Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01045/03 - Porto
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/26/2006
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Dr. José Luís Paulo Escudeiro
Descritores:ACTO LESIVO - RECORRIBILIDADE
Sumário:Configura-se como um acto lesivo, e nessa medida susceptível de impugnação contenciosa, o acto que determina a publicação da nova composição do júri do concurso e que ordena a reabertura da possibilidade de apresentação de novas candidaturas, porquanto ao admitir novas candidaturas, veio abrir o concurso a um leque indeterminado de interessados, com manifesto prejuízo das legítimas expectativas dos concorrentes iniciais.
Data de Entrada:02/04/2005
Recorrente:F.
Recorrido 1:Vogal do Conselho de Administração da ARS Norte
Recorrido 2:M.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Recurso Contencioso de Anulação - Rec. Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Negar provimento ao recurso
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do TCAN:
I- RELATÓRIO
F…, residente na Rua ..., Viana do Castelo, inconformado com a decisão do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, datada de 09.DEZ.03, que, por irrecorribilidade do acto, rejeitou o RECURSO CONTENCIOSO DE ANULAÇÃO, que oportunamente interpusera, do despacho do Vogal do Conselho de Administração da ARSN J…, datado de 26.JUN.03, que determinou a publicação da constituição dos novos elementos do júri do concurso interno para provimento do lugar de chefe de divisão de gestão de recursos humanos da Sub-Região de Saúde de Viana do Castelo, cujo aviso de abertura fora publicado no DR 2ª Série de 12.MAR.02, e que ordenou a reabertura da possibilidade de apresentação de novas candidaturas ou a complementação das já apresentadas, durante o prazo de 10 dias úteis, recorreu para o TCAN, formulando as seguintes conclusões:
I) O acto recorrido é um acto destacável, susceptível de impugnação contenciosa;
II) Ao proceder a uma nova constituição do júri – designando para Presidente o próprio autor do acto – reabrindo o possibilidade de apresentação de novas candidaturas ou complementação das já apresentadas, cerca de ano e meio depois da abertura do concurso, representa uma decisão final em relação aos concorrentes já admitidos (2), que passaram a contar com um número indeterminado de concorrentes, designadamente os que não tinham requisitos ou condições para serem admitidos no prazo inicial desse concurso e, por outro lado, compromete irremediavelmente o sentido da decisão final no aspecto considerado;
III) Tal alteração não consubstancia a boa fé que a Administração deve ter ao longo de todo o percurso concursal, por forma a que não se suscite nos candidatos qualquer desconfiança;
IV) O acto contenciosamente impugnado não é um simples trâmite ou preparatório da decisão final, mas é ele próprio autónomo no plano procedimental;
V) O artº 51º do CPTA alargou substancialmente a possibilidade de impugnação de actos susceptíveis de, pelo menos, lesar – como é o caso sub judice – os interesses legítimos dos concorrentes admitidos a um concurso, mesmo que se trate de actos procedimentais; e
VI) A douta sentença, ao considerar o acto recorrido como um acto preparatório ou instrumental e, como tal irrecorrível, violou por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos artºs 268°-4 da CRP e 120º do CPA.
Não houve contra-alegações.
O Dignº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Colhidos os vistos legais, o processo é submetido à Secção do Contencioso Administrativo para julgamento do recurso.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
II-1. Matéria de facto
A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos:
a) Por aviso nº 3565/02, publicado no DR, II Série, nº 60, de 12.MAR, foi aberto concurso, para provimento, em comissão de serviço, do lugar de Chefe de Divisão da Gestão de Recursos Humanos, constante do quadro de pessoal da ARS, Sub-Região de Saúde de Viana do Castelo – Cf. doc. de fls. 6; e
b) Por aviso nº 8334/03, publicado no DR, II Série, nº 179, de 05.AGO, foi publicada a constituição de novos elementos efectivos do Júri do concurso supra mencionado, sendo ainda, reaberta a possibilidade de apresentação de novas candidaturas ou a complementação das já apresentadas, durante o prazo de 10 dias úteis, a contar da data da publicação – Cfr. doc. de fls. 17.
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II-2. Matéria de direito
O Recorrente insurge-se contra a decisão recorrida quer por qualificar o acto impugnado um acto destacável, dotado de autonomia, no plano procedimental, e, nessa medida, susceptível de impugnação contenciosa; quer por entender que, ao proceder a uma nova constituição do júri e reabrir o possibilidade de apresentação de novas candidaturas ou complementação das já apresentadas, representa uma decisão final em relação aos concorrentes já admitidos, que passaram a contar com um número indeterminado de concorrentes, designadamente os que não tinham requisitos ou condições para serem admitidos no prazo inicial desse concurso, comprometendo irremediavelmente o sentido da decisão final nesse aspecto, o que não consubstancia a observância do princípio da boa fé que a Administração deve ter ao longo de todo o percurso concursal, por forma a que não se suscite nos candidatos qualquer desconfiança; sendo certo que, ainda que se entenda tratar-se de acto meramente procedimental, o mesmo sempre seria impugnável por se configurar como susceptível de lesar interesses legítimos dos concorrentes admitidos ao concurso.
