Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00676/14.1BEAVR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/12/2019
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Frederico Macedo Branco
Descritores:ORDEM DOS ADVOGADOS; PENA DISCIPLINAR; PENA CRIMINAL E PENA DISCIPLINAR; PEDIDO DE REVISÃO;
Sumário:
1 – A realidade disciplinar e criminal é diversa, sendo que tem resultado da jurisprudência, designadamente, emanada pelo STA, que se tem ponderado, a propósito da autonomia do processo disciplinar, relativamente ao processo-crime, qual a repercussão que tem, no ordenamento jurídico, a decisão proferida em processo-crime, quais os efeitos do caso julgado penal (condenatório ou absolutório) no âmbito do processo disciplinar.
2 - Sempre se reconhecerá a autonomia entre os procedimentos disciplinares e criminais, persistindo em cada um deles uma capacidade autónoma de apreciação e valoração dos mesmos factos.
3 - O procedimento disciplinar é independente e autónomo do processo criminal sendo diferentes os pressupostos da respetiva responsabilidade e diversa natureza e finalidade das sanções aplicadas naqueles processos.
4 - Um mesmo facto pode constituir ao mesmo tempo uma falta penal e uma falta disciplinar; mas, igualmente pode acontecer que esse facto constitua uma infração penal sem ter o carácter de falta disciplinar e que, inversamente, um facto constitua uma falta disciplinar, sem reunir as condições de uma infração penal.
A autonomia dos campos disciplinar e penal caracteriza-se, pela coexistência de espaços valorativos e sancionatórios próprios, sendo que só as faltas cometidas no exercício da função ou suscetíveis de comprometer a dignidade desta podem ser objeto de repressão disciplinar.
5 - Enquanto a repressão penal é exercida no interesse e segundo as necessidades da sociedade em geral, a repressão disciplinar é-o no interesse e segundo as necessidades do serviço. A sanção penal atinge o cidadão na sua liberdade e nos seus bens, a sanção disciplinar atinge o funcionário na sua situação de carreira.
A valoração é, assim, autónoma e independente, donde resulta, pois, que a mesma conduta pode ser apreciada simultaneamente no campo penal e no campo disciplinar, sem que isso envolva violação do princípio “ne bis in idem”, que apenas funciona no âmbito de cada específico ordenamento sancionatório. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:AOFN
Recorrido 1:Ordem dos Advogados
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Condenação à Prática Acto Devido (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:
Negar provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer
1
Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I Relatório
AOFN, no âmbito da Ação Administrativa Especial intentada contra a Ordem dos Advogados, tendente à condenação desta a “decidir o pedido de revisão de acordo com o recurso apresentado”, no seguimento da pena de multa que lhe foi disciplinarmente aplicada, inconformado com a Sentença proferida em 27 de julho de 2018, no TAF de Aveiro, que decidiu “julgar totalmente improcedente a Ação”, veio em 1 de outubro de 2018, interpor recurso jurisdicional da mesma, no qual concluiu:
1) O recorrente pediu que a Ordem dos Advogados fosse condenada a proferir decisão sobre um pedido de revisão que apresentou.
2) O recorrente peticionou: "Termos em que, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e, em consequência ser a Ordem dos Advogados condenada à prática do ato devido, ou seja, a decidir o pedido de revisão de acordo com o recurso apresentado e, assim, aferindo se se verificam ou não, no caso concreto, os pressupostos de que depende a aplicação ao caso vertente do estatuído mormente no art. 162.°, n.º 1 al. c) do Estatuto da Ordem dos Advogados."
3) A Decisão recorrida decidiu: "Pelo exposto, sem necessidade de maiores considerações, conclui-se não se verificarem os pressupostos invocados pelo autor para admissão do recurso de revisão apresentado."
4) Sendo que antes quando definiu o objeto do processo esse mesmo Tribunal referiu:
"Importa neste momento proferir decisão sobre o mérito da causa, decidindo, por isso, se se mostram verificados os pressupostos para condenar o Réu a decidir o pedido de revisão de acordo com o recurso apresentado, aferindo se se verificam ou não, no caso concreto, os pressupostos de que depende a aplicação ao caso do estatuído, mormente no artigo 162.°, n.º 1, alíneas a) e c), do Estatuto da Ordem dos Advogados."
