Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01619/23.7BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/05/2024
Tribunal:TAF do Porto
Relator:MARIA FERNANDA ANTUNES APARÍCIO DUARTE BRANDÃO
Descritores:AMNISTIA;
INUTILIDADE DA LIDE;
Votação:Maioria
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
«AA», NIF ...47, residente na Rua ..., ..., instaurou acção administrativa contra a ORDEM DOS MÉDICOS DENTISTAS, NIPC ...79, com sede na Avenida ..., ..., ..., tendente à anulação do “Acórdão do Conselho Deontológico e de Disciplina da Ordem dos Médicos Dentistas, que lhe aplicou a sanção disciplinar de advertência, prevista no artigo 83º nº 1 alínea a) do Estatuto da Ordem dos Médicos Dentistas, com sanção acessória de publicidade a suas expensas, nos termos do artigo 85º nº 1 alínea b), pela violação do artigo 39º nº 1 do Código Deontológico, artigo 104º nº 10 e artigo 107º ambos do estatuto da OMD, artigo 41º nºs 3, 4 e 5 do Código Deontológico e artigo 15º-A do Decreto nº 3-A/2021”.
Por sentença proferida pelo TAF do Porto foi julgada extinta a instância
por inutilidade superveniente da lide.
Desta vem interposto recurso pela OMD.
Alegando formulou as seguintes conclusões:

1ª - NO QUE TANGE A INFRACÇÕES DISCIPLINARES A LEI DA AMNISTIA TEM TAMBÉM UM TETO ETÁRIO IGUAL A 30 ANOS À DATA DA PRÁTICA DA INFRACÇÃO, POIS A MESMA É JUSTIFICADA PELA JUVENTUDE DOS INFRATORES A PROPÓSITO DA VINDA DO PAPA POR OCASIÃO PRECISAMENTE DA JORNADAS DA JUVENTUDE, PELO QUE SÓ PODEM ESTAR NO ESPETRO DA AMNISTIA AQUELES SUJEITOS QUE À DATA DA INFRAÇCÃO NÃO ULTRAPASSASEM, COMO É O CASO DA ARGUIDA AQUI RECORRIDA, A IDADE DE 30 ANOS.

2ª - NO MAIS, O ENTENDIMENTO CONTRÁRIO DETERMINA A INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI DA AMNISTIA, UMA VEZ QUE VIOLA O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES E O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.

3ª - A VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES DÁ-SE NA MEDIDA EM QUE O ENTENDIMENTO SUFRAGADO PELO TRIBUNAL A QUO SEMPRE DETERMINARÁ QUE A LEI DA AMNISTIA SE CONFIGURE COMO UMA POSIÇÃO POLÍTICA ARBITRÁRIA VISTO NÃO TER COMO ESCOPO OS JOVENS, MAS, ANTES, TODA A POPULAÇÃO, INDEPENDENTEMENTE DA IDADE.

4ª - POR SUA VEZ, VERIFICA-SE A VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE VISTO QUE APLICAR A LEI DA AMNISTIA A TODA A POPULAÇÃO LEVA A UMA RESTRIÇÃO INJUSTIFICADA - E, POR ISSO, DESPROPORCIONAL - DOS PODERES DISCIPLINARES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA.

5ª - ALÉM DISSO, O ADVÉRBIO “IGUALMENTE” UTILIZADO PELO LEGISLADOR NO Nº 2 DO ART. 2º DA LEI DA AMNISTIA REFORÇA A IDEIA QUE A LIMITAÇÃO ETÁRIA EXPRESSAMENTE APLICÁVEL ÀS SANÇÕES PENAIS É IGUALMENTE APLICÁVEL À AMNISTIA DAS SANÇÕES DISCIPLINARES.

6ª - A DECISÃO RECORRIDA INCORRE EM ERRO DE JULGAMENTO DE DIREITO POR ERRADA INTERPRETAÇÃO DA LEI DA AMNISTIA DESIGNADAMENTE DO ARTIGO 2º Nº 2 AL. B) E ARTIGO 6º E, CONSEQUENTEMENTE, TAMBÉM, VIOLA A COMPETÊNCIA DA ENTIDADE ADMINISTRATIVA RECORRIDA EM TERMOS DE PODERES DISCIPLINARES QUE LHE FORAM CONFERIDOS POR LEI.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE NOS TERMOS SUPRA EXPOSTOS E, CONSEQUENTEMENTE, SER REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA
A Autora juntou contra-alegações, concluindo:

A. Em 30 de março de 2021 foi proferido despacho pelo Presidente da OMD a ordenar a instauração dos processos disciplinares nºs 4ª/2021 e 4B/2021 à recorrida;

B. Em 12 de novembro de 2022 foi proferido Acórdão pelo CDD da OMD a deliberar a aplicação à recorrida da sanção disciplinar de advertência, prevista no artigo 83 nº 1 alínea a) do estatuto da Ordem dos Médicos Dentistas, com sanção acessória de publicidade a suas expensas;

C. Este acórdão foi judicialmente impugnado nos presentes autos;

D. Acontece que no dia 1 de setembro de 2023 entrou em vigor a Lei nº 38-A/23, de 5/8, que estabelece um perdão de penas e amnistia infrações;

E. Por esta lei foram amnistiadas as infrações disciplinares praticadas até às 00:00 horas do dia 19 de junho de 2023 e cuja sanção não seja superior a suspensão;

F. No caso em apreço a infração disciplinar teria ocorrido em março de 2021 e a sanção aplicada foi a de advertência;

G. Atenta esta factualidade o Tribunal a quo entendeu que a questão a decidir consistia em apurar se se encontravam reunidos os pressupostos normativos de que depende a aplicabilidade da amnistia consagrada na lei nº 38-A/2023, de 2.8, e, em consequência, se verificasse a inutilidade superveniente da lide;

H. Na sua douta sentença o Tribunal a quo apurou que se estava diante de uma infração disciplinar praticada antes de 19.06.2023; que não constitui ilícito criminal; que não é punível com pena superior à suspensão; que não foi praticada por um “funcionário”; nem com violação dos direitos, liberdade e garantias pessoais de outrem;

I. Os preceitos legais aplicáveis ao caso em apreço são o artigo 2 nº 1 alínea b) e o artigo 6 da Lei nº 38-A/2023, que afastam do âmbito da sua aplicação o limite de idade;

J. Sendo que a lei da amnistia, atento o seu carácter excecional é insuscetível de interpretação e de aplicação análoga não competindo à OMD “interpretá-la” no sentido de restringir o seu campo de aplicação;

K. Como aliás o Assento do Supremo Tribunal de Justiça transcrito na douta sentença recorrida eloquentemente o demonstra;

L. E se dúvidas houvesse e não há, os trabalhos preparatórios da lei da amnistia o demonstram de forma exuberante;

M. De tal modo que a questão colocada no processo legislativo não era relativa à restrição da aplicação da amnistia às pessoas com 16 a 30 anos de idade, mas o alargamento dessa amnistia a todas as pessoas independentemente da idade, por aplicação do princípio da igualdade previsto no artigo 13 da Constituição;

N. Daí que o nº 2 alíneas a) e b) do artigo 2 e o artigo 6 são inovadores relativamente à proposta de Lei do Governo, dado que autonomizam as sanções penais das sanções acessórias de contraordenação e das infrações disciplinares, incluindo as militares, sendo que apenas é restringida às pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade a amnistia das sanções penais;

O. Em conclusão, a OMD litiga contra lei expressa, carecendo o respetivo recurso de qualquer fundamento jurídico sério e sólido;

Termos em que se requer se dignem negar provimento ao recurso de apelação interposto pela Ordem dos Médicos Dentistas e confirmem a douta sentença recorrida com as legais consequências.
O Senhor Procurador Geral Adjunto notificado, ao abrigo do disposto no artigo 146º/1 do CPTA, emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO

Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
1. A autora é médica dentista com a cédula profissional nº ...94 (facto não controvertido);
2. Em 30/03/2021, foi proferido pela entidade demandada despacho de instauração dos processos disciplinares nº 4A/2021 e 4B/2021 à autora (cfr. fls. 25-28 do PA);
3. Em 12/11/2022, foi proferido Acórdão pelo Conselho Deontológico e de Disciplina da Ordem dos Médicos Dentistas que deliberou a aplicação à autora da sanção disciplinar de advertência, prevista no artigo 83º, nº 1, alínea a) do Estatuto da Ordem dos Médicos Dentistas, com sanção acessória de publicidade a suas expensas, pela prática das seguintes infracções (cfr. fls. 312-320 do PA):
“(...)
Feitas estas observações, comuns aos dois processos, comecemos pela reflexão devida aos factos constantes
do processo disciplinar nº ...21.
(...)
Assim sendo, proponho que à arguida sejam aplicadas, por cada infracção, neste processo, as seguintes sanções:
· Infracção consubstanciada na violação do artigo 39º, nº 1 do Código Deontológico, o qual determina que a medicina dentária é por natureza uma actividade com custos inerentes, pelos quais ê devida contraprestação pecuniária; o artigo 104, nº 10 e artigo 107º, ambos do Estatuto da OMD; o artigo 41º, nº 3, 4 e 5 do Código Deontológico e do artigo 29º, nº 2 d) do Código Deontológico, a sanção de advertência e sanção acessória de publicidade (a suas expensas), nos termos do artigo 83º, nº 1, alínea a) e nº2 e artigo 85º, nº1, alínea b) do Estatuto da OMD.
· Infracção consubstanciada na violação do artigo 15º-A do Decreto nº 3-A/2021, de 14 de Janeiro, aditado pelo Decreto Nº 3-B/2021, de 19 de Janeiro), o qual proíbe a actividade publicitária ou a adopção de qualquer outra forma de comunicação comercial, designadamente em serviços da sociedade da informação, que possam ter como resultado o aumento do fluxo de pessoas a frequentar estabelecimentos que, nos termos do presente decreto, estejam abertos ao público, designadamente através da divulgação de saldos, promoções ou liquidações, (artigo 15º-A do Decreto nº 3-A/2021, de 14 de Janeiro) sanção de advertência e sanção acessória de publicidade (a suas expensas), nos termos do artigo 83º, nº1, alínea a) e nº2 e artigo 85º, nº1, alínea b) do Estatuto da OMD.
(...)
Passemos, agora, à análise do processo disciplinar nº ...21.
Conforme decorre do que precede em termos de factos provados e que deixamos escrito no ponto II deste relatório, o facto sobre o qual incide o desvalor disciplinar, é o facto de a arguida não ter removido no prazo procedimentalmente concedido (urgente em atenção ao momento pandémico vivido e que já ficou justificado em despacho exarado no respectivo processo cautelar).
(...)
Aplicando tal preceito, e em função de tudo quanto ficou supra exarado, entendo que á arguida deverá ser aplicada, pela infracção em causa neste ponto, sanção de advertência e sanção acessória de publicidade, a expensas da arguida, tudo nos termos dos artigos 83º nº1 al. a), artigo 85º, nº1, alínea b), todos do Estatuto da OMD. (...)”.
DE DIREITO
Está posta em causa a decisão que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
Constitui entendimento unívoco da doutrina e obteve consagração legal o de que o objecto do recurso jurisdicional se encontra delimitado pelas conclusões extraídas da motivação, por parte do recorrente, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matéria que nelas não tiver sido versada, com ressalva óbvia, dos casos que imponham o seu conhecimento oficioso.
Assim, vejamos,
É objecto de recurso a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou a infração disciplinar que vinha imputada à Autora/Recorrida pelo ato impugnado amnistiada ope legis, determinando a inutilidade superveniente da lide por não sobrar qualquer outro interesse processual em obter a anulação jurisdicional do ato impugnado.
Como se refere na sentença recorrida, o ato impugnado aplicou à Autora a sanção disciplinar de advertência, prevista no artigo 83º, nº 1, alínea a) do Estatuto da Ordem dos Médicos Dentistas, em cumulação com a sanção acessória de publicidade da sanção aplicada.
Trata-se de uma infração disciplinar (i) praticada antes de 19/06/2023 (artigo 2º, nº 2, alínea b) da Lei nº 38-A/2023), (ii) que não é passível de constituir ilícito criminal (artigo 6º), que não é punível com pena superior à de suspensão (artigo 6º) e que (iv) não foi praticada por um “funcionário”, nem com violação de direitos, liberdades e garantias pessoais de outrem (artigo 7º, nº 1, alínea k).
Em face deste quadro processual o Tribunal a quo entendeu que a questão a decidir se consubstanciava em saber se se encontravam reunidos os pressupostos normativos consagrados na Lei nº 38-A/2023, de 2/8, e, em consequência, se se verificava a inutilidade superveniente da lide.
Discorda a Recorrente, propugnando o entendimento de que não se encontram preenchidos os pressupostos necessários para que a sanção disciplinar aplicada à Autora e aqui Recorrida seja amnistiada nos termos da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, uma vez que a amnista das infrações disciplinares prevista na Lei nº 38-A/2023, de 02/08, só se aplica aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19/06/2023, por pessoas que tivessem entre 16 e 30 anos de idade, à data da prática dos factos.
Para assim concluir, sufraga que o entendimento de que a amnistia é aplicada aos jovens sancionados penalmente, mas aplicada a todas as pessoas que - independentemente da idade - foram disciplinarmente sancionados, leva a concluir, inevitavelmente, pela inconstitucionalidade da Lei da Amnistia uma vez que o motivo que fundamenta a sua existência não suporta a sua amplitude aplicativa (as Jornadas Mundiais da Juventude).
Não secundamos esta leitura.
Resulta do artº 9º do Código Civil que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2); na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (nº 3).
