Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00357/15.9BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:08/31/2015
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Hélder Vieira
Descritores:CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL
INSTITUIÇÕES PARTICULARES DE SOLIDARIEDADE SOCIAL (IPSS); ENTIDADE ADJUDICANTE
Sumário:I — No âmbito do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de Fevereiro, as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) são pessoas colectivas de direito privado, com autonomia, não administradas pelo Estado, que prosseguem os objectivos enunciados nas diversas alíneas do n.º 1 do seu artigo 1.º, que estabelece o seu Estatuto legal (artigos 1.º e 3.º desse diploma legal).
II — Na vigência do Estatuto das IPSS com redacção anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 172-A/2014, de 14 de Novembro, as IPSS estão sujeitas à tutela do Estado, os seus orçamentos e contas carecem de vistos pelos serviços competentes (artigo 33.º), que poderão ordenar a realização de inquéritos, sindicâncias e inspecções a estas instituições e seus estabelecimentos (artigo 34.º). As empreitadas de obras de construção ou grande reparação deverão ser feitas em concurso ou hasta pública, conforme for mais conveniente (artigo 23.º, n.º1).
III — São pressupostos da qualificação como entidades adjudicantes, independentemente da sua natureza pública ou privada, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 2º do Código dos Contratos Públicos (CCP), (i) a personalidade jurídica, (ii) terem sido criadas especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial e (iii) que estejam sujeitas à influência dominante de alguma das entidades adjudicantes identificadas no nº 1 daquele artigo 2º, seja porque maioritariamente por elas financiadas, seja porque sujeitas ao seu controlo de gestão ou ainda porque qualquer dos seus órgãos, de administração, de direcção ou de fiscalização, integra uma maioria de titulares directa ou indirectamente designada por aquelas entidades.
IV — Da conjugação da disciplina estabelecida nos preceitos enunciados nos números anteriores, na vigência do Estatuto das IPSS com redacção anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 172-A/2014, de 14 de Novembro, é de concluir que a sua gestão está sujeita a um controlo por parte do Estado, donde decorre que estas entidades são de considerar entidades adjudicantes para efeito do disposto no artigo 2º, nº 2, alínea a), do CCP.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:COT da Santíssima Trindade
Recorrido 1:EP & A, Ldª
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Impugnação Urgente - Contencioso pré-contratual (arts. 100º e segs. CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
I – RELATÓRIO
Recorrente: COT da Santíssima Trindade
Recorrido: EP & A, Ldª
Contra-interessada: S... Project, Ldª
Vem o recurso interposto do acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que na supra identificada acção de contencioso pré-contratual, julgou “procedente a presente acção, com a consequente declaração anulação da decisão de escolha do procedimento de ajuste directo e do contrato celebrado entre a Entidade Demandada e a contra-interessada”.

Na acção havia sido deduzido pedido de declaração da nulidade do relatório de não adjudicação, e respectiva decisão, bem como a nulidade do acto que escolheu o procedimento de ajuste directo e do contrato celebrado na sequência deste procedimento entre a Ré e a contra-interessada S... Project, Lda.

O objecto do recurso é delimitado pelas seguintes conclusões da respectiva alegação(1):

A. A Recorrente é uma instituição particular de solidariedade social, uma pessoa de direito privado, com autonomia, não administrada nem controlada pelo Estado, de influência eclesiática e não estatal, pelo que não pode ser considerada um organismos de direito público.

B. O conceito de organismo público tem a sua razão de ser no combate à conhecida fuga para o direito privado, com vista a que tal tendência não fosse acompanhada de um não cumprimento das regras da contratação pública. Pretendeu-se, no fundo, sancionar a desmultiplicação do Estado orgânico em associações, fundações ou empresas, o que obviamente nada tem que ver com a COT da Santíssima Trindade que se dedica à assistência social desde, pelo menos, 1852, sendo sempre controlada pelos seus Irmãos.

C. Donde a Recorrente não está abrangida pelo conceito de “entidade adjudicante” previsto no artigo 2.º do CCP, quer no seu n.º 1 quer no seu n.º 2.

D. Em primeiro lugar, e considerando a sua natureza, a Recorrente não está abrangida pelo n.º 1, daquele artigo, uma vez que não é uma entidade estatal em sentido orgânico.

