Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01137/12.9BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/13/2020
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:LEGITIMIDADE ACTIVA; PROPRIEDADE DE UM VEÍCULO; REGISTO; ACIDENTE EM VIA MUNICIPAL; PRESUNÇÃO DE CULPA; ARTIGO 493º, N.1, DO CÓDIGO CIVIL;
REPARAÇÃO DE VEÍCULO; ORÇAMENTO.
Sumário:1. É parte legítima para demandar aquele se arroga dono do carro sinistrado num acidente de que resultaram os prejuízos que se pretendem ver ressarcidos, independentemente do que consta no registo automóvel da viatura a propósito da respectiva propriedade.

2. O registo no direito português não tem natureza constitutiva, ou seja, não só não é requisito essencial para a aquisição do direito, como também não permite suprir os vícios do negócio transmissivo nem a sua inexistência, prevalecendo, nestes casos, não o titular que consta do registo, mas quem tem a seu favor o título substantivo.

3. A existência de água, óleo e resíduos de cimento na via municipal e que foram a causa adequada da produção do acidente e dos danos deste decorrentes, faz presumir a culpa do município demandado, face ao disposto no artigo 493º, n.1, do Código Civil.

4. Presunção que não é afastada se o município não provar que cumpriu com eficácia o dever de fiscalização da via, em obediência às regras técnicas e de prudência comum exigíveis naquela situação concreta, nem que a mencionada omissão de sinalização ou de limpeza da via se ficou a dever em exclusivo a circunstâncias anormais e imprevisíveis, alheias e estranhas ao controlo do demandado.

5. Não tendo sido posto em causa o valor do orçamento da reparação do veículo, deve ser este o valor a pagar pelos estragos causados no veículo, enquanto dano verificado, independentemente de ter sido pago ou não. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:U., S.A. e Município (...)
Recorrido 1:F. e Município (...)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO

Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

U., S.A. veio interpor RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, de 25.07.2014, pela qual foi julgada parcialmente procedente a acção administrativa comum, na forma sumária, intentada pelo Recorrido F. contra o Município (...), na qual foi chamada como interveniente acessória a ora Recorrente U., S.A., para exigir a responsabilidade civil extracontratual do Município (...), com vista a obter o pagamento da indemnização de 4.580,89 euros, referente ao custo de reparação do veículo e 1.000,00 euros, a título de privação do uso do veículo pelo período de cerca de um ano, a que acrescem juros de mora, calculados à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento, quantias alegadamente devidas para ressarcimento dos danos sofridos em acidente ocorrido na Rua do (...), via municipal que integra o Município Réu e que teria acontecido em resultado da violação dos deveres de vigilância, manutenção, sinalização da referida via, tendo tal sentença condenado o Município (...) a pagar ao Autor a quantia de 4.580,89 euros, para ressarcimento dos danos patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a citação até ao efectivo e integral pagamento.

Invocou para tanto que o Tribunal a quo devia ter declarado a ilegitimidade do Autor para a acção por este não ser o proprietário registado do veículo acidentado à data do acidente e tão pouco ter alegado ao longo de todo o processo que, pese embora o veículo se encontrar registado em nome de uma terceira entidade, o havia adquirido anteriormente à data do sinistro; que os factos 6) e 16) deveriam ter sido dados como não provados, porquanto da prova produzida em audiência resultou que ficou provado que o acidente se deu num local situado a 400 metros depois das instalações da U. e, por outro lado, não ficou provado que a origem da água que existia na estrada tivesse proveniência das instalações daquela.

O Município (...) veio também interpor RECURSO JURISDICIONAL da mesma sentença, alegando a ilegitimidade do Autor, o afastamento da presunção legal de culpa incidente sobre o Recorrente e que os danos não ficaram provados, porque não efectivos.

O Recorrido F. contra-alegou, defendendo a manutenção da sentença recorrida.

O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.
*
Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
*

I.I. - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do recurso jurisdicional interposto pela U.:

A. O tribunal a quo deveria ter declarado a ilegitimidade do autor para a acção e absolvido a ré da instancia porquanto não ser o proprietário registado do veículo acidentado à data do acidente.

B. Citando a própria sentença - "É um facto que, tratando-se de prova do direito de propriedade, a mesma se faz por meio de documento autêntico e que não foi apresentado nenhum documento dessa natureza relativamente ao veículo em causa";


C. O documento referido na sentença — Modelo 2 do Documento Único Automóvel, não constitui prova idónea do referido direito de propriedade, já que se trata apenas de um formulário para efeito de registo;


D. Em relação a matéria de facto, entende a recorrente que deve ser alterado o facto provado n.º 6), dando-se como provado e passando o mesmo a ter a seguinte redação,
"Depois da zona onde se encontra instalada a empresa "B.", o condutor do veículo XX-XX-IV deparou-se com a existência na via de uma zona de água, contendo óleo e resíduos de cimento.";

E. Não se provou que o cimento, óleo e água que existiam na via pública, a mais de 400 metros de distancia, tivessem origem nas instalações da B., agora U.;