5) Assim, a decisão do Tribunal a quo padece de nulidade, entre o mais que nos escusa citação, nos precisos termos do estatuído nos arts. 615.°, n.º 1, al. d) e e) do CPC, aplicável ex vi art. 1º do CPTA.
6) Por outro lado, a decisão padece igualmente de erro de julgamento por violação do princípio constitucional da separação de poderes (cfr. art. 111.° da CRP e art. 3.°, n.º 1 do CPTA), uma vez que o Tribunal não tinha atribuições para decidir o mérito do pedido feito à Ordem dos Advogados, tendo assim exercido uma competência própria da administração, regulada na Lei (entre o mais, no Estatuto da OA).
Termos em que, só revogando a decisão recorrida se fará, JUSTIÇA!”
*
A aqui Recorrida/OA veio apresentar as suas contra-alegações de Recurso em 19 de outubro de 2018, tendo concluído:
1. A douta decisão do Tribunal a quo não merece censura.
2. A sentença recorrida analisou e apreciou os argumentos e fundamentos da ação e conheceu tão-só da questão fundamental que foi colocada ao Tribunal e a saber: a admissibilidade ou não do recurso de Revisão.
3. A sentença recorrida concluiu, repetida e expressamente, pela não “verificação” de quaisquer fundamentos legais para a admissão do recurso de revisão.
4. A sentença recorrida, em consequência, decidiu pela absolvição da Ré, ora Recorrida, do pedido formulado (pedido de “prática do ato devido, ou seja, a decidir o pedido de revisão”, sic da PI).
5. Pelo que não só inexistem as invocadas nulidades referidas no Artigo 615.º n.º 1, d) e e) do CPC, como não há qualquer erro de julgamento, muito menos por violação do constitucional princípio da separação de poderes previsto no Artigo 111.º da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que, mantendo-se a douta decisão do Tribunal a quo, se fará JUSTIÇA!”
*
O Recurso foi admitido por Despacho de 12 de fevereiro de 2019.
*
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado em 21 de fevereiro de 2019, nada veio dizer, requerer ou Promover.
*
Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
II - Questões a apreciar
Importa apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA, onde se invoca, designadamente que o acórdão recorrido padecerá de nulidade.
III – Fundamentação de Facto
O Tribunal a quo, considerou a seguinte factualidade como provada:
A) Em 28.11.2008, o Conselho de Deontologia de Coimbra da Ré instaurou um processo disciplinar ao Autor, o qual seguiu os seus termos sob o n.º 306/2008-D (cfr. fls. 66 e ss, do processo administrativo);
B) Neste processo disciplinar, em 07.04.2010, foi elaborado o relatório final com o seguinte teor:
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª instância – nº 6 do Artº 663º CPC)
C) Em 09.04.2010, o Conselho de Deontologia da Ordem dos Advogados de Coimbra, deliberou concordar com relatório final (cfr. fls 235, do processo administrativo);
D) O Autor e o Bastonário da Ré apresentaram recurso para o Conselho Superior da decisão a que se reporta a alínea anterior (cfr. fls. 261 e ss, do processo administrativo);
E) Em 02.11.2013, o relator do recurso apresentado, emitiu o seguinte parecer:
(Dá-se por reproduzido o documento fac-similado constante da decisão de 1ª instância – nº 6 do Artº 663º CPC)
(cfr. fls. 281 e ss, do processo administrativo);
F) Em 15.11.2013, na sequência de recurso do Bastonário da Ré, o seu Conselho Superior deliberou aprovar o parecer a que se reporta a alínea anterior e condenar o Autor na pena de multa de €5 500,00 (cfr. fls. 287, do processo administrativo);
G) Em 12.13.2013, o Autor apresentou um pedido de revisão da pena disciplinar a que se reporta a decisão transcrita na alínea e), supra, do qual se extrai o seguinte:
“(…) 24. De qualquer forma, sempre se dirá que em sede de Instrução do proc. n.º 137/08.9TAACN consta do respetivo Despacho de Não Pronúncia, que não existem sequer indícios de que o ora Recorrente tenha praticado de forma culposa, negligentemente ou com dolo os factos de que vem acusado e, mesmo que (…);
26. Esta decisão do MM.º Juiz de Instrução Criminal há muito transitada em julgado, demonstra que os factos que serviram de fundamento à decisão sancionatória dos presentes autos não são conciliáveis com aqueles dados como provados numa decisão judicial, sendo certo que da oposição entre uma e outra resultam graves dúvidas sobre a Justiça da pena sancionatória, já que os meios probatórios utilizados e analisados no processo criminal judicial muito mais abundantes e criteriosos, levam a concluir que a decisão judicial se deva obviamente sobrepor à decisão disciplinar;