E. No que diz respeito ao n.º 2, e embora possa preencher a subalínea i) da alínea a), por ter sido criada especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial,

F. Não se pode considerar que esteja verificada a subalínea cumulativa ii).

G. De facto, o financiamento das atividades da Recorrente é exclusivamente privado, não beneficiando de qualquer financiamento por parte de entidades públicas.

H. A Recorrente rege-se pelos seus próprios Estatutos, aprovados pelos seus próprios membros.

I. O Capítulo X dos Estatutos da Recorrente estipula expressamente que a designação dos membros órgãos sociais é feita pelos seus Irmãos, enquanto membros da Instituição.

J. Está, portanto, afastada a possibilidade de qualquer entidade pública designar, direta ou indiretamente, a maioria dos membros dos órgãos de administração, direção ou fiscalização da Recorrente.

K. Estes fatores demonstram igualmente que a Recorrente não está sujeita a um controlo de gestão por parte do Estado.

L. Sendo que os poderes estatais concedidos ao abrigo do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de fevereiro, que regula as instituições particulares de solidariedade social, são meros poderes de fiscalização da legalidade e não, como parece ter entendido o Tribunal a quo, poderes de controlo de gestão.

M. Ora, tais poderes de fiscalização da legalidade a posteriori são manifestamente insuficientes para se poder dar por verificado o requisito de controlo da gestão indispensável à afirmação da influência dominante de um poder público sobre uma determinada entidade.

N. Não sendo entidade adjudicante, a Recorrente não está sujeita às regras do CCP, nem obrigada ao cumprimento das específicas normas de contratação pública aí previstos,

O. Podendo, no entanto, optar por fazê-lo, de acordo com o princípio da autonomia privada, sem que isso signifique uma auto-vinculação, porquanto a convocação de um procedimento de contratação pública corresponde apenas a uma vontade negocial nesse sentido.

Termos em que deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência, ser revogada a Sentença proferida pelo Tribunal a quo.”.

O Recorrido não contra-alegou.

O Ministério Público, notificado ao abrigo do disposto no artº 146º, nº 1, do CPTA, não se pronunciou.

A questão suscitada(2) e a decidir(3), indicada nas conclusões da alegação como fundamento específico da recorribilidade (artigos 637º, nº 2, e 635º, nº 4, ambos do CPC), resume-se em determinar se a Recorrente, nas concretas circunstâncias da causa, está abrangida pelo conceito de «entidade adjudicante» previsto no artigo 2º do Código dos Contratos Públicos.

Cumpre decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – OS FACTOS ASSENTES NA DECISÃO RECORRIDA

Na sentença sob recurso ficou e permanece pacificamente assente o seguinte quadro factual:

«1) A COT da Santíssima Trindade é uma instituição particular de solidariedade social reconhecida como pessoa colectiva de utilidade pública, registada na Direcção - Geral da Segurança Social no livro 4 das Associações de Solidariedade Social, sob o nº 90/88, a fls. 22v. em 6/7/88 – doc. 2 junto com a oposição da demandada.

2) A COT da Santíssima Trindade, através de anúncio de procedimento n.º 5364/2014, publicado no DR de 29/09/2014, publicitou o concurso público de “implementação de solução no âmbito da utilização racional de energia e eficiência energética-ambiental na COT da Santíssima Trindade” onde se refere expressamente no item 17: Outras Informações - Regime de contratação: DL nº 18/2008, de 29/1 e no item 2 – preço base do procedimento: 552 237,16 EUR- doc. n.º 1 junto com a p.i.;

3) A este concurso apresentaram propostas a ora A e a contra-interessadaS... Project- Lda;

4) A A. foi notificada do relatório preliminar datado de 17/11/2014, elaborado nos termos do nº 1 do artº 146º do Código dos Contratos Públicos (CCP) – v. item 2. – no qual se concluiu:

[No original, esta parte é composta por imagens, pelo que não tendo sido impugnada nem havendo necessidade de qualquer alteração, ao abrigo do disposto no nº 6 do artigo 663º do CPC remete-se, nesta parte, para os respectivos termos da decisão da 1ª instância que assentou esta matéria sob a forma de imagens — página 5 da decisão; Transcreve-se, no entanto, o seguinte: “(…) o júri propõe a adjudicação da proposta ordenada em primeiro lugar — Proposta apresentada pelo Concorrente nº 1 S... PROJECT LDA (…)].