F. O facto provado número 16) deve ser anulado e ser a respetiva factualidade dada como não provada.

I.II. - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do recurso jurisdicional interposto pelo Município (...):

A) - Deveria o Tribunal não se contradizer nos pontos 2 e 19 dos factos provados a quo, ter declarado o Autor parte ilegítima, de acordo com a alínea e) do artigo 577º do CPC, absolvendo a Ré, aqui Recorrente, da instância e não conhecendo do mérito da causa, tal como determina o artigo 576º, nº 2 do mesmo CPC, excepção esta de ilegitimidade de que nos termos do artigo 578º do mesmo diploma o Tribunal “a quo” deveria ter tomado conhecimento oficioso.

B) - Caso esse Venerando Tribunal não acolha a conclusão anterior, só se poderá concluir, atenta a matéria dada como provada pelo Tribunal a quo, que ficou definitivamente afastada e ilidida a presunção de culpa que incidia sobre o Município Recorrente e que está estatuída nos artigos 7º, 9º, 10º, especialmente os nºs 2 e 3, da Lei nº 67/2007, de 31 de dezembro, e no nº 1 do artigo 493º do Código Civil, o que impõe desde logo que seja a sentença revogada, pelo que, a haver condenação, esta só poderá recair sobre a U., S.A., ex-B..

C) – E, ainda assim, mesmo que se não condene aquela empresa, como não existiram danos pagos do acidente pelo Autor, apenas um orçamento e início de execução de contrato de reparação automóvel, só após a emissão de competente e legal factura – mesmo que parcial - poderia ser ordenado o seu pagamento, o que não foi acautelado pelo Tribunal «a quo».
*

II –Matéria de facto.

Alegou a Recorrente U.:

“Entendeu o Tribunal a quo que "Quando se aproximava da zona onde se encontra instalada a empresa "B.", o condutor do veículo XX-XX-IV deparou-se com a existência na via de uma zona de água, contendo óleo e resíduos de cimento." - facto provado número 6).

Antes de mais, afigura-se que este facto encontra-se em clara oposição com o facto provado número 17 que mereceu a seguinte redacção: «O local onde ocorreu o acidente fica a cerca de 400 metros das instalações da "U.";»

Ora, conforme consta dos autos, dos croquis juntos pelas partes, e do próprio auto de ocorrência da Guarda Nacional Republicana junto com a contestação da ré Câmara Municipal (...), o acidente deu-se depois das instalações da U., atento o sentido de marcha do veículo, e cerca de 400 metros depois.

Pelo que o facto provado número 6) deveria ter a seguinte redação:

"Depois da zona onde se encontra instalada a empresa "B.", o condutor do veículo XX-XX-IV deparou-se com a existência na via de uma zona de água, contendo óleo e resíduos de cimento."

Vejamos:

Não se vislumbra qualquer contradição entre os factos 6 e 17 da matéria de facto dada como provada em 1ª Instância, mas aceita-se que a redacção do facto proposta pela Recorrente é mais concreta e precisa e igualmente verdadeira, pelo que se conferirá ao sexto facto que a seguir se dará como provado a redacção proposta pela Recorrente.

Verifica-se, por outro lado, que o 2º facto dado como provado na 1º Instância contém uma conclusão de direito.

O facto que se provou: “O direito de propriedade do veículo automóvel se encontrava registado, à data do acidente, na Conservatória do Registo Automóvel, em nome de “S., Lda”.

A partir desse facto e em sede de apreciação de direito se concluirá se tal facto tem como efeito a atribuição do direito de propriedade à S..

Assim, o 2º facto a dar como provado deverá ser alterado nos termos apontados.

Mais alegou a Recorrente que:

“Em relação ao facto provado número 16) no qual o Tribunal a quo entendeu que «Os resíduos de óleo, cimento e água existentes na via provinham da limpeza/lavagem de camiões cisternas de cimento da "U., S.A., empresa que integra a "B., S.A.»,

A aqui recorrente entende que tal factualidade não ficou provada.

Todas as testemunhas que estiveram no local do acidente, e ouvidas em sede de audiência de julgamento, afirmaram que não foram ver a proveniência da água que surgia na via, apenas dizendo que era da B. porque uma pessoa que lá se encontrava também o disse.

As pessoas ouvidas em sede de audiência de julgamento e que estiveram presentes no local do acidente foram:

a) Ex.ma Senhora F., condutora do outro veículo acidentada;
b) O Ex.mo Senhor H., Agente da Polícia Municipal (...);
c) O Ex.mo Senhor T., Agente da Polícia Municipal (...).

