Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00442/13.1BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/23/2015
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Esperança Mealha
Descritores:ILEGITIMIDADE PASSIVA;
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Sumário:I – No contencioso administrativo a ilegitimidade passiva constitui um fundamento que “obsta ao prosseguimento do processo” e que dá lugar à aplicação do regime dos artigos 88.º e 89.º do CPTA.
III – Num caso em que a petição inicial revela uma antinomia entre a entidade pública indicada como réu e a entidade pública identificada como sujeito da relação material controvertida, é de proferir despacho a convidar o autor a aperfeiçoar a petição quanto à identificação da entidade pública que pretende demandar.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:JPR
Recorrido 1:Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social
Votação:Maioria
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
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Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte
1. Relatório
JPR interpõe recurso jurisdicional do despacho saneador, proferido pelo TAF de Penafiel, que julgou procedente a exceção de ilegitimidade passiva e, em consequência, absolveu da instância o Réu MINISTÉRIO DA SOLIDARIEDADE, EMPREGO E SEGURANÇA SOCIAL.
O Recorrente conclui as suas alegações como se segue:
1-) O despacho de saneador-sentença, que julgou procedente a exceção de ilegitimidade e absolveu o Réu da instância é ilegal por violação do disposto no artº.7 e no artº.88 nº2 do CPTA;
2-) Nos termos dos normativos legais supra referidos, previamente ao despacho saneador, o meritíssimo juiz “a quo”, deveria ter proferido despacho de aperfeiçoamento, convidando o Recorrente a proceder ao suprimento da exceção;
3-) Nestes termos e nos mais de Direito, que V. Exª.s douta e superiormente suprirão, deve o presente recurso ser julgado provido e em consequência ser revogado o douto despacho saneador-sentença e substituído por um despacho de aperfeiçoamento, como é de Direito e de Justiça.
O Recorrido não contra-alegou.
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2. Objeto do recurso
Na delimitação da questão a decidir importa ter presente que o Recorrente aceita a conclusão da decisão recorrida quanto à ilegitimidade do réu Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, admitindo que a parte legítima na presente ação administrativa especial é o Fundo de Garantia Salarial.
A questão colocada pelo Recorrente – a única a decidir no presente recurso – é a de saber se o despacho saneador recorrido violou o disposto nos artigos 7.º e 88.º/2 do CPTA, ao ter considerado verificada a ilegitimidade do Réu Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social e, em consequência, ter absolvido o R. da instância, sem previamente ter convidado o autor ao aperfeiçoamento da petição, com vista ao suprimento dessa exceção.
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3. Direito
3.1. O despacho saneador recorrido julgou verificada a ilegitimidade do Réu com a seguinte fundamentação:
JPR, Autor devidamente identificado nos presentes autos, intentou a presente acção administrativa especial contra o MINISTÉRIO DA SOLIDARIEDADE, EMPREGO E SEGURANÇA SOCIAL, com os demais sinais constantes nos autos, tendo formulado os seguintes pedidos:
a) Ser o Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, através do Fundo de Garantia Salarial, condenado a deferir na íntegra o requerimento referido no artº 1 deste articulado e a pagar ao Autor a quantia de 4.932,39€;
b) Ser o Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, através do Fundo de Garantia Salarial, condenado a pagar a sanção pecuniária compensatória, no montante diário de 10% do salário mínimo nacional em caso de incumprimento da sentença
Alega para tanto que: Em 12.04.2011 entregou na Segurança Social requerimento para pagamento de créditos emergentes de contrato de trabalho – Fundo de Garantia Salarial onde solicitava o pagamento de € 5.275,13 € e que por despacho do Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial foi o seu pedido deferido parcialmente, tendo sido notificado para exercer direito de audição prévia.
Refere que apesar de ter reclamado só lhe foi deferido o pagamento parcial (€ 1.396,50) com o que discorda.
Salienta que o Fundo de Garantia Salarial assegura, em caso de incumprimento do empregador, ao trabalhador, o pagamento dos créditos emergentes da cessação do contrato de trabalho (art. 317º do RCT) quando o empregador é insolvente (art. 318º RCT).