- doc. n.º 2 junto com a p.i.;

5) No âmbito do direito de audição prévia, a ora A. discordou daquele relatório, tendo pugnado pela exclusão da proposta daquela concorrente pelos fundamentos constantes do doc. n.º 3 junto com a p.i. que aqui se dá por integralmente reproduzido;

6) O júri daquele concurso atendeu a parte dos argumentos apresentados, e no âmbito de um 2º Relatório Preliminar de 9 de Dezembro de 2014 concluiu:

[No original, esta parte é composta por imagens, pelo que não tendo sido impugnada nem havendo necessidade de qualquer alteração, ao abrigo do disposto no nº 6 do artigo 663º do CPC remete-se, nesta parte, para os respectivos termos da decisão da 1ª instância que assentou esta matéria sob a forma de imagens — páginas 5 e 6 da decisão; Transcreve-se, no entanto, o seguinte: “(…) propõe o júri a exclusão de todas as propostas nos termos anteriormente apresentados e, consequentemente, revogação da decisão de contratar nos termos da alínea b) do art. 79º do CCP”.].

- doc. n.º 4 junto com a p.i.;

7) Em 22/12/2014, foi publicado, na plataforma anogov.com o relatório final datado de 19 de Dezembro de 2014, o qual manteve o entendimento já sufragado no 2º relatório preliminar, tendo concluído da seguinte forma:

[No original, esta parte é composta por imagens, pelo que não tendo sido impugnada nem havendo necessidade de qualquer alteração, ao abrigo do disposto no nº 6 do artigo 663º do CPC remete-se, nesta parte, para os respectivos termos da decisão da 1ª instância que assentou esta matéria sob a forma de imagens — página 6 da decisão; Transcreve-se, no entanto, o seguinte: “(…) o júri propõe a exclusão de todas as propostas apresentadas (…)”].

– doc. 5 junto com a p.i.;

8) Em 26 de Dezembro 2014 a Entidade Demandada publicitou naquela plataforma a notificação de não adjudicação, tendo depositado um documento denominado "Relatório Não adjudicação" do tipo Causas de Não-Adjudicação;

9) A Entidade Demandada deu início a um novo procedimento de contratação, por ajuste directo, tendo endereçado convite à contra-interessada ¯S... Project‖ que com data de 19 de Dezembro de 2014 apresentou a proposta seguinte:

[No original, esta parte é composta por imagens, pelo que não tendo sido impugnada nem havendo necessidade de qualquer alteração, ao abrigo do disposto no nº 6 do artigo 663º do CPC remete-se, nesta parte, para os respectivos termos da decisão da 1ª instância que assentou esta matéria sob a forma de imagens — página 7 da decisão; Transcreve-se, no entanto, a parte seguinte: “JACP (…) e JAMP (…) na qualidade de representantes legais de S... Project, Lda. (…) depois de ter tomado conhecimento do objecto do procedimento por ajuste directo para a execução da empreitada designada por «Implementação de Solução no âmbito da Utilização Racional de Energia e Eficiência Energética – Ambiental», na COT da Santíssima Trindade, obriga-se a executar a referida obra de harmonia com o convite e o caderno de encargos e demais documentação procedimental, pelo preço de € 343.548,35 (…)].

- doc. n.º 6 junto com a p.i.;

10) Tendo sido celebrado contrato de execução de empreitada de "utilização racional de energia e eficiência energético ambiental", entre a Entidade Demandada e a contra-interessada ¯S... Project‖, em 24 de Dezembro de 2014 – doc. 7 junto com a p.i.

11) A presente acção foi intentada em 26/1/2015 e nela vem formulado o pedido de declaração “(…) de nulidade do relatório de não adjudicação, e respectiva decisão, bem como a nulidade do acto que escolheu o procedimento de ajuste directo e do contrato celebrado na sequência deste procedimento entre a Ré e a contra-interessada S... Project, Lda”.

12) Dão-se aqui por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais os doc. 6 a 8 juntos pela Demandada.”.

II.2 – DO MÉRITO DO RECURSO

A Recorrente opõe à decisão a alegação da exclusão subjectiva do procedimento de contratação adoptado da alçada do respectivo regime ínsito no CCP, nas vertentes atinentes ao conceito de entidade adjudicante (que entende não preencher) e subtracção à auto-vinculação de aplicação desse regime (que entende não se verificar), concluindo que “não é uma entidade adjudicante, não estando obrigada ao cumprimento das específicas normas de contratação pública” e, como tal, “não poderia o Tribunal a quo ter decidido pela ilegalidade da decisão de recorrer ao procedimento de ajuste directo, nem pela ilegalidade da decisão de adjudicação do contrato entre a Recorrente e a contra-interessada”.