Ensina Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª reimpressão, Coimbra, 2000, pp. 175-192): “ O art. 9.º deste Código, que à matéria se refere, não tomou posição na controvérsia entre a doutrina subjectivista e a doutrina objectivista. Comprova-o o facto de se não referir, nem à "vontade do legislador", nem à "vontade da lei", mas apontar antes como escopo da actividade interpretativa a descoberta do "pensamento legislativo" (art. 9.º, 1.º). Esta expressão, propositadamente incolor, significa exactamente que o legislador não se quis comprometer. [...] Começa o referido texto por dizer que a interpretação não deve cingir-se à letra mas reconstituir a partir dela o "pensamento legislativo". Contrapõe-se letra (texto) e espírito (pensamento) da lei, declarando-se que a actividade interpretativa deve - como não podia deixar de ser - procurar este a partir daquela.
A letra (o enunciado linguístico) é, assim, o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do art. 9.º, 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) "que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso".
Como bem observa o Senhor PGA, pode ter de proceder-se a uma interpretação extensiva ou restritiva, ou até porventura a uma interpretação corretiva, se a fórmula verbal foi sumamente infeliz, a ponto de ter falhado completamente o alvo. Mas, ainda neste último caso, será necessário que do texto "falhado" se colha pelo menos indiretamente uma alusão àquele sentido que intérprete venha a acolher como resultado da interpretação. Afasta-se assim o exagero de um subjetivismo extremo que propende a abstrair por completo do texto legal quando, através de quaisquer elementos exteriores ao texto, descobre ou julga descobrir a vontade do legislador.
Não significa isto que se não possa verificar a eventualidade de aparecerem textos de tal modo ambíguos que só o recurso a esses elementos externos nos habilite a retirar deles algum sentido. Mas, em tais hipóteses, este sentido só poderá valer se for ainda assim possível estabelecer alguma relação entre ele e o texto infeliz que se pretende interpretar.
Ainda pelo que se refere à letra (texto), esta exerce uma terceira função: a de dar um mais forte apoio àquela das interpretações possíveis que melhor condiga com o significado natural e correto das expressões utilizadas.
Com efeito, nos termos do art. 9.º, 3, o intérprete presumirá que o legislador "soube exprimir o seu pensamento em termos adequados". Só quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e direto da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo.
Desde logo, o mesmo n.º 3 destaca outra presunção: "o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas".
Sendo, assim, insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa, em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo» - Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, 1978, p. 147.
Na verdade, da Exposição de Motivos com que o Conselho de Ministros submete a Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª à apreciação do Parlamento, fez-se constar o seguinte: Considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento.
Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ.
Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina.
Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação.
Adicionalmente, é fixado um regime de amnistia, que compreende as contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda 1000 €, exceto as que forem praticadas sob influência de álcool ou de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, as infrações disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar e as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a um ano de prisão ou a 120 dias de multa.
Na nota de promulgação, o Senhor Presidente da República assinalou “a contradição entre o limite etário para a sua aplicação a crimes, mas sem limite de idade para a sua aplicação a contraordenações”, a que se acrescenta (embora noutro plano) a inexistência de qualquer limite de idade para aplicação a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares. A referida promulgação foi feita “sem prejuízo da avaliação posterior da questão do respeito pelo princípio da igualdade, com o objetivo de poder ser alargado o seu âmbito sem restrições de idade”.
Aplicando estes parâmetros de interpretação ao caso em apreço e tendo em conta o teor literal das normas, a sua inserção sistemática e a exposição de motivos conclui-se que, em matéria criminal, o perdão de penas e a amnistia, previstos na Lei nº 38-A/2023, de 02/08, só se aplicam aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19/06/2023, por pessoas que tivessem entre 16 e 30 anos de idade, à data da prática dos factos.
Mas decorre, ainda, da interpretação literal do artigo 2º, n.º 2, alínea b) e do artigo 6.º da Lei da Amnistia, que as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares, praticadas até às 00h00 horas de 19 de Junho de 2023, que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar, são também amnistiadas sem restrição relativa à idade.
É o que resulta do teor das normas, uma vez que o art.º 1º/1, ao fixar o âmbito de aplicação da lei, para além dos limites temporais e de idade dos beneficiários, refere expressamente os art.ºs 3º e 4º, isto é, o perdão de penas e a amnistia de infrações penais.
Entende a Recorrente que interpretar a Lei nº 38-A/2023, de 02/08, no sentido que sustentamos é inconstitucional, por violar o princípio da igualdade vertido no artº 13º da CRP.
Não vemos que assim seja.
A lei aqui em causa reveste carácter geral e abstrato, pois ela aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação por si descrita, que, assim, são em número indeterminado.
Por outro lado, a delimitação do âmbito de aplicação da lei está devidamente justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável.
Não padece, por isso, da apontada inconstitucionalidade (o Tribunal Constitucional já se pronunciou, por diversas vezes, no sentido da conformidade constitucional de normas que restringem o âmbito de aplicação de amnistias e perdões (veja-se nesse sentido, por todos, o Acórdão n.º 300/00).
Revemo-nos, por isso, na fundamentação da sentença recorrida, bem como nas contra-alegações da Recorrida.
Em suma,
Em 30 de março de 2021 foi proferido despacho pelo Presidente da OMD a ordenar a instauração dos processos disciplinares nºs 4ª/2021 e 4B/2021 à Recorrida;