(…)
32. De qualquer forma, deve o presente Recurso de Revisão ser admitido, por legal e tempestivo (art.º 162.º, n.º 1, alínea a) e c) e 160.º, n.º 1 ambos do E.O.A), e por via dele ser concedida a Revista com total revogação da Deliberação proferida em processo revisto – art.º 166, n.º 5 do EOA -, na medida em que viola os princípios normativos informadores e conformadores das normas constantes dos artigos (…)” (cfr. fls. 330 e ss, do processo administrativo);
H) Em 29.12.2013, com referência ao pedido a que se reporta a alínea anterior, foi elaborado um parecer do qual se extrai o seguinte:
“(…) A- Da leitura e análise do Requerimento de Interposição de Recurso não se encontra qualquer facto novo, não conhecido, abordado e considerado ao longo do Processo seja no Acórdão do Conselho de Deontologia de Coimbra seja no Acórdão de que ora se solicita a Revisão. Inclusive a sentença que ora se junta já se encontra nos autos desde a instrução e foi expressamente considerada quer no Acórdão do CDCoimbra quer no Acórdão deste Conselho.
B- Daí não se vislumbrar qual o fundamento de Recurso de Revisão, só possível e admissível desde que preencha algum dos requisitos previstos nas alíneas a) a d) do n.º 1 do Art. 162º do EOA…(…)” (cfr. fls. 369, do processo administrativo);
I) Em 27.02.2014, o Conselho Superior da Ré, aprovou o parecer a que se reporta a alínea anterior, e deliberou indeferir o recurso apresentado pelo Autor, constando desta deliberação, além do mais, o seguinte: “(…) não se encontra no requerimento de apresentação de recurso qualquer facto novo não conhecido abordado e considerado ao longo do processo, seja no acórdão do Conselho de Deontologia de Coimbra, seja no acórdão de que agora se solicita a revisão.
Mesmo a sentença que agora se junta já se encontra nos autos desde a instrução e foi expressamente considerada, quer no acórdão do Conselho de Deontologia de Coimbra, quer no acórdão deste Conselho (…)” (cfr. fls. 373, do processo administrativo).”
*
IV – Do Direito
No que ao direito concerne, e no que aqui releva, discorreu-se em 1ª instância:
“Alega o Autor que o que pretende equacionar é verificar se foi ou não alegado qualquer facto novo não conhecido, abordado e considerado ao longo do processo, seja no acórdão do Conselho de Deontologia de Coimbra, seja no acórdão de que agora é solicitada a revisão; que as razões de indignação, prendem-se com o facto de existir um acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que anulou toda a tramitação processual posterior a fls. 375 do processo n.º 387/04.6TBACN.C1 e, assim, a existência processual do alegado ato falsificado e, ainda, pelo Tribunal de Alcanena ter, no âmbito do processo n.º 137/08.8TAACN, absolvido o Autor do crime de falsificação de documento; que quanto à decisão do Tribunal da Relação, a questão foi conhecida, abordada e considerada no acórdão do conselho de deontologia de Coimbra de 09.04.2010, porém quando à decisão do processo n.º 137/08 o trecho do acórdão onde esta decisão é referida não pondera a questão da absolvição neste processo-crime, pois apenas se dirige a justificar a irrelevância da anulação dos termos processuais por força daquele acórdão da Relação de Coimbra; que além do mais o que ali consta dos factos provados em relação a esta matéria, não pode resultar o entendimento que existiu consideração e ponderação jurídica desta factologia na decisão punitiva; que, por isso, o ato impugnado padece de erro nos pressupostos de facto; que a decisão de absolvição não foi, pura e simplesmente, ponderada nas decisões cuja revisão é pretendida, parecendo mesmo que esta decisão absolutória foi absoluta, pura e simplesmente ignorada pelo Réu e tratada como se não tivesse qualquer relevância jurídica, podendo assim concluir-se que esta decisão absolutória não foi conhecida, abordada e considerada durante o processo e, como já se disse sobejamente, devia tê-lo sido; que não bastava dar nota factual da mera existência da sobredita decisão jurisdicional, importava ainda sopesá-la e ponderá-la na sua evidente consequência jurídica; que nos termos do artigo 162.º, não interessa se os factos são novos, mas se os mesmos são ou não inconciliáveis com outros factos dados como assentes noutras decisões definitivas, quando se esteja perante uma situação de facto de onde resultem grandes dúvidas sobre a justiça da condenação; que foi isto que o Autor peticionou no seu pedido de revisão.