Vejamos.

É pacífico nos autos que a Recorrente, COT da Santíssima Trindade, é uma instituição particular de solidariedade social reconhecida como pessoa colectiva de utilidade pública.

Na senda do disposto no artigo 63º da CRP, maxime o seu nº 5, foi publicado o Decreto-Lei nº 119/83, de 25 de Fevereiro, que aprovou o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social.

À data da decisão de contratar e abertura do procedimento de concurso público vigorava a versão com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leiss 9/85, de 9 de Janeiro, 89/85, de 1 de Abril, 402/85, de 11 de Outubro, e 29/86, de 19 de Fevereiro.

O nº 1 do seu artigo 23º dispõe: “a empreitada de obras de construção ou grande reparação, bem como a alienação e o arrendamento de imóveis pertencentes às instituições, deverá ser feita em concurso ou hasta pública, conforme for mais conveniente”.

Na vigência do revogado — pelo Decreto-Lei nº 18/2008, de 29 de Janeiro, que aprovou o Código dos Contratos Públicos — Decreto-Lei nº 59/99, de 2 de Março, diploma que efectuou a transposição da Directiva 93/37/CE e estabelecia o regime do contrato administrativo de empreitada de obras públicas (artigo 2º, nº 1), para os efeitos nele previstos eram considerados donos de obras públicas, entre outros, as entidades definidas no nº 2 do artigo 3º [cfr. artigo 3º, nº 1, alínea i)], ou seja as entidades dotadas de personalidade jurídica, criadas para satisfazer de um modo específico necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial e em relação às quais se verificasse uma das seguintes circunstâncias: a) cuja actividade seja financiada maioritariamente por alguma das entidades referidas no número anterior ou no presente numero; b) Cuja gestão esteja sujeita a um controlo por parte de alguma das entidades referidas no número anterior ou no presente número. C) Cujos órgãos de administração, de direcção ou de fiscalização sejam compostos, em mais de metade, por membros designados por alguma das entidades referidas no número anterior ou no presente número [semelhante ao conceito de dono de obra pública este veio a ser o conceito da ora denominada entidade adjudicante carreado pela alínea a) do nº 2 do artigo 2º do CCP].

E, por força daquela Directiva, determinava ainda o nº 5 do seu artigo 2º: “o regime do presente diploma aplica-se ainda às empreitadas que sejam financiadas directamente em mais de 50%, por qualquer das entidades referidas no artigo seguinte.”.

Assim, por impulso daquela directiva europeia, o legislador nacional submeteu ao procedimento pré-contratual de direito público regulado no Decreto-Lei nº 59/99, não só a adjudicação dos contratos de empreitada celebrados pelas entidades consideradas “donos de obras públicas”, públicas ou privadas, segundo o conceito vertido no artigo 3º, mas também a dos contratos celebrados por outras entidades, exteriores àquelas e, portanto, privadas, desde que maioritariamente financiados por aquelas entidades adjudicantes.

Vejamos agora se a Recorrente deve ser considerada entidade adjudicante à luz do CCP e seu artigo 2º, pelo critério do controlo de gestão, tal como considerado na decisão sob recurso, que concluiu:

E se é certo que não resulta dos Estatutos da Demandada a verificação de todas as circunstâncias a que se refere a alínea ii) do nº2 do artº 2º do CCP, afigura-se inquestionável que a mesma está sujeita ao controlo de gestão por parte de entidades que integram o nº1 do artº 2º do CCP, o que significa que se encontra preenchida uma das condições alternativas fixadas na referida alínea ii).

Na verdade, a enunciação supra efectuada dos vários aspectos do regime legal a que estão imperativamente sujeitas as instituições de solidariedade social, por força do DL 119/83, de 25.2, designadamente, a tutela sobre elas exercida pelo Estado, a imposição de que as empreitadas de obras de construção ou grande restauro seja feita em concurso público (art.º 23.º), a necessidade do visto dos serviços competentes em relação aos orçamentos e contas destas instituições (art.º 33.º) e a fiscalização a que estão sujeitas, podendo os serviços competentes ordenar a realização de inquéritos, sindicâncias e inspecções às instituições e seus estabelecimentos (art.º 34.º), permite concluir que, para o efeito do disposto no artº 2º do CCP, a gestão das instituições privadas da solidariedade social está sujeita ao controlo do Estado.

