Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00173/04.3BEMDL
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/27/2010
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Drº Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro
Descritores:PENA DISCIPLINAR
RECURSO TUTELAR NECESSÁRIO
NOTIFICAÇÃO INSUFICIENTE
INFRACÇÃO DISCIPLINAR CONTINUADA.
Sumário:1. A impugnação das penas disciplinares que não sejam da competência exclusiva do membro do governo é sempre uma impugnação necessária, seja no âmbito das relações intra-orgânicas, seja no âmbito das relações inter-orgânicas.
2. A notificação omissa quanto aos meios de defesa não configura uma situação de insuficiência relativa, suprível através do requerimento de notificação previsto no nº 2 do artigo 60º, sendo antes abrangida pelas situações de inoponibilidade previstas no nº 4 do mesmo artigo.
3. Se já estiver em curso a acção de impugnação quando se constate o incumprimento da alínea c) do nº 1 do artigo 68º do CPA deverá admitir-se a continuação da acção judicial.
4. Por analogia com o que se passa no direito criminal, a infracção permanente prescreve desde o dia em que cessa a consumação e a infracção continuada prescreve desde o dia da prática do último acto infraccional*
* Sumário elaborado pelo Relator
Data de Entrada:06/01/2009
Recorrente:Instituto da Segurança Social, IP
Recorrido 1:C...
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Negado provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, no Tribunal Central Administrativo Norte:
1 – O Instituto da Segurança Social, IP (ISS, IP), interpõe recurso jurisdicional da sentença proferida em 27/01/2009 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, que julgou procedente a acção administrativa especial interposta por C…, com fundamento na prescrição do procedimento disciplinar que lhe havia sido instaurado.
Nas alegações, concluiu o seguinte:
1. O prazo prescricional invocado na decisão da qual se recorre só começou a contar a partir de Maio de 2002.
2. A Autora ora recorrida esteve no exercício do cargo dirigente até 18 de Julho de 2002, nunca fez cessar o dito contrato de avença, mantendo e promovendo a sua renovação anual a 27 de Julho de cada ano.
3. A recorrente como dirigente permitiu até 18 de Julho de 2002, que mensalmente o Engenheiro por si duplamente contratado recebesse verbas do Estado duas vezes pelo mesmo trabalho, ou seja, pela Empresa da qual era sócio e em nome próprio.
4. Situação que foi projectada e concretizada pela arguida e mantida pela mesma ao longo de mais de dois anos.
5. São estas as regras de prescrição dos factos continuados vigentes no âmbito do direito penal (cfr. alínea b) do n.° 2 do artigo 119.° do Código Penal), supletivamente aplicáveis ao direito disciplinar por via do disposto no artigo 9.° do Estatuto Disciplinar.
6. Inexiste acto administrativo susceptível de impugnação.
7. A ilegitimidade passiva do ISS, I.P
8. O ISS, I.P, não tem competência para emitir a decisão definitiva.
9. Pelo que, não sendo o acto impugnado recorrível contenciosamente, a acção carecia de objecto e como tal deveria ter sido ser rejeitada, determinando-se a inutilidade superveniente da lide, com a consequente absolvição da instância, não tendo assim sucedido, encontra-se a decisão inquinada por vício de violação de lei, devendo como tal ser declarada nula ou substituída por outra que determine esta consequência;
A recorrida contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:

1 - O processo de inquérito foi instaurado por despacho de 26 de Agosto de 2002, donde resulta que, na data em que foi instaurado o processo de inquérito, havia já prescrito o poder de instaurar procedimento disciplinar, por já ter decorrido mais de três anos sobre os alegados factos, nos termos do disposto no n.º 1, do artigo 4.° do Estatuto Disciplinar.
2 - A existir ilegalidade na celebração do contrato de avença, não existe dúvida que a mesma terá sido alegadamente cometida em 27 de Julho de 1998. O que torna incontornável a prescrição do procedimento disciplinar na data de instauração do inquérito.
3 – A recorrida foi punida por não ter feito cessar um contrato que nunca foi considerado ilegal e que se manteve após a cessação das suas funções sem que a IGS desse indicações para o seu término.
4 - Os superiores hierárquicos da recorrida não só tinham conhecimento de todos os actos que lhe foram imputados, como sempre os ratificaram ou concordaram com os mesmos. Este conhecimento por parte dos superiores hierárquicos da recorrida origina a prescrição do procedimento disciplinar quanto aos referidos factos, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 4.° do Estatuto Disciplinar.
5 - A prova efectuada em sede de procedimento disciplinar era suficiente para que a acusação fosse arquivada quanto a estes factos, por prescrição do poder punitivo ou, até, por falta de infracção disciplinar imputável à ora recorrida porque os seus superiores hierárquicos conheciam e concordavam com a sua actuação.
6 - A fundamentação apresentada pelo recorrente em relação a estas duas situações de prescrição é feita em violação do artigo 4.° do Estatuto e por isso o acto impugnado encontra-se ferido do vício de violação de lei.
7 - O recorrente é um instituto público dotado de autonomia financeira, administrativa e jurídica. Tal significa que entre o recorrente e o Governo da República apenas existe uma relação de tutela e nunca uma relação de hierarquia, sendo por isso impossível aplicar ao recorrente o disposto no n.º 8 do artigo 75.° do Estatuto Disciplinar (Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro), ou seja, recorrer necessariamente para a entidade tutelar.
8 - É falso que o Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro se trate de um diploma legislativo especial. Trata-se, sim, de um diploma que estabelece o regime disciplinar geral a que se encontram obrigados os funcionários públicos. Não se encontrando qualquer razão para se lhe atribuir características de lei especial.
9 - Não existe justificação para a manutenção do n.º 8 do artigo 75.º do Estatuto Disciplinar. Isto porque, no regime anterior à entrada em vigor da reforma do contencioso administrativo, para que se pudesse utilizar a via judicial de impugnação de actos administrativos era exigível a existência de um acto administrativo definitivo e executório. Com a entrada em vigor do Código de Processo nos Tribunais Administrativos este paradigma foi alterado, passando a ser exigível a existência de um acto lesivo.
10 - O recorrente age de má-fé ao defender que o acto que aplicou a sanção disciplinar à recorrida não é susceptível recurso contencioso, já que não cumpriu a obrigação estatuída na alínea c) do n.º 1 do artigo 68.° do Código do Procedimento Administrativo, de incluir na notificação do referido acto a indicação da entidade competente para apreciar o recurso hierárquico e o prazo em que este deveria ter sido interposto.
11 - A conduta do recorrente nos presentes autos configura uma situação de "venire contra factum proprium ", consubstanciada numa actuação contrária aos princípios da boa-fé. O recorrente ao não indicar qual a entidade competente para apreciar o recurso hierárquico tornou claro que tal acto era susceptível de impugnação judicial.
O Ministério Público junto deste tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do artº 146º, nº1 do CPTA não se pronunciou.
2. O aresto recorrido deu como provado os seguintes factos:
1. Por despacho de 6/11/2002 proferido pelo Sr. Ministro da Saúde, foi instaurado à A. o processo disciplinar n.º 138/02-D, no âmbito do qual foi proferida acusação constituída por 44 artigos, onde a A. era acusada de violar os deveres gerais de zelo e de lealdade previstos nas alíneas b) e d) do n.º 4 e nos nºs 6 e 8 do art.º 3 do Estatuto Disciplinar (DL n.º 24/84, de 16/1), violando igualmente o disposto nos nºs 2 e 3 do citado art.º 3° do ED) - fls. 43 a 54 do PA
2. A dita acusação, que se dá aqui por reproduzida, cujos factos apurados foram avaliados como passíveis da aplicação das penas de suspensão e de inactividade, destaca-se o seguinte: “33.°//Em 16/3/98, a E…, Lda., apresentou a sua proposta no âmbito do procedimento, por ajuste directo com consulta, para fornecimento de serviços de fiscalização da execução da empreitada de construção do Centro de Saúde de Carrazeda de Ansiães. // 34.° Tendo a mesma sido subscrita pelo Eng. Técnico A…, na qualidade de sócio gerente da referida firma (...) // 35.° A arguida autorizou essa mesma adjudicação por despacho de 23/03/1998 (...) // 36.° Ainda no decurso desse mesmo ano, mais concretamente em 20/01/1998, a Sub-Região de Saúde de Bragança solicitou a publicação de Anúncio no Diário da República - III série do Concurso Público n.º 1/98, tendo como objecto um contrato de avença a celebrar com um engenheiro civil para a prestação sucessiva, em regime de profissão liberal, dos serviços de assessoria técnica na área de instalações e equipamentos que lhe fossem solicitados pela entidade contratante (...) //37.° Efectuados os procedimentos previstos na lei, entre ao quais a análise das propostas apresentadas pelos candidatos, foi celebrado, em 27/7/1998, o contrato de avença com o Eng. Técnico Civil A… para a realização de serviços de assessoria técnica, nomeadamente a análise e acompanhamento de projectos de edifícios, de concursos de empreitadas de obras públicas, aquisição de bens e serviços, acompanhamento e fiscalização de obras, incluindo análise e /ou elaboração de autos de medições, revisões de preços, autos de consignação e recepção (...) //38.°//não obstante, cerca de 4 meses antes, a arguida já tinha autorizado a adjudicação à empresa E…, Lda., de fornecimento de serviços de fiscalização da execução da empreitada de construção do referido Centro de Saúde //39.°//e quando bem sabia da participação social que o Eng.º Técnico Civil A… detinha na referida sociedade por quotas de responsabilidade limitada // (...) 41.°// O citado engenheiro, enquanto responsável pela equipa técnica de fiscalização da empreitada de construção do Centro de Saúde de Carrazeda de Ansiães na sequência do procedimento por ajuste directo adjudicado àquela empresa, passou a desempenhar essa mesma actividade de acompanhamento e fiscalização, // 42.° // sendo certo que, a partir do momento em que outorgou o contrato de avença com a ARS - Norte, representada pela arguida na qualidade de Coordenadora Sub-regional de Saúde de Bragança, lhe cabia, no âmbito das suas competências e atribuições, a realização de idêntica tarefa técnica (...) Pelo exposto nos artigos 33.° a 44.° , a arguida, ao ter contratado o Eng. Técnico Civil A… para a execução de tarefas entre as quais o acompanhamento e fiscalização de obras, nomeadamente a relativa ao C.S de Carrazeda de Ansiães, sem que a adjudicação dos serviços de fiscalização à firma E… (...), fosse reavaliada à luz dessa simultaneidade e similitude defunções (...) agiu com desrespeito pelo interesse público e não criando no público confiança na acção da Administração Pública, nos termos do disposto nos nºs 2 e 3 do art.º 3.° do Estatuto Disciplinar, violando ainda os deveres gerais de zelo e de lealdade previstos, respectivamente, nas alíneas b) e d) do n.º 4 e nos nºs 6 e 8 do mesmo preceito, consubstanciando comportamento que atenta gravemente contra a dignidade e prestigio da funcionária ou da função nos termos do n.º 1 do art.º 25.° daquele Estatuto, e a faz incorrerem infracção disciplinar prevista na alínea c) do n.º 2 do mesmo preceito, sendo, assim, punível com a pena de inactividade prevista na mesma disposição legal e na alínea d) do n.º 1 do art.º 11º, ambas daquele diploma legal”;
3. Notificada da acusação a A. apresentou a respectiva defesa - art.º 3.° da PI, não contestado;
4. Por despacho de 12/2/2004, o Conselho Directivo do Instituto de Solidariedade e Segurança Social foi aplicada à A. pena disciplinar de multa, graduada em 1.500 €;
5. O referido despacho teve por fundamento o relatório final elaborado no âmbito do processo disciplinar, e do resumo de tal relatório, que consta de fls. 24 a 27 e que aqui se dá por reproduzido, destaque-se o seguinte: “ O processo disciplinar teve origem num processo de inquérito realizado pela mencionada Inspecção-Geral (da Saúde) à construção do Centro de Saúde de Carrazeda de Ansiães, onde foram recolhidos indícios da prática de infracções disciplinares por parte da ora arguida //A arguida que, ao tempo dos factos exercia funções como coordenadora da Sub Região de Saúde de Bragança, é acusada de não ter acompanhado devidamente o processo de construção do referido Centro de Saúde, designadamente por conceder uma prorrogação de 306 dias no prazo de construção de empreitada, que já havia ultrapassado os prazo de conclusão. // Factos que de acordo com o exposto na acusação formulada, significaram uma actuação por parte da arguida de desrespeito pelo interesse público, não criando confiança na acção da Administração Pública, em violação do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 3.° do Estatuto Disciplinar e do disposto nas alíneas b) e d) do n.º 4 e nºs 6 e 8, do mesmo artigo 30, que consagram os deveres de zelo e lealdade//Refere ainda o instrutor que o comportamento da arguida é revelador “da negligência grave ou de grave desinteresse pelo cumprimento de deveres profissionais” o que a faz incorrer na infracção disciplinar prevista na alínea e) do n.º (sic) do art.º 24.° do Estatuto, punível com pena de suspensão//A arguida é igualmente acusada de contratar engenheiro para acompanhamento e fiscalização das obras, quando meses antes havia já adjudicado a uma empresa – E…, Lda - a fiscalização da execução da empreitada, a que acresce o facto do Engenheiro em causa ser detentor de participação social na mencionada empresa. Também por este facto o instrutor refere que a funcionária violou o disposto nos nºs 2 e 3 do art.º 3,° e os deveres gerais de zelo e lealdade, comportamento que a faz incorrer em pena de inactividade, nos termos previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 25.° todos do Estatuto Disciplinar//A acusação foi devidamente notificada a arguida e após terem sido realizadas as diligência s instrutórias por esta referidas, foi elaborado Relatório final, que consta do processo a fls. 357 e seguintes. //Neste Relatório, e em sede de apreciação da defesa apresentada pela arguida, o instrutor do processo concluiu que a acusação da falta de zelo demonstrada pela arguida no acompanhamento da construção da obra, apenas ficou parcialmente provada, porquanto a prorrogação de 306 dias no prazo de conclusão, terá sido uma decisão fundamentada no interesse público. No entanto o instrutor considerou que ficou provado que a arguida violou os deveres de zelo e lealdade, com a citada contratação do Engenheiro para fiscalização da obra//quanto a circunstâncias atenuantes especiais não foi considerado provado o exemplar comportamento da funcionária, a que se refere a alínea a) do artigo 29° do Estatuto Disciplinar, procedendo o instrutor à apreciação dos critérios enunciados no art.º 28° para determinação da pena aplicável, concluindo pela proposta de aplicação de pena de multa, prevista no n.º 1 do art.º 11 e no art.º 22° do Estatuto, graduada em 1500 (mil e quinhentos) Euros, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art.º 12° do Estatuto (cfr. fls. 385 do processo) // Posto isto, resta propor, caso mereça concordância superior, que seja proferida deliberação pelo Conselho Directivo a aplicar a pena disciplinar de multa, no montante de 1500 (mil e quinhentos) euros, nos termos e com os fundamentos explanados no Relatório Final”.

3.1 No despacho saneador julgou-se improcedente a excepção de irrecorribilidade do acto impugnado e na decisão final julgou-se procedente a prescrição de uma das infracções disciplinares imputadas à recorrida.
Por se tratar de questão que obsta ao conhecimento do mérito, onde se deve incluir a prescrição, conhece-se prioritariamente do problema da irrecorribilidade da pena disciplinar.
O recorrente entende que ao caso se deve aplicar a norma do nº 8 do artigo 75º do Estatuto Disciplinar dos funcionários e agentes da administração central, regional e local (DL nº 24/84, de 16 /1), que prevê um recurso necessário para o membro do governo competente, no caso o Ministro do Trabalho e da Segurança Social. Por isso, sem a interposição dessa impugnação administrativa, não é possível impugnar contenciosamente.
Por sua vez, a recorrida considera que aquela norma não abrange o recurso tutelar, mas mesmo que assim fosse, a notificação que lhe foi feita não incluiu informação sobre a necessidade do recurso administrativo. Daí que a acção não pode ser improcedente por um erro imputado exclusivamente à recorrente.
Como se vê, a posição das partes sobre esta questão impõe que se dê resposta a dois problemas distintos: se o nº 8 do artigo 75º do ED abrange ou não o recurso tutelar; e se o incumprimento da determinação do artigo 68º, nº 1, alínea c) do CPA, quanto à indicação do órgão competente para apreciar a impugnação administrativa, interfere ou não com a inimpugnabilidade contenciosa do acto notificando.

3.2. A primeira questão já foi por diversas vezes analisada pelos tribunais administrativos, de cujas decisões se pode concluir ter-se formado, desde à muito tempo, uma forte corrente jurisprudencial no sentido de que, por força do nº 8 do artigo 75º do anterior ED, há recurso tutelar necessário dos actos punitivos dos dirigentes dos institutos públicos para o membro do governo que exerce poderes tutelares sobre o organismo que os praticou.
Entre muitas outras decisões, assim se julgou nos Acórdãos do STA de 28/11/85, relativamente ao Instituto do Vinho do Porto (rec. nº 020785), de 6/12/94 e de 13/1/2005, relativamente aos Institutos Politécnicos (recs. nº 033656 e nº 00067/04), de 27/5/2009, relativamente aos Hospitais (rec. nº 0182/09), nos acórdãos do TCAS, de 24/1/2008, relativamente ao Instituto de Reinserção Social (rec. nº 02553/08) e de 9/10/2008, relativamente aos Hospitais (rec. nº 07214/03) e nos acórdãos do TCAN, de 2/6/2005, relativamente à Inspecção-Geral de Saúde (rec. nº 00792/02) e de 13/1/2005, relativamente aos Institutos Politécnicos (rec. nº 00067/04). No mesmo sentido sustentou o Conselho Consultivo da PGR nos pareceres nº 52/87 de 5/11/87 e nº 74/2002 de 26/9/2006. A única excepção tem sido relativamente às Universidades, dada a autonomia disciplinar consagrada na Lei nº 108/88 de 24/9 (cfr. Ac. do STA de 16/4/2008, no rec. nº 0743/07).
Não se pode dizer que, em face da redacção da norma do nº 8 do art. 75º do anterior ED fosse facilmente perceptível o recurso tutelar necessário. A norma diz o seguinte: «da aplicação de quaisquer penas que não sejam de exclusiva competência de um membro do Governo cabe recurso hierárquico necessário». Considerando apenas o sentido literal do enunciado, dir-se-ia que o recurso tutelar está excluído do seu âmbito, uma vez que o legislador não pode ignorar que são de impugnações de espécie diferente. Todavia, o equívoco da norma do nº 2 do mesmo artigo, em estender o recurso hierárquico às «decisões proferidas em processo disciplinar em que o arguido seja funcionário ou agente dos institutos públicos», é relevador que o tipo de impugnação visado inclui o recurso tutelar. Sendo os institutos públicos pessoas colectivas sujeitas a tutela ou superintendência de outra pessoa colectiva pública, naturalmente que a impugnação do acto do órgão tutelado só pode ser qualificada como recurso tutelar, tal como se define no artigo 177º do CPA. A conjugação das duas normas só pode ter por resultado interpretativo a regra geral de que a impugnação das penas disciplinares que não sejam da competência exclusiva do membro do governo é sempre uma impugnação necessária, seja no âmbito das relações intra-orgânicas, seja no âmbito das relações inter-orgânicas.
A mesma jurisprudência deve aplicar-se às sanções disciplinares aplicados pelos órgãos competentes do então Instituto da Solidariedade e Segurança Social, que é um organismo dotado de autonomia administrativa e financeira, com natureza de instituto público (art. 23, nº 2 do DL nº 115/98, de 4/5, na redacção do DL nº 45/A/2000, vigente à data da prática do acto impugnado). O STA já se pronunciou, por diversas vezes, sobre a recorribilidade dos actos do ISSS, sempre no sentido de que são imediatamente impugnáveis e de que o recurso tutelar tem carácter facultativo (cfr. Acs. de 17/3/2005, de 8/3/2005, de 21/4/2005, respectivamente nos rec, nº 01347/04, rec. nº 01331/04, e rec. nº 0598/04). Todavia, também se considerou sempre que essa regra não prejudica os casos excepcionais de recurso tutelar necessário previstos na lei.
Apesar da entrada em vigor do novo CPTA, que veio estabelecer um novo conceito de “acto impugnável” (cfr. arts. 51º, nº 1 e 59º. nº 4 e 5), não se pode dizer que a norma referida foi revogada ou que padece de inconstitucionalidade. Também sobre esta matéria, descontadas algumas divergências doutrinais pontuais, a doutrina e a jurisprudência consolidaram a ideia de que as impugnações administrativas necessárias são compatíveis com a Constituição e que se mantêm quando previstas em lei material especial. A questão começou por se levantar em face do artigo 25º da LPTA, sobre a qual o Tribunal Constitucional e o STA se mantiveram firmes na defesa da compatibilidade dessa norma com o nº 4 do artigo 268º da CRP. Tornou-se a reacender com a entrada em vigor do CPTA, especialmente perante a norma do nº 5 do artigo 59º que estabelece a regra da impugnação administrativa facultativa. Porém, continua a sustentar-se a legitimidade de casos excepcionais de impugnações necessárias à abertura da via judiciária. No que se refere especialmente à compatibilidade do nº 8 do artigo 75º do anterior ED com a Constituição e com o CPTA, remete-se para o Ac. do STA de 28/12/2006 (rec. nº 1061/06) e para as abundantes referências doutrinais e jurisprudências que aí são feitas a propósito desta questão.

3.3. Mais complexa é a resposta a dar à segunda questão.
O problema resume-se no seguinte: se a notificação de um acto sujeito a impugnação administrativa necessária for omissa quanto à indicação do órgão competente para apreciar a impugnação, e se em consequência dessa omissão o particular interpuser acção administrativa especial em vez da impugnação administrativa, pergunta-se que repercussão tem na acção a inexistência desta impugnação.
Esta é apenas uma das vertentes em que se pode colocar a questão da articulação entre a impugnação administrativa necessária e a acção administrativa especial quando a notificação do acto não comunica correctamente a indispensabilidade daquele meio para se atingir a acção. Com efeito, o incumprimento da determinação contida no art. 68º nº 1, alínea c) do CPA, pode ocorrer de modos diferentes: a Administração notifica erradamente que há impugnação administrativa necessária; a Administração indica erradamente o órgão e/ou o prazo para apreciar a impugnação necessária; a Administração notifica erradamente que o acto é passível de acção contenciosa directa; ou a Administração omite que há impugnação administrativa necessária.
Em todas estas situações, embora se possa conhecer o sentido do acto notificando, o seu autor, data e texto integral, há erros que podem afectar ou lesar os interesses do respectivo destinatário, na medida em que o uso de um meio reactivo errado pode ter consequências processuais ou procedimentais negativas, designadamente a absolvição da instância por inimpugnabilidade (cfr. art. 89º, nº 1, alíneas c) do CPTA), ou a incompetência, irrecorribilidade ou intempestividade da impugnação administrativa (cfr. arts. 162º e 173º do CPA). Cada uma destas situações pode ter consequências jurídicas diferentes, consoante a reacção que o particular tenha tido perante a informação erradamente comunicada através da notificação.
No caso concreto, a notificação omitiu pura e simplesmente que da pena disciplinar cabia recurso tutelar para o Ministro do Trabalho e da Solidariedade Social (cfr. doc. de fls. 23 dos autos) e a autora impugnou contenciosamente o acto que aplicou essa pena, sem ter interposto previamente o recurso tutelar necessário.
Na vigência da LPTA, formou-se jurisprudência unânime, reiteradamente assumida, no sentido de que “ a omissão, na notificação do acto administrativo, das menções previstas no art. 68º, nº 1 alínea c) do CPA não habilita o particular a presumir que do acto cabe impugnação contenciosa, nem o desonera de proceder a uma correcta avaliação da situação concreta e ajuizar sobre a recorribilidade ou irrecorribilidade da decisão administrativa em causa”. E a partir desta asserção extraíram-se outras consequências para a posição em que fica o particular notificando: a notificação em que nada se diz quanto à impugnação do acto na ordem hierárquica “não é por isso ineficaz, nem permite concluir pela imediata recorribilidade contenciosa do acto comunicado”; a eventual interposição indevida de recurso contencioso “não suspende ou interrompe o prazo de interposição de recurso hierárquico do acto em causa”; o prazo de impugnação administrativa necessária “não se mantém nem se renova na sequência da rejeição do recurso contencioso ilegalmente interposto”; e a omissão do órgão competente para conhecer da impugnação administrativa necessária “não isenta de custas o recorrente que vê rejeitado o recurso contencioso por aquele acto estar sujeito a impugnação necessária” (cfr. Acs. do STA de 27/09/94, rec. nº 034290, de 1/3/1995, rec. 034640, de 7/3/96, rec. nº 039216, de 23/5/2000, rec. nº 045404, de 6/6/2002, rec. nº 039459, do Pleno da Secção do CA, de 22/5/2003, rec. 0506/03, de 23/3/2006, rec. nº 037/06, de 15/11/2006, rec. nº 0799/06, de 19/12/2006, rec. nº 0825/06, todos in www.dgsi.pt).
Esta jurisprudência sustentou-se no argumento avançado por Mário Esteves de Oliveira, Pedro Gonçalves e Pacheco de Amorim, em anotação ao artigo 68º do CPA, na crítica que fazem àqueles que entendem que a omissão da indicação do órgão de recurso faz presumir que do acto cabe impugnação contenciosa. Dizem esses autores que “duvidamos que caiba no espírito do nosso sistema jurídico-administrativo, onde a existência de declarações ou de actos jurídicos implícitos … só é admitida quando eles resultam concludentes ou inapelavelmente de uma declaração ou acto explícito ou expresso” (cfr. Código de Procedimento Administrativo, 2ª ed. pág. 357).
Perante esta dúvida, a jurisprudência referida acabou por considerar que não é possível retirar do texto do art. 68º nº 1, alínea c) a inferência de que não fazendo a Administração constar da notificação as indicações ali referidas, tal omissão comporta uma informação positiva de recorribilidade contenciosa do acto notificado: a notificação não contém uma declaração implícita, tirada por argumento «a contrario sensu», de que do acto cabe recurso contencioso imediato.
A este argumento a jurisprudência acrescentou mais dois: a admitir-se que a notificação omissa quanto ao órgão de recurso competente comporta implicitamente a declaração de que o acto em causa é susceptível de recurso contencioso imediato, seria o mesmo que atribuir a uma simples opinião ou indicação da entidade notificadora um efeito preclusivo de qualquer futura pronúncia em sentido diverso, por parte dos órgãos jurisdicionais acerca da recorribilidade ou irrecorribilidade dos actos, o que seria inadmissível; mesmo que a notificação contivesse a indicação de que o acto cabia impugnação necessária, tal não desonerava o notificado de averiguar, por si, da definitividade do acto, uma vez que tal informação, porque meramente acessória, não é vinculativa.
Com estes fundamentos, interpreta-se a norma do artigo 68º, nº 1, alínea c) no sentido de que a indicação na notificação do órgão competente para apreciar a impugnação apenas quer dizer que, na hipótese de vir a entende-se que o acto não é contenciosamente recorrível e que dele cabe impugnação administrativa prévia, então fica o particular desde logo esclarecido sobre a entidade a quem deve dirigir tal impugnação.
Todavia, como logo se disse no acórdão de 1/3/95 acima citado (também publicado, nos AD nº 403, pág. 787) e que foi aquele que nesta matéria marcou o ponto inicial da jurisprudência que se lhe seguiu, “a opção por uma ou outra dessas vias incumbirá, em primeira mão, ao administrado, posição que pode ou não vir a ser oportunamente coonestada pelo tribunal”, cabendo-lhe a responsabilidade de ter “exercido indevidamente, face a uma errada qualificação do carácter lesivo ou não lesivo do acto, actividade processual sucumbente ou mal sucedida”.
O resultado prático desta jurisprudência foi o de transformar a obrigação legal da Administração incluir no conteúdo da notificação a entidade para quem deve ser interposta a impugnação administrativa necessária num verdadeiro ónus do notificado em averiguar se efectivamente é esse o meio reactivo que obrigatoriamente tem que seguir para aceder à via judiciária. O erro do administrado na escolha do meio reactivo, ainda que causada por omissão ou erro da notificação, só a ele onera e responsabiliza, correndo o risco de já não ter prazo para usar a via devida, com a perturbação de ter que aceitar um acto relativamente ao qual manifestou oposição, tal como aconteceu nas situações julgadas nos acórdãos referidos.
Será que o novo CPTA abriu caminho para uma resposta diferente a este problema?
Naquilo que respeita aos conceitos e doutrinas em que assenta o problema das consequências que uma notificação incompleta pode ter no sistema de garantias dos particulares, a reforma do contencioso administrativo introduziu mudanças significativas.
Em primeiro lugar, em concretização do artigo 268º nº 4 da CRP, mas que de certo modo já vinha sendo defendido pela jurisprudência, enunciou-se nos artigos 51º e 55º um novo conceito de acto administrativo impugnável, o qual, no essencial, consistiu em substituir o atributo da definitividade pelo atributo da lesividade do acto. No que interessa à relação da impugnação administrativa com a acção administrativa especial, já não faz sentido falar-se em definitividade vertical, uma das características do acto recorrível que se consubstanciava na “resolução final” que define a situação jurídica da Administração e dois particulares. Do ponto de vista substantivo, tenha ou não sido praticado com competência exclusiva, o acto é impugnável se lesar direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares. Só relativamente ao acto, que pelo seu conteúdo lesivo, pode ser objecto de impugnação, é que se coloca a questão de saber se o órgão que o praticou tinha competência exclusiva ou se, pelo contrário, há que interpor impugnação administrativa para se aceder à respectiva impugnação contenciosa. Se a lei impuser a necessidade da via administrativa, então o acto não constitui a última palavra da Administração e, apesar de impugnável, a acção administrativa não pode ser intentada antes que o superior hierárquico ou tutelar se pronuncie.
Nesta configuração, a impugnação administrativa necessária não é um elemento caracterizador do acto impugnável, mas uma condição extrínseca, de natureza adjectiva, que funciona relativamente à acção como um pressuposto processual indispensável à pronúncia do mérito da causa. Assim sendo, há sempre que averiguar em cada caso concreto se a sua exigência se compatibiliza ou não com o princípio constitucional da protecção judicial efectiva dos cidadãos, que impede o estabelecimento de pressupostos formais que restrinjam ou limitam de forma desproporcionada o acesso à justiça administrativa.
Em segundo lugar, por força das normas dos nºs 4 e 5 do art. 59º do CPTA, a regra geral deixou de ser a impugnação administrativa necessária para passar a ser a impugnação administrativa facultativa. Actualmente, a acção impugnatória abrange toda e qualquer decisão ofensiva de um particular, não se exigindo, como condição da acção, que o acto em causa provenha de um órgão colocado no topo da hierarquia: todo o acto administrativo que contenha uma decisão que atinja os interesses de um particular é imediatamente susceptível de impugnação contenciosa. Só nos casos excepcionais previsto em lei material é que a acção impugnatória está subordinada à interposição prévia da impugnação administrativa. A diferença de paradigma na articulação entre a impugnação administrativa e a acção judicial é realçada pela particularidade da impugnação suspender o prazo da acção, o que demonstra que as duas garantias não são totalmente independentes uma da outra, como anteriormente acontecia.
Em terceiro lugar, o artigo 60º do CPTA estabeleceu novas regras sobre a notificação ou publicação deficientes, as quais contêm algumas diferenças relativamente ao anterior artigo 31º da LPTA. As normas do artigo 60º vieram estabelecer de forma mais aperfeiçoada as consequências jurídicas da notificação deficiente. A falta ou erro dos elementos que fazem parte do conteúdo da notificação referido no 268º nº 3 da CRP e no artigo 68º do CPTA é cominada com um regime de ineficácia diferenciado em função do elemento que foi omitido ou que se mostre ininteligível ou errado.
O nº 1 desse artigo abrange as situações de omissão, inexistência e insuficiência absoluta de notificação, o que se verifica respectivamente quando falta o acto de notificação, quando a notificação não é idónea para dar a conhecer o sentido da decisão e quando não permite ao destinatário solicitar as menções acessórias que dele devam constar, e que são cominadas com a ineficácia total do acto de notificação e do acto notificando. Nestes casos, o acto administrativo é absolutamente inoponível ao destinatário, privado de quaisquer efeitos integrativos de eficácia, estando impedida a contagem do prazo de impugnação enquanto a deficiência não for suprível através de nova notificação.
Já o nº 2 versa sobre situações de insuficiência relativa, em que a notificação dá a conhecer suficientemente a decisão e o seu sentido, mas falta a indicação do autor, da data ou dos fundamentos e que apenas são cominadas com a ineficácia a partir do momento em que o interessado requeira tempestivamente a notificação dos elementos em falta ou a passagem de certidão. Nestes casos, a notificação insuficiente produz efeitos, designadamente o de desencadear os prazos de impugnação até ao momento em que o interessado use a «faculdade» de solicitar o completamento da notificação. O ónus de invocar a insuficiência relativa e de promover o respectivo suprimento cabe ao destinatário. Se ele não tomar a iniciativa de reparação insuficiência, os prazos de impugnação não se interrompem e a ilegalidade do acto de notificação degrada-se em mera irregularidade, com a consequente formação de «caso decidido».
O nº 4 do artigo 60º estende a sanção da inoponibilidade aos «erros contidos na notificação ou na publicação, no que respeita à indicação do autor, da data, do sentido ou dos fundamentos da decisão, bem como eventual erro ou omissão quanto à existência de delegação ou subdelegação de poderes».
Estas nova norma pretende abranger os erros na declaração, isto é, as divergências não intencionais entre a vontade de comunicar e a declaração comunicada, onde se incluem os simples erros de cálculo e erros materiais («lapsus linguae» ou «lapsus calami»), manifestos e não manifestos, mas também os erros sobre o conteúdo da declaração, em que a entidade notificadora não se apercebe que a notificação tem um conteúdo divergente do acto notificando. Os primeiros, quando manifestos, podem ser rectificados pela Administração, com abertura de novo prazo no caso de respeitarem à indicação do autor, do sentido ou dos fundamentos da decisão, (cfr. arts. 148º do CPA e nº 8 do art. 58º do CPTA) ou supridos no decurso da acção (cfr. arts. 88º e 89º do CPTA). Os erros não manifestos e os erros sobre o conteúdo da declaração (os erros de juízo) são valorados juridicamente, não como defeitos da vontade, mas como causa de imperfeição dos elementos que fazem parte do conteúdo do acto de notificação, tal como previstos no artigo 68º do CPA. Os erros da notificação não impedem a eficácia do acto, nos termos em que o interessado o percebeu. Mas, uma vez detectados, não lhe podem ser oponíveis. Significa isto que, quando não supríveis por rectificação, podem mesmo determinar a invalidade do acto de notificação, na parte errada, com a destruição «ex tunc» dos efeitos produzidos e a consequente ineficácia do acto notificando, situação de ineficácia que apenas poderá ser ultrapassada com a repetição da notificação ou com a abertura de novo prazo de impugnação.
Nas situações de inoponibilidade de erro na comunicação do acto, não se aplica o mecanismo do nº 2 do artigo 60º previsto para os casos de insuficiência relativa da notificação. O erro só releva quando o órgão administrativo transmite uma representação autêntica do acto e não o próprio acto na sua forma original. Por isso, no momento em que a representação errada do acto entra na esfera de perceptibilidade do destinatário através do acto comunicativo, é-lhe impossível conhecer as eventuais desconformidades com a forma original. O acto produz efeitos até ao momento em que o erro é detectado, o que acontece quando é conhecida versão original do acto, e não até ao momento em que o destinatário requer a informação complementar: o que está em causa não é um problema de falta de informação, mas de errada informação.
A lesividade como critério de impugnabilidade, a regra geral da impugnação administrativa facultativa e a inoponibilidade das notificações erradas são três alterações do recente Direito Administrativo que provocam, a nosso ver, uma mudança na jurisprudência seguida no âmbito da LPTA sobre as consequências jurídicas da omissão da menção prevista na alínea c) do nº 1 do art. 68º do CPA.
Antes de mais, não pode deixar de se referir que a exigência de que da notificação conste, como elemento acessório, a indicação do «órgão competente para apreciar a impugnação do acto e o prazo para este efeito», só vale para o caso do acto não ser susceptível de acção impugnatória.
Não é assim na notificação dos actos tributários, em que a notificação deve conter sempre os meios de defesa e o prazo para reagir (cfr. art. 36º, nº 2 do CPPT). E, como refere Sérvulo Correia, «a tendência contemporânea é a de que a lei imponha como elemento essencial da notificação a especificação dos meios pelos quais o destinatário poderá reagir contra o acto administrativo notificado» (Inexistência e Insuficiência de notificação do acto administrativo, in, Estudos Em Homenagem ao Professor Doutor Marcelo Caetano, Vol. I, pág. 591).
Se a competência do autor do acto for separada, dele cabendo impugnação administrativa necessária, a notificação tem que mencionar a necessidade desse meio com condição da acção administrativa. Seria contrário ao imperativo da notificação fazer recair sobre o destinatário o ónus de se informar sobre a lesividade imediata do acto. A lei impõe essa obrigação à Administração e não ao administrado, pois, para além de ser a melhor forma de se concretizar a função processual da notificação, é ela que melhor do ninguém sabe se do acto cabe impugnação administrativa necessária.
Se a entidade notificadora omite que do acto notificando cabe impugnação administrativa necessária, não só viola a citada alínea c) do nº 1 do art. 68º, como faz crer a um destinatário razoável, colocada na posição concreta do real destinatário (art. 236º do CCv) que essa impugnação não é necessária.
A doutrina interpreta essa omissão como uma “presunção” ou uma “sugestão” de impugnabilidade contenciosa imediata: a omissão «não deve ser entendida como causa de insuficiência da notificação, mas como uma «sugestão oficial» de que o acto administrativo é imediatamente recorrível num tribunal» (cfr. Pedro Gonçalves, Notificação dos Actos Administrativos. in Ab Uno Ad Omnes – 75 Anos da Coimbra Editora, 1988, pág. 1120); ou atenta a função garantística da notificação, deve ser «equiparada» à situação em que a notificação contém uma indicação positiva ainda que errónea quanto ao meio de defesa a utilizar pela particular (cfr. Pedro Machete, Notificação deficiente do acto administrativo – a articulação entre meios administrativos e contenciosos. Justiça Administrativa, nº 75, pág. 22).
Mesmo que da notificação omissa quanto à indicação do órgão competente para apreciar a impugnação administrativa não se possa retirar a conclusão que o órgão notificador quis declarar implicitamente que do acto cabe impugnação contenciosa imediata, a verdade é que essa omissão é susceptível de causar ao notificado um erro quanto à escolha dos meios de defesa. O acto notificado é, no plano substantivo, um acto administrativo impugnável e a regra geral é que dele apenas cabe impugnação administrativa facultativa. Se a lei incumbe à Administração indicar, na própria notificação, se o acto notificado está sujeito a impugnação administrativa necessária, e tal indicação não foi feita, então o particular só pode considerar que não se trata de um caso excepcional de impugnação administrativa prévia ao acesso ao tribunal.
Não estando o destinatário do acto notificado obrigado a conhecer que meios administrativos procedem contra o acto, não se pode impor que, na base de uma omissão, haja de ser ele a procurar junto da Administração a informação sobre a existência de uma hipotética impugnação necessária. Na perspectiva do destinatário, o acto comunicativo que seja omisso quanto aos meios de defesa não é uma notificação insuficiente, pois a lei considerou suficiente a indicação dos meios de impugnação administrativa quando não seja possível desde logo a impugnação contenciosa. Daqui resulta que não deve recair sobre ele ónus de requerer à entidade notificadora, através do mecanismo previsto no nº 2 do art. 60º, a informação complementar sobre a existência ou não da impugnação administrativa.
A notificação omissa quanto aos meios de defesa não configura uma situação de insuficiência relativa, suprível através do requerimento de notificação previsto no nº 2 do artigo 60º, sendo antes abrangida pelas situações de inoponibilidade previstas no nº 4 do mesmo artigo. Sobre o notificado não recai pois o ónus de suscitar, no prazo de 30 dias, o suprimento da omissão, para desse modo conseguir parar a eficácia do acto de notificação no que respeita ao desencadeamento dos prazos de impugnação contencioso ou administrativa. Em seu prejuízo não pode correr algum prazo sem que lhe seja dada a indicação de que do acto cabe impugnação administrativa necessária.
A aplicação da regra da inoponibilidade do nº 4 do artigo 60º à notificação omissa quanto aos meios de defesa afasta a corrente jurisprudencial acima referida que fazia recair sobre o notificado o ónus de requerer a informação omitida para impedir o prazo de impugnação contenciosa, assim como a jurisprudência que, por analogia, aplicava esse efeito interruptivo às impugnações administrativa (cfr. Ac. do STA de 31/3/1998, rec. nº 36.830, de 9/3/2004, rec. nº 01509/02, de 20/3/2007, rec. nº 0940/06, in www.dgsi.pt).
A circunstância de nenhuma das normas do artigo 60º se referir à omissão ou erro da notificação quanto aos meios de defesa, numa altura em que havia jurisprudência consolidada sobre a aplicabilidade da norma do nº 2 (a correspondente ao nº 2 do artigo 31º da LPTA), de modo algum pode ser revelador de que se pretendeu continuar a aplicar a mesma preposição.
A contrariar essa inferência está desde logo o nº 4 do artigo 60º, ao incluir na regra de inoponibilidade o «erro ou omissão quanto à existência de delegação ou subdelegação de poderes». Se bem que esta omissão seja do próprio acto e não da notificação (cfr. arts. 38º e 123º, nº 1, alínea a) do CPA), a inoponibilidade impõe-se para garantir a impugnabilidade administrativa ou contenciosa do acto, em conformidade com os poderes do delegado. Ora, no caso da notificação com omissão dos meios de defesa, também se pretende garantir que o notificado possa reagir contra o acto notificado. Se em ambos os casos se pretende concretizar a função garantística da notificação, na vertente processual e procedimental, a solução de inoponibilidade não pode deixar de ser mesma.
Assente que a notificação omissa quanto à devida impugnação administrativa necessária não é oponível ao notificado e que, em seu detrimento, não correm os prazos de impugnação, resta averiguar qual a repercussão que a inoponibilidade tem na acção administrativa impugnatória interposta sem a prévia impugnação administrativa.
Pela jurisprudência citada, o recurso contencioso era rejeitado por inimpugnabilidade do acto, uma vez que ele não é definitivo; e se o notificado não solicitou tempestivamente a notificação da informação em falta, também já não podia interpor recurso hierárquico ou tutelar; e na eventualidade deste recurso ter sido deduzido, ainda que por erro da Administração, de igual modo se considerava legal o acto que o rejeitava por intempestividade. Ao dar-se conta da ofensa que esta última solução representa para os direitos de tutela do notificado e para o princípio da colaboração enunciado no artigo 7º do CPA, o acórdão do STA de 11/10/2006, rec. nº 0404/06 (in, www. dgsi.pt), numa decisão extra vel ultra petitum, impôs à Administração a repetição da notificação para que o notificado possa ter prazo de impugnação contenciosa.
Sobe este problema a doutrina aparenta não ir mesmo sentido: para Vieira de Andrade, se já estiver em curso a acção de impugnação quando se constate o incumprimento da alínea c) do nº 1 do artigo 68º, deverá admitir-se a continuação da acção judicial, o que significa poder conhecer-se do mérito, sem que haja a absolvição da instância por inimpugnabilidade do acto impugnado (cfr. A Justiça Administrativa, 10ª ed. pág. 319); para Aroso de Almeida, o regime de inoponibilidade do erro ou omissão consagrado no nº 4 do artigo 60º tem como consequência que «o interessado deve ser admitido a utilizar a via de impugnação administrativa necessária no momento em que o erro ou a omissão vierem a ser identificados, sem que lhe seja oponível a objecção de que, em circunstâncias normais, os prazos já teriam expirado» (cfr. O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2ª ed. pág. 177); para Pedro Machete, há que considerar a razão de ser de cada concreta impugnação administrativa necessária: se estiver em causa a defesa de interesses do particular, a acção impugnatória pode conhecer de mérito; se estiverem em causa interesses administrativos, a inoponibilidade do nº 4 do art.60º apenas legitima a abertura do prazo de impugnação administrativa necessária (cfr. Notificação deficiente… ob. cit. pág. 23).
A admissibilidade do tribunal poder conhecer do mérito da causa, ainda que se verifique a falta de um pressuposto processual, sanável ou não sanável, é hoje uma solução que a lei prevê no artigo 288º, nº 3, 2ª parte do CPC. O tradicional dogma da prioridade da apreciação dos pressupostos processuais antes do julgamento do mérito da causa já não é absoluto, porque há situações em que a tutela dos interesses da parte pode dispensar o seu preenchimento.
A ser assim, então pode afirmar-se que a posição dos dois primeiros autores é a mais adaptada ao desvalor que certos pressupostos processuais podem ter relativamente ao mérito, seja em concretização do princípio pro actione (cfr. art. 7º do CPTA), seja em função da tutela jurisdicional efectiva (cfr. art. 268º. nº 4 da CRP).
Mas, o apelo aos interesses protegidos pela impugnação administrativa obrigatória, que também está subjacente à dispensa dos pressupostos processuais em processo civil, pode não conduzir sempre à mesma solução, porquanto a impugnação administrativa serve a um só tempo a protecção dos interesses dos particulares e dos interesses da Administração. Como refere Freitas do Amaral, reportando-se ao recurso hierárquico, «o regime jurídico do recurso faz dele um instrumento peculiar, que serve simultaneamente para a protecção dos direitos e interesses pessoais dos particulares que o utilizam e para a defesa da legalidade e do interesse público que a Administração tem de salvaguardar» (cfr. Conceito e natureza do recurso hierárquico, pág. 316).
Mas a função de carácter misto da impugnação, não exclui a possibilidade de se averiguar qual dos interesses a lei concede preferência, em caso de conflito, ou seja, apurar se a impugnação é predominantemente subjectiva ou predominantemente objectiva. O «ponto sensível» que permite revelar com maior nitidez a opção do legislador é, como refere aquele autor, o problema da reformatio en pejus: «se a lei a permite, a função objectiva do recurso prevalece sobre a função subjectiva; se a lei a proíbe, é esta última a dominante».
Seja qual for o “ponto sensível” ou elemento revelador da opção legislativa pela impugnação administrativa necessária, tendo em conta que a acção impugnatória já foi intentada e que está pendente, o mais importante é ponderar os princípios que nesse momento se deparam em colisão, ou seja, o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva (art. 268º nº 3 e 4) e o princípio constitucional da autotutela administrativa na prossecução do interesse público (art. 266º, nº 1).
Se a acção já está em juízo, deixam de prevalecer alguns interesses administrativos, senão os mais primordiais, em vista dos quais foi construída a impugnação administrativa necessária. Com efeito, se ela visa filtrar o acesso à justiça administrativa, descongestionando os tribunais de acções inúteis, tal objectivo não foi conseguido, podendo mesmo obter-se o efeito contrário, caso a acção seja rejeitada por falta daquela condição da acção; se pretende ser um instrumento de autocontrole prévio, que evite a eventual censura posterior do órgão judicial, tem que se reconhecer que tal “privilégio” já foi muito atenuado pela pendência da acção, além de não sair prejudicada a iniciativa oficiosa de autocontrolo, anulando, revogando, modificando ou substituindo