Argumenta ainda que “com a presente acção, o Autor pretende que o Fundo de Garantia Salarial pague ao Autor a quantia de 4.932,39€, reconhecida no processo de insolvência”
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Citado veio o Réu Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social oferecer a Contestação, onde se defende por excepção, alegando a sua ilegitimidade passiva e por impugnação, concluindo pela improcedência da acção – Cfr. fls. 21 a 23 dos autos.
No que tange à matéria de excepção, defende o Réu que em lado nenhum da PI lhe é imputada a prática de qualquer acto, designadamente do acto impugnado, não referindo como é o Réu parte na relação material controvertida ou como chega a concluir que é parte.
Salienta ainda que não vai invocado um qualquer interesse contraposto por parte do MSESS.
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O Autor foi notificado para se pronunciar sobre a ilegitimidade passiva alegada, tendo em conta o estatuído no artigo 87º nº 1 al. a) do CPTA, e nada veio dizer – Cfr. fls. 41 e seguintes dos autos.
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O Tribunal é competente em razão da matéria, hierarquia e território.
O processo é o próprio e Inexistem nulidades que o invalidem.
As partes são dotadas de personalidade, capacidade judiciária e estão devidamente representadas em juízo.
O Autor é parte legítima.
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DA ILEGITIMIDADE PASSIVA DO RÉU:
Consoante se adiantou, defende o Réu que é parte ilegítima para a presente demanda, sustentando que nenhum interesse contraposto tem na demanda e que não praticou nenhum acto de modo a concluir-se pela sua legitimidade.
O Autor nada disse.
Vejamos.
O Autor, consoante se adiantou, assenta a sua pretensão no facto de discordar, desde logo com o deferimento parcial efectuado quanto aos montantes que pretende ver atribuídos pelo Fundo de Garantia Salarial.
Defende que reclamou do deferimento parcial e que ainda assim foi mantido por acto do Presidente do Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial.
Enuncia o Autor, ao longo da sua peça processual que é o Fundo de Garantia Salarial quem assegura, em caso de incumprimento do empregador, o pagamento dos créditos emergentes da cessação do contrato de trabalho, quando o empregador é insolvente, enunciando os normativos legais (art. 317 e 318º RCT).
Salienta ainda o Autor na sua PI, consoante supra se disse, que “com a presente acção, o Autor pretende que o Fundo de Garantia Salarial pague ao Autor a quantia de 4.932,39€, reconhecida no processo de insolvência”
Assim sendo, sendo o acto praticado que pretende ver removido da ordem jurídica do Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial e pretendendo que aquele Fundo de Garantia Salarial seja condenado no pagamento da quantia que entende devida, afigurasse-nos que, até aqui, a razão acompanha o Réu quando refere que não é seu o interesse contraposto ao do Autor e bem assim que o acto não foi por si praticado, mas pelo Fundo de Garantia Salarial. E, diremos nós, o deferimento que pretende ver praticado é dirigido ao Fundo de Garantia Salarial, consoante vai referindo ao longo da sua PI.
De resto, de acordo com o artigo 1º do Regulamento do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto Lei nº 139/2001 de 24.04, o Fundo de Garantia Salarial é dotado de personalidade jurídica e autonomia administrativa, patrimonial e financeira, competindo ao seu presidente, entre o mais “Assegurar a representação do Fundo em juízo ou fora dele, bem como conferir mandato para o efeito”, consoante preceitua o art. 9º nº 1 do mesmo diploma legal.
Ora, tendo em conta que a legitimidade deve ser aferida em função da forma como foi desenhada na PI, à luz do estatuído no artigo 10º nº 1 do CPTA (1ª parte) e 30º do CPC, face ao que fica dito, temos que, o Réu é parte ilegítima para a presente acção, sendo que, o sucesso ou insucesso a que a mesma está votada é - lhe indiferente, uma vez que, no seguimento da parte final do artigo 10º nº 1 do CPTA não tem, quanto a nós, um interesse contraposto ao da Autora, ao contrário daquilo que sucederia com o identificado Fundo de Garantia Salarial contra quem o Autor deveria, de facto, dirigir a sua pretensão.