O Réu, por sua vez, alega que o Autor não foi absolvido no processo penal que decorreu sob o n.º 137/08.8TAACN; que o que sucedeu foi apenas uma decisão de não pronúncia do Autor; que, assim sendo, inexiste qualquer possibilidade de inconciliabilidade entre os factos ilícitos que serviram de fundamento à decisão disciplinar punitiva do Conselho Superior e a valoração de meros indícios que foi feita no âmbito do processo penal e que conduziu à decisão de não pronúncia em sede de instrução; que de um lado estão factos averiguados e provados no âmbito do processo disciplinar e do outro apenas a apreciação e valoração de meros indícios no processo penal; que, por isso, não se verifica a inconciliabilidade a que alude o artigo 162.º, n.º 1, alínea c), do Estatuto da Ordem dos Advogados, pois a inconciliabilidade é sempre entre factos provados e não entre decisões; que, além do mais, não foi alegado qualquer facto novo, pois a decisão no recurso de agravo do processo n.º 387/04.6TBACN.C1 da Relação de Coimbra e a já referida decisão de não pronúncia foram decisões conhecidas e tomadas em consideração nas decisões de 15.11.2003 e 09.04.2010; que, além do mais, o Autor nada diz quanto às graves dúvidas sobre a justiça da condenação, o que sendo um requisito cumulativo é indispensável à procedência da presente ação.
Com relevância para a decisão a proferir, cabe perscrutar o disposto no artigo 162.º, do Estatuto da Ordem dos Advogados, na redação aplicável à data.
Assim, dispunha este artigo 162.º, sob a epígrafe “Fundamentos e admissibilidade da revisão”, o seguinte:
“1 - É admissível a revisão de decisão definitiva proferida pelos órgãos da Ordem dos Advogados com competência disciplinar sempre que:
a) Uma decisão judicial transitada em julgado declarar falsos quaisquer elementos ou meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão revidenda;
b) (...)
c) Os factos que serviram de fundamento à decisão condenatória forem inconciliáveis com os dados como provados noutra decisão definitiva e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;
d) (...)
2 – (...)
3 - A simples alegação de ilegalidade, formal ou substancial, do processo e decisão disciplinares não constitui fundamento para a revisão.
4 - A revisão é admissível ainda que o procedimento se encontre extinto ou a pena prescrita ou cumprida.”
Ora, resulta da factualidade assente que na decisão proferida pelo Conselho de Deontologia, no processo disciplinar a que se reporta a decisão impugnada, alguns dos factos aí considerados provados foram os seguintes: que nos autos com o n.º 387/04.6TBACN do Tribunal Judicial de Alcanena, tendo o Autor este processo na sua posse, apôs, à mão, nas folhas correspondentes a um fax por si enviado anteriormente (de interposição de recurso), a indicação do seu valor; que ao proceder desta forma pretendeu o Autor alterar o valor do recurso e conseguir uma substancial redução do valor da taxa de justiça; que em consequência da prática destes factos o Autor foi constituído arguido no processo-crime n.º 137/08.8TAACN do Tribunal Judicial de Alcanena; que na sequência da abertura de instrução, neste processo-crime, o mesmo veio a terminar com despacho de não pronúncia, em função de se considerar que não estavam preenchidos todos os pressupostos para a acusação por crime de falsificação de documento, muito embora tivesse sido dado como suficientemente indiciada a alteração do documento por parte do Sr. Advogado, nos moldes da previsão da alínea b), do n.º 1, do artigo 256.º do Código Penal; que por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra foi decidido anular tudo quanto nos autos n.º 387/04.6TBACN, foi processado posteriormente ao requerimento de interposição de recurso apresentado naquele processo pelo Autor.
Da factualidade retira-se ainda que nesta decisão do Conselho de Deontologia consta que “ao proceder da forma apurada nestes autos, o Sr. Advogado demonstrou não ser merecedor da confiança nele depositada, revelando grave desconformidade com as mais elementares normas que regem a profissão e que constituem o seu cerne deontológico. De facto, decorre do art. 83º do E.O.A. que os senhores advogados estão vinculados, tanto na sua atividade profissional propriamente dita, como no mero âmbito da sua vida pública, ainda que fora do exercício da profissão, a manter um comportamento adequado à dignidade da função que exercem, constituindo, designadamente, obrigações profissionais, a honestidade, probidade, retidão, lealdade, cortesia e sinceridade”.