A questão central objecto de recurso consiste em saber se o acto que, no âmbito de determinado procedimento concursal, determina a publicação da constituição dos novos elementos do júri do concurso e que ordena a reabertura da possibilidade de apresentação de novas candidaturas ou a complementação das já apresentadas, constitui ou não um acto administrativo recorrível.
Partindo da ideia de que apenas fazia sentido recorrer aos tribunais quando da prática de um acto por parte da Administração Pública resultasse uma ofensa nos direitos e interesses dos particulares, a jurisprudência criou o conceito de acto definitivo e executório.
A partir desse conceito caminhou-se no sentido de encontrar o critério comum que permitisse distinguir os actos definitivos dos actos não definitivos. Foi assim que se encontrou o «acto externo», que excluía relevância jurídica e contenciosa aos actos internos, o «acto final do procedimento», que punha fora do recurso contencioso os actos preparatórios, instrumentais ou intermédios, e o «acto praticado pelo topo da hierarquia», que arredou do recurso contencioso os actos praticados pelos subalternos. Tal apontava para que o critério comum acabasse por conciliar as três vertentes mencionadas, o que foi conseguido através do «princípio da tripla definitividade» (material, horizontal e vertical), construção doutrinária criado pelo Prof. Freitas do Amaral e seguida pela jurisprudência.
Tal doutrina encontra assento no artº 25º da LPTA, ao restringir o recurso contencioso aos actos administrativos definitivos e executórios, qualificando-se os actos administrativos definitivos como sendo aqueles que definem uma determinada situação jurídica (definitividade material), constituam uma resolução final do procedimento administrativo (definitividade horizontal) e sejam praticados por um órgão colocado no topo da estrutura hierárquica da Administração (definitividade vertical) e executórios quando obriguem por si e cuja execução coerciva imediata a lei permite independentemente de sentença judicial - Cfr. neste sentido o Prof. Diogo Freitas do Amaral, in Direito Administrativo, III vol., pp. 205 e segs..
Tal critério, porém, pareceu não dar resposta integral à multiplicidade dos comportamentos da Administração pública. Efectivamente, mau grado essa conceptualização, cedo se começou a admitir recurso contencioso de actos que nela não se integravam, como sejam os «actos destacáveis ou prejudiciais», os «actos provisórios» (v.g. medidas disciplinares preventivas), os «actos de execução», certos «actos preparatórios» (listas de antiguidade), «actos internos», no domínio das chamadas relações especiais de poder ou de tutela, os actos praticados pelos subalternos no exercício de «competência exclusiva», etc., os quais segundo aquele critério não constituíam resoluções finais do procedimento ou que não definiam definitivamente a relação da Administração com os particulares.
Em função disso, quer a doutrina quer a jurisprudência impulsionadas pelos preceitos constitucionais vigentes – Cfr. designadamente o art. 268º da CRP - acabou por abandonar os tradicionais requisitos da definitividade e executoriedade fixando-se no conceito de acto lesivo.
Afinal, o que sempre esteve em causa na garantia do recurso contencioso era assegurar a todo o lesado por um acto administrativo uma via contenciosa de defesa dos seus direitos e interesses legítimos. Daí que o critério da recorribilidade dos actos administrativos tenha que ser aferido em razão dos efeitos produzidos relativamente aos particulares, ou seja em função da sua eficácia e da lesão ou afectação dos direitos dos particulares, colocando-se o assento tónico da questão na problemática da afectação imediata ou não dos direitos dos particulares e relevando para efeitos de recurso contencioso a distinção entre os actos praticados no decurso do procedimento dotados de eficácia externa lesiva própria dos actos de tramitação a que falta o carácter lesivo e fixando-se como critério de recorribilidade a lesão actual e imediata.
(Cfr. neste sentido, entre outros os Acs. do STA de 14.JUL.93, 16.FEV.94, 09.FEV.95 e 19.FEV.98, in AD nºs 390/723, 400/384, 409/512 e 444/1531).
Perante tal conceptualismo, perguntar-se-á então, se o despacho do Vogal do Conselho de Administração da ARSN J…, datado de 26.JUN.03, que determinou a publicação da constituição dos novos elementos do júri do concurso interno para provimento do lugar de chefe de divisão de gestão de recursos humanos da Sub-Região de Saúde de Viana do Castelo, cujo aviso de abertura fora publicado no DR 2ª Série de 12.MAR.02, e que ordenou a reabertura da possibilidade de apresentação de novas candidaturas ou a complementação das já apresentadas, durante o prazo de 10 dias úteis, é ou não imediatamente lesivo dos direitos e interesses dos candidatos.
Ao reabrir a possibilidade de apresentação de novas candidaturas, o acto impugnado veio abrir o concurso a um leque indeterminado de candidatos, com prejuízo das legítimas expectativas dos concorrentes iniciais, afectando a posição jurídica destes e, se é certo que, não havia quanto a estes direitos e interesses consolidados no procedimento, em termos de garantir o provimento nas vagas para que ele foi aberto, o acto que reabre a possibilidade de apresentação de novas candidaturas, ao permitir a multiplicidade indefinida de candidaturas com relação às apresentadas anteriormente reduz as expectativas criadas nos candidatos iniciais quanto à sua eventual nomeação.
