Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00080/21.5BEPNF
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:03/27/2025
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:CARLOS DE CASTRO FERNANDES
Descritores:IRS RETENÇÃO NA FONTE;
RETIFICAÇÃO ATO; OBRIGAÇÕES;
CONTA «ESCROW»;
Sumário:
I – Advindo os juros pagos de obrigações subscritas por um terceiro, sendo que as mesmas constituem um valor mobiliário (cf. alínea b) n.º 1 do art.º 1.º do CMVM), estando sujeitas a registo (cf. artigos 348.º e segs. do CSCom e 61.º e segs. do CMVM), tendo o respetivo pagamento sido através de uma conta existente na entidade registadora, cabia a esta última proceder à respetiva retenção na fonte, tal como decorrida do n.º 3 do art.º 101.º do CIRS.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes Desembargadores que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I – A [SCom01...], S.A., (Recorrente) veio interpor recurso contra a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, pela qual se negou provimento à impugnação que intentou, direcionada contra a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa que manteve as liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares – Retenção na fonte e respetivos juros compensatórios, relativas ao ano de 2014.

No presente recurso, a Apelante formula as seguintes conclusões:
1ª) O presente recurso vem da Sentença proferida pela Unidade Orgânica 2 do TAF de Penafiel, em 28/09/2024, na qual o tribunal a quo, depois de ter concluído que a liquidação de imposto impugnada dava «cabal cumprimento ao disposto nos artigos 5.º, n.º 2, al. c), 7.º, 71.º, n.º 1, al. a), 98.º, n.º 3 e 101.º, n.º 2, al. a), do CIRS», decidiu julgar a impugnação judicial improcedente.
2ª) A Sentença recorrida enferma de ilegalidade, ao ter admitido a fundamentação sucessiva da liquidação de imposto impugnada que apenas foi invocada pela AT no procedimento de revisão oficiosa, bem como ao ter apreciado a legalidade de tal liquidação à luz desses novos fundamentos aduzidos pela AT em momento muito posterior ao da prática desse acto de liquidação.
3ª) Com efeito, a AT está impedida de invocar, para suportar os actos por ela praticados, quaisquer outros fundamentos, de facto ou de direito, que não os expressamente aduzidos aquando da prática de tais actos.
4ª) A fundamentação contemporânea e contextual do acto impugnado constitui ainda limite aos poderes de cognição do tribunal, na medida em que este apenas pode apreciar a legalidade desse acto à luz dos fundamentos que a AT haja indicado aquando da sua prática, não sendo permitido ao tribunal debruçar-se sobre fundamentos que não constem na motivação expressa do acto.
5ª) Ínsito ao dever legal de fundamentação do acto tributário, está o direito do sujeito passivo ao conhecimento das razões, de facto e de direito, que levaram a administração tributária a praticá-lo, de modo que esse mesmo sujeito passivo, uma vez notificado desse acto e da respectiva fundamentação, possa, de forma esclarecida, conformar-se com ele ou impugná-lo.
6ª) Por esse motivo, essa fundamentação não pode ser feita a posteriori da prática desse mesmo acto tributário, e muito menos depois de o sujeito passivo por ele afectado até já o ter impugnado, sob pena de violação daquele dever de fundamentação, bem como de preterição do direito constitucional desse sujeito passivo à impugnação contenciosa desse mesmo acto.
7ª) Assim, não podia a AT, no RIT, ter indicado como pressuposto legal da liquidação de imposto impugnada a norma da al. c), do nº 1 do art. 6º do CIRS, e, na decisão de indeferimento da revisão oficiosa, invocar que, afinal, tal liquidação teve por fundamento a norma da al. c), do nº 2, do art. 5º do CIRS.
8ª) Se a AT errou na indicação da norma com base na qual procedeu à liquidação de imposto impugnada, não podia, na fundamentação da decisão da revisão oficiosa, “corrigir” tal erro, estando igualmente vedado ao tribunal a quo admitir tal “correcção”, já em fase de impugnação judicial, apreciando a liquidação de imposto impugnada à luz dos novos fundamentos de direito aduzidos pela AT apenas naquela fase de revisão oficiosa.
9ª) Todavia, o tribunal a quo, qualificando a indicação da norma da al. c), do nº 1, do art. 6º do CIRS como um lapso de escrita, não só concluiu não estar perante uma fundamentação sucessiva das liquidações impugnadas, como apreciou a legalidade dessas liquidações à luz de uma norma (a do art. 5º2/c do CIRS) que não foi invocada pela AT na fundamentação contemporânea dos actos impugnados.
10ª) Ora, contrariamente ao referido na Sentença recorrida, a indicação, na fundamentação da liquidação de imposto impugnada, da norma da «alínea c) do n.º 1 do art 6.º do CIRS», não constitui um mero erro de escrita (lapsus calami).
11ª) O erro de escrita a que se alude no art. 249º do Código Civil é aquele que é ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto, e que, ao ler-se o texto, logo se percebe que o interessado queria escrever outra coisa (diferente da que escreveu) e que coisa é essa – o que manifestamente não sucede no RIT, não resultando do respectivo teor, sem margem para qualquer dúvida, que a norma a que a AT pretenderia fazer referência (no lugar daquela da «alínea c) do n.º 1 do art 6.º do CIRS») fosse a do art. 5º-2/c do CIRS.
12ª) Pelo contrário, muito embora tenha recorrido à norma da al. c), do nº 2, do art. 5º do CIRS para fundamentar a sua decisão de indeferir a revisão oficiosa, norma essa que sujeita a IRS os juros remuneratórios de obrigações, o certo é que do teor do RIT resulta a qualificação dos juros em causa como “juros decorrentes de mútuo”, e, assim, subsumíveis, pelo menos em abstracto, à norma da al. a), e não da al. c), do nº 2, do art. 5º do CIRS.
13ª) Sintomático da ambiguidade e obscuridade do RIT quanto ao pressuposto legal em que fundou a sua actuação, é ainda o facto de, no RIT resultante da acção inspectiva a que a Recorrente foi submetida com referência aos exercícios de 2015 e 2016, a “situação semelhante” a que a AT aludiu na Contestação da presente impugnação judicial ter sido enquadrada, não na al. c), do nº 2, do art. 5º do CIRS (como erradamente a Fazenda Pública referiu na Contestação apresentada nestes autos), mas sim na sua al. a)!
14ª) Isto posto, não sendo possível, da indicação feita no RIT à norma da «alínea c) do n.º 1 do art 6.º do CIRS», em conjugação com a qualificação dos juros, nesse RIT, como “decorrentes de mútuo”, saber que a norma a que a AT pretendia, alegadamente, aí referir, era, afinal, a da al. c), do nº 2 do art. 5º do CIRS, jamais se poderá concluir estarmos perante um lapso de escrita.
15ª) Assim, a Sentença recorrida, ao ter julgado que a indicação, no RIT, da norma da «alínea c) do n.º 1 do art 6.º do CIRS», se tratou de mero lapso de escrita por parte da AT, susceptível de correcção, nos termos do disposto no art. 249º do Código Civil, enferma de erro de julgamento.
16ª) Em todo o caso, ainda que a AT, ao indicar a norma da al. c), do nº 1, do art 6º do CIRS, tivesse incorrido num erro na declaração, tal erro não permite, atentos os desígnios do dever legal de fundamentação com que a AT se encontra onerada, qualquer rectificação posteriormente à prática do acto, e muito menos já depois de a Recorrente ter exercido o seu direito de defesa.
17ª) Por conseguinte, se a AT errou na indicação da norma com base na qual procedeu à liquidação de imposto impugnada, não podia, na fundamentação da decisão da revisão oficiosa, “corrigir” tal erro, estando igualmente vedado ao tribunal a quo, pelos motivos aduzidos, admitir tal “correcção”, já em fase de impugnação judicial, apreciando as liquidações impugnadas à luz dos novos fundamentos de direito aduzidos pela AT apenas naquela fase de revisão oficiosa.
18ª) Termos em que, atenta a relevante função garantística do dever legal de fundamentação que impende sobre a AT, não podia o tribunal recorrido ter qualificado a indicação, no RIT, da norma da «alínea c) do n.º 1 do art 6.º do CIRS», como um erro susceptível de correcção, e muito menos ter apreciado a legalidade das liquidações impugnadas à luz da fundamentação sucessiva vertida na decisão de indeferimento da revisão oficiosa.
19ª) Constituindo o fundamento de direito da liquidação de imposto impugnada a norma da «alínea c) do n.º 1 do art 6.º do CIRS», o tribunal a quo apenas podia averiguar se, dessa norma expressamente invocada pela AT na fundamentação da decisão do procedimento de liquidação, resultava o direito à liquidação de imposto invocado pela AT, analisando se, perante os factos por ela alegados, se mostravam ou não preenchidos os pressupostos de facto das normas de incidência objectiva e subjectiva do imposto em causa.