Ora,

A testemunha F., ouvida na sessão de julgamento de manhã, quando questionada sobre se no dia do acidente ela ou outra pessoa tinham ido à B. ver se a água vinha de lá, afirmou
Minuto 01:02:50 - "Eu não fui"
E quando questionada sobre por que razão afirmava que a água vinha da B. disse,
Minuto 01:03:07 - "porque a água tinha cimento, e constava-se, eu não vi, mas constava-se que lavavam lá os camiões ao fim do dia"

A testemunha H., ouvida também na sessão de julgamento de manhã, quando questionada sobre a origem da água que existia na estrada afirmou quando questionado sobre se percorreu o caminho que a água fazia para ver a origem da mesma,
Minuto 01:13:41 - "Não”
E quando questionado sobre a razão de referir a B. no relatório que elaborou disse:
Minuto 01:13:48: "por que em conversa ... por ter de fazer o relatório a justificar a minha presença identifiquei cada um dos intervenientes e daí ao ouvir os factos da pessoa que identifiquei e por isso mencionei isso no relatório."

E, a testemunha T., ouvida na sessão de julgamento da tarde, quando questionado se foram à B., afirmou
Minuto 00:07:16 — "Não, não chegamos a ir à B. ..."
E quando questionado sobre o facto de no relatório elaborado fazerem referência à B. como sendo a proveniência da água, disse
Minuto 00:07:40 — "foi por indicação do condutor" e que posteriormente se veio a constatar que não era o condutor mas sim o seu genro e autor nos presentes autos.

Ou seja, todas as referências que foram feitas à aqui recorrente foram baseadas em presunções pessoais e no "diz que disse".

E, por outro lado, apesar de referir na motivação que foram considerados os depoimentos das testemunhas da recorrente, aparentemente não o foram! Ambas as testemunhas da recorrente, Eng. J. e J-., afirmaram que as instalações da recorrente possuíam um local próprio para a lavagem dos camiões e que os mesmos eram sempre ali lavados, tanto mais que a água e os inertes que resultavam da lavagem eram reaproveitados na produção de novo betão.

E, ambos referiram que a referida central de lavagem situava-se a uma quota inferior à da estrada o que seria impossível que dali pudesse verter qualquer tipo de líquido ou resíduos para a via pública.

Ora, nenhuma prova, produzida em sede de julgamento ou existente nos autos, vai em sentido contrário do afirmado pelas testemunhas da recorrente, e que conduziram à fixação da factualidade do facto provado 18), pelo que não se compreende, e não se aceita, que tenha sido dada como provada a factualidade constante do facto provado 16), que se impugna.

Os vestígios de cimento na estrada por si só nada significam, já que estamos a falar de uma estrada pública que é usada pelo público em geral, pelos camiões-cisterna da recorrente, por outros camiões-cisterna de empresas concorrentes da recorrente, e por veículos que se encontram em obras de construção civil, pelo que a existência de vestígios de cimento na estrada não pode ser suficiente para concluir pela sua proveniência das instalações da recorrente, pois pode ter as mais variadas proveniências.

O mesmo vale para a existência de óleo na estrada, pois como é do conhecimento geral todas as estradas têm resíduos de óleo, é normal!

E quanto à existência de água, também não se provou a sua origem!

O facto de a recorrente ter umas instalações a 400 metros de distância do local do acidente não pode servir, ou chegar, para lhe imputar a responsabilidade do aparecimento na via pública de vestígios de cimento e óleo.”

Vejamos:

Conforme já sustentado em acórdão deste Tribunal Central Administrativo Norte, de 13.09.2013, no processo nº 00802/07.7 VIS, com o mesmo Relator e que aqui se dá por reproduzido:

“Determina o artigo 712º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, no seu nº 1, aplicável por força do disposto no artigo 140º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que:

«A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação:

a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685º B, a decisão com base neles proferida;

b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;

(…)»

Na interpretação deste preceito tem sido pacífico o entendimento segundo o qual em sede de recurso jurisdicional o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida (neste sentido os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 19.10.05, processo nº 394/05, de 19.11.2008, processo nº 601/07, de 02.06.2010, processo nº 0161/10 e de 21.09.2010, processo nº 01010/09; e acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, de 06.05.2010, processo nº 00205/07.3BEPNF, e de 14.09.2012, processo nº 00849/05.8BEVIS).

Isto porque o Tribunal de recurso está privado da oralidade e da imediação que determinaram a decisão de primeira instância: a gravação da prova, por sua natureza, não fornece todos os elementos que foram directamente percepcionados por quem julgou em primeira instância e que ajuda na formação da convicção sobre a credibilidade do testemunho.

Como defende Antunes Varela, no Manual de Processo Civil, 2ª Edição, pág. 657:

«Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar».

Por outro lado o respeito pela livre apreciação da prova por parte do tribunal de primeira instância impõe um especial cuidado no uso dos seus poderes de reapreciação da decisão de facto, e reservar as alterações da mesma para os casos em que ela se apresente como arbitrária, por não estar racionalmente fundada, ou em que seja seguro, de acordo com as regras da lógica ou da experiência comum, que a decisão não é razoável.”

Como consta do ponto 1 do sumário constante deste acórdão:

“1- Em sede de recurso jurisdicional o tribunal de recurso, em princípio, só deve alterar a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se, após ter sido reapreciada, for evidente que ela, em termos de razoabilidade, foi mal julgada na instância recorrida.”