Por último, da referida factualidade resulta ainda que na decisão do Conselho Superior, proferida neste processo disciplinar, pode ler-se que: “Há pois que emitir pronuncia sobre os factos provados nos autos e aferir sobre a justeza da sanção em que o Advogado foi condenado.
Tendo em conta os factos dados como provados no acórdão recorrido, não nos parece que os mesmos resultem de uma conduta negligente mas antes dolosa.
Com efeito, afigura-se claro que o Recorrido atuou de forma premeditada e com o intuito de obter para si um benefício, que sabia não ter direito, ao alterar o valor do recurso por forma a conseguir uma substancial redução do valor da taxa de justiça a pagar pela interposição daquele.
Por outro lado, é particularmente grave a forma como o Recorrido utilizou a confiança do processo, uma prerrogativa concedida aos advogados para na comodidade dos seus escritórios e sem estarem sujeitos aos horários dos tribunais poderem estudar e trabalhar nos processos em que têm intervenção, para adulterar aqueles autos. (…)
Considerando o acima exposto e concordando com a qualificação da atuação do Recorrido conferida pelo Conselho de Deontologia de Coimbra no acórdão recorrido não se acolhe a interpretação do Recorrido de que os termos usados se tratam de “meros juízos de valor” ou “preconceitos pessoais”. (…)” (factos assentes nas alíneas a) a f)).
É assim manifesto que, compaginada a factualidade assente com os fundamentos invocados pelo Autor e que sustentam a sua posição, conclui-se pela não verificação de quaisquer dos fundamentos legalmente previstos para a admissão do presente recurso de revisão.
Com efeito, inexiste qualquer decisão judicial transitada em julgado a declarar falsos quaisquer elementos ou meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão revidenda, sendo certo que ambas as decisões a que o Autor se reporta (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo n.º 387/04.6TBACN.C1, que anulou toda a tramitação processual posterior à interposição do recurso apresentado pelo Autor, e a decisão de não pronuncia tomada no âmbito do processo n.º 137/08.8TAACN), constam, além do mais, da factualidade provada em ambas as decisões proferidas pelo Réu e, assim, da sua fundamentação de facto.
Por outro lado, não procede a alegação do Autor de que os factos que serviram de fundamento à decisão condenatória são inconciliáveis com os dados como provados noutra decisão definitiva, por um lado, porque tão pouco o Autor alega a que factos, em concreto, se pretende reportar e, por outro lado, porque não se vislumbra a existência de qualquer impossibilidade de conciliação entre os fundamentos (de facto) qualquer uma das decisões invocadas, e muito em concreto, do processo-crime com a decisão de não pronúncia pelo crime de falsificação de documento, atento o que resulta daquela decisão, bem como por estarmos em ambos os processos perante ilícitos distintos (na decisão de não pronuncia tomada no âmbito do processo n.º 137/08.8TAACN, estava em causa um ilícito criminal, e nas decisões do Réu, está em causa um ilícito disciplinar).
Na verdade, conforme se lê no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 26.06.2008, proferido no processo n.º 3670/99: “o processo disciplinar é autónomo do processo criminal, uma vez que são diversos os fundamentos e fins das respectivas penas, bem como os pressupostos da respetiva responsabilidade, podendo ser diversas as valorações que cada uma delas faz dos mesmos factos e circunstâncias. Por isso, a existência de ilícito disciplinar não está prejudicada ou condicionada pela decisão que, sobre os mesmos factos, tenha sido, ou venha a ser tomada em processo penal”.
Pelo exposto, sem necessidade de maiores considerações, conclui-se não se verificarem os pressupostos invocados pelo Autor para admissão do recurso de revisão apresentado.”
Apreciemos agora o suscitado, referindo-se desde já que se não vislumbram razões para divergir da decisão proferida em 1ª instância.