20ª) Uma vez que a norma invocada pela AT para fundamentar a liquidação de imposto impugnada não existia nem existe, e não sendo admitido à AT corrigir a fundamentação dessa liquidação posteriormente à prática do acto, o tribunal a quo apenas podia ter declarado a ilegalidade da liquidação de imposto impugnada, por violação do princípio da legalidade de que decorre o princípio da tipicidade (nullum tributum sine lege) consagrado no art. 103º2-3 da CRP.
21ª) Desse modo, o tribunal a quo, para além de ter admitido a fundamentação sucessiva feita pela AT da liquidação de imposto impugnada, apreciou a legalidade dessa liquidação, não à luz da norma constante na fundamentação contemporânea desse acto tributário impugnado (ou seja, a da norma «alínea c) do n.º 1 do art 6.º do CIRS»), mas antes da norma convocada pela AT apenas na decisão de indeferimento da revisão oficiosa, ou seja, a do art. 5º-2/c do CIRS.
22ª) Pelo que, ao ter decidido pela legalidade da liquidação de imposto impugnada, com fundamento na verificação dos pressupostos de uma norma (a do art. 5º-2/c do CIRS) que não foi sequer invocada pela AT na fundamentação de tal liquidação, o tribunal a quo violou as normas dos arts. 268º-3 da CRP, 77º da LGT, 152º-1/a/b e 153º-1-2 do CPA (sendo estas duas últimas normas aplicáveis ex vi do art. 2º/c da LGT), que consagram o dever legal de fundamentação, pelo que deverá a Sentença recorrida ser revogada, com as legais consequências.
Sem conceder,
23ª) Ainda que se admitisse a fundamentação sucessiva invocada pela AT no procedimento de revisão oficiosa, e, desse modo, que a liquidação de imposto impugnada teve como pressuposto de direito a norma do art. 5º-2/c do CIRS, então, nesse caso, tal liquidação sempre enfermaria de vício de forma por falta de fundamentação, decorrente da contradição manifesta em que incorreu a AT ao, por um lado, qualificar os juros como «decorrentes de mútuo», e, portanto, enquadráveis no âmbito de incidência da norma do art. 5º-2/a do CIRS, e, por outro lado, ao alegar ter efectuado as liquidações impugnadas com fundamento na al. c) dessa mesma norma.
24ª) Impedindo tal contradição o esclarecimento concreto da motivação subjacente às liquidações impugnadas, desconhecendo-se se a AT efectuou as liquidações por ter concluído que os juros em causa eram remuneração de um mútuo ou antes remuneração de obrigações, forçoso é concluir que, ainda nesse caso, as liquidações impugnadas sempre enfermariam de vício de forma consubstanciado na falta de fundamentação exigível, ex vi do disposto nos arts. 268º-3 da CRP, 77º-1-2 da LGT e 152º1/a/b e 153º-1-2 do CPA.
25ª) Ao ter admitido a fundamentação sucessiva das liquidações impugnadas e, desse modo, considerado que constituiu seu fundamento de direito a norma do art. 5º-2/c do CIRS, impunha-se ao tribunal a quo ter concluído pela ilegalidade dessas mesmas liquidações decorrente de vício de falta da fundamentação legalmente exigida, pelo que, ao assim não ter sucedido, a Sentença recorrida é, também ela, ilegal.
26ª) A Sentença recorrida enferma, pois, também por esse motivo, de ilegalidade que impõe a respectiva revogação e substituição por outra que, julgando procedente o presente recurso e a impugnação judicial deduzida, anule a liquidação de imposto e de juros compensatórios impugnadas.
Em todo o caso, e sempre sem conceder,
27ª) Não tendo a AT, na fundamentação das liquidações impugnadas, alegado quaisquer factos susceptíveis de integrar a previsão da norma por ela invocada, ainda que apenas em sede de fundamentação sucessiva, como pressuposto de direito de tais liquidações (i.e., a do art. 5º-2/c do CIRS), as mesmas sempre enfermariam de erros nos respectivos pressupostos.
28ª) Na verdade, tendo em consideração o teor do RIT, verifica-se que a AT qualificou os juros como sendo “decorrentes de mútuo” (sem para tanto também alegar qualquer facto que lhe permitisse chegar a essa conclusão).
29ª) Ao ter decidido pelo acerto das liquidações impugnadas quando a AT não havia invocado factos susceptíveis de integrar a previsão da norma (a do art. 5º-2/c do CIRS) por ela (alegadamente) invocada para sustentar tais liquidações, o tribunal a quo incorreu, também ele, em erro de julgamento.
30ª) Contrariamente àquele que foi o entendimento do tribunal a quo, a questão da qualificação dos juros, pela AT, como decorrentes de mútuo ou de obrigações, não é “despicienda”, desde logo, porque a AT está obrigada a fundamentar os actos por ela praticados e a levar ao conhecimento do sujeito passivo esses fundamentos, devendo tal fundamentação ser suficientemente clara para que o mesmo compreenda o itinerário cognoscitivo percorrido pela AT até à emissão da liquidação, pois o sujeito passivo só se pode defender daquilo e apenas na medida do que lhe for dado a conhecer.
31ª) Se a qualificação dos juros como sendo decorrentes de mútuo ou de obrigações fosse “despicienda”, como sustenta o tribunal a quo, bastaria à AT alegar tratar-se de “juros”, sem cuidar de invocar a origem dos mesmos, tendo então a Recorrente o ónus de, na preparação da sua defesa, procurar no CIRS todas as normas de incidência objectiva que sujeitassem os “juros” a imposto, independentemente da respectiva natureza; verificar se tais “juros” eram abstractamente subsumíveis a qualquer dessas normas, e, em caso negativo, defender-se alegando os motivos pelos quais tinha concluído pela falta de verificação dos pressupostos de cada uma das normas de incidência desse imposto, em suma, teria pela frente uma tarefa tão hercúlea quanto ilegal.
32ª) O entendimento do tribunal a quo não se compagina com as mais elementares garantias de defesa do sujeito passivo no âmbito do direito tributário, sendo violador das normas que regem o dever legal de fundamentação que impende sobre a AT, bem como dos princípios da legalidade, tipicidade, da certeza e segurança jurídicas, pelo que não se pode admitir.
33ª) Acresce que a qualificação de um rendimento como juro decorrente de mútuo ou como juro decorrente de valores mobiliários (como é o caso das obrigações) tem importantes consequências quanto à forma como o rendimento em questão (juros) é tributado, encontrando-se as diferentes situações sujeitas a regimes de tributação bem distintos (v.g., no que concerne à substituição tributária – cfr. art. 101º-3 do CIRS – ou ao momento a partir do qual os rendimentos ficam sujeitos a tributação – cfr. art. 7º-2 do CIRS).
34ª) O tribunal a quo incorreu ainda em erro de julgamento decorrente de uma errada interpretação e aplicação das normas da al. a) do nº 2 do art. 101º do CIRS, e do nº 3 dessa mesma disposição legal.
35ª) Com efeito, da prova produzida nos autos resulta que estamos perante juros decorrentes de valores mobiliários (as 40 obrigações escriturais ao portador emitidas pela Recorrente – cfr. art. 1º-/b do CVM), sujeitos a registo (cfr. 63º-1/a do CVM), emitidos por entidade residente em território português (a Recorrente), e que foram registados junto do “Banco 1...”, tendo este actuado como entidade registadora daquelas obrigações.
36ª) Posto isto, uma vez que, ex vi da norma do art. 101º-3 do CIRS, quando os rendimentos resultem de valores mobiliários sujeitos a registo ou depósito, emitidos por entidades residentes em território português [como é o caso], o disposto na alínea a) do nº 2 é da responsabilidade das entidades registadoras ou depositárias, conclui-se que a Recorrente não estava obrigada a efectuar qualquer retenção na fonte sobre os juros em causa, não se tendo verificado, em relação à Recorrente, qualquer facto tributário.
37ª) O tribunal a quo, ao decidir que a norma aplicável ao caso era a da al. a), do nº 2, do art. 101º do CIRS, afastando a aplicação do nº 3 desse mesmo artigo, incorreu, por isso, em manifesto erro de julgamento.
38ª) Estando em causa conceitos jurídicos próprios do Direito dos Valores Mobiliários, não dispondo o CIRS de definição própria para “valores mobiliários” ou “entidade registadora”, nem nesse Código sendo determinado quando é que um valor mobiliário está sujeito a registo ou depósito, o pertinente regime da hermenêutica, que, no caso, se encontra plasmado no art. 11º-2 da LGT, impunha que os conceitos em questão fossem interpretados e aplicados com o sentido que têm no CVM, tendo sido apenas isso que a Recorrente fez quando procurou o sentido dos que, sendo empregues pela norma do art. 101º-3 do CIRS, pertencem ao Direito dos Valores Mobiliários.
39ª) O tribunal a quo incorreu em erro de facto, ao afirmar que os juros no montante de €421.643,84 correspondiam aos “primeiros juros” devidos ao Sr. «AA» como remuneração das obrigações emitidas pela Recorrente, e que o montante de juros no valor de €300.000,00, vencido na data da emissão destas mesmas obrigações, correspondia aos “segundos juros”.