Por conseguinte, bom de ver está que não é, efectivamente, o Réu parte legítima na presente demanda.
Não obstante o que vai dito, apesar de se referir ao Fundo de Garantia Salarial ao longo da PI, certo é que não é contra o mesmo que a acção foi intentada, sendo certo que, a excepção da ilegitimidade passiva em análise não é suprível o que determina o não conhecimento do mérito e a consequente absolvição do Réu MINISTÉRIO DA SOLIDARIEDADE, EMPREGO E SEGURANÇA SOCIAL, da instância – Cfr. artigos 577º nº 1 e), 576º nº 1, 578º, 277º nº 1 d) CPC, ex vi artigo 1º CPTA.
O Recorrente insurge-se contra esta decisão, invocando que a mesma viola o disposto nos artigos 7.º e 88.º/2 do CPTA, uma vez que, previamente à emissão do despacho saneador, o tribunal a quo devia ter proferido despacho de aperfeiçoamento, convidando o autor a suprir a exceção de ilegitimidade e a corrigir a petição. Mais salienta que instaurou a presente ação administrativa especial contra o R. Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, pedindo a sua condenação, através do Fundo de Garantia Salarial, a deferir o requerimento para Pagamento de Créditos Emergentes do Contrato de Trabalho.
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3.2. A legitimidade é um pressuposto processual através do qual se expressa a relação entre a parte e o concreto objeto de uma ação (não é um atributo do sujeito, em si mesmo, mas antes uma qualidade desse sujeito em relação a uma determinada ação com um certo objecto). Nos termos dos artigos 577.º/e) e 578.º do CPC/2013, a ilegitimidade, enquanto exceção dilatória, obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância. Neste quadro legal, tem sido entendimento generalizado que, ao contrário do que sucede com a legitimidade plural (litisconsórcio necessário ativo ou passivo), em que a exceção é sempre suprível, nos casos de ilegitimidade singular ativa ou passiva, a exceção é insuprível, por força do disposto nos artigos 288.º/1-d) e 493.º/2 do CPC, correspondentes aos atuais artigos 278.º/1-d) e 576.º/2 do CPC/2013 (v. neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos do TRLx, de 14.12.2004, P. 6921/2004-4; e do TRE, de 22.09.2010, P. 555/2002.E1).
Foi precisamente com base neste regime do processo civil, aplicado subsidiariamente por força do artigo 1.º do CPTA, que o tribunal a quo julgou verificada a ilegitimidade do R. e determinou, em consequência, a sua absolvição da instância.
Acontece que as regras do processo civil em matéria de ilegitimidade (passiva) não podem ser transpostas, sem mais, para o processo administrativo.
Por um lado, porque o disposto na lei de processo civil apenas é aplicável supletivamente ao processo nos tribunais administrativos (artigo 1.º do CPTA) e a ação administrativa especial (como é o caso da presente) segue a tramitação regulada no Capítulo III do Título III CPTA, pelo que importa primeiro apurar se no CPTA existem regras próprias que regulem diretamente a questão em apreço, o que, diga-se desde já, assim acontece.
