Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00600/23.0BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:04/05/2024
Tribunal:TAF do Porto
Relator:MARIA FERNANDA ANTUNES APARÍCIO DUARTE BRANDÃO
Descritores:AMNISTIA;
Votação:Maioria
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
«AA» instaurou Ação Administrativa contra o MINISTÉRIO DAS FINANÇAS, ambos melhor identificados nos autos, tendo em vista a impugnação do ato de 19/07/2021, que lhe aplicou pena disciplinar de suspensão por 20 dias, suspensa na sua execução, pedindo o seguinte:
“Nestes termos e nos demais de Direito, sempre com o mui douto suprimento do Tribunal, deve a presente acção ser julgada procedente por provada e em consequência:
A) Se declare a caducidade do direito de exercício da acção disciplinar levada a cabo contra o trabalhador arguido, precludido que está, desde a sua origem, o que determina a nulidade de todo o procedimento; e ainda e sem prescindir;
B) Em todo o caso, declarada a prescrição do procedimento disciplinar por estar mais do que transcorrido o prazo de um ano desde a alegada prática da infracção disciplinar, nos termos do n° 1, do art. 178° da LGTFP;
C) Seja declarado nulo, ou pelo menos anulado, o acto administrativo sancionatório, por este padecer de um vício insanável da falta de elementos essenciais do mesmo, o que determina a sua nulidade, ou, caso assim não se entenda, a sua anulabilidade, e
D) Subsidiariamente, caso assim não fosse entendido, seja anulado o acto administrativo sancionatório, por este padecer de invalidade por falta de fundamentação, o que determina a sua anulabilidade, e
E) Tudo com as legais consequências.”

Por decisão proferida pelo TAF do Porto foi julgada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide: art° 277° al. e) do CPC, ex vi artº 1° do CPTA.
Desta vem interposto recurso pelo Réu.
Alegando, formulou as seguintes conclusões:

A - Vem o presente recurso interposto do despacho saneador-sentença proferido a 19/10/2023, pelo TAF do Porto, que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, uma vez que determinou “nos termos conjugados dos artigos 1.º, 2.º, n.º 2, alínea b), 6.º e 15.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, por efeito da legislada amnistia, a extinção da infração disciplinar sancionada ao Autor pelo ato impugnado e de todos os seus efeitos, com exceção dos já produzidos e que são indestrutíveis”;

B - O Autor foi notificado pessoalmente em 23/07/2021, do despacho da Directora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), que, na sequência de processo disciplinar, relativamente a factos praticados em 2019, lhe aplicou a pena de suspensão, pelo período de 20 dias, suspensa na sua execução pelo período de um ano (prazo terminado a 23/07/2022);

C - O Tribunal a quo foi do entendimento de que, in casu, seria de aplicar a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, que determinou “um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude” (cfr. artigo 1.º).

D - Quanto a esta questão, e de acordo com os artigos 2º, n.º 2 al. b) e 6º do referido diploma, verifica-se que, cronológica e substantivamente, a situação do A. subsumir-se-á àquelas normas, logo, seria de aplicar a referida lei à situação sub judice.

E - Por outro lado, para reforçar a aplicação de tal diploma, o Tribunal a quo menciona jurisprudência respeitante a situações de aplicação de regimes de amnistia, nomeadamente: “E tendo ainda em conta o acórdão do STJ, de 20/01/1993, proferido no processo n.º 003366, disponível em www.dgsi.pt, que decidiu que “Amnistia significa esquecimento, o apagamento dos efeitos jurídicos da infracção.
Trata-se de uma figura oriunda do direito penal. Apesar disso não existe uma conexão necessária entre amnistia e infracção criminal, não podendo afirmar-se actualmente que seja um instituto privativo do direito penal. Desde há muito tempo a amnistia deixou de ser um instituto específico do direito penal, estendendo-se aos direitos sancionatários conexos, como o direito penal e administrativo e ao direito disciplinar.
(...)
Como já se referiu, amnistia significa etimologicamente esquecimento. A amnistia actua sobre a própria infracção cometida, eliminando todos os efeitos da infracção. Como lei do esquecimento, a amnistia apaga juridicamente a infracção, destrói os seus efeitos retroactivamente e se não pode destruir aqueles que já se produziram e são indestrutíveis, faz desaparecer todos aqueles cuja acção persiste quando a lei amnistiante se publicou (Cfr. Rev. Leg. Jurisp., ano 58, página 91).”:”

