistente.
Pelo que também aqui o Meritíssimo Tribunal a quo procedeu a uma criteriosa e justa aplicação da lei subsumindo os factos provados ao direito aplicável, devendo ser mantida».
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A Digna Magistrada do Ministério Público, junto deste Tribunal, notificada nos termos e para os efeitos previstos no artº 146º, do CPTA, não se pronunciou.
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Os autos foram submetidos à Conferência para julgamento, depois de colhidos os respectivos vistos.
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2.FUNDAMENTOS
2.1.MATÉRIA DE FACTO
Da decisão recorrida resultam assentes os seguintes factos:
«1. No dia 14 de Fevereiro de 2006 faleceu CR. ..., tendo por escritura de habilitação relatada no dia 24 de Junho de 2008, ficado como habilitados MJ. ..., MG. ... e CG. ....
2. O Município de Mira não celebrou com a Autora, rectius, com o seu alegado representado, CR. …, qualquer contrato de empreitada.
3. O Sr. CR. …, exerceu de forma remunerada a actividade de empreiteiro de obras públicas.
4. Foram realizadas as seguintes obras:
· Reparação das paredes do depósito de água da Lagoa de Mira – 4ª fase, titulada pela factura nº 18, no valor de €2.431,77, datada de 25 de Fevereiro de 2005;
· Reparação das paredes do depósito de água da Lagoa de Mira – 7ª fase, titulada pela factura nº 20, no valor de €2.484,72, datada de 14 de Março de 2005;
· Aplicação de “pavé” junto ao Posto de Turismo, na Vila da Praia de Mira, titulada pela factura nº 21, no valor de €2.434,52 datada de 7 de Julho de 2005;
· Construção de muro junto ao posto Marítimo da Vila da Praia de Mira, titulada pela factura nº 22, no valor de €1.796,85 datada de 18 de Julho de 2005;
· Nova reparação no depósito de água da Lagoa de Mira, titulada pela factura nº 23, no valor de €2.338,93 datada de 23 de Julho de 2005;
· Construção de rampa no areal da Praia de Mira, titulada pela factura nº 25, no valor de €1.210,00 datada de 2 de Agosto de 2005;
· Aplicação de “pavé” junto à ponte da Vala das Lavadeiras, na Vila da Praia de Mira, titulada pela factura nº 26, no valor de €2.470,22 datada de 8 de Agosto de 2005;
· Colocação de lancis na Avenida do Mar, na Vila da Praia de Mira, titulada pela factura nº 27, no valor de €2.338,93 datada de 4 de Setembro de 2005;
· Aplicação de “pavé” junto ao Centro Cultural da Praia de Mira, titulada pela factura nº 28, no valor de €2.474,45 datada de 9 de Setembro de 2005;
· Nova reparação no depósito de água da Lagoa de Mira, titulada pela factura nº 29, no valor de €2.496,23 datada de 11 de Setembro de 2005;
· Aplicação de “pavé” junto ao Centro de Saúde de Mira, titulada pela factura nº 30, no valor de €2.455,70 datada de 16 de Setembro de 2005;
· Reparação de passadiços no areal da Praia de Mira, titulada pela factura n.º 32, no valor de €2.417, 58 datada de 22 de Setembro de 2005;
· Tratamento de paredes exteriores no depósito de água da Lagoa de Mira, titulada pela factura nº 33, no valor de €2.487,76 datada de 26 de Setembro de 2005;
· Construção de jardins em pedra na Av. Arrais Batista Cera, titulada pela factura nº 34, no valor de €2.433,31 datada de 28 de Setembro de 2005;
· Pintura do depósito de água da Lagoa de Mira, titulada pela factura nº 35, no valor de €2.521,28 datada de 28 de Setembro de 2005;
· Aplicação de “pavé” junto à Comissão de Melhoramentos da Praia de Mira, titulada pela factura nº 36, no valor de €2.440,57 datada de 3 de Outubro de 2005;
5. O Município decidiu entregar à representada do Autor a execução das obras anteriormente referidas.
6. Os trabalhos efectuados foram acompanhados e fiscalizados por técnicos da Câmara Municipal de Mira, que verificaram a implantação da obra, e aprovaram os materiais a aplicar.