Em sentido idêntico se pronunciam os acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte:

- De 24.02.2012, no processo nº 00168/07.5 PNF:

“1- O tribunal de recurso só deve modificar a matéria de facto quando a convicção do julgador, em 1ª instância, não seja razoável, isto é, quando seja manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando-se assim a devida relevância aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova e à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto.”

- De 07.03.2013, no processo nº 00906/05.0 PRT:

“2. O tribunal de recurso apenas e só deve alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e essa mesma decisão.”

O artigo 712º do Código de Processo Civil de 1995, a que fazem alusão os invocados acórdãos, foi substituído pelo artigo 662º do Código de Processo Civil de 2013, que não altera o sentido em que se pronunciam os referidos acórdãos.

Segue-se que as referidas três testemunhas só imputaram os despistes aos resíduos de cimento, óleo e água existentes na via como escorrendo da zona onde eram lavados os camiões da U., dizendo que escorriam pela valeta e a dado ponto da estrada entravam nesta, tendo a testemunha F. sido peremptória na afirmação deste facto, mesmo sem ter ido à U. para o confirmar. Por outro lado, este facto aparece quer no croquis da GNR, quer na participação da Polícia Municipal, quer afirmado pelas referidas três testemunhas, cuja veracidade, isenção e imparcialidade não oferece quaisquer dúvidas. O Tribunal a quo pôde ainda alicerçar a convicção da veracidade deste facto com a inspecção judicial ao local.

Com todos estes fundamentos decide-se pois não alterar a matéria de facto constante do facto 16 dado como provado em 1ª instância por a prova produzida apontar no mesmo sentido e nunca no sentido de erro evidente na apreciação da prova.

Todos os demais factos dados como provados naquela instância não mereceram reparos:

Deveremos assim dar como provados os seguintes factos:

1) No dia 8 de Maio de 2006, cerca das 20h30, na Rua do (...), junto ao Parque de (...), freguesia de (...), concelho (...), nas imediações da empresa “B.”, ocorreu um acidente de viação, consubstanciado em despiste de dois veículos automóveis, seguido de atropelamento.

2) Neste acidente foram intervenientes os veículos com as seguintes matrículas: XX-XX-IV, conduzido por F., cujo direito de propriedade se encontrava registado, à data do acidente, na Conservatória do Registo Automóvel, em nome de “S., Lda”; XX-XX-PO, conduzido por F..

3) A Rua do (...), no local do embate, configura uma ligeiríssima curva à esquerda seguida de recta, atento o sentido (...) — (...), possuindo boa visibilidade.

4) No dia e hora do acidente o piso daquela Rua, nos metros antecedentes ao local do acidente encontrava-se seco, em virtude do bom tempo que se fazia sentir.

5) A faixa de rodagem, no referido local, é constituída por duas hemi-faixas de rodagem, uma para cada sentido de trânsito e com uma largura total de cerca de 6,80 metros.

6) Depois da zona onde se encontra instalada a empresa "B.", o condutor do veículo XX-XX-IV deparou-se com a existência na via de uma zona de água, contendo óleo e resíduos de cimento.

7) A presença destes elementos na via não estava sinalizada.

8) Ao entrar nesta zona de água, óleo e resíduos de cimento, o condutor do veículo XX-XX-IV, perdeu o controlo deste veículo, entrou em despiste, saiu da faixa de rodagem e foi embater num muro situado do lado esquerdo da Rua do (...), atento o sentido utilizado ((...) — (...)).

9) Passados poucos instantes, o condutor do referido veículo XX-XX-IV procedeu à tentativa de retirar da via pública as peças que tinham sido projectadas para a faixa de rodagem em consequência do embate no muro.

10) Tendo surgido o veículo XX-XX-PO, que circulava no mesmo sentido ((...) — (...)) que foi, também, surpreendido com o aparecimento na via de água, óleo e resíduos de cimento.

11) Ao entrar nesta zona de água, óleo e resíduos de cimento, a condutora do veículo XX-XX-PO, F., perdeu o controlo do veículo, entrou em despiste e atropelou o condutor do veículo XX-XX-IV.

12) O veículo XX-XX-IV sofreu danos na parte da frente e traseira – v.doc. de fls. 41 participação da GNR.

13) O orçamento da reparação do veículo automóvel é de € 4 580,89.

14) A Rua do (...) é uma via pública municipal e o local onde ocorreu o despiste do veículo XX-XX-IV, pertence ao Município (...).

15) Na Rua do (...) a velocidade máxima permitida é de 50Km/hora.

16) Os resíduos de óleo, cimento e água existentes na via provinham da limpeza/lavagem de camiões cisternas de cimento da “U., S.A., empresa que integra a “B., S.A.”.

17) O local onde ocorreu o acidente fica a cerca de 400 metros das instalações da “U.”.