Assim sendo, estas instituições, entre as quais se insere a Demandada, são de considerar entidades adjudicantes, o que significa que os contratos por elas celebrados para a execução, ou concepção/execução das obras a que se refere o art.º 343º do CCP, como é o caso da obra de implementação de solução no âmbito de utilização racional de energia e eficiência energética-ambiental na COT da Santíssima Trindade, é regulado pelo CCP.”.

A Recorrente entende que, no que respeita ao disposto no nº 2 do artigo 2º do CCP, “embora possa preencher a subalínea i) da alínea a), por ter sido criada especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial”, considera que “não se pode considerar que esteja verificada a subalínea cumulativa ii)” (nossa ênfase).

Acrescenta que os poderes estatais concedidos ao abrigo do decreto-Lei nº 119/83, “são meros poderes de fiscalização da legalidade e não, como parece ter entendido o Tribunal a quo, poderes de controlo de gestão”.

Apreciando, importa chamar à colação dois acórdãos sobre esta matéria, tanto quanto descortinado, sendo um do Tribunal de Justiça da União Europeia e outro do Supremo Tribunal Administrativo.

Pelo acórdão de 27 de Fevereiro de 2003, processo C-373/00, caso Adolf Truley, concluiu o TJUE: “Um simples controlo a posteriori não preenche o critério do controlo da gestão pelo Estado, pelas autarquias ou por outros organismos de direito público referidos no artigo 1.°, alínea b), segundo parágrafo, terceiro travessão, da Directiva 93/36 relativa à coordenação dos processos de adjudicação dos contratos públicos de fornecimento, uma vez que, por definição, um controlo deste tipo não permite aos poderes públicos influenciarem as decisões do organismo em causa em matéria de contratos públicos.

Em contrapartida, corresponde a esse critério a situação em que, por um lado, os poderes públicos controlam não apenas as contas anuais do organismo em causa mas também a sua gestão corrente na perspectiva da exactidão dos números referidos, da regularidade, da procura de economias, da rentabilidade e da racionalidade e, por outro, os mesmos poderes públicos estão autorizados a visitar os locais de exploração e as instalações do referido organismo e a transmitir os resultados desses controlos a uma autarquia que, por intermédio de outra sociedade, detém o capital do organismo em questão.”.

É, pois, uma jurisprudência que carreia uma relevância daqueles aspectos, no âmbito do requisito do controlo de gestão, «de influência equivalente à dos outros dois requisitos (financiamento maioritário e designação da maioria dos membros de um dos órgãos sociais)»(4).

Por seu turno, o STA, por acórdão de 08-10-2002, processo nº 1308/02, considerou, e transcreve-se: “A indagação desses requisitos não se nos afigura, contudo, indispensável, na medida em que, bastando, para o efeito, a verificação de um desses requisitos, se nos afigura que se verifica o da alínea b).

Na verdade, da enunciação feita dos vários requisitos das instituições privadas de solidariedade social, nomeadamente da tutela que sobre elas é exercida pelo Estado (referenciados artigos 32.º a 34.º do seu Estatuto) e da imposição de que as empreitadas de obras de construção ou de grande restauro seja feita através de concurso público ou hasta pública (artigo 23.º), que, depois, podem ser sindicadas pelo Estado, através do visto dos serviços competentes aos seus orçamentos e às suas contas ou da realização de inquéritos, sindicâncias ou inspecções, é de concluir que, para efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 59/99, a gestão das instituições privadas de solidariedade social está sujeita ao controlo do Estado.

E, assim sendo, temos que estas pessoas são de considerar donas de obras públicas, o que significa que os contratos por elas celebrados são contratos de empreitada de obras públicas, regulados pelo referido Decreto-Lei n.º 59/99. São contratos praticados a coberto de uma ambiência de direito público, resultante do predomínio de preocupações de interesse público, que prosseguem, que as leva a não poder adoptar procedimentos diferentes dos nele tipificados (artigo 7.º do mesmo diploma) e a actuar numa posição de supra ordenação que lhes possibilita o estabelecimento de cláusulas exorbitantes, ou seja, são contratos administrativos.”.