7.Vigiaram os processos de execução.
8. Verificaram o modo como eram executados os trabalhos.
9. Resolveram todas as questões que no decorrer das empreitadas o empreiteiro pôs acerca do bom andamento dos trabalhos.
10. Quando concluídas, tais empreitadas foram recebidas pela Ré.
11. Tais trabalhos nunca foram pagas pela Ré, dono da obra.
12. O valor das empreitadas identificadas no ponto 4º, foi acordado entre empreiteiro e dono da obra, sendo considerado por ambos um valor equilibrado para os trabalhos prestados.
13. As facturas foram entregues no Município mas não foram alvo de tratamento contabilístico».
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2.2 - O DIREITO:
O recurso jurisdicional interposto pelo recorrente, será apreciado à luz dos parâmetros estabelecidos nos artºs 660º, nº 2, 664º, 684º, nº 3 e 4, e 690º, todos do CPC aplicáveis, ex vi, do artº 140º do CPTA e, ainda, artº 149º do mesmo diploma legal, uma vez que, o tribunal de recurso, em sede de apelação, não se limita a analisar a sentença recorrida, dado que, ainda que a declare nula, decide “sempre o objecto da causa, conhecendo de facto e de direito” - cfr. o comentário a este propósito efectuado in “Justiça Administrativa”, Lições, pág. 459 e segs”, do Prof. Vieira de Andrade.
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QUESTÕES A DECIDIR:
E dado que o recorrente se insurge contra o decidido quer em sede de despacho saneador, quer em sede de sentença de mérito, impõe-se, desde já, o conhecimento do recurso interposto do despacho saneador, por prioritário.
Antes, porém, há que ter em conta que a presente acção administrativa comum, se consubstancia na realização de várias empreitadas de obras públicas, não tituladas por contrato escrito, realizadas pelo marido e pai dos AA/ora recorridos, obras estas mandadas executar pelo recorrente Município de Mira e por este recebidas, mas que nunca foram pagas, pelo que o seu pagamento é agora exigido por recurso ao instituto do enriquecimento sem causa.
(I) DO RECURSO DIRIGIDO AO DESPACHO SANEADOR PROFERIDO EM 04/03/2010:
Vejamos, então, do acerto da decisão recorrida no segmento em que decide das excepções suscitadas em sede de contestação:
(i) Continua o recorrente a sustentar neste recurso jurisdicional que é parte ilegítima porque “não celebrou com CR. … nenhum contrato de empreitada, nem solicitou quaisquer serviços e se alguém na Câmara solicitou esses serviços, então deverá ser esse alguém o demandado na acção”.
A este respeito, que não nos merece quaisquer dúvidas, reiteramos o afirmado na decisão recorrida, fazendo deste modo apelo ao disposto nos nºs 1, 2 e 3 do artº 9º do CPTA, em tudo idêntico ao estipulado no artº 26º do CPC.
Daí que, o réu seja sempre parte legítima quando tenha interesse directo em contradizer, interesse este que se exprime pelo prejuízo que da procedência da acção advenha; como se não bastasse, na falta de indicação de lei em contrário, estipula o nº 3 do artº 26º do CPC que “são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
Ora, atenta a causa de pedir e o pedido formulado pelos AA/recorridos, não se percebe que o recorrente continue a reiterar que não é parte legítima, pois, que é o único interessado em contradizer, atentos os prejuízos que lhe podem advir da procedência da acção.
E, deste modo, sem necessidade de quaisquer outras considerações, por desnecessárias, improcede este segmento de recurso.