18) A “U.” dispõe nas suas instalações de zonas especialmente construídas para a lavagens dos seus camiões, numa quota inferior à da via pública que, na data da realização da inspecção ao local – 28-3-2014, se encontravam desactivadas.

19) Com data de 27/4/2006, o ora Autor celebrou com a “S., L.da” o contrato verbal de compra e venda do veículo XX-XX-IV.

20) Dá-se por reproduzido todo o teor dos documentos que integram os autos.
*
A) Recurso da U., S.A..

1.Da ilegitimidade do Autor.

À presente acção, que foi instaurada em 2012, aplica-se o Código de Processo nos Tribunais Administrativos de 2002, que, no seu artigo 9º, estabelece que o Autor é parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida.

Ora, o Autor alegou ser proprietário do veículo acidentado. Tanto basta para que tenha legitimidade para interpor a presente acção, por ter sofrido danos em consequência directa e necessária de acidente de viação, causa de pedir da presente acção.

É certo que a propriedade do veículo foi impugnada, mas o que releva para efeitos de legitimidade é a relação material controvertida tal como alegada pelo Autor.

A decisão sobre se a propriedade é do Autor ou de terceira entidade, é uma questão de procedência ou improcedência da acção e não de legitimidade ou ilegitimidade do Autor.

Nesse sentido se pronuncia o artigo 30º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 1º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos

Assente que o Autor é parte legítima, cumpre conhecer do mérito da acção, nesta parte não merecendo provimento o presente recurso.

2. O efeito declarativo ou constitutivo do registo do direito de propriedade sobre o veículo automóvel; o veículo sinistrado como propriedade do Autor ou de terceiro.

A questão de direito a dirimir enquadra-se dentro da questão mais ampla do valor do registo de veículos no nosso sistema jurídico.

Mostra-se, por isso, pertinente transcrever aqui o que ficou consignado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.10.2019, no processo n.º 3696/15.5T8AVR.P2.S1:

“Assim, desde logo, o artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 54/75, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 178-A/2005 passou a dispor o seguinte:

«1 – O registo de veículos tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor e respectivos reboques, tendo em vista a segurança do comércio jurídico.

(…)
Decorre da lei que são aplicáveis ao registo automóvel as regras do registo predial consagradas no Código de Registo Predial, embora, devido à necessidade de tutela crescente da celeridade das transações, o legislador tenha atenuado esta equiparação, procurando limitar o recurso, como direito subsidiário, às normas aplicáveis ao registo predial, ao mínimo (cf. Preâmbulo DL n.º 54/75, de 12 de fevereiro).

Nos termos do artigo 29.º do citado diploma, «São aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, mas apenas na medida indispensável ao suprimento das lacunas da regulamentação própria e compatível com a natureza de veículos automóveis e das disposições contidas neste diploma e no respectivo regulamento».

Sendo assim, para regular a questão jurídica analisada nos autos, as normas jurídicas pertinentes são as seguintes:

Artigo 7.º
Presunções derivadas do registo

«O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define».

(…)
A doutrina e a jurisprudência sempre consideraram, entre nós, que o registo tem valor meramente declarativo, no processo aquisitivo de direitos reais, funcionando como condição de oponibilidade face a terceiros.

Com efeito, num sistema de transmissão da propriedade caracterizado pelo princípio da consensualidade (artigo 408.º, n.º 1, do Código Civil), em que o registo assume um valor meramente declarativo, o direito de propriedade (e os restantes direitos reais de gozo) constituem-se, modificam-se e extinguem-se à margem do registo. O direito não registado goza de oponibilidade erga omnes, sendo apenas inoponível ou ineficaz em relação a terceiros, que a doutrina tem designado por «terceiros para efeitos de registo» (artigo 5.º do CRPred.), isto é, numa formulação comum, aqueles que adquirem do mesmo transmitente, um direito total ou parcialmente incompatível com o direito de outrem sobre o mesmo objeto…

(…)
Contudo, a regra da prioridade registral não protege o sujeito que adquire de alguém que nunca foi titular do direito. O registo apenas protege o adquirente de boa fé, que primeiro regista, na dupla alienação, contra o primeiro adquirente que não registou, mas não lhe garante que o transmitente seja o verdadeiro titular do direito. O registo apenas dá publicidade a direitos existentes, não estabelecendo presunções a favor de direitos que nunca existiram no plano substantivo (cf. Maria Clara Sottomayor, Invalidade e registo, ob. cit., 2010, p. 720). É esta a linha clássica de pensamento que vem já de Vaz Serra («Anotação ao Acórdão do STJ de 12 de julho de 1963», RLJ, Ano 97, 1964-65, n.º 3265, p. 57) para quem «a função do registo predial é assegurar a quem adquire direitos de certa pessoa sobre um prédio que esta não realizou em relação a ele atos suscetíveis de prejudicar o mesmo adquirente».

O registo no direito português não tem natureza constitutiva, ou seja, não só não é requisito essencial para a aquisição do direito, como também não permite suprir os vícios do negócio transmissivo nem a sua inexistência, prevalecendo, nestes casos, não o «titular registral», mas quem tem a seu favor o título substantivo.”