Em 12 de novembro de 2022 foi proferido Acórdão pelo CDD da OMD a deliberar a aplicação à Recorrida da sanção disciplinar de advertência, prevista no artigo 83º nº 1 alínea a) do estatuto da Ordem dos Médicos Dentistas, com sanção acessória de publicidade a suas expensas;
Este acórdão foi judicialmente impugnado nos presentes autos;
Sucede que no dia 1 de setembro de 2023 entrou em vigor a Lei nº 38-A/23, de 5/8, que estabelece um perdão de penas e amnistia infrações;
Por esta lei foram amnistiadas as infrações disciplinares praticadas até às 00:00 horas do dia 19 de junho de 2023 e cuja sanção não seja superior a suspensão;
No caso posto a infração disciplinar teria ocorrido em março de 2021 e a sanção aplicada foi a de advertência;
Atenta esta factualidade - não posta em causa - o Tribunal a quo entendeu que a questão a decidir consistia em apurar se se encontravam reunidos os pressupostos normativos de que depende a aplicabilidade da amnistia consagrada na lei nº 38-A/2023, de 2/8, e, em consequência, se verificasse a inutilidade superveniente da lide;
Na sentença o Tribunal a quo apurou que se estava diante de uma infração disciplinar praticada antes de 19/06/2023; que não constitui ilícito criminal; que não é punível com pena superior à suspensão; que não foi praticada por um “funcionário”; nem com violação dos direitos, liberdade e garantias pessoais de outrem;
Os preceitos legais aplicáveis ao caso em apreço são o artigo 2º nº 1 alínea b) e o artigo 6º da Lei nº 38-A/2023, que afastam do âmbito da sua aplicação o limite de idade, sendo que a lei da amnistia, atento o seu carácter excecional é insuscetível de interpretação e de aplicação análoga não competindo à OMD “interpretá-la” no sentido de restringir o seu campo de aplicação;
A questão colocada no processo legislativo não era relativa à restrição da aplicação da amnistia às pessoas com 16 a 30 anos de idade, mas o alargamento dessa amnistia a todas as pessoas independentemente da idade, por aplicação do princípio da igualdade previsto no artigo 13º da Constituição;
Daí que o nº 2 alíneas a) e b) do artigo 2º e o artigo 6º sejam inovadores relativamente à proposta de Lei do Governo, dado que autonomizam as sanções penais das sanções acessórias de contraordenação e das infrações disciplinares, incluindo as militares, sendo que apenas é restringida às pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade a amnistia das sanções penais;
Como sentenciado, compulsado o teor da Lei 38-A/2023 não há dúvidas de que o legislador configurou duas situações diversas: o perdão de penas e amnistia de infracções penais “relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto” (artigo 2º, nº 1) e a amnistia de infracções disciplinares e infracções disciplinares militares, “nos termos definidos no artigo 6º” (artigo 2º, nº 1, alínea b).
Da análise conjunta dos dois preceitos legais (artigos 2º, nº 1, alínea b) e 6º), resulta claro que, no caso da amnistia das infracções disciplinares, que ora nos ocupa, foi afastado do âmbito de aplicação o limite de idade imposto no artigo 2º, nº 1 da Lei 38-A/2023, aplicável aos ilícitos penais.
Ou seja, na sentença o Tribunal a quo apurou que se estava diante de uma infração disciplinar praticada antes de 19/06/2023; que não constitui ilícito criminal; que não é punível com pena superior à suspensão; que não foi praticada por um “funcionário”; nem com violação dos direitos, liberdade e garantias pessoais de outrem;
Os preceitos legais aplicáveis ao caso concreto são o artigo 2º nº 1 alínea b) e o artigo 6º da Lei nº 38-A/2023, que afastam do âmbito da sua aplicação o limite de idade, sendo que a lei da amnistia, atento o seu carácter excecional é insuscetível de interpretação e de aplicação análoga não competindo à OMD “interpretá-la” no sentido de restringir o seu campo de aplicação;
Os trabalhos preparatórios da lei da amnistia apontam no sentido da interpretação veiculada pelo Tribunal;
De tal modo que a questão colocada no processo legislativo não era relativa à restrição da aplicação da amnistia às pessoas com 16 a 30 anos de idade, mas o alargamento dessa amnistia a todas as pessoas independentemente da idade, por aplicação do princípio da igualdade previsto no artigo 13º da Constituição;
Daí que o nº 2 alíneas a) e b) do artigo 2º e o artigo 6º são inovadores relativamente à proposta de Lei do Governo, dado que autonomizam as sanções penais das sanções acessórias de contraordenação e das infrações disciplinares, incluindo as militares, sendo que apenas é restringida às pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade a amnistia das sanções penais.
Improcedem as Conclusões das alegações.