(ii) da competência em razão da matéria – “violação do disposto nas normas previstas no DL nº 59/99 de 02/03”:
Igualmente, no que respeita a esta excepção, o recorrente parece olvidar que os AA/recorrentes, são claros na petição inicial, ao consubstanciarem a causa de pedir no instituto do enriquecimento sem causa, e não no incumprimento de qualquer contrato de empreitada de obra pública, que, como claramente referem, nunca existiu.
Assim, não se descortinam os motivos pelos quais o recorrente alude ao DL nº 59/99, dado que, pese embora, não estarem em causa, questões sobre a interpretação, validade ou execução de contratos de empreitada de obras públicas, a al. i), do nº 2 do artº 37º do CPTA é taxativa ao considerar que seguem a forma da acção administrativa comum os processos que tenham por objecto litígios relativos a enriquecimento sem causa, encontrando-se a competência fixada no artº 1º do ETAF, por se tratar de obras públicas, mandadas executar por entidades públicas, no exercício das funções públicas que lhes estão afectas.
Improcede, pois, igualmente, este segmento de recurso.
(iii) Não observância do regime previsto no DL nº 197/99 de 08/06 [regime jurídico da aquisição de bens e serviços]:
Ora, se são os próprios AA da acção que alegam que não foram celebrados quaisquer contratos ou outros procedimentos reduzidos a escrito, invocando por isso o instituto do enriquecimento sem causa, como é que o recorrente pode vir invocar o incumprimento de normas que são de todo inaplicáveis à presente acção?
Improcede, pois, sem necessidade de quaisquer outras considerações, tudo quanto o recorrente alega a este respeito.
(iv) Da inexistência da tentativa de conciliação extra-judicial prevista no DL nº 59/99 de 02/03:
A este respeito, pouco mais há a acrescentar ao decidido na 1ª instância, pois que se não existiram contratos e, a causa de pedir se centra no enriquecimento sem causa, não faz sentido cumprir um ritual procedimental que só se aplica aos contratos legalmente previstos – cfr. o Ac. do STA proferido em 22/04/2004, in rec. nº 062/04.
No entanto, cumpre ainda referir que, mesmo desnecessariamente, os AA/recorridos requereram a realização desta tentativa de conciliação, que o recorrente incrivelmente admite nestas suas alegações de recurso, ao referir que “De facto, em 17/12/07 foi o Réu Município de Mira, notificado para a realização de tentativa de conciliação extra judicial nos termos do DL nº 59/99 de 02/03 acerca da questão controvertida nos autos. O réu …. Apresentou resposta escrita…”.
Ou seja, a tentativa de conciliação foi requerida e terminou com auto de não conciliação por falta de comparência dos representantes do Município, pelo que, se mostrou cumprido o desiderato previsto na lei [antes de revogada pelo CCP] e, neste caso concreto, incorrectamente pretendido pelo recorrente.
E deste modo, improcede este segmento de recurso, não sem que se deixe consignada a estranheza destas alegações, nos moldes em que se mostram efectuadas, a raiar a má fé processual.
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(II) Do recurso dirigido à sentença proferida em 17/05/2011:
Nesta sede, o recorrente parece insurgir-se [de forma muito pouco clara, saliente-se] à insuficiência da matéria de facto fixada na decisão recorrida.
Porém, lidas as suas alegações e conclusões de recurso, verificamos que, efectivamente, a matéria que o mesmo pretenderia que fosse tida em consideração [cfr. conclusões 12ª] não tem qualquer relevância jurídica e, verdadeiramente respeita ao direito e não à insuficiência/impugnação da matéria de facto.
Quanto ao mais, o recorrente limita-se, mais uma vez, a uma verdadeira repetição de tudo quanto vem alegando desde a contestação.
Dispõe o artº 473º do CC que “ aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”.
Ora, pretende o recorrente que não se considere preenchido este primeiro requisito de que a lei faz depender o enriquecimento sem causa, alegando que no caso concreto … não houve causa justificativa, porque não chegou a ser totalmente cumprida a relação jurídica contratual… parecendo fazer crer que existiu um alegado contrato escrito que foi por si incumprido.