40ª) É que, conforme decorre à saciedade da matéria de facto provada nos autos, os juros cuja falta de retenção na fonte de IRS aqui se discute, no valor de €300.000,00, correspondem ao primeiro cupão das obrigações emitidas pela Recorrente em 26/11/2014, sendo o segundo cupão aquele que se venceu em 26/11/2016.
41ª) Assim, verifica-se que, por um lado, contrariamente ao que é referido na Sentença recorrida, os juros em causa nos presentes autos não correspondem a quaisquer “segundos juros”, mas sim ao “primeiro cupão das obrigações” emitidas pela Recorrente em 26/11/2014 (vencendo-se o segundo apenas em 26/11/2016); e, por outro lado, que a quantia que a mesma Sentença recorrida refere tratar-se dos “primeiros juros” em nada se relaciona com as obrigações emitidas pela Recorrente em 26/11/2014, não correspondendo a qualquer remuneração do subscritor das mesmas decorrente dessa subscrição, mas antes a juros de um outro mútuo anteriormente ocorrido entre a Recorrente e o mesmo Sr. «AA», em 15/04/2009.
42ª) Termos em que não se verifica a alegada “discrepância de critérios” em que, segundo afirma o tribunal a quo, a Recorrente teria incorrido, ao reter na fonte o IRS respeitante aos juros do mútuo de 2009, e assim já não ter procedido quanto aos juros decorrentes das obrigações por ela emitidas em 2014.
43ª) Em todo o caso, pelas razões acima referidas, ainda que tivesse ocorrido a invocada “discrepância de critérios” (que não ocorreu), o erro que, nesse caso, a Recorrente teria cometido ao reter na fonte e entregado ao Estado o IRS apurado sobre a quantia de €421.643,84, quando a isso não estava legalmente obrigada, não tornava lícito à AT exigir à Recorrente um imposto que por ela não era devido – como se existisse a obrigação de manter determinado procedimento, ainda que ilegal.
44ª) Nas situações de facto subsumíveis à previsão dessa norma do art. 101º-3 do CIRS, o legislador pretendeu, de forma expressa, afastar da obrigação de retenção na fonte as “entidades devedoras dos rendimentos”, para onerar com essa mesma obrigação as “entidades registadoras ou depositárias”, pelo que não podia o tribunal a quo ter concluído que, pelo facto de o “Banco 1...” não ser o devedor dos juros relativos às obrigações que junto dele foram registadas, deixava de estar obrigado, na qualidade de entidade registadora, a proceder à retenção na fonte.
45ª) É que, nas situações abrangidas pela previsão daquela norma do art. 101º3 do CIRS – como é manifestamente o caso –, o legislador pretendeu afastar a obrigação de retenção na fonte das “entidades devedoras dos rendimentos”, para onerar com essa obrigação as “entidades registadoras ou depositárias”.
46ª) Verificando-se, no caso, uma situação de substituição fiscal, em que a lei define quem é o sujeito passivo (substituto) da obrigação de entrega do imposto nos cofres do Estado, e referindo a norma do nº 3 do art. 101º do CIRS que, no caso dos rendimentos de valores mobiliários sujeitos a registo ou depósito, emitidos por entidades residentes em território português, a obrigação de retenção na fonte do imposto que incide sobre tais rendimentos fica a cargo da entidade onde tais valores mobiliários estão registados ou depositados (substituto) – e não da entidade devedora dos mesmos –, o tribunal a quo incorreu em erro manifesto, ao ter aplicado a norma geral da al. a) do nº 2, do art. 101º do CIRS, em detrimento daquela outra do nº 3 desse mesmo art. 101º do CIRS, apesar de esta ser uma norma especial relativamente àquela outra.
47ª) O tribunal a quo só o podia ter feito no caso de ter concluído pela não verificação dos pressupostos da norma do art. 101º-3 do CIRS, o que manifestamente não sucedeu, e, aliás, nem sequer tal foi alguma vez invocado na Sentença recorrida ou na fundamentação da liquidação de imposto impugnada.
48ª) Pelo exposto, ao ter afastado a aplicação da norma especial do art. 101º-3 do CIRS, nos termos em que o fez, concluindo pela legalidade da liquidação de imposto efectuada à Recorrente, ex vi do disposto no art. 101º-2/a daquele mesmo CIRS, o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento.
49ª) Pelas razões acima expostas, a Sentença recorrida violou as normas dos arts. 5º-2/c, 71º-1/a, 98º-3 e 101º-2/a-3 do CIRS, 268º-3 da CRP, 11º-2 e 77º da LGT, 152º-1/a/b e 153º-1-2 do CPA, e 1º/b, 61º-1/b e 63º-1/a do CVM, as quais deveriam ter sido interpretadas e aplicadas com o sentido constante nas presentes alegações e conclusões.
50ª) Termos em que deverá a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por outra na qual se determine, com fundamento nas arguidas ilegalidades, a anulação dos actos impugnados, com as legais consequências.
Apesar de regularmente notificada para o efeito, a RFP não apresentou contra-alegações.
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Os autos foram com vista à digna Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal, que apresentou parecer defendendo a procedência da presente apelação (cf. fls. 700 e segs. dos autos – paginação do SITAF).
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Com a concordância dos MMs. Juízes Desembargadores Adjuntos, dispensam-se os vistos nos termos do art.º 657.º, n. º 4, do Código de Processo Civil ex vi art.º 281.º do CPPT, sendo o processo submetido à Conferência para julgamento.

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II – Matéria de facto provada indicada em 1.ª instância:
1) [SCom01...], S.A, ora impugnante, desenvolve a atividade de exploração hoteleira de um edifício (Convento) e de diversas casas espalhadas pela quinta facto não controvertido, cfr. informação constante do relatório de inspeção tributária, de fls. 173 da paginação eletrónica (“processo administrativo”);
2) Em 23 de outubro de 2014, a impugnante deliberou emitir “40 obrigações com opção put (opção de venda), com valor nominal unitário de € 100.000,00 (cem mil euros) e global de € 4.000.000,00 (quatro milhões de euros) mediante subscrição particular e tomada firme pelo Sr. «AA»” – cfr. ata n.º 22 da Assembleia Geral da impugnante, junta como documento 7 junto com a p.i., de fls. 88 a 92 da paginação eletrónica;
3) Em 28 de outubro de 2014, reuniu-se o Conselho de Administração da impugnante, tendo sido aprovada a deliberação da Assembleia Geral de 23 de outubro de 2014 de emitir “um empréstimo obrigacionista no montante de € 4.000.000,00”, bem como “a contratação do serviço de registo individualizado das obrigações com o Banco 1..., S.A., nestes se incluindo a prestação dos serviços de receção da declaração de subscrição, correspondente liquidação financeira e ainda a execução de instruções de transferência”, tendo sido “ainda aprovada a contratação da criação de uma conta “escrow”, nos termos e condições propostas pelo Banco 1...” cfr. Ata n.º 1 do Conselho de Administração junta como documento 8 da petição inicial, de fls. 93 a 95 da paginação eletrónica;
4) O Conselho de Administração da impugnante decidiu “promover o registo da emissão das obrigações na sociedade, bem como no registo comercial, nos termos dos artigos 43.º e 47.º do CVM e 3.º, n.º 1, alínea I) do Código do Registo Comercial” – cfr. documento 8 junto com a p.i., de fls. 93 a 95 da paginação eletrónica;
5) A emissão das obrigações foi registada na Conservatória do Registo Comercial através do depósito n.º 2288/2014-11-12 facto não controvertido;
6) Em 13 de novembro de 2014, foi registada a emissão de obrigações realizadas por oferta particular, sendo o montante da emissão de € 4.000.000,00 – facto não controvertido e cfr. informação do relatório de inspeção tributária, de fls. 172 da paginação eletrónica (“processo administrativo”);
7) Em 19 de novembro de 2014, entre o Banco 1..., S.A. e a impugnante foi celebrado um “Contrato de Prestação de Serviços de Registo Individualizado de Obrigações Escriturais”, no âmbito da emissão de obrigações até ao montante nominal global de € 4.000.000,00, pela emissão de 40 obrigações a taxa fixa, escriturais, ao portador, com o valor nominal unitário de € 100.000,00, mediante subscrição particular e direta, tendo a impugnante indicado o Banco 1... como registador individualizado das obrigações, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 61.º e 63.º do Código dos Valores Mobiliários cfr. documento de fls. 379 a 386 da paginação eletrónica;
8) O Banco 1..., S.A. foi responsável pela prestação do serviço de assistência ao registo da emissão e ao registo individualizado de € 4.000.000,00 de obrigações, através de uma oferta particular da [SCom01...], S.A., cuja respetiva emissão e subscrição ocorreu no dia 26 de novembro de 2014 cfr. declaração do Banco 1..., junta a fls. 433 da paginação eletrónica;
9) Na “FICHA TÉCNICA” das obrigações emitidas pela impugnante consta que estas são “escriturais, ao portador, exclusivamente materializadas pela sua inscrição em contas abertas em nome dos respetivos titulares no Banco 1..., S.A., de acordo com as disposições legais em vigor” – cfr. documento 13 junto com a p.i., de fls. 118 da paginação eletrónica;