DECISÃO
Termos em que se nega provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente.
Notifique e DN.
Porto, 05/4/2024
Fernanda Brandão
Paulo Ferreira de Magalhães
Rogério Martins (Vencido conforme o voto que segue:
VOTO DE VENCIDO.

Voto vencido a posição que fez vencimento pelas seguintes razões:

Os tribunais não são segunda instância administrativa sob pena de violação do princípio da separação de poderes consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.

O objecto da decisão do Tribunal de Primeira Instância não é processo disciplinar em si – a que possa pôr termo por aplicação da Lei da Amnistia ou outra razão qualquer -, mas a decisão punitiva que pode, por exemplo, ter recusado a aplicação da Lei da Amnistia.

A aplicação da Lei da Amnistia em processo disciplinar movido por entidade administrativa, como é o caso, cabe à Administração e não aos Tribunais.

Neste sentido, de resto, dispõe o artigo 14.º da recente Lei da Amnistia (Lei n.º 38-A/2023, de 02.08):

“Nos processos judiciais, a aplicação das medidas previstas na presente lei, consoante os casos, compete ao Ministério Público, ao juiz de instrução criminal ou ao juiz da instância do julgamento ou da condenação.”

Os juízes, em qualquer instância judicial, não são os juízes do “julgamento” da infracção nem da condenação.

E apenas podem aplicar a Amnistia nos processos judiciais, como decorre, a contrario, do citado preceito.

Não podem aplicar a Lei da Amnistia, directamente, nos processos administrativos, disciplinares.

Fazendo-o, violam o princípio constitucional da separação de poderes.

Os artigos 6º e 14º da Lei da Amnistia de 2023, na interpretação que aqui fez vencimento, são inconstitucionais, por violação deste princípio constitucional.

Tal como sustentei no voto de vencido ao acórdão deste Tribunal, de 03.11.2023, no processo 951/23.4 PRT.

Pelo que se impunha, na minha perspectiva, revogar a decisão recorrida e ordenar a baixa dos autos para prosseguirem os seus termos para conhecimento de mérito, nada mais a tal obstando.
*


Porto, 05.04.2024



Rogério Martins