No caso vertente, o 19º facto dado como provado confere validade à transacção do veículo sinistrado. Assim sendo, o Autor é proprietário do referido veículo já que a validade de tal transacção ilide a presunção juris tantum de que o registo presume o direito de propriedade do veículo a favor de quem nele consta como proprietário.

Como se refere no ponto IV do sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo nº 03B4369, de 19.02.2004), in www.dgsi.pt):

“O registo não surte eficácia constitutiva, pois que se destina a dar publicidade ao acto registado, funcionando (apenas) como mera presunção, ilidível, (presunção juris tantum) da existência do direito (artºs 1º nº 1 e 7º do CRP84 e 350º nº 2 do C.Civil) bem como da respectiva titularidade, tudo nos termos dele constantes.” .

Pelo exposto, o Autor é o titular do direito de propriedade do veículo sinistrado, pelo que o recurso interposto pela U., S.A. improcede na totalidade.

B) Recurso do Município (...)

1.Da ilegitimidade do Autor.

Este fundamento improcede pelas mesmas razões já apontadas na apreciação do recurso da U..

2. Da presunção de culpa.

O acidente que constitui a causa de pedir dos presentes autos ocorreu em 08.05.2006, pelo que lhe é aplicável o DL nº 48051, de 21/11/1967, sendo certo que a Lei nº 67/2007, de 31.12, só entrou em vigor 30 dias após a data da sua publicação (artigo 6º desta última Lei.).

Determina o seu artigo 2º, nº1, que:

“O Estado e demais pessoas colectivas públicas, respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas aos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício”.

São assim pressupostos deste tipo de responsabilidade civil: a) o facto, comportamento activo ou omissivo voluntário; b) a ilicitude, traduzida na ofensa de direitos de terceiros ou disposições legais destinadas a proteger interesses alheios; c) a culpa, nexo de imputação ético - jurídica do facto ao agente ou juízo de censura pela falta de diligência exigida de um homem médio ou de um funcionário ou agente típico; d) a existência de um dano, ou seja, a lesão de ordem patrimonial ou moral, esta quando relevante; e) o nexo de causalidade entre a conduta e o dano, segundo a teoria da causalidade adequada (cf. acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27.01.1987, de 12.12.1989 e de 29.01.1991, in Acórdãos Doutrinários. n.º 311, p. 1384, n.º 363, p. 323 e n.º 359, p. 1231).

Este tipo de responsabilidade corresponde, no essencial, ao conceito civilístico de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos que tem consagração legal no artigo 483º, nº1, do Código Civil (acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 10.10.2000, recurso n.º 40576, de 12.12.2002, recurso n.º 1226/02 e de 06.11.2002, recurso n.º 1311/02).

O conceito de ilicitude consagrado neste preceito é, no entanto, mais amplo que o consagrado na lei civil (vd. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10º ed., vol. II, p. 1125; acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10.05.1987, in Acórdãos Doutrinários. 310, página 1243 e seguintes).

No que toca à culpa "Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta do lesante é reprovável quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo"Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 6ª edição, p. 531).

É também jurisprudência firme e reiterada que à responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos por facto ilícito de gestão pública é aplicável a presunção de culpa prevista no artigo 493.°, n.º1, do Código Civil, decorrente da propriedade de coisas (por todos, ver os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 25.10.2000 (Pleno), recurso n.º 37 510, de 20.03.2002, recurso n° 45 831, e de 03.10.2002, recurso n° 45 621).

Este regime radica nas seguintes razões: 1ª - nas regras da experiência comum, segundo as quais normalmente os danos provocados por coisas procedem de falta de adequada vigilância; 2ª- na necessidade de acautelar o direito de indemnização do lesado contra a extrema dificuldade de provar, neste tipo de casos, os factos negativos que consubstanciam a violação do dever objectivo de cuidado; 3ª na conveniência de estimular o cumprimento dos deveres de vigilância que recaem sobre o detentor da coisa (Antunes Varela, "Das Obrigações Em Geral" volume I, páginas 590-591; acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16.05.1996, Apêndices ao D.R., de 23.10.1998, p. 3697).

Feitas estas considerações genéricas, vejamos o caso concreto.

O acidente ocorreu na Rua do (...), que é uma via pública municipal e o local onde ocorreu o despiste do veículo XX-XX-IV, pertence ao Município (...) (factos 1º e 14º dados como provados).

A responsabilidade pela sinalização da água, óleo e resíduos de cimento na via pública cabe à Câmara Municipal (...), a quem cabe também o ónus da limpeza dessa via, por força do dever de vigilância que sobre si impende.

É também jurisprudência firme e reiterada que à responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos por facto ilícito de gestão pública é aplicável a presunção de culpa prevista no artigo 493.°, n.º1, do Código Civil, decorrente da propriedade de coisas (por todos, ver os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 25.10.2000 (Pleno), recurso n.º 37 510, de 20.03.2002, recurso n° 45 831, e de 03.10.2002, recurso n° 45 621).