10) Em 26 de novembro de 2014, «AA» apresentou um pedido para “subscrever 40 (quarenta) obrigações da [SCom01...], S.A., emissão 2014-2016, de valor nominal de € 100.000,00 cada uma, ao preço de 100% sobre o valor nominal” e declarou que aceitava que fosse debitada a sua conta n.º ...60 junto do Banco 1..., S.A., pelo valor de € 4.000.000,00 – cfr. ordem de subscrição n.º 1 “Emissão de obrigações [SCom01...], S.A.” constante de fls. 312 a 314 da paginação eletrónica;
11) Em 26 de novembro de 2014, entre a impugnante (1.º outorgante), «AA» (2.º outorgante) e o Banco 1..., S.A. (3.º outorgante) foi celebrado o “ACORDO para regulamentação da movimentação da “conta escrow” da titularidade da [SCom01...], S.A.”, nos termos do qual o 2.º outorgante acordou depositar na conta da 1.ª outorgante aberta junto do Banco 1... o montante global de € 4.000.000,00 para subscrição da totalidade das obrigações emitidas, ficando ainda prevista a finalidade do depósito escrow, nos seguintes termos:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…)”
- cfr. documento de fls. 434 a 443 da paginação eletrónica;
12) Em 26 de novembro de 2014, a impugnante e «AA» outorgaram um contrato denominado “Reforço de Hipoteca Voluntária através da emissão de obrigações”, do qual se extrai o seguinte:
“(…)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…)”
– cfr. documento 9 junto com a p.i., de fls. 96 a 112 da paginação eletrónica;
13) As obrigações emitidas pela impugnante foram integralmente subscritas em 26 de novembro de 2014 por «AA» cfr. documento 10 junto com a p.i., de fls. 113 da paginação eletrónica;
14) No balancete geral da impugnante, reportado a 12 de dezembro de 2014, a conta “25114-Banco 1...” apresentava um saldo credor de € 4.000.000,00 – facto não controvertido, cfr. informação do relatório de inspeção tributária, de fls. 174 da paginação eletrónica;
15) No ano de 2014, na conta 691111 – “Isento (Juros suportados de financiamento obtidos)” a impugnante registou valores que totalizam € 398.384,30 – facto não controvertido e cfr. informação do relatório de inspeção tributária, de fls. 177 da paginação eletrónica (“processo administrativo”);
16) O principal registo que suporta o saldo referido na alínea precedente foi efetuado em 30 de novembro de 2014, por documento interno com o n.º ...53, tendo sido debitada a conta 69111 – “Isento (juros suportados)”, por contrapartida a crédito da conta 124 – “Banco 1...”, no valor de € 300.000,00 – facto não controvertido e cfr. informação do relatório de inspeção tributária, de fls. 177 da paginação eletrónica (“processo administrativo”);
17) Durante o ano de 2014, a impugnante registou dois movimentos na conta 24232 – “Capitais” – Trabalho independente”, a saber:
- Em 31/12/2014, a conta foi creditada em € 118.056,28 [correspondente ao IRS retido sobre os juros pagos (€ 421.643,84 x 28% taxa liberatória);
- Em 31/12/2014, a conta foi debitada em € 118.056,28, pela entrega ao Estado do IRS retido.
- facto não controvertido, cfr. informação constante do relatório de inspeção tributária, de fls. 178 da paginação eletrónica (“processo administrativo”);
18) No âmbito do empréstimo obrigacionista no valor de € 4.000.000,00 com juros anuais à taxa de 7,5% e conforme resulta da cláusula 12.º do “Reforço de Hipoteca Voluntária através da emissão de obrigações”, referido em 12), foi exigido e pago de imediato os juros vencidos do primeiro empréstimo de € 421.643,84 e os juros (antecipados) respeitante ao primeiro ano de juros do referido mútuo de € 300.000,00 – cfr. informação do relatório de inspeção tributária, de fls. 178 da paginação eletrónica;
19) Sobre os juros vencidos do primeiro empréstimo de € 421.643,84, foi retido e entregue nos cofres do Estado o respetivo IRS -retenção na fonte facto não controvertido e cfr. informação constante do relatório de inspeção tributária, de fls. 178 da paginação eletrónica (“processo administrativo”);
20) No extrato bancário do Banco 1... consta um movimento a débito, datado de 26/11/2014, de € 300.000,00, com a descrição “Vencimento de Juros de 4000000 ... 7,50 11/16” – facto não controvertido e cfr. informação constante do relatório de inspeção tributária, de fls. 178 da paginação eletrónica (“processo administrativo”);
21) A coberto da Ordem de Serviço n.º OI20.......41 (2014), datada de 4 de junho de 2018, a impugnante foi sujeita a uma ação de inspeção tributária ao ano de 2014, de âmbito parcial (IRS – retenção na fonte), por se ter constatado que “no ano 2014, se venceram juros de um empréstimo particular, contraído em 2014, no valor de € 721.643,84, sem que tenha sido efetuada a retenção do imposto sobre os juros e à sua entrega nos cofres do Estado (…)” – facto não controvertido e cfr. informação do RIT, constante de fls. 171 e 172 da paginação eletrónica (“processo administrativo”);
22) Através do ofício n.º 2018 S000243...., de 31 de outubro de 2018, foi enviado para a sede da impugnante o projeto de relatório de inspeção tributária (e as correções aritméticas nele projetadas), mas o ofício veio devolvido com a menção “Não atendeu”, após ter decorrido o prazo disponível para levantamento concedido pelos CTT facto não controvertido e cfr. informação constante do relatório de inspeção tributária, de fls. 58 e 59 da paginação eletrónica;
23) Em 21 de novembro de 2018, os Serviços de Inspeção Tributária concluíram o relatório de inspeção tributária, com correções aritméticas em sede de IRS-Retenção na Fonte, no montante de € 84.000,00, com referência ao ano de 2014, com base nos seguintes factos e fundamentos:
“(…)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…)
- cfr. relatório de inspeção tributária, de fls. 171 a 180 da paginação eletrónica (“processo administrativo”);
24) Em 3 de dezembro de 2018, a Administração Tributária emitiu a liquidação de IRS – Retenções na Fonte n.º ...44 e a liquidação de juros compensatórios n.º ...47, das quais resultou um montante total a pagar de € 97.163,83, nos seguintes termos:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
– facto não controvertido, cfr. documento 1 junto com a p.i., de fls. 28 da paginação eletrónica;
25) Através do ofício n.º 2019 S00015....., de 5 de julho de 2019, do Serviço de Finanças de ..., a impugnante foi notificada da penhora de um imóvel para pagamento da dívida exequenda associada ao processo de execução fiscal n.º ...13 e apensos/ ...05 cfr. documento 4 junto com a p.i., de fls. 42 da paginação eletrónica;
26) Em 5 de setembro de 2019, a impugnante requereu ao Serviço de Finanças de ... a passagem de certidão que contivesse “todos os fundamentos, documentos e demais elementos respeitantes à liquidação de IRS de que resultou a importância cujo não pagamento deu origem à emissão de certidão de dívida n.º ...06” (cfr. certidão de dívida emitida em 13/9/2019, pelo Serviço de Finanças de ...) facto não controvertido e cfr. documento 5 junto com a p.i., de fls. 43 a 59 da paginação eletrónica;
27) Em 13 de setembro de 2019, o Serviço de Finanças de ... emitiu uma certidão contendo “Relatório de Inspeção Tributária referente à OI20.......41, que deu origem às liquidações nº ...44 e ...44, relativas a Retenções na Fonte de IRS e a Juros Compensatórios” – cfr. documento 5 junto com a p.i., de fls. 43 a 59 da paginação eletrónica;
28) Em 9 de outubro de 2019, a impugnante requereu junto do Serviço de Finanças de ... a passagem de certidão que contivesse “todos os fundamentos, documentos e demais elementos respeitantes a essas liquidações de que resultou a importância cujo não pagamento deu origem à emissão da certidão de dívida n.º ...06” facto não controvertido, cfr. documento 6 junto com a p.i., de fls. 60 da paginação eletrónica;
29) Em 10 de outubro de 2019, o Serviço de Finanças de ... emitiu uma certidão contendo “Relatório de Inspeção Tributária referente à OI20.......41, que deu origem às liquidações n.º ...44 e ...44, relativas a Retenções na Fonte de IRS e a Juros Compensatórios” - facto não controvertido e cfr. documento 6 junto com a p.i., de fls. 61 a 87 da paginação eletrónica;
30) Em 4 de dezembro de 2019, a impugnante apresentou junto do Serviço de Finanças de ..., um pedido de revisão oficiosa das liquidações referidas na alínea 24), invocando, em síntese:
- o erro na norma de incidência objetiva invocada pela AT para sujeitar a IRS os juros pagos pela impugnante (porquanto no CIRS não consta, nem constava em 2014, a alínea c) do n.º 1 do artigo 6.º do CIRS;
- violação do princípio da legalidade de que decorre o princípio da tipicidade;
- erro nos pressupostos, porquanto não foi outorgado entre a impugnante e «AA» qualquer contrato de mútuo, nos termos dos artigos 1142.º e seguintes do Código Civil; e
a existência de erro imputável aos Serviços da AT.