E sumariou a seguinte doutrina jurisprudencial:

I - As Instituições Particulares de Solidariedade Social são pessoas colectivas de direito privado, com autonomia, não administradas pelo Estado, que prosseguem os objectivos enunciados nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 118/93, de 25 de Fevereiro, que estabelece o seu Estatuto legal (artigos 1.º e 3.º desse diploma).

II - Estão sujeitas à tutela do Estado, cuja autorização dos serviços competentes é necessária para a prática de determinados actos, nomeadamente a aquisição de bens imóveis a título oneroso ou a alienação de imóveis a qualquer título (artigo 32.º, n.º 1), os seus orçamentos e contas carecem de vistos pelos serviços competentes (artigo 33.º), que poderão ordenar a realização de inquéritos, sindicâncias e inspecções a estas instituições e seus estabelecimentos (artigo 34.º). As empreitadas de obras de construção ou grande reparação deverão ser feitas em concurso ou hasta pública, conforme for mais conveniente (artigo 23.º, n.º1).

III - Da conjugação da disciplina estabelecida nos preceitos enunciados no número anterior com a estabelecida no artigo 3.º, n.º 2, alínea b) do Decreto-Lei n.º 59/99, de 2 de Março, é de concluir que a sua gestão está sujeita a um controlo por parte do Estado, donde decorre que estas pessoas são de considerar donas de obras públicas, o que significa que os contratos por elas celebrados são contratos de empreitada de obras públicas, regulados pelo referido Decreto-Lei n.º 59/99. São contratos praticados a coberto de uma ambiência de direito público, resultante do predomínio de preocupações de interesse público, que prosseguem, que as leva a não poder adoptar procedimentos diferentes dos nele tipificados (artigo 7.º do mesmo diploma) e a actuar numa posição de supra ordenação que lhes possibilita o estabelecimento de cláusulas exorbitantes, ou seja, são contratos administrativos.”.

Mutatis mutandis, tal solução jurisprudencial, acolhendo-se, é aqui aplicável em face da similitude conceptual do, anteriormente, dono de obra e, actualmente, entidade adjudicante, e dos pressupostos em que assenta.

Quanto ao argumento de que são de verificação cumulativa as situações vertidas na subalínea ii) da alínea a) do nº 2 do artigo 2º do CCP, entendemos que assim não é.

Cumulativo é cada um dos pressupostos previstos na subalínea ii) com o previsto na subalínea i), tal como imposto pela conjunção copulativa «e», que opera a ligação, com função coordenativa, entre a subalínea i) e a ii).

Sintacticamente, retira-se da redacção da subalínea ii) uma formulação que integra elementos individualizados por uma vírgula e ligados pela conjunção disjuntiva que, no caso, exprime alternativa, com a função de separar em alternativa esses termos da mesma função sintática.

Mas também, como vimos, do ponto de vista jus-semântico, não se justificaria a imposição da verificação cumulativa de tais pressupostos, já que o controlo de gestão denota uma influência equivalente à dos outros dois requisitos, quais sejam, o financiamento maioritário e a designação da maioria dos membros de um dos órgãos sociais.

Pelo que os pressupostos ínsitos na subalínea ii) da alínea a) do nº 2 do artigo 2º do CCP não são de verificação cumulativa entre si, mas apenas cada um deles com o requisito aludido na subalínea i).

São, assim, pressupostos da qualificação como entidades adjudicantes, independentemente da sua natureza pública ou privada, nos termos da alínea a) do nº 2 do artigo 2º do CCP, (i) a personalidade jurídica, (ii) terem sido criadas especificamente para satisfazer necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial e (iii) que estejam sujeitas à influência dominante de alguma das entidades adjudicantes identificadas no nº 1 daquele artigo 2º, seja porque maioritariamente por elas financiadas, seja porque sujeitas ao seu controlo de gestão ou ainda porque qualquer dos seus órgãos, de administração, de direcção ou de fiscalização, integra uma maioria de titulares directa ou indirectamente designada por aquelas entidades.

Como tal, tendo a decisão de contratar e a publicação do respectivo anúncio do procedimento ocorrida na vigência da redacção das normas do artigo 23º do Estatuto das IPSS anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 172-A/2014, e em face da jurisprudência supra identificada, nacional e comunitária, e aqui acolhida, é de concluir não se verificar o erro de direito assacado à decisão recorrida.

O argumento da auto-vinculação que, por acréscimo de argumentos, foi subsidiariamente arregimentado para fundamento da decisão recorrida mostra-se, assim, consumido e, como tal, de conhecimento prejudicado.