Este regime radica nas seguintes razões: 1ª - nas regras da experiência comum, segundo as quais normalmente os danos provocados por coisas procedem de falta de adequada vigilância; 2ª- na necessidade de acautelar o direito de indemnização do lesado contra a extrema dificuldade de provar, neste tipo de casos, os factos negativos que consubstanciam a violação do dever objectivo de cuidado; 3ª - na conveniência de estimular o cumprimento dos deveres de vigilância que recaem sobre o detentor da coisa (Antunes Varela, "Das Obrigações Em Geral" volume I, páginas 590-591; acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16.05.1996, Apêndices ao D.R., de 23.10.1998, p. 3697).

Assim como é pacífico o entendimento de que, por beneficiar dessa presunção, o autor só tem que demonstrar a realidade dos factos causais que servem de base àquela para que se dê como provada a culpa do réu, cabendo a este ilidir a presunção (artigos 349º e 350.° n.ºs 1 e 2, do Código Civil; Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 20.03.2002, recurso n° 45 831, e de 03.10.2002, recurso n° 45 621).

A elisão de uma presunção (iuris tantum) só é feita com a prova do contrário, não sendo bastante a mera contraprova (acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 09.02.2005, proc. n.º 1758/03).

Face ao supra explanado, dúvidas não subsistem de que no caso em apreciação nos autos e face à matéria factual dada como provada, estão verificados factos que permitem concluir que se verificou uma omissão do dever de vigilância da referida via pública municipal ilícita e danosa e que essa omissão de sinalização da água, óleo e resíduos de cimento e respetiva limpeza da via, foram a causa adequada da produção dos danos patrimoniais que o Autor sofreu.

Tanto basta para que funcione a presunção de culpa do Município (...), nos termos do artigo 493º, nº 1, do Código Civil.

Reproduzindo parcialmente o teor do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 22.06.2010, processo nº 0373/10, com o qual se concorda:

“O art. 493º, 1, do C. Civil consagra a responsabilidade civil das pessoas com o dever de vigiar coisas ou animais, impondo uma presunção legal de culpa, desde que se prove que o dano foi causado «pela coisa ou animais». Com efeito, diz--nos concretamente o art. 493º, 1 do C. Civil que a pessoa com o encargo de vigiar a coisa «responde pelos danos que a coisa causar…»”.

O dano foi causado pelas omissões ilícitas já referidas na via pública que a Câmara Municipal (...) tinha o dever de vigiar.

Há, neste caso, um nexo de causalidade adequada evidente entre tal omissão e o despiste do veículo propriedade do Autor.

Na verdade, para além da causalidade naturalística (omissão de sinalização do perigo da via e de limpeza da mesma, é evidente que essa condição só deixaria de poder como tal considerar-se se fosse de todo indiferente para a produção do dano e só se tivesse tornado condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias, o que não sucede em geral.

Estabelecido esse nexo de causalidade adequada entre a não sinalização do perigo da estrada e sua falta de limpeza e o “dano” (base da presunção) o réu para afastar a responsabilidade civil deveria provar (artigo 493º, 1, 2º parte) que (1) não teve culpa ou (2) que – tendo culpa - o dano se verificaria mesmo que a não tivesse. O “non liquet” sobre qualquer destes aspectos (falta de culpa, ou relevância negativa da causa virtual) é decidido contra o réu.

Dos factos não resulta que o réu tenha cumprido todas as regras de prudência exigíveis na vigilância da estrada.

Ou seja, a matéria de facto dada como assente não permite, de modo algum, considerar provado que “nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”.

O recorrente Município (...) não põe em causa que tenha o dever de vigiar a estrada em causa, também não invoca a verificação de caso de força maior, para ilidir a presunção de culpa que sobre ele recai.

Não há dúvida de que a estrada em questão não tinha sinalização de perigo, nem foi objecto de limpeza antes do despiste.

Para se considerar ilidida a presunção, necessário se tornava alegar e provar o modo e a respectiva periodicidade média do controlo, vigilância e fiscalização para se aferir da eficácia e eficiência no cumprimento do respectivo dever.

Assim sendo, face à matéria fáctica demonstrada, é forçoso concluir que as omissões do Réu são ilícitas e que a sua presunção de culpa não foi ilidida.

Com efeito o Réu não logrou ilidir a presunção legal que sobre ele impende, pois, não provou ter cumprido com eficácia o referido dever de fiscalização da via, em obediência às regras técnicas e de prudência comum exigíveis naquela situação concreta, nem que a mencionada omissão de sinalização ou de limpeza da via se ficou a dever em exclusivo a circunstâncias anormais e imprevisíveis, a causa alheia e estranha ao controlo do Réu.

Portanto, a actuação do Réu é ilícita e presumidamente culposa.

Não se vê razão para censurar esta ponderação da sentença recorrida, que a argumentação do Réu constante das alegações de recurso não põe em causa.