Por outro lado, porque a relação entre a parte e o objeto do processo (em que se traduz a legitimidade) assume, no caso das entidades públicas demandadas (legitimidade passiva), contornos diversos dos que estão subjacentes ao regime da ilegitimidade no processo civil: enquanto que no mundo das pessoas jurídicas privadas (singulares ou coletivas) a regra é a total separação das esferas jurídicas, correspondentes a distintos (e inconfundíveis) centros de imputação de direitos e deveres, já no universo das pessoas coletivas públicas predomina a complexidade da organização administrativa: não é raro que no âmbito do mesmo departamento do Estado (Ministério) proliferem entidades com competências próximas e interligadas, algumas dotadas de personalidade jurídica outras constituindo meros órgãos ou entes não personificados; e é frequente que numa mesma relação material controvertida intervenham várias entidades públicas, com ou sem personalidade jurídica, mas todas com personalidade judiciária (que, para além de coincidir com a personalidade jurídica pública é também extensiva a entes sem personalidade, como os ministérios ou os órgãos administrativos). Por isso mesmo, a par de um conjunto de regras relativas à identificação da entidade pública que deve ser demandada nas ações que têm por objeto “ação ou omissão de uma entidade pública” (constantes do artigo 10.º), o CPTA consagrou um regime que em certa medida é de tolerância ao erro na identificação entidade pública demandada, tornando irrelevantes (desprovidos de consequências) os erros que se traduzem em demandar o órgão administrativo em vez de demandar o ministério ou a pessoa coletiva a que pertence o órgão ou em intentar a ação contra órgão diverso, mas pertencente à mesma pessoa coletiva pública (cfr. artigos 10.º/4, 11.º/5, 78.º/2-e)/3, 81.º/2/3 do CPTA).
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3.3. Sem prejuízo deste regime particular, permanecem casos de ilegitimidade passiva, em sentido próprio, nomeadamente aqueles em que é demandada uma pessoa coletiva pública diversa daquela em cujo âmbito foi praticado o ato ou omissão ou em que se indique um órgão pertencente a uma pessoa coletiva que não é a titular da relação material controvertida.
De acordo com o artigo 89.º/1-d) CPTA, a ilegitimidade passiva constitui um fundamento que “obsta ao prosseguimento do processo” e que dá lugar à aplicação do regime dos artigos 88.º e 89.º do CPTA.
Nos termos do disposto no artigo 88.º/2, quando a correção oficiosa não seja possível, incumbe ao juiz proferir “despacho de aperfeiçoamento destinado a providenciar o suprimento de exceções dilatórias e a convidar a parte a corrigir as irregularidades do articulado”. Ainda de acordo com o artigo 89.º/2, a absolvição da instância sem prévia emissão de despacho de aperfeiçoamento não impede o autor de, no prazo de 15 dias, apresentar nova petição, com observância das prescrições em falta, a qual se considera apresentada na data em que o tinha sido a primeiro, para efeitos da tempestividade da sua apresentação. Só no caso de incumprimento do despacho de aperfeiçoamento, e consequente absolvição da instância com esse fundamento, é que o autor fica sem possibilidade de substituição da petição (artigo 88.º/4 aplicável por força do artigo 89.º/4 do CPTA).
Ora, à luz deste regime e, nomeadamente, das normas conjugadas dos artigos 88.º/1/2 e 89.º/4 do CPTA não pode afirmar-se, sem mais, que no contencioso administrativo a ilegitimidade (singular) do demandado é insanável e que tem sempre como consequência necessária a sua absolvição da instância. Pelo menos no caso a seguir referido, o juiz deve previamente exercer o seu poder/dever de convidar ao aperfeiçoamento da petição.
É certo que, quando ocorra absolvição da instância sem prévia emissão de despacho de aperfeiçoamento, o autor tem a faculdade de, no prazo de 15 dias, apresentar nova petição, a qual se considera apresentada na data em que tinha sido a primeira (artigo 89.º/2). Contudo, por força dos princípios da promoção do acesso à justiça (in dubio pro actione), do aproveitamento dos atos e da economia processual, justifica-se convidar ao aperfeiçoamento da petição quando, nomeadamente, o único erro verificado respeite à identificação da entidade pública demandada. Embora a sanação desse obstáculo obrigue à repetição do ato de citação, não deixa de constituir a mesma pretensão, com o mesmo pedido e causa de pedir, permitindo o aproveitamento da petição inicial com a correção do demandado e permitindo aproveitar os atos de distribuição e de autuação do processo.