Em qualquer caso, tendo sido imputada em sede recursiva, a nulidade da decisão de 1ª instância, como lhe competia, já a respetiva juiz se pronunciou aquando da admissão do Recurso, nos seguintes termos:
“O Recorrente suscita, no seu recurso, a nulidade da decisão atento o facto de ter considerado não verificados os pressupostos que invocou para admissão do recurso de revisão e ter definido o objeto do processo como sendo aquele que se reportava à decisão sobre “se se mostram verificados os pressupostos para condenar o Réu a decidir o pedido de revisão de acordo com o recurso apresentado, aferindo se se verificam ou não, no caso concreto, os pressupostos de que depende a aplicação ao caso estatuído, mormente no artigo 162.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Estatuto da Ordem dos Advogados.”
O Recorrido veio responder alegando que a sentença recorrida analisou e apreciou os argumentos e fundamentos da ação e conheceu da questão fundamental que foi colocada ao Tribunal: a admissibilidade ou não do recurso de revisão.
Vejamos, por isso.
Ora, sendo certo que o Recorrente não concretiza os fundamentos para a invocada nulidade, julga-se inevitável concluir pela sua não verificação, pois o Tribunal pronunciou-se sobre o objeto do litígio, debruçando-se sobre todos os fundamentos invocados pelo Recorrente para defender a admissibilidade deste recurso e, assim, sobre a alegada invalidade da decisão impugnada.
Assim, por tudo o exposto, não há que proceder a qualquer suprimento ou reforma da decisão proferida, nos termos do disposto no artigo 641.º, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 140.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.”
Efetivamente a invocada nulidade de sentença recorrida mostra-se predominantemente conclusiva, sem que se alcance em que medida exatamente se consubstanciaria a mesma.
Refira-se desde já que, ao contrário do argumentário do Recurso, em bom rigor, o tribunal a quo não decidiu “o mérito do pedido feito à Ordem dos Advogados”, mas tão-só o mérito da ação que lhe foi submetida, o que é diverso, em face do que se não reconhece a verificação do imputado erro de julgamento por violação do princípio constitucional da separação de poderes.
Apreciemos, em qualquer caso, o invocado no Recurso, impondo-se, antes de mais, evidenciar a factualidade mais relevante, por forma a enquadrar tudo quanto se expenderá.
Assim:
a) - O Recorrente, por deliberação datada de 15.11.2013, foi punido disciplinarmente pelo Conselho Superior da OA com pena de €5.500 de multa:
b) - O Recorrente apresentou recurso de Revisão da pena disciplinar para o Conselho Superior da AO;
c) - O Conselho Superior da OA, em 27.12.2014, deliberou não aceitar e indeferir o pedido de Revisão:
d) - Em 14.07.2014, o Recorrente intentou a presente Ação, invocando, designadamente e em síntese, que se verificavam os pressupostos para a admissibilidade do Recurso de Revisão a que se referem as alíneas a) e c) do Artigo 162º nº 1 do Estatuto da AO, mais requerendo que a OA fosse “… condenada à prática do ato devido, ou seja, a decidir o pedido de revisão de acordo com o recurso apresentado e, assim, aferindo se se verificam ou não, no caso concreto, os pressupostos de que depende a aplicação ao caso vertente do estatuído, mormente no artº 162º, nº1, al. c) do Estatuto da Ordem dos Advogados”.
Desde logo o Estatuto da Ordem dos Advogados foi alterado pela Lei n.º 145/2015 de 9 de setembro, sendo que, em qualquer caso, o normativo que regula os Fundamentos e a Admissibilidade do Recurso de Revisão, no que essencialmente aqui releva, não sofreu alterações substanciais - nº 1 do Artigo 167.º.
É certo, em qualquer caso, que a sentença aqui Recorrida, cuidou, como lhe competia, de identificar adequada e suficientemente as questões que se mostravam controvertidas, não perdendo de vista, nomeadamente, o Artº 162º, nº1, al. c) do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Ao contrário do que lhe é conclusivamente imputado em sede recursiva, não se reconhece que a sentença aqui recorrida, tenha decidido o pedido de Revisão controvertido, designadamente, em substituição do Conselho Geral da Ordem dos Advogados.
O Tribunal a quo limitou-se a analisar as questões que lhe haviam sido recursivamente colocadas, tendo concluindo pelo não preenchimento dos requisitos/pressupostos tendentes à almejada admissibilidade do pedido de revisão apresentado.