F - Concluindo o douto Tribunal por “Determina-se, nos termos conjugados dos artigos 1.º, 2.º, n.º 2, alínea b), 6.º e 15.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, por efeito da legislada amnistia, a extinção da infração disciplinar sancionada ao Autor pelo ato impugnado e de todos os seus efeitos, com exceção dos já produzidos e que são indestrutíveis;” (sublinhado e negrito nosso);

G - O efeito de apagamento consiste na abolição retroactiva, com efeitos “ex tunc” e, como tal, incidindo não apenas sobre a própria pena, como também sobre o acto criminoso passado, que cai em esquecimento, tido como não praticado e, consequentemente, eliminado do registo criminal;

H - Este efeito retroactivo, foi igualmente determinante no sentido do acórdão acima mencionado, de 1993, ou seja, que a amnistia não destrói os efeitos já produzidos pela aplicação da pena que devem ser averbados no competente processo individual,

I - Mas ao destruir aqueles que já se produziram e são indestrutíveis, faz desaparecer todos aqueles cuja ação persiste quando a lei amnistiante se publicou,

J - A ser assim, não obstante se refira que a amnistia tem efeitos retroactivos e, portanto, “ex tunc”, a realidade é que a destruição retroactiva não abrange todos os efeitos.

K - Assim sendo, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo, não pode restringir a sua decisão a conclusões vagas, imprecisas, como é o caso de “a extinção da infração disciplinar sancionada ao Autor pelo ato impugnado e de todos os seus efeitos, com exceção dos já produzidos e que são indestrutíveis;”, sem explicar quais são os efeitos indestrutíveis, pelo que o tribunal deveria ter-se pronunciado sobre os mesmos.

L - Mais se diga que, e tendo em atenção as previsões dos artigos 183º, 186º, 182º e 192º, todos da LTFP, considerando, na situação em apreço, a suspensão da sanção aplicada, o trabalhador, ora Recorrido, não esteve inibido de exercer as suas funções, mas terá perdido a remuneração correspondente aos 20 dias de pena de suspensão, decididos pela decisão impugnada;

M - Assim sendo, se, por um lado, a contagem do tempo de serviço para a antiguidade, depreende-se que será um dos efeitos que podem ser destruídos,

N - Por outro lado, interessa saber se o direito ao esquecimento, suprime toda a informação do processo individual do A., por hipótese, fica só a constar que houve processo disciplinar e beneficiou da amnistia prevista na Lei n.º 38-A/2023, aplicada judicialmente e,

O - Se, e igualmente importante, quanto à remuneração respeitante aos 20 dias de suspensão, terão que ser pagos, por efeito da amnistia da sanção.

P - Importa assim, que o Tribunal concretize a decisão, logo, aprecie as referidas questões de direito, no que concerne aos efeitos produzidos pela aplicação da Lei da amnistia em causa, padecendo a decisão ora recorrida, de falta ou, no mínimo, insuficiente fundamentação.

Pelo exposto, por tudo quanto se vem de expender e sempre com o suprimento, deverá ser dado provimento ao presente recurso, dessa forma se fazendo
JUSTIÇA.
Não foram juntas contra-alegações.

O Senhor Procurador Geral Adjunto notificado, nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.

Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO
Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
a) O Autor foi notificado pessoalmente em 23/07/2021, do despacho da Diretora Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira, que, na sequência de processo disciplinar, relativamente a factos praticados em 2019, lhe aplicou a pena de suspensão, pelo período de 20 dias, suspensa na sua execução pelo período de um ano, por violação dos deveres funcionais de prossecução do interesse público, isenção, imparcialidade e zelo, cfr. teor de fls. 485 e 578 a 594 do Processo Administrativo.
b) Por despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de 19/12/2022, foi indeferido o recurso hierárquico do despacho supra citado, apresentado pelo Autor, cfr. teor de fls. 607 do Processo Administrativo.
c) A presente ação foi intentada em 22/03/2023, cfr. teor de fls. 1 dos autos.
DE DIREITO
É objecto de recurso o despacho saneador-sentença proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, de acordo com o artigo 277° al. e) do Código de Processo Civil, ex vi artigo 1° do CPTA, uma vez que determinou “nos termos conjugados dos artigos 1.°, 2.°, n.° 2, alínea b), 6.° e 15.° da Lei n.° 38-A/2023, de 02 de Agosto, por efeito da legislada amnistia, a extinção da infração disciplinar sancionada ao Autor pelo ato impugnado e de todos os seus efeitos, com exceção dos já produzidos e que são indestrutíveis”.
O Réu/MF vem interpor recurso apenas na parte referente a”... todos os seus efeitos, com exceção dos já produzidos e que são indestrutíveis”.
Para o efeito aduz:
Conforme decorre da sentença, o Autor foi notificado pessoalmente em 23/07/2021, do despacho da Directora-Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT), que, na sequência de processo disciplinar, relativamente a factos praticados em 2019, lhe aplicou a pena de suspensão, pelo período de 20 dias, suspensa na sua execução pelo período de um ano, por violação dos deveres funcionais de prossecução do interesse público, isenção, imparcialidade e zelo.
Como se pode verificar, os 20 dias de pena de suspensão não foram efectivos, considerando que tal pena teve a sua execução suspensa pelo período de um ano, prazo terminado a 23/07/2022 (um ano após a notificação do acto e antes de o A. ter intentado a presente acção).
Facto que não se alterou, considerando a improcedência da sua impugnação administrativa, ou seja, do recurso hierárquico interposto pelo ora A..
Acontece que, na sequência de requerimento apresentado pelo A., o Tribunal a quo foi do entendimento de que, in casu, seria de aplicar a Lei n.° 38-A/2023, de 02 de Agosto, que determinou “um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude” (cfr. artigo 1.°).
Quanto a esta questão, é certo que, e de acordo com a estatuição do artigo 2°, n.° 2 al. b) do mencionado diploma legal, “Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:
(...)b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º”;”,
Decorrendo do respectivo artigo 6° que: “São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar.”;
Ora, é certo que, cronológica e substantivamente, a situação do A. subsumir-se-á às previsões dos normativos acabados de referir, logo, seria de aplicar aquela lei à situação sub judice.
Andou bem o Tribunal neste segmento.
Por outro lado, para reforçar a aplicação de tal diploma, o Tribunal a quo menciona jurisprudência respeitante a situações de aplicação de regimes de amnistia, naturalmente anteriores, mas que, conforme alegado, não dão resposta plena à questão vertente, principalmente no que concerne aos efeitos da aplicação deste regime.
Assim,
Na decisão ora recorrida consta a seguinte referência:
“E tendo ainda em conta o acórdão do STJ, de 20/01/1993, proferido no processo n.° 003366, disponível em www.dgsi.pt, que decidiu que “Amnistia significa esquecimento, o apagamento dos efeitos jurídicos da infracção.
Trata-se de uma figura oriunda do direito penal. Apesar disso não existe uma conexão necessária entre amnistia e infracção criminal, não podendo afirmar-se actualmente que seja um instituto privativo do direito penal. Desde há muito tempo a amnistia deixou de ser um instituto específico do direito penal, estendendo-se aos direitos sancionatários conexos, como o direito penal e administrativo e ao direito disciplinar.
(...)Como já se referiu, amnistia significa etimologicamente esquecimento. A amnistia actua sobre a própria infracção cometida, eliminando todos os efeitos da infracção. Como lei do esquecimento, a amnistia apaga juridicamente a infracção, destrói os seus efeitos retroactivamente e se não pode destruir aqueles que já se produziram e são indestrutíveis, faz desaparecer todos aqueles cuja acção persiste quando a lei amnistiante se publicou (Cfr. Rev. Leg. Jurisp., ano 58, página 91).”:”
Concluindo “Determina-se, nos termos conjugados dos artigos 1.°, 2.°, n.° 2, alínea b), 6.° e 15.° da Lei n.° 38-A/2023, de 02 de Agosto, por efeito da legislada amnistia, a extinção da infração disciplinar sancionada ao Autor pelo ato impugnado e de todos os seus efeitos, com exceção dos já produzidos e que são indestrutíveis;”.