Porém, o recorrente continua a laborar num extenso erro, tudo fazendo para se eximir ao pagamento devido.
O enriquecimento sem causa, face ao que a doutrina e jurisprudência vêm expendendo, tendo em vista o enunciado nos artºs 473º e 474º do CC, depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
a) existência de um enriquecimento;
b) que esse enriquecimento não tenha causa que o justifique;
c) que ele seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição;
d) que não haja um outro acto jurídico entre o acto gerador do prejuízo deste e a vantagem obtida pelo enriquecido [cfr. a este respeito os Acórdãos do STA de 21-10-2004 (Rec. 0600/04) e de 25-03-2004 (Rec. 08/04)].
Pretende-se deste modo evitar que alguém promova o seu património à custa de outrem, sem motivo que o justifique.
E esta falta de motivo ou de causa assume sempre duas vertentes: por um lado, alegar e provar que não existia título jurídico para a deslocação patrimonial ou, que existindo, desapareceu, e, por outro, que não havia razão válida para não se restituir a quantia em disputa.
Ora, no enquadramento jurídico deste instituto, refere-se na decisão recorrida, o seguinte [que por se mostrar conforme ao direito e não se justificar quaisquer outras considerações, aqui transcrevemos]:
«Como refere Alexandra Leitão, in, O Enriquecimento sem causa da Administração pública”, 2ª edição” (pág. 13), “o enriquecimento sem causa consiste numa deslocação patrimonial da esfera de um sujeito para o de outro sem que exista uma causa que justifique essa deslocação.
(…)
Para que se verifique o enriquecimento sem causa torna-se necessário, segundo refere aquela Ilustre Autora, verificarem-se quatro requisitos “ o enriquecimento na esfera jurídica de uma pessoa, um empobrecimento correlativo de outrem, uma relação de causalidade entre eles e a inexistência de uma causa que justifique essa deslocação patrimonial.
Sobre o instituto do enriquecimento sem causa e seus requisitos tem sido vasta a jurisprudência, e apenas destacamos como exemplo o douto Acórdão do STJ de 2-07-2009, Proc. nº 123/07.5TJVNF.S1, que refere “2 – O instituto do enriquecimento sem causa surge-nos como fonte autónoma das obrigações, sendo certo que, de acordo com o princípio da subsidiariedade, o empobrecido só pode recorrer à acção de enriquecimento à custa de outrem, quando não tenha outro meio para cobrir os seus alegados prejuízos. 3 – Tendo o autor estruturado a sua acção com base no enriquecimento sem causa, compete-lhe alegar e provar os seus respectivos pressupostos, ou seja: a) a existência de um enriquecimento; b) a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem; c) a ausência de causa justificativa para o enriquecimento.”
Analisando agora a situação concreta dos autos verifica-se que os AA. procederam à realização de determinadas obras (nº 4 do probatório), que foram mandadas executar pela entidade demandada (nº 5 do probatório). Procederam, entre outros, e apenas como exemplo, à reparação do depósito de água da Lagoa de Mira, aplicação de pavé junto ao Posto de Turismo, construção de um muro junto ao posto Marítimo….
Ou seja, houve um empobrecimento por parte dos Autores que despenderam o seu trabalho na realização das obras em causa.
Por seu lado o Réu aceitou as obras (nº 10 do probatório), estando estas ao seu serviço e consequentemente ao serviço do público em geral. Ou seja, houve enriquecimento por parte do Réu à custa da prestação de trabalho dos Autores.
Ora, este enriquecimento do Réu é uma consequência do empobrecimento por parte dos Autores uma vez que foi através da sua força de trabalho que o resultado foi conseguido.
Temos assim que se verificam os três primeiros requisitos para se poder qualificar a situação dos autos no âmbito do enriquecimento sem causa.