O Autor tinha, neste caso, a seu favor a presunção legal de culpa a que se refere o artigo 493º, nº 1, do Código Civil, conforme é, a este propósito, jurisprudência generalizada do Supremo Tribunal Administrativo (v. entre muitos outros, acórdãos do Pleno de 29.4.98, p. 36463; de 3.10.02, p. 45160; de 20.3.2002, p. 45831).

Essa presunção não foi ilidida pelo Réu.

Conforme o Supremo Tribunal Administrativo repetidamente tem afirmado, a alegação e consequente possibilidade de prova da inexistência de “faute de service” tem de ser feita a partir de factos que esclareçam o Tribunal sobre as providências que em concreto foram tomadas pelos serviços do Réu para obviar a eventos danosos como o que ocorreu (v. entre outros acórdãos de 14.4.05, p. 86/04; de 5.5.04, p. 1203/03; de 12.7.07, p. 321/07), prova que não foi feita.

Reproduzindo parcialmente o acórdão do Pleno do Supremo Tribunal Administrativo, de 14.01.2010, no processo nº 0566/08:

“(…) um caso de força maior é todo o acontecimento natural ou acção humana que, embora, previsível ou até prevenida, não se pode evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências” (Acs. do STJ de 9/1/1970-proc. nº62941, de 10/12/85-proc. nº73169, de 26/5/1988-proc. nº75721, de 27/9/1994-Proc. nº85089, de 10/2/2005-proc. nº4B2192 e de 29/11/2005-proc. nº05B3678).

Na hipótese do caso de força maior fica prejudicado qualquer juízo de culpa sobre o potencial lesante, dado que em nada contribuiu para o evento.

Com efeito, não se alegou e, como tal, não se provou, quais as providências desencadeadas em relação à vigilância da via municipal que os seus controlo, vigilância e fiscalização foram adequados, sistemáticos e continuados, e assim permitir ao Tribunal poder aferir se o Município (...) «organizou os seus serviços de modo a assegurar um eficiente sistema de prevenção e vigilância de anomalias previsíveis», exercendo uma adequada, sistemática e contínua fiscalização técnica (no sentido de que só a alegação e prova desses requisitos ilide a presunção de culpa em caso de despiste se pronunciam os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 15.10.2009, p. 02090/06.3BEPRT, de 17.12.2003, p. 01499/03, de 15-10-2003, p. 011/03, de 22-10-1998 p. 043616, de 11.01.1994, p. 034034, de 11-01-1994, p. 031468, de 20.02.1990, p. 027844, de 13-02-1997, p. 37290, e de 07.11.1989, p. 027240.

O que tem de comum a situação dos autos com as situações descritas nos acórdãos ora citados, de decisivamente comum, é a circunstância de não ter ficado provado que a entidade demandada procedeu à vigilância e cuidado da via no local do despiste, de forma sistemática e continuada.

Pelo exposto, impõe-se manter a decisão da 1ª Instância e decidir do mérito da acção, por não terem sido alegados factos suficientes para a elisão da presunção de culpa prevista no artigo 493º, nº1 , do Cód. Civil.

3. Dos danos.

A última questão a decidir consiste na determinação do orçamento da reparação do veículo sinistrado ser dano indemnizável.

Nos termos do artigo 562º do Código Civil, “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.”. Tal obrigação só existe em relação aos danos que o lesado não teria sofrido se não fosse a lesão (artigo 563º do Código Civil), compreendendo não só os chamados “danos emergentes”, como os “lucros cessantes” (as duas categorias são mencionadas na lei como “prejuízo causado” e “benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão” – nº 1 do artigo 564º do Código Civil).

Em princípio a indemnização deverá visar a reconstituição natural, sendo fixada em dinheiro quando a reconstituição natural não for possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor (nº 1 do artigo 566º do Código Civil). A indemnização em dinheiro terá como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e que a que teria nessa data se não existissem danos (nº 2 do artigo 566º). Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (nº 3 do artigo 566º).

Põe o Recorrente em causa que o Autor tenha efectivamente pago o valor da reparação do veículo, uma vez que nos autos consta apenas o orçamento dessa reparação e não o recibo de pagamento.

Não tem razão.

O facto 13 dado como provado deu como assente que o orçamento da reparação do veículo automóvel é de 4 580,89 euros

Tanto basta para obrigar o Réu ao pagamento dessa quantia, enquanto prejuízo efectivamente causado ao Autor.

Se o Autor vai ou não mandar reparar o veículo é questão que não é condição do pagamento do mesmo ao lesado, que sofreu efectivamente esse prejuízo no seu bem móvel (veículo automóvel).

O Recurso do Réu Município (...) improcede, por isso, na totalidade.
*

IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO A AMBOS OS RECURSOS, pelo que mantêm a decisão recorrida.

Custas de cada recurso por cada Recorrente.
*
Porto, 13.03.2020

Rogério Martins
Helena Ribeiro, em substituição
Frederico Branco