– facto não controvertido, cfr. documento 2 junto com a p.i., de fls. 29 a 37 da paginação eletrónica e cfr. documento de fls. 181 a 188 da paginação eletrónica (“processo administrativo”);
31) Em 19 de junho de 2020, a Direção de Finanças ..., no âmbito da análise do pedido de revisão oficiosa, emitiu “INFORMAÇÃO”, da qual se extrai o seguinte:
“(…)
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
- cfr. documento de fls. 189 a 191 da paginação eletrónica (“processo administrativo”);
32) Em 13 de setembro de 2020, a impugnante foi notificada para, querendo, se pronunciar sobre o teor do projeto de decisão relativo ao pedido de revisão oficiosa – facto não controvertido e cfr. informação de fls. 194 da paginação eletrónica (“processo administrativo”);
33) Decorrido o prazo, a impugnante não exerceu o direito de audição prévia relativamente à proposta de indeferimento do pedido de revisão oficiosa facto não controvertido e cfr. informação de fls. 194 da paginação eletrónica;
34) Com base nos termos da “INFORMAÇÃO” referida na alínea 31), em 16 de outubro de 2020, a Diretora Adjunta da Direção de Finanças ... proferiu despacho de indeferimento do pedido de revisão oficiosa facto não controvertido e cfr. documento 3 junto com a p.i., de fls. 38 a 41 da paginação eletrónica;
35) Através do ofício n.º 2020 S00016....., de 16 de outubro de 2020, a impugnante foi notificada da decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa – facto não controvertido e cfr. documento 3 junto com a p.i., de fls. 38 a 41 da paginação eletrónica.
36) Em 29 de outubro de 2020, através de e-mail enviado pelo seu advogado, a impugnante solicitou elementos ao Banco 1..., nos seguintes termos:
[Imagem que aqui se dá por reproduzida]
– cfr. documento 11 junto com a p.i., de fls. 114 e 115 da paginação eletrónica;
37) O Banco 1... recusou prestar os elementos solicitados pela impugnante, por entender que se tratavam de informações cobertas pelo segredo profissional – cfr. documento 12 junto com a p.i., de fls. 116 e 117 da paginação eletrónica.
*
Na sentença recorrida considerou-se ainda que:
«Com relevância para a decisão do mérito, inexistem factos não provados.»
*
A título de motivação factual, exarou-se na sentença apelada que:
«Na determinação do elenco dos factos considerados provados, o Tribunal considerou e analisou, de modo crítico e conjugado, os documentos e informações constantes dos presentes autos e do processo administrativo, conforme o especificado nas várias alíneas da factualidade dada como provada.
A documentação em questão não foi objeto de impugnação, não existindo motivo para duvidar da sua fidedignidade, aplicando-se o disposto o disposto no art.º 76.º, n.º 1, da LGT, segundo o qual as informações prestadas pela inspeção tributária fazem fé quando fundamentadas e se basearem em critérios objetivos, nos termos da lei.»

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III – Questões a decidir.

No presente recurso, cabe analisar e decidir as questões suscitadas, nomeadamente quanto ao erro de julgamento no que concerne à valoração da prova e quanto ao disposto nos artigos 5º, n.º 2, alínea c), 71º n.º 1, alínea a), 98º, n.º 3 e 101º, n.º 2, alínea a) e n.º 3 do CIRS, 268º, n.º 3 da CRP, 11º, n.º 2 e 77º da LGT, 152º, n.º 1, alíneas a) e b) e 153º, nºs 1 e 2 do CPA, e 1º, alínea b), 61º, n.º 1, alínea b) e 63º, n.º 1, alínea a) do CMVM.

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IV – Da apreciação do presente recurso.
Constitui objeto do presente recurso a sentença proferida nestes autos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, na impugnação interposta pela Recorrida, direcionada contra a decisão de indeferimento do pedido de revisão oficiosa que manteve as liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares – Retenção na fonte e respetivos juros compensatórios, relativas ao ano de 2014 (vide, respetivamente, os números 31, 34 e 24, dos factos assentes).
Assim, na presente situação está em causa uma decisão de indeferimento de um pedido de revisão oficiosa que a Recorrente interpôs junto da AT, questionando a legalidade da liquidação oficiosa de IRS, relativa a retenções da fonte. Deste modo, o ato imediato neste processo de impugnação é constituído pela aludida decisão de indeferimento, sendo o ato mediato a sobredita liquidação de IRS a título de retenções na fonte.
Cumpre apreciar e decidir.
IV.1 – Do erro de julgamento quanto ao apontado lapso de escrita.
Na perspetiva da Recorrente a sentença apelada enferma de erro quando considerou que a decisão de indeferimento do pedido de revisão da matéria coletável, não padecia de qualquer vício quando subscreveu o entendimento perfilhado pela AT no sentido que o relatório de inspeção tributária que sustentava a liquidação de retenções na fonte de IRS aqui referenciada, enfermava de um mero lapso de escrita quando fazia alusão ao disposto no artigo 6.º, n.º 2, alínea c) do CIRS, quando a norma em causa seria, antes, a alínea c) do n.º 2 do art.º 5.º do CIRS. Por outro lado, afirma a Apelante que o entendimento prosseguido pela AT e pelo Tribunal recorrido traduz-se, no fundo, numa situação de fundamentação sucessiva ou a posteriori em relação ao ato cuja revisão foi solicitada.
Assim, quanto a esta questão, na decisão jurisdicional ora em apreço elaborou-se o seguinte raciocínio:
“[…]
Descendo ao caso dos autos, da matéria de facto dada como provada resulta que a impugnante foi objeto de uma ação de inspeção tributária, de âmbito parcial (IRS Retenção na Fonte), ao ano de 2014, por se ter constatado que “no ano 2014, se venceram juros de um empréstimo particular, contraído em 2014, no valor de € 721.643,84, sem que tenha sido efetuada a retenção do imposto sobre os juros e à sua entrega nos cofres do Estado” (cfr. alínea 21) do elenco dos factos provados).
E também está provado que através do ofício n.º 2018 S000243...., de 31 de outubro de 2018, foi enviado para a sede da impugnante o projeto de relatório de inspeção tributária (e as correções aritméticas nele projetadas), mas o ofício veio devolvido com a menção “Não atendeu”, após ter decorrido o prazo disponível para levantamento concedido pelos CTT (cfr. alínea 22) do elenco dos factos provados).
Em 21 de novembro de 2018, os Serviços de Inspeção Tributária concluíram o relatório final de inspeção tributária, com correções aritméticas, em sede de IRS-Retenção na Fonte, ao ano de 2014, no montante de € 84.000,00, por considerarem que, no âmbito do empréstimo obrigacionista no valor de € 4.000.000,00, com juros à taxa de 7,5%, houve um pagamento de juros, no montante de € 300.000,00 (identificado no extrato bancário do Banco 1..., com data de 26/11/2014), respeitante ao primeiro ano do mútuo, sem que a impugnante tenha procedido à respetiva retenção na fonte à taxa liberatória de 28% sobre aquele montante.
Nesta conformidade e invocando os artigos 6.º, n.º. 1, al. c), 7.º, 71.º, n.º 1, al a), 98.º, n.º 3 e 101.º, n.º 2, al. a) do CIRS, os Serviços de Inspeção Tributária avançaram com a respetiva correção aritmética de forma a liquidar o imposto em falta, apurado em € 84.000,00 (€ 300.000,00 x 28%) (cfr. alínea 23) do elenco dos factos provados).
E foi com base nesta correção aritmética que, de seguida, em 3 de dezembro de 2018, a Administração Tributária emitiu a liquidação de IRS – Retenções na Fonte n.º ...44 e a liquidação de juros compensatórios n.º ...47, das quais resultou um montante total a pagar de € 97.163,83 (cfr. alínea 24) do elenco dos factos provados).
É certo que – como bem nota a impugnante – não existia à data, nem atualmente consta, “uma qualquer alínea c) do n.º 1 do art. 6.º do CIRS” (vide artigo 35.º da p.i.), mas tal referência no relatório de inspeção tributária não poderá deixar de ser considerada como um manifesto lapso de escrita, sem qualquer efeito invalidante das liquidações adicionais daí resultantes (ora impugnadas).
Desde logo, porque percebe-se facilmente da exposição/fundamentação vertida no relatório de inspeção tributária o motivo e fundamento principal que levou à emissão da correção aritmética (nos termos acima referidos). Por outro lado, é impossível não associar tal referência a um manifesto erro de escrita, porquanto, sem grande dificuldade, conseguimos perceber que o artigo a que se referiam os Serviços de Inspeção Tributária era o artigo 5.º, n.º 2, al. c), do mesmo diploma que regula os rendimentos da categoria E.