Por seu lado, e como quarto requisito, temos ainda que estar perante a inexistência de uma causa que justifique essa deslocação patrimonial. Como refere, Alexandra leitão, in, obra citada, se se tratar da utilização de um bem por parte do enriquecido, temos de verificar se entre este e o titular do bem ou alguém que o represente existe um contrato nos termos do qual essa utilização esteja justificada ou uma norma legal que a permita.
Neste âmbito é ainda de referir que de acordo com o princípio da subsidiariedade, não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, de acordo com o disposto no artigo 474º do CC.
Ora, no caso dos autos não há qualquer contrato que tutele a prestação de trabalho prestada pelos Autores (nº 2 do probatório). Não foi formalizado qualquer contrato pelo que não há outro meio através do qual possam ser ressarcidos do trabalho que prestaram.
Ocorre também assim este pressuposto para que estejamos perante uma situação de enriquecimento sem causa.
Por último, e no sentido de saber qual o montante que deve ser ressarcido, verificamos que de acordo com o artigo 479º do CC “a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido, ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”. Ou seja, dá-se uma preferência pela restituição em espécie. No caso dos autos como estamos perante a prestação de trabalho por parte dos Autores, resultando nas obras realizadas e pelo tempo despendido, há um impossibilidade originária de restituição em espécie.
Como se encontra provado nos autos que os AA realizaram obras cujo montante ascende a € 37 232, 82, será este o montante a que têm direito a serem ressarcidos, a título de enriquecimento sem causa.
No que se refere aos juros solicitados, é de referir que como estamos perante o ressarcimento a título de enriquecimento sem causa, estes apenas são devidos após citação, uma vez que só após esta data o então devedor fica constituído em mora (artigos 804º, nº 1, 805º e 806º do CC).

Estão assim reunidos os pressupostos para que os Autores possam ser ressarcidos a título de enriquecimento sem causa, pelo que tem de proceder a presente acção».

E como supra referimos, o assim decidido não sofre de qualquer erro de julgamento, impondo-se a sua manutenção, uma vez que é manifesto que o Município de Mira, beneficiou da realização das obras públicas devidamente identificadas na matéria de facto dada como provada, que não advieram de qualquer contrato, mas que, se mostram efectuadas [e foram, inclusivé, acompanhadas e fiscalizadas por técnicos da CMM e posteriormente recebidas] e o valor das mesmas acordado entre as partes intervenientes, não tendo, porém, havido lugar ao seu pagamento, o que gerou uma situação de enriquecimento de uma parte e empobrecimento da outra, sem qualquer razão justificativa e sem que os AA/recorridos pudessem fazer uso de qualquer outro instituto jurídico ou acção através dos quais pudessem obter o ressarcimento destas quantias devidas, mas não recebidas.
Atento tudo quanto se deixou exposto, impõe-se a manutenção das decisões recorridas, com excepção da sentença de mérito, apenas no que respeita ao segmento da condenação em custas da acção, que, tal como defendido pelo recorrente, se terá de fazer em função do decaimento - a factura nº 19 não foi considerada provada conforme resposta ao artº 2º da BI e respectiva fundamentação – cfr. despacho proferido em 13/04/2011 – assim procedendo nesta parte o recurso interposto.

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3 - DECISÃO:
Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal em:
-Negar provimento ao recurso interposto do despacho saneador proferido em 04/03/2010.
-Conceder parcial provimento ao recurso interposto da sentença final proferida em 17/05/2011, na parte em que condenou o recorrente em custas e, consequentemente, revogar a decisão unicamente nesta parte da condenação em custas da acção, mantendo-a quanto ao mais.
Custas pelo recorrente em função do decaimento nesta e na 1ª instância.
Notifique.
DN.
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Processado com recurso a meios informáticos, tendo sido revisto e rubricado pela relatora (cfr. artº 138º, nº 5 do CPC “ex vi” artº 1º do CPTA).
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Porto, 22 de Junho de 2012

Ass. Maria do Céu Neves

Ass. José Augusto Araújo Veloso

Ass. Ana Paula Portela