Como se discorreu em 1ª instância:
“É assim manifesto que, compaginada a factualidade assente com os fundamentos invocados pelo Autor e que sustentam a sua posição, conclui-se pela não verificação de quaisquer dos fundamentos legalmente previstos para a admissão do presente recurso de revisão”
Mais se afirmou na sentença Recorrida, que:
“Pelo exposto, sem necessidade de maiores considerações, conclui-se não se verificarem os pressupostos invocados pelo Autor para a admissão do recurso de revisão apresentado.”
Não se reconhece pois que a sentença recorrida tenha divergido do objeto da ação ou do Recurso, tendo, em função do que discorreu, de facto e de direito, singelamente absolvido a OA do pedido formulado, em função das conclusões a que chegou.
Refira-se finalmente, e tal como foi sublinhado em 1ª instância, que o aqui Recorrente, em bom rigor, não foi absolvido dos crimes de que vinha acusado, tendo singelamente não sido pronunciado pelos mesmos.
Em qualquer caso, e realidade disciplinar e criminal é diversa, sendo que, tal como se refere, entre muitos outros, no acórdão deste TCAN nº 0601/13.7BECBR, de 06-04-2018, resulta da jurisprudência emanada pelo STA, por exemplo nos processos 01035/08, ac. de 25-02-2010, e 01058/06, ac. de 19-06-2007. que «Tem-se discutido, a propósito, ainda da referida autonomia do processo disciplinar relativamente ao processo-crime, qual a repercussão que tem, no ordenamento jurídico, a decisão proferida em processo-crime, e para o que aqui nos interessa, quais os efeitos do caso julgado penal (condenatório ou absolutório) no âmbito do processo disciplinar.
(...)”
No entanto, sempre se reconhecerá a autonomia entre os procedimentos disciplinares e criminais, persistindo em cada um deles uma capacidade autónoma de apreciação e valoração dos mesmos factos.
O procedimento disciplinar é independente e autónomo do processo criminal sendo diferentes os pressupostos da respetiva responsabilidade e diversa natureza e finalidade das sanções aplicadas naqueles processos.
Como se discorreu, entre outros, no acórdão de 26.06.2008, do Tribunal Central Administrativo do Sul, proferido no processo n.º 03670/09, “As questões da independência entre o processo criminal e o procedimento disciplinar, bem como a relevância, no processo disciplinar, de decisões proferidas em processo-crime que versaram sobre o mesmos factos, têm sido abundantemente discutidas na doutrina e na jurisprudência. Como já observava, o Prof Eduardo Correia, in Direito Criminal II, Coimbra 1992, p.5 e Parecer da PGR nº24/95, de 07.12.1995, “um mesmo facto pode constituir ao mesmo tempo uma falta penal e uma falta disciplinar; mas, igualmente pode acontecer que esse facto constitua uma infração penal sem ter o carácter de falta disciplinar e que, inversamente, um facto constitua uma falta disciplinar, sem reunir as condições de uma infração penal (…)”.
Com efeito, a autonomia dos campos disciplinar e penal caracteriza-se, “pela coexistência de espaços valorativos e sancionatórios próprios”, desde logo, “só as faltas cometidas no exercício da função ou suscetíveis de comprometer a dignidade desta podem ser objeto de repressão disciplinar (…)”.
Enquanto a repressão penal é exercida no interesse e segundo as necessidades da sociedade em geral, a repressão disciplinar é-o no interesse e segundo as necessidades do serviço. A sanção penal atinge o cidadão na sua liberdade e nos seus bens, a sanção disciplinar atinge o funcionário na sua situação de carreira (…). A valoração é, assim, autónoma e independente, donde resulta, pois, que a mesma conduta pode ser apreciada simultaneamente no campo penal e no campo disciplinar, sem que isso envolva violação do princípio “ne bis in idem”, que apenas funciona no âmbito de cada específico ordenamento sancionatório”.
É também jurisprudência assente do STA, que o processo disciplinar é autónomo do processo criminal, uma vez que são diversos os fundamentos e fins das respectivas penas, bem como os pressupostos da respetiva responsabilidade, podendo ser diversas as valorações que cada uma delas faz dos mesmos factos e circunstâncias. Por isso, a existência de ilícito disciplinar não está prejudicada ou condicionada pela decisão que, sobre os mesmos factos, tenha sido, ou venha a ser tomada em processo penal.
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Deste modo, em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Norte, negar provimento ao Recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente
Porto, 12 de abril de 2019
Ass. Frederico de Frias Macedo Branco
Ass. Nuno Coutinho
Ass. Ricardo de Oliveira e Sousa