Deste modo a prolacção do acto impugnado consubstancia uma revogação implícita do acto de admissão dos candidatos operada anteriormente, configurando-se esta como um acto constitutivo de direitos relativamente aos candidatos admitidos.
Ora, assumindo o acto recorrido, traduzido na publicação da constituição de novos elementos do júri e na reabertura da possibilidade de apresentação de novas candidaturas, a natureza revogatória de um anterior acto constitutivo de direitos, o mesmo apresenta-se como imediatamente lesivo, porquanto o anterior acto de admissão de candidatos assegurava a estes o direito de serem eles os únicos a integrarem o procedimento concursal (cfr. neste sentido, entre outros, o Ac. STA de 31.MAI.94, in Rec. 37 074).
É certo que, ao alterar a constituição do júri do concurso e ao reabrir a possibilidade de apresentação de novas candidaturas ou a complementação das já apresentadas, o órgão com competência para tomar decisão final no procedimento fez recuar o procedimento concursal à fase inicial, ficando assente para os candidatos que o procedimento regressava a um estádio anterior, sendo certo que isso significa também que ainda não existe a resolução final que defina a posição de cada um dos candidatos. Nessa perspectiva, no interior do procedimento a decisão que procede à constituição de novos elementos do júri e que faz reabrir a possibilidade de apresentação de novas candidaturas, apresenta-se com um acto praticado no decurso de um procedimento não constituindo uma resolução final.
A qualificação do acto de revogação de actos procedimentais com acto intermédio preparatório da decisão final não implica, porém, com a noção de recorribilidade.
É que com as alterações legislativas constantes do CPA e da CRP, os conceitos quer de acto administrativo quer da sua recorribilidade contenciosa mudaram passando aquele a ter a definição do artº 120º do CPA e assentando esta na noção de lesividade, de acordo com a estatuição do artº 268º-4 da CRP.
Assim, por um lado, consideram-se actos administrativos todas as decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visam produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta e, por outro lado, a noção de recorribilidade do acto administrativo passou a plasmar-se sobre o conceito de lesividade.
Deste modo, são contenciosamente recorríveis, todos os actos administrativos, sejam preparatórios ou constituam resoluções finais do procedimento sejam internos ou externos, constituam decisões provisórias ou definitivas, desde que consubstanciem lesão de direitos ou interesses legítimos dos particulares, tudo isto em ordem a um cabal cumprimento do princípio da plenitude e efectividade da protecção dos particulares perante a Administração – Cfr. neste sentido o artº 268º-4 da CRP e Vasco Pereira da Silva, in “Em Busca do Acto Administrativo Perdido”.
Com efeito a revisão constitucional de 1989 determinou um importante alargamento da recorribilidade, ao introduzir o direito de recurso contencioso contra quais quer actos administrativos lesivos de direitos dos particulares.
Doravante, todos os actos administrativos, isto é quaisquer medidas emanadas de órgãos da Administração Pública, no domínio do direito público, visando a produção de efeitos jurídicos individuais e concretos são susceptíveis de impugnação contenciosa, na medida em que sejam lesivos de direitos dos particulares – Cfr. artºs 120º do CPA e 268º-4 da CRP.
No caso sub judice, o acto que determina a publicação da constituição de novos elementos do júri e a reabertura da possibilidade de apresentação de novas candidaturas, embora não constitua a resolução final do procedimento, configurando-se antes como um acto intermédio e preparatório, na medida em que, com relação aos candidatos admitidos ao concurso, anteriormente à sua prolacção, configura uma séria diminuição das expectativas de virem a ser providos no lugar posto a concurso perante a possibilidade de concorrência com uma multiplicidade de novos candidatos, apresenta aptidão de lesividade imediata e actual, afectando, nessa medida, a posição jurídica dos candidatos primeiramente admitidos, sendo, nessa medida, susceptível de recurso contencioso.
Assim, o despacho do Vogal do Conselho de Administração da ARSN J…, datado de 26.JUN.03, que determinou a publicação da constituição dos novos elementos do júri do concurso interno para provimento do lugar de chefe de divisão de gestão de recursos humanos da Sub-Região de Saúde de Viana do Castelo, cujo aviso de abertura fora publicado no DR 2ª Série de 12.MAR.02, e que ordenou a reabertura da possibilidade de apresentação de novas candidaturas ou a complementação das já apresentadas, dotado de lesividade actual, é, em função disso, impugnável contenciosamente, independentemente de o ser também a resolução final a prolatar do procedimento concursal.
E configurando-se como recorrível o acto impugnado, em razão da sua lesividade, impõe-se a revogação da decisão judicial, objecto do presente recurso jurisdicional.
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III- CONCLUSÃO
Termos em que acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do TCAN em julgar o seguinte:
a) Dar provimento ao recurso jurisdicional e revogar a decisão impugnada; e
b) Ordenar a baixa do processo à primeira instância para ulterior tramitação processual.
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Sem custas.
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Porto, 2006-01-26