Em suma, no caso, porque a única irregularidade que a petição inicial apresenta consiste numa errada identificação do réu que, de acordo com os factos nela alegados, devia ser a pessoa coletiva Fundo de Garantia Salarial e não o Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, que tutela e superintende àquele Fundo, é de proferir despacho a convidar o autor a aperfeiçoar a petição quanto à identificação da entidade pública demandada.
O entendimento acima exposto não é novo, nem está isolado.
Igualmente versando situações de errada identificação da entidade pública demandada, alguma jurisprudência tem entendido, ainda que sem uniformidade, que tal obstáculo é suprível e que o tribunal deve proferir despacho que convide ao aperfeiçoamento da petição – v., entre outros, os Acórdãos do TCAN, de 25.05.2012, P. 01505/09.3BEBRG; e de 28.02.2014, P. 01788/09.9BEBRG; e os Acórdãos do TCAS, de 08.05.2008, P. 01509/06; e de 22.04.2010, P. 05901/10.
Também a doutrina se tem pronunciado no sentido de a ilegitimidade do demandado (artigo 89.º/1-d) do CPTA) dar lugar à aplicação do regime dos artigos 88.º e 89.º do CPTA (Mário Esteves de Oliveira/ Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, I, 2004, 170); e constituir situação passível de suprimento ou correção através de convite ao aperfeiçoamento (Mário Aroso de Almeida/ Carlos Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª ed., 2007, 529).
Neste quadro legal, assim interpretado, impunha-se ao tribunal a quo que, previamente à decisão de absolvição da instância, tivesse convidado o autor a suprir esse obstáculo, apresentando nova petição inicial dirigida ao Fundo de Garantia Salarial.
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3.4. Mas independentemente da posição que adotemos acerca da (im)possibilidade de suprir a ilegitimidade (ou a falta de personalidade judiciária) da entidade pública demandada, a verdade é que o caso em apreço apresenta contornos que impunham, também por outras razões, que previamente à decisão de absolvição da instância, o autor tivesse sido convidado a aperfeiçoar a petição inicial.
Se atentarmos no teor da petição inicial que foi apresentada e no contexto que está subjacente ao erro cometido na identificação da entidade pública demanda, concluiremos que este caso é bem ilustrativo, não apenas da dificuldade nessa correta identificação, como da desadequação de a sancionar com a absolvição da instância, sem prévio convite ao aperfeiçoamento.
Retira-se do teor da petição inicial que a ação visa a condenação do réu a deferir, na íntegra, o requerimento que o A. entregou, num Serviço Local da Segurança Social, mediante o preenchimento de um formulário (modelo GS001), com o cabeçalho da “Segurança Social – Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP” e intitulado “Requerimento – Pagamento de Créditos Emergentes do Contrato de Trabalho – Fundo de Garantia Salarial”, no qual foi aposto um carimbo do Instituto da Segurança Social, IP – Centro Distrital do Porto, Serviço Local de Baião (doc. fls. 7 dos autos).
O referido requerimento foi objeto de despacho do Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Social (que deferiu parcialmente o pedido), despacho esse cujo teor foi notificado ao autor, não diretamente, mas por informação constante do ofício de 06.05.2013, impresso em papel timbrado da Segurança Social/Instituto da Segurança Social, IP, Centro Distrital do Porto, e assinado pelo Diretor da Segurança Social.
No cabeçalho da petição, o A. indica como réu o referido Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social (MSESS) e termina pedindo a condenação do Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, “através do Fundo de Garantia Salarial”, a deferir na íntegra o referido requerimento. Também no artigo 16.º da petição, o autor afirma que “pretende que o Fundo de Garantia Salarial pague ao Autor a quantia de 4.932,39€ reconhecida no processo de insolvência”.
Ou seja, lida a petição inicial, verifica-se que há uma certa antinomia entre os termos em que é exposta a relação material controvertida e o réu que é identificado no introito da petição, bem como entre a identificação do referido Réu e os termos em que, a final, é formulado o pedido. Pois, embora identificando como Réu o MSESS, o Autor não deixa de indicar o Fundo de Garantia Salarial como responsável pelo pagamento que decorrerá do deferimento do requerimento em causa e termina pedindo a condenação do Réu, “através do referido Fundo”.
Essa antinomia é de certo modo explicável pela complexidade da organização administrativa, a que já aludimos, e que está bem ilustrada no caso em apreço: quer no modelo de requerimento através do qual o autor fez o pedido, quer no ofício que o notificou da decisão de deferimento parcial, surgem interligadas as várias entidades administrativas acima mencionadas.
Além disso, no caso vertente, a ilegitimidade passiva do Ministério é algo não necessário e até certo ponto acidental. O Fundo de Garantia Salarial insere-se na esfera de influência e no âmbito de atribuições do referido Ministério, contudo, foi configurado como um instituto com personalidade jurídica, ficando sob a tutela e superintendência ministerial (artigos 1.º e 4.º do Regulamento do Fundo de Garantia Salarial, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 139/2001, de 24 de abril). Por isso, nos termos do artigo 10.º/2 do CPTA, a ação tem que ser intentada contra o Fundo de Garantia Salarial, por se tratar de pessoa coletiva pública distinta do Estado. Mas o objeto da ação não é estranho à esfera de atribuições do Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social e, na verdade, caso o legislador não tivesse entendido atribuir personalidade jurídica ao referido Fundo, o mesmo constituiria ente público não personificado, sempre sob a égide do referido Ministério e, consequentemente, seria este ministério a parte legítima na ação (cfr. o mesmo artigo 10.º/2 do CPTA). Resta dizer que a atribuição de personalidade judiciária a entes públicos carateriza-se por um certo grau de instabilidade e precariedade, que agravam a referida dificuldade na identificação da entidade pública demandada (veja-se o caso exemplar dos Centros de Saúde, que, como salientado no Acórdão TCAN, 17.1.2008, P. 00425/06.8BEBRG, tiveram personalidade jurídica entre 1999 e 2004, deixaram de a ter em 2004 e 2005 e voltaram depois a ser entes personificados – cfr. os Decretos-Lei n.ºs 157/99, 60/2003 e 88/2005).
O circunstancialismo descrito revela que o ónus de identificação do demandado, a cargo do autor, é significativamente dificultado pela complexidade da organização administrativa, nem sempre permitindo à parte e seu mandatário judicial, mesmo quando tenham usado da diligência normal, proceder a essa correta identificação. Também por esta razão, deve intervir o princípio do favorecimento do processo, sancionando o entendimento acima enunciado, quando à possibilidade de reparação do erro na identificação da entidade demandada (ilegitimidade passiva).
Mas além disso, os termos da própria petição inicial suscitam dúvidas quanto à identificação da entidade pública que o autor, de facto, pretendia demandar: embora o réu indicado no cabeçalho da petição seja o Ministério, ao longo do articulado e na formulação do pedido, o autor acaba por indicar o Fundo de Garantia Salarial (e não o Ministério) como o responsável pela satisfação da pretensão deduzida.
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3.5. Por todas estas razões, conclui-se que no caso em apreço, verificada a ilegitimidade do Ministério – ou, mais rigorosamente, a sua errada indicação como réu na ação face aos termos em que foi apresentada a relação material controvertida – o tribunal a quo devia ter convidado o autor a aperfeiçoar a petição inicial, no que respeita à identificação da entidade pública demandada. Não o tendo feito, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 7.º, 88.º e 89.º do CPTA.
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V. Decisão
Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e em revogar o despacho saneador recorrido, determinando a sua substituição por despacho que declare nula a citação já efetuada e convide o autor ao aperfeiçoamento da petição, quanto à identificação da entidade pública demandada, seguindo-se os demais termos do processo, se a tanto nada mais obstar.
Sem custas.

Porto, 23.01.2015
Ass.: Esperança Mealha
Ass.: Rogério Martins
Ass.: Luís Migueis Garcia – vencido quanto à questão do suprimento da ilegitimidade activa singular.