Improcede, assim, a alegação da Recorrente.

II.3 Da questão do reenvio prejudicial previsto no artigo 267º do TFUE

Requer a Recorrente que, havendo dúvidas quanto ao sentido ou alcance das Directivas Comunitárias e das próprias normas do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, se submeta ao TJUE, em sede de reenvio prejudicial as seguintes questões:


(i) O conceito normativo de “organismo de direito público” consagrado no artigo 1.º, n.º 9, da Diretiva 2004/18/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março de 2004 possibilita a interpretação dada pelo Tribunal nacional ao artigo 2.º, n.º 2, do CCP, no sentido de que poderes gerais de fiscalização da legalidade a posteriori são suficientes para considerar que o Estado exerce sobre uma entidade com natureza canónica um controlo da gestão?


(ii) Uma instituição particular de solidariedade social, enquanto pessoa de direito privado, financiada através de capitais exclusivamente privados, regida pelos seus próprios Estatutos apenas sujeita ao regime geral das Instituições de Solidariedade Social pode ser integrada no conceito de organismo de direito público?”.


O reenvio prejudicial é um instrumento de cooperação que visa garantir que nos processos onde se suscitem questões de Direito Comunitário a uniformidade da interpretação das normas comunitárias e da apreciação da sua validade seja garantida, em última análise, pelo Tribunal de Justiça (TJ) – cfr. Ac. do STA, de 23-10-2007, proc. nº 1050/03.


O artigo 267º do TFUE — ex artigo 234.º do TCE — só impõe aos tribunais nacionais cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso jurisdicional de direito interno a obrigação de reenviar ao TJCE quando for suscitada perante qualquer deles uma questão de interpretação do direito comunitário.


De harmonia com a posição, que sufragamos, de Miguel Gorjão-Henriques,— Direito Comunitário, Sumários Desenvolvidos, 2ª Edição, Almedina, 2002, p. 307 —, a aferição da necessidade de uma decisão interpretativa ou de apreciação de validade (de uma decisão prejudicial), a pertinência das questões ou do quadro factual que está na base da questão concreta incumbe, em primeira mão ao órgão jurisdicional nacional (vide a jurisprudência do TJ aí citada, processos nº C-121/92, C-220/95 e C-295/95), devendo o tribunal nacional justificar a necessidade objectiva de uma pronúncia do TJ para a resolução do litígio concreto.


Ora, como é manifesto, não é este o caso dos autos, visto inexistir qualquer dúvida legítima, objectiva e razoável na interpretação de alguma norma do Direito Comunitário atinente à apreciação do pleito.

De resto, teve-se em conta a questão já dirimida pelo acórdão de 27 de Fevereiro de 2003, processo C-373/00, caso Adolf Truley, tal como supra identificado.

Não se mostra necessária, pois, a consulta ao TJUE, em termos do reenvio prejudicial a que se refere o artigo 267º do Tratado.

III. DECISÃO

Termos em que os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte acordam em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Notifique e D.N..

Porto, 31 de Agosto de 2015
Ass.: Helder Vieira
Ass.: Fernanda Brandão
Ass.: Frederico Branco
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(1) Nos termos dos artºs 144.º, n.º 2, e 146.º, n.º 4, do CPTA, 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, n.ºs 3 e 4, e 685.º-A, n.º 1, todos do CPC, na redacção decorrente do DL n.º 303/07, de 24.08 — cfr. arts. 05.º e 07.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 41/2013 —, actuais artºs 5.º, 608.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 4 e 5, 639.º e 640º do CPC/2013 ex vi artºs 1.º e 140.º do CPTA.
(2) Tal como delimitadas pela alegação de recurso e respectivas conclusões — artigos 608º, nº 2, e 635º, nºs 3 e 4, 637º, nº 2, 639º e 640º, todos do Código de Processo Civil ex vi artº 140º do CPTA.
(3) Para tanto, e em sede de recurso de apelação, o tribunal ad quem não se limita a cassar a decisão judicial recorrida porquanto, “ainda que declare nula a sentença, o tribunal de recurso não deixa de decidir o objecto da causa, conhecendo do facto e do direito”, reunidos que se mostrem os necessários pressupostos e condições legalmente exigidas — art. 149.º do CPTA.
(4) Veja-se, para maiores desenvolvimentos, Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos e Outros Procedimentos de Contratação Pública, Almedina, 2014, págs. 91 a 118, maxime 108.