Nos termos do artigo 95.º-A, n.º 2, do CPPT, “[c]onsideram-se erros materiais ou manifestos, designadamente (…) as situações inequívocas de erro de cálculo, de descrita, de inexatidão ou lapso”.
In casu, o erro cometido é tão manifesto que logo no pedido de revisão oficiosa, a própria impugnante alertou para o lapso na norma de incidência objetiva invocada pela Administração Tributária (cfr. alínea 30) do elenco dos factos provados), reconhecendo que no Código do IRS não consta, nem constava em 2014, uma qualquer alínea c) do n.º 1 do art. 6.º.
E se dúvidas houvesse sobre o lapso cometido, podemos ver na fundamentação que sustentou a decisão de indeferimento da revisão oficiosa que a Administração Tributária, voluntariamente e sem qualquer reserva, corrigiu a referência normativa, mas sempre mantendo as liquidações impugnadas, por haver falta de IRS-retenção na fonte naquela específica transação indicada no relatório de inspeção tributária (e.g. nos juros vencidos respeitantes ao primeiro ano de juros do mútuo, no valor de € 300.000,00).
Ora, ao contrário do que pretende fazer crer a impugnante, a fundamentação apresentada para sustento da decisão proferida em sede, com esta simples correção de um artigo legal mal referenciado no relatório de inspeção tributário, não constitui nenhuma situação de fundamentação a posteriori, face ao relatório de inspeção tributária.
Note-se que, relativamente às correções aritméticas empreendidas em sede de IRS-retenção na fonte (de onde emergem as liquidações impugnadas), a Administração Tributária, em sede de revisão oficiosa, reiterou o acerto e legalidade das correções, sempre com referência à mesma transação (facto tributário) e apenas (e só) corrigiu um dos normativos legais aplicáveis in casu.
Importa, por isso, trazer à colação o disposto no artigo 249.º do Código Civil, nos termos do qual, “[o] simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à retificação desta”.
E essa retificação foi feita pela Administração Tributária, em sede do pedido de revisão oficiosa, sem que daqui resultasse qualquer prejuízo na esfera jurídica da impugnante, nem qualquer efeito invalidante das liquidações impugnadas.
No mais, do teor do pedido de revisão oficiosa e da petição inicial apresentada na presente ação resulta cristalino que a impugnante percebeu perfeitamente os motivos (de facto e de direito) que presidiram à correção e consequente liquidação adicional de IRS-retenção na fonte (ora impugnada), aí esgrimindo argumentos no sentido de tentar obter a anulação de tal ato tributário.
[…]”
Ora, na presente situação, em rigor, não está em causa a abertura de um procedimento específico de correção de erros da administração tributária, previsto nos artigos 95.º-A e segs. do CPPT, procedimento este instituído pela lei n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro, aplicável a partir de 1.1.2009. Para mais desenvolvimentos veja-se, por exemplo, a anotação aos artigos 95.º-A e segs. feitas por J. Lopes de Sousa in «Código de Procedimento e de Processo Tributário – anotado e comentado», 6.ª Ed., 2011, pags. 755 e segs. Assim, no caso presente, há antes que convocar a regra contida no art.º 174.º do novo CPA, aplicável ex vi art.º 2.º do CPPT, onde se estatui que:
Artigo 174.º
Retificação dos atos administrativos
1 - Os erros de cálculo e os erros materiais na expressão da vontade do órgão administrativo, quando manifestos, podem ser retificados, a todo o tempo, pelos órgãos competentes para a revogação do ato.
2 - A retificação pode ter lugar oficiosamente ou a pedido dos interessados, produz efeitos retroativos e deve ser feita sob a forma e com a publicidade usadas para a prática do ato retificado.
Voltando ao caso presente, estamos perante um erro material, mais concretamente perante um patente lapso de escrita que se torna claro no contexto do próprio relatório inspetivo, uma vez que neste se faz apelo ao conceito de juros e de rendimentos de capitais por referência à categoria «E». Ora, o artigo 6.º referia-se a um conjunto de presunções para efeitos da referida categoria, não existindo norma com a indicada sequenciação de números e alíneas, o que realça o patente lapso de escrita, denotando que a referência pretendida fazer pelos serviços inspetivos da AT era ao artigo 5.º e não ao artigo 6.º do CIRS. Por outro lado, tal como dito na sentença recorrida, tal lapso foi percebido pela ora Recorrente como tal, quer em sede procedimental, quer em sede judicial, pelo que é indubitável a sua natureza como um superável erro à luz da norma supra transcrita do CPA.
Por outro lado, acresce que ao invés do afirmado pela Recorrente, não vemos que a decisão de indeferimento do pedido de revisão aqui em causa, tenha apresentado novos fundamentos, ou seja fundamentos distintos aos que subjazem à liquidação em causa e aditados a posteriori, atendendo ao enquadramento legal que já constava do relatório inspetivo que teve na base da liquidação a rever.
Por isso, embora com fundamentos não inteiramente coincidentes com o decidido neste conspecto pela sentença recorrida, entendemos que, neste ponto, a mesma não enferma do erro de julgamento que lhe é imputado pela ora Apelante.
IV.2 – Do erro de julgamento quanto ao regime de responsabilidade na retenção na fonte.
A Apelante insurge-se contra a sentença recorrida na parte em que na mesma se considerou inexistir o vício de violação de lei por alegada infração ao disposto na alínea a) do n.º 2 e n.º 3 do CIRS.
A propósito desta questão, na sentença recorrida afirmou-se que:
“[…]
O artigo 5.º, n.º 1, do Código do IRS (na redação vigente à data dos factos, isto é, em 2014 – redação à qual nos referiremos nas próximas citações), determina que “[c]onsideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, directa ou indirectamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respectiva modificação, transmissão ou cessação, com excepção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias”.
E o n.º 2, alínea c), do citado normativo acrescenta que “[o]s frutos e vantagens económicas referidos no número anterior compreendem, designadamente (…)
c) os juros, os prémios de amortização ou de reembolso e as outras formas de remuneração de títulos da dívida pública, obrigações, títulos de participação, certificados de consignação, obrigações de caixa ou outros títulos análogos, emitidos por entidades públicas ou privadas, e demais instrumentos de aplicação financeira, designadamente letras, livranças e outros títulos de crédito negociáveis, enquanto utilizados como tais”.
Os rendimentos referidos no supra citado artigo 5.º “ficam sujeitos a tributação desde o momento em que se vencem, se presume o vencimento, são colocados à disposição do seu titular, são liquidados ou desde a data do apuramento do respetivo quantitativo, conforme os casos” (cfr. artigo 7.º, n.º 1, do CIRS).
E, nos termos do artigo 7.º, n.º 2, do CIRS, “[t]ratando-se de mútuos, de depósitos e de aberturas de crédito, considera-se que os juros, incluindo os parcialmente presumidos, se vencem na data estipulada, ou, na sua ausência, na data do reembolso do capital, salvo quanto aos juros totalmente presumidos, cujo vencimento se considera Ter lugar em 31 de Dezembro de cada ano ou na data do reembolso, se anterior”.
Estão sujeitos a retenção na fonte a título definitivo, à taxa liberatória de 28%, os rendimentos obtidos em território nacional, nomeadamente, os “juros de depósitos à ordem ou a prazo, incluindo os dos certificados de depósito” (cfr. artigo 71.º, n.º 1.º, al. a), do CIRS).
A retenção na fonte não é um imposto, mas um mecanismo de cobrança, instituído pelo sistema fiscal português com o objetivo de aumentar a eficácia na cobrança do imposto (IRS) (vide, neste sentido, o acórdão do STA, de 23 de setembro de 2015, proferido no âmbito do processo 0997/15, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
A “entidade devedora dos rendimentos sujeitos a retenção na fonte, as entidades registadoras ou depositárias, consoante o caso, são obrigados no ato do pagamento, do vencimento, ainda que presumido, da sua colocação à disposição, da sua liquidação ou do apuramento do respetivo quantitativo, consoante os casos, a deduzir-lhe as importâncias correspondentes à aplicação das taxas neles previstas por conta do imposto respeitante ao ano em que esses atos ocorrem” (cfr. artigo 98.º, n.º 1, do CIRS; sublinhado nosso).
E as “quantias retidas nos termos dos artigos 99.º a 101.º devem ser entregues até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidas” (cfr. artigo 98.º, n.º 3, do CIRS).
Por fim, importa trazer à colação o artigo 101.º, n.º 2, al. a), do CIRS, nos termos do qual “tratando-se de rendimentos referidos no artigo 71.º, a retenção na fonte nele prevista cabe às entidades devedoras dos rendimentos referidos nos n.ºs 1, 4, e 14 do artigo 71.º” (sublinhado nosso).