Acontece que, tem sido entendido e, também mais recentemente (vide sentença proferida no Processo n.° 2242/18.3BELSB, do TAC de Lisboa), que o efeito de apagamento consiste na abolição retroactiva, tendo assim efeito “ex tunc”, e como tal, incidindo não apenas sobre a própria pena, como também sobre o acto criminoso passado, que cai em esquecimento, tido como não praticado e, consequentemente, eliminado do registo criminal.
Este efeito retroactivo, foi igualmente determinante no sentido do acórdão acima mencionado de 1993, ou seja, que a amnistia não destrói os efeitos já produzidos pela aplicação da pena que devem ser averbados no competente processo individual.
Mas ao destruir aqueles que já se produziram e são indestrutíveis, faz desaparecer todos aqueles cuja ação persiste quando a lei amnistiante se publicou.
E estes serão quais? A subsistência dos efeitos já produzidos que não são retroactivamente eliminados.
E a ser assim, não obstante se refira que a amnistia tem efeitos retroactivos e, portanto, “ex tunc”, a realidade é que a destruição retroactiva não abrange todos os efeitos.
Temos, assim, que o Tribunal a quo, restringiu a sua decisão a conclusões vagas, imprecisas, como é o caso de “a extinção da infração disciplinar sancionada ao Autor pelo ato impugnado e de todos os seus efeitos, com exceção dos já produzidos e que são indestrutíveis;”, sem explicar quais são os efeitos indestrutíveis, pelo que o Tribunal deveria ter-se pronunciado sobre os mesmos.
Vejamos ainda,
Prevê o artigo 183º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (LTFP) que, “Considera-se infração disciplinar o comportamento do trabalhador, por ação ou omissão, ainda que meramente culposo, que viole deveres gerais ou especiais inerentes à função que exerce.”.
Por sua vez, o artigo 186º estatui quanto à pena de suspensão, pena aplicada ao ora A.
Por outro lado, determina o artigo 192º as condições da suspensão da sanção disciplinar, nos seguintes termos: “1 - As sanções disciplinares previstas nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 180.º podem ser suspensas quando, atendendo à personalidade do trabalhador, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior à infração e às circunstâncias desta, se conclua que a simples censura do comportamento e a ameaça da sanção disciplinar realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 - O tempo de suspensão da sanção disciplinar não é inferior a seis meses para as sanções disciplinares de repreensão escrita e de multa e a um ano para a sanção disciplinar de suspensão, nem superior a um e dois anos, respetivamente.
3 - Os tempos previstos no número anterior contam-se desde a data da notificação ao trabalhador da respetiva decisão.
4 - A suspensão caduca quando o trabalhador venha a ser, no seu decurso, condenado novamente em processo disciplinar.”
No entanto, não podemos esquecer os efeitos das sanções disciplinares, que são, de acordo com o artigo 182º da LTFP, nomeadamente, e os que agora importam:
“1 - As sanções disciplinares produzem unicamente os efeitos previstos na presente lei. 2 - A sanção de suspensão determina, por tantos dias quantos os da sua duração, o não exercício de funções e a perda das remunerações correspondentes e da contagem do tempo de serviço para antiguidade.
3 - A aplicação da sanção de suspensão não prejudica o direito dos trabalhadores à manutenção, nos termos legais, das prestações do respetivo regime de proteção social.”.
Ora, na situação dos autos, considerando a suspensão da sanção aplicada, o trabalhador, ora A., não esteve inibido de exercer as suas funções, mas terá perdido a remuneração correspondente aos 20 dias de pena de suspensão, decididos pela decisão impugnada.
Assim sendo, se, por um lado, a contagem do tempo de serviço para a antiguidade, depreende-se que será um dos efeitos que podem ser destruídos, por outro lado, interessa saber se o direito ao esquecimento, suprime toda a informação do processo individual do A., por hipótese, fica só a constar que houve processo disciplinar e beneficiou da amnistia prevista na Lei n.º 38-A/2023, aplicada judicialmente,
Se, e igualmente importante, quanto à remuneração respeitante aos 20 dias de suspensão, terão que ser pagos, por efeito da amnistia da sanção.
Importa assim, que o Tribunal concretize a decisão, logo, aprecie as referidas questões de direito, no que concerne aos efeitos produzidos pela aplicação da Lei da amnistia em causa, padecendo a decisão ora recorrida, de insuficiente fundamentação.
Em suma,
Embora o Recorrente não tenha indicado qualquer norma legal para sustentar os vícios que aponta à sentença recorrida, parece o mesmo querer apontar-lhe nulidade, por falta/obscuridade de fundamentação.
O artº 615º do CPC prevê que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão ou, os seus fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Compulsada a decisão recorrida, constata-se que a mesma padece da aludida nulidade, uma vez que não foram devidamente especificados os fundamentos de facto e de direito que conduziram à decisão.
Como é sabido, as causas de nulidade da sentença estão expressamente previstas no artigo 615.º do Código de Processo Civil:

1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões deque não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.

Como sintetizou o Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 22.01.2019, (proc. 19/14.4T8VVD.G1.S1):

“Os vícios da nulidade do acórdão correspondem aos casos de irregularidades que põem em causa a sua autenticidade (falta de assinatura do juiz), ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou ocorra alguma ambiguidade, permitindo duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade), quer pelo uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia).

As nulidades da sentença não se confundem com o erro de julgamento. No primeiro caso está em causa a regularidade formal da decisão, nomeadamente a existência de vícios de formação da decisão (referentes à inteligibilidade, estrutura ou limites) enquanto que no erro de julgamento está em causa o desacerto da sentença quando à realidade factual ou na aplicação do direito.

In casu, está em causa a regularidade formal da decisão.
Importa assim, que o Tribunal concretize a decisão, logo, aprecie as referidas questões de direito, no que concerne aos efeitos produzidos pela aplicação da Lei da amnistia em causa.
Procedem as conclusões das alegações.

DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso, anula-se a decisão no segmento em apreço e determina-se a baixa dos autos ao TAF a quo para os fins supra referenciados.
Sem custas.
Notifique e DN.

Porto, 05/4/2024

Fernanda Brandão
Isabel Jovita
Rogério Martins, Vencido, conforme voto que segue:
VOTO DE VENCIDO.

Voto vencido a posição que fez vencimento pelas seguintes razões:

Os tribunais não são segunda instância administrativa sob pena de violação do princípio da separação de poderes consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.

O objecto da decisão do Tribunal de Primeira Instância não é processo disciplinar em si – a que possa pôr termo por aplicação da Lei da Amnistia ou outra razão qualquer -, mas a decisão punitiva que pode, por exemplo, ter recusado a aplicação da Lei da Amnistia.

A aplicação da Lei da Amnistia em processo disciplinar movido por entidade administrativa, como é o caso, cabe à Administração e não aos Tribunais.

Neste sentido, de resto, dispõe o artigo 14.º da recente Lei da Amnistia (Lei n.º 38-A/2023, de 02.08):

“Nos processos judiciais, a aplicação das medidas previstas na presente lei, consoante os casos, compete ao Ministério Público, ao juiz de instrução criminal ou ao juiz da instância do julgamento ou da condenação.”

Os juízes, em qualquer instância judicial, não são os juízes do “julgamento” da infracção nem da condenação.

E apenas podem aplicar a Amnistia nos processos judiciais, como decorre, a contrario, do citado preceito.

Não podem aplicar a Lei da Amnistia, directamente, nos processos administrativos, disciplinares.

Fazendo-o, violam o princípio constitucional da separação de poderes.

Os artigos 6º e 14º da Lei da Amnistia de 2023, na interpretação que aqui fez vencimento, são inconstitucionais, por violação deste princípio constitucional.

Tal como sustentei no voto de vencido ao acórdão deste Tribunal, de 03.11.2023, no processo 951/23.4 PRT.

Pelo que se impunha, na minha perspectiva, revogar a decisão recorrida e ordenar a baixa dos autos para prosseguirem os seus termos para conhecimento de mérito, nada mais a tal obstando, e não para a apreciar questões relativas à inutilidade superveniente da lide pela aplicação da Lei da Amnistia."

*


Porto, 05.04.2024


Rogério Martins