Revertendo ao caso sub judice, está provado que a impugnante desenvolve a atividade de exploração hoteleira de um edifício (Convento) e de diversas casas espalhadas pela quinta (cfr. alínea 1) do elenco dos factos provados).
Também está provado que, em outubro de 2014, a impugnante decidiu emitir um empréstimo obrigacionista até ao montante nominal global de € 4.000.000,00, pela emissão de 40 obrigações a taxa fixa, escriturais, ao portador, com o valor nominal unitário de € 100.000,00, mediante subscrição particular e direta, a vencer juros à taxa anual de 7,5%, tendo, para o efeito, contratado o serviço de registo individualizado das obrigações com o Banco 1... (cfr. alíneas 2) a 5) do elenco dos factos provados).
Como é sabido, na prática, um empréstimo obrigacionista é uma forma de financiamento na qual as entidades emitentes optam por emitir obrigações, permitindo ao investidor a participação direta na concessão de crédito através de um empréstimo deste à empresa ou estado soberano em questão. Esta opção é utilizada em detrimento de outras formas de financiamento, como o aumento do valor dos seus empréstimos junto da banca ou o aumento do seu capital.
Através das obrigações, os investidores recebem um retorno constante através de pagamentos, normalmente anuais, de juros e a devolução do valor nominal em dívida no momento da maturidade.
In casu, o empréstimo obrigacionista foi subscrito, na sua totalidade, por «AA» (cfr. alíneas 2), 11) e 12) do elenco dos factos provados).
Ora, do clausulado do “Acordo para regulamentação da movimentação da “conta escrow” da titularidade da [SCom01...], S.A.”, datado de 26 de novembro de 2014, consta e está expressamente previsto o pagamento ao mutuário de um juro bruto de € 421.643,84 e o pagamento do primeiro cupão das obrigações no valor de € 300.000,00, com juro bruto de € 300.000,00 (cfr. alínea 11) do elenco dos factos provados).
De igual modo, no contrato denominado “Reforço de Hipoteca Voluntária através da emissão de obrigações”, datado de 26 de novembro de 2014, outorgado entre a impugnante e o subscritor «AA» consta expressamente, na cláusula 12.ª que, “Do valor ora mutuado de € 4.000.000,00, serão afetos ao pagamento imediato os seguintes valores:
a) Juros vencidos respeitantes ao primeiro mútuo, no valor de € 421.643,84 (….);
b) Juros vencidos respeitantes ao primeiro ano de juros do corrente mútuo, no valor de € 300.000,00 (…)” (cfr. alínea 12) do elenco dos factos provados).
Ora, quanto ao primeiro montante de juros (no valor de € 421.643,84), não existe qualquer discórdia entre as partes na presente ação, porquanto, tal como consta no relatório de inspeção tributária, sobre aquele montante “foi retido e entregue nos cofres do Estado o IRS devido” (cfr. alínea 23) do elenco dos factos provados).
O dissídio entre as partes advém da falta de IRS-retenção na fonte e da falta de entrega desse montante ao Estado relativamente aos “juros vencidos respeitantes ao primeiro ano de juros do corrente mútuo, no valor de € 300.000,00”.
Está provado que, no ano de 2014, na conta 691111 – “Isento (Juros suportados de financiamento obtidos)”, a impugnante registou valores que totalizam € 398.384, 30 (cfr. alínea 15) do elenco dos factos provados).
E também está provado que o principal registo que suporta o saldo referido na alínea precedente foi efetuado em 30 de novembro de 2014, por documento interno com o n.º ...53, tendo sido debitada a conta 69111 – “Isento (juros suportados)”, por contrapartida a crédito da conta 124 – “Banco 1...”, no valor de € 300.000,00 (cfr. alínea 16) do elenco dos factos provados).
No extrato bancário do Banco 1... consta um movimento a débito datado de 26/11/2014, de € 300.000,00, com a descrição “Vencimento de Juros de 4000000 ... 7,50 11/16” (cfr. alínea 20) do elenco dos factos provados).
Ora, perante esta factualidade, dúvidas não há que, em 26/11/2014, foi pago, de forma antecipada, o montante de € 300.000,00, a título de juros vencidos respeitantes ao primeiro ano de juros, no âmbito do empréstimo obrigacionista em referência nos autos, cujo pagamento está devidamente refletido nos registos contabilísticos da impugnante e do Banco 1....
No decurso da ação de inspeção tributária, os Serviços de Inspeção Tributária verificaram através dos registos contabilísticos e dos documentos analisados que a impugnante reconheceu um gasto com o pagamento de juros decorrentes de um empréstimo obrigacionista que obteve junto de um sujeito passivo de IRS.
Perante tais evidências, note-se que a impugnante não nega a existência do empréstimo obrigacionista de € 4.000.000,00 subscrito na sua integralidade por «AA», nem os termos em que o mesmo foi emitido e acordado entre as partes.
Também não nega que pagou juros acima referidos, previstos no “Acordo para regulamentação da movimentação da “conta escrow” e no contrato denominado “Reforço de Hipoteca Voluntária através da emissão de obrigações”, onde está expressamente previsto o pagamento do montante de € 300.000,00 relativo a juros vencidos respeitantes ao primeiro ano de juros do corrente mútuo.
Por outro lado, não podemos deixar de estranhar que a impugnante não explica a razão pela qual nos juros vencidos respeitantes ao primeiro mútuo, no valor de € 421.643,84 efetuou a retenção de IRS na fonte e entregou o respetivo imposto ao Estado, mas já não manteve esse procedimento (i.e. a retenção na fonte em sede de IRS) nos juros vencidos respeitantes ao primeiro ano de juros do corrente mútuo, no valor de € 300.000,00.
Assim sendo, Tribunal desconhece o motivo que levou a impugnante a adotar diferentes critérios e procedimentos no pagamento de duas tranches de juros inicialmente acordadas entre as partes e devidamente cumpridas (pagas), no âmbito de um empréstimo obrigacionista.
Ao invés, a impugnante tece um conjunto de considerações no sentido de afastar da situação sub judice a aplicabilidade do regime do contrato de mútuo, regulado nos artigos 1142.º e seguintes do Código Civil, para concluir que existe erro nos pressupostos das liquidações impugnante e, por isso, não estava obrigada a reter o IRS devido por força do artigo 101.º, n.º 2, al. a), do Código do IRS.
No entanto, não podemos acompanhar esta linha argumentativa. Senão, vejamos.
Importa começar por realçar que, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC (aplicável ex vi artigo 2.º, al. e), do CPPT), “[o] juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”. Ou seja, independentemente da qualificação jurídica que a impugnante atribui ao acordo através do qual aceitou pagar juros ao subscritor da totalidade do empréstimo obrigacionista, tal não vincula o tribunal na interpretação e aplicação das regras de direito.
Sobre a interpretação da lei, o artigo 9.º do Código Civil determina que “[a] interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstruir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (n.º 1).
E mais concretamente sobre a interpretação de normas tributárias, o artigo 11.º, n.º 1, da LGT, dispõe que “[n]a determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e princípios gerais de interpretação e aplicação das leis”.
A propósito da tributação dos rendimentos da categoria E, o artigo 5.º do CIRS é claro ao considerar como rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação (n.º 1), incluindo neles, designadamente, “os juros, os prémios de amortização ou de reembolso e as outras formas de remuneração de títulos da dívida pública, obrigações, títulos de participação, certificados de consignação, obrigações de caixa ou outros títulos análogos, emitidos por entidades públicas ou privadas, e demais instrumentos de aplicação financeira, designadamente letras, livranças e outros títulos de crédito negociáveis, enquanto utilizados como tais” (n.º 2, al. c); sublinhado e ênfase nossos).
Perante esta redação da norma, dela retiramos a intenção do legislador em tributar os juros, na sua globalidade e natureza, com um grande âmbito de abrangência, independentemente de serem provenientes (ou não) de um contrato de mútuo regulado nos termos do artigo 1142.º e seguintes do Código Civil.
Por conseguinte, despicienda se mostra a discussão sobre se o empréstimo obrigacionista em referência nos autos segue (ou não) o regime civilístico do contrato de mútuo.
Por outro lado, ao contrário do que pretende fazer crer a impugnante, o disposto nos artigos 61.º e 63.º do Código dos Valores Mobiliários em nada releva para a qualificação do facto tributário em referência nos autos nem para a responsabilidade pelo pagamento do respetivo imposto (questões estas já expressamente reguladas e previstas nos artigos 5.º, 7.º 71.º, n.º 1, al. a), 98.º, n.º 3 e 101.º, n.º 2, al. a), do CIRS e que, naturalmente, neste domínio fiscal se sobrepõem aos referidos normativos do Código dos Valores Mobiliários).
Volvendo ao caso dos autos e assente a factualidade dada como provada, concluímos que, na perspetiva da pessoa singular beneficiária dos juros do contrato obrigacionista (o subscritor da totalidade do empréstimo obrigacionista), estamos perante um rendimento de capitais (rendimentos da categoria E), subsumível nos termos do artigo 5.º, n.º 2, al. c), do Código do IRS.
E tal basta para concluirmos pelo acerto da correção aritmética, pois uma vez que houve pagamento de juros ao subscritor do empréstimo obrigacionista, isso configura um rendimento de capital integrante dos rendimentos da categoria E, cabendo à impugnante (enquanto entidade devedora desse rendimento) a retenção na fonte à taxa liberatória de 28%, de acordo com o previsto nos artigos 71.º, n.º 1, al. a) e 101.º, n.º 2, al a), ambos do CIRS.
De acordo com o artigo 7.º do Código do IRS, estamos perante um facto tributário sujeito a tributação a partir do momento em que é pagou ou colocado à disposição, ou seja, no caso dos autos, tal verificou-se no dia 26 de novembro de 2014.
Por conseguinte, uma vez que estamos perante juros de um empréstimo obrigacionista, por maioria de razão e sem necessidade de mais amplas considerações, estará votada ao insucesso toda a linha de argumentação da impugnante quando alega que os rendimentos em causa consubstanciam rendimentos de “valores mobiliários sujeitos a registo ou depósito, emitidos por entidades residentes em território português” e, como tal, a responsabilidade pelo pagamento de imposto incumbiria às entidades registadoras ou depositárias (nos termos do artigo 101.º, n.º 3, do CIRS).
[…]”
Na presente situação, como resulta dos factos provados, convém recordar que a Recorrente procedeu à emissão de obrigações As obrigações são instrumentos financeiros que titulam um empréstimo contraído junto dos investidores pela entidade que os emite. Deter obrigações emitidas por uma entidade significa ser credor dessa mesma entidade. Quanto às obrigações emitidas por sociedades anónimas, veja-se, também, o disposto nos artigos 348.º e segs. do CSCom., recorrendo, para o efeito, de uma entidade terceira, in casu, o «Banco 1...», que aqui nos surge como uma entidade registadora dos títulos representativos das citadas obrigações (cf. art.º 61.º e 63.º CMVM). Com efeito, tal resulta do contrato firmado entre a Recorrente e a apontada instituição financeira (vide números 7,8 e 9 da matéria de facto assente).
Por outro lado, os juros pagos aqui em causa, advieram das citadas obrigações, tendo os mesmos sido disponibilizados ao seu beneficiário através de uma conta existente na instituição financeira acima indicada, tal como resulta do relatório inspetivo que fundamentou a liquidação de IRS (retenção na fonte) aqui em causa. Aliás, para tal efeito, foi criada uma conta de depósito escrow Segundo a informação constante no DRE:
“O contrato de depósito escrow resulta de um acordo mediante o qual as partes de um determinado contrato depositam bens móveis (geralmente, dinheiro ou valores mobiliários) junto de um terceiro (geralmente, um banco), ficando esse terceiro (designado «depositário escrow») obrigado a administrar os bens depositados e irrevogavelmente instruído sobre o fim a dar a tais bens. As instruções dadas ao depositário escrow apenas podem ser modificadas por acordo das partes.
O fim a dar a tais bens pelo depositário escrow fica geralmente dependente da evolução e das vicissitudes da relação emergente do contrato que está na base do depósito escrow. Por exemplo: de forma a assegurar que, numa dada compra e venda de ações, o comprador não irá incumprir a sua obrigação de pagamento do preço, é frequente o vendedor exigir o depósito antecipado desse preço (ou de parte desse preço) numa conta escrow, junto de um banco, que entregará o dinheiro ao vendedor verificadas determinadas condições, acordadas pelas partes, relativas a esse contrato de compra e venda (por exemplo, a obtenção de todas as licenças ou autorizações administrativas e documentação necessária à realização da venda, ou a entrega, ao comprador, dos títulos das ações), e assim solvendo a obrigação do comprador de pagar o preço.
Este instrumento negocial - que não se encontra tipificado nem sequer nominado na lei - é, por isso, uma das garantias mais utilizadas no cumprimento das obrigações. Normalmente, essa garantia é constituída através de um depósito em dinheiro numa conta criada especificamente para o efeito (conta escrow ou conta garantia). É frequente os bancos cobrarem comissões pelo seu serviço de administração e custódia, sendo, assim, mais comum utilizar o depósito escrow em negócios que envolvem grandes quantias ou de maior risco.
Trata-se de um negócio fiduciário. Por isso, o recurso a este instrumento negocial pressupõe uma avaliação dos riscos inerentes ao possível incumprimento, por parte do depositário escrow, das suas obrigações enquanto fiduciário do depositante e do beneficiário do depósito (que pode ser uma das partes do negócio subjacente ou um terceiro), bem como dos riscos inerentes à penhora dos bens do depositário escrow ou da insolvência deste (especialmente, em contexto de eventual concurso com os credores do depositante)” - in https://diariodarepublica.pt/dr/lexionario/termo/deposito-escrow junto «Banco 1...» destinada a movimentar as quantias referentes ao empréstimo obrigacionista, constando, aliás, das condições da mesma a existência da necessidade de se proceder à retenção na fonte das quantias em causa (cf. n.º 11 dos factos assentes).
Ora, em rigor, em algum lado se questionou que tais juros decorrentes do empréstimo obrigacionista seriam rendimentos da categoria «E», o que a Recorrente alegou em sede de petição inicial é que não era sobre ela que recaia o dever de reter as quantias de IRS aqui em causa (cf. artigos 62.º e segs. da p.i.). Acresce que também não se questionou o valor da taxa aplicada, nem tão pouco a respetiva sujeição a retenção na fonte.
Assim, à data dos factos, na parte que nos interessa, dispunha o artigo 101.º do CIRS que:
Artigo 101 .º
Retenção sobre rendimentos de outras categorias
1 - As entidades que disponham ou devam dispor de contabilidade organizada são obrigadas a reter o imposto, mediante a aplicação, aos rendimentos ilíquidos de que sejam devedoras e sem prejuízo do disposto nos números seguintes, das seguintes taxas:
a) …
b) …
c) …
d) …
e) …
2 - Tratando-se de rendimentos referidos no artigo 71.º, a retenção na fonte nele prevista cabe:
a) Às entidades devedoras dos rendimentos referidos nos n.os 1, 4 e 14 do artigo 71.º;
b) Às entidades que paguem ou coloquem à disposição os rendimentos referidos nos n.ºs 2 e 13 do artigo 71.º
3 - Tratando-se de rendimentos de valores mobiliários sujeitos a registo ou depósito, emitidos por entidades residentes em território português, o disposto na alínea a) do n.º 1 e na alínea a) do n.º 2 é da responsabilidade das entidades registadoras ou depositárias.
4 - …
No caso em apreço, os juros em causa advieram de obrigações subscritas por um terceiro, sendo indubitável que as mesmas constituem um valor mobiliário (cf. alínea b) n.º 1 do art.º 1.º do CMVM), estando sujeitas a registo (cf. artigos 348.º e segs. do CSCom e 61.º e segs. do CMVM). Há que ter em conta, como vimos, que o pagamento efetuado dos juros em questão se processou através de uma conta existente na entidade registadora. Assim sendo, cabia a esta última proceder à respetiva retenção na fonte, tal como decorrida do citado n.º 3 do art.º 101.º do CIRS.
Posto isto, temos aqui de divergir da sentença recorrida, considerando que, neste ponto, aquela enferma do erro de julgamento que lhe é apontado no presente recurso. Por isso, terá de ser revogada a sentença recorrida, impondo-se a procedência da presente impugnação.
IV.3 – Das demais questões suscitadas no presente recurso.
Considerando que aqui se considerou procedente a existência de um erro de julgamento no que tange à interpretação e aplicação do disposto no artigo 101º, n.º 2, alínea a) e n.º 3 do CIRS, que conduz à procedência do presente recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida, assim como com a procedência da presente impugnação incidente sobre o ato de indeferimento de revisão, torna-se inútil aferir das demais questões aqui levantadas pela Recorrente.
*
Assim, nos termos do n.º 7 do art.º 663.º do CPC, apresenta-se o seguinte sumário
I – Advindo os juros pagos de obrigações subscritas por um terceiro, sendo que as mesmas constituem um valor mobiliário (cf. alínea b) n.º 1 do art.º 1.º do CMVM), estando sujeitas a registo (cf. artigos 348.º e segs. do CSCom e 61.º e segs. do CMVM), tendo o respetivo pagamento sido através de uma conta existente na entidade registadora, cabia a esta última proceder à respetiva retenção na fonte, tal como decorrida do n.º 3 do art.º 101.º do CIRS.


-/-
V – Dispositivo
Nestes termos, acordam em conferência os juízes desta Subsecção de Contencioso Tributário deste Tribunal em conceder provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida, considerando-se a impugnação procedente.

Custas pela Recorrida (por vencida), não sendo aqui devia a taxa de justiça por não ter contra-alegado.


Porto, 27 de março de 2025

Carlos A. M. de Castro Fernandes

Virgínia Andrade
(em substituição)

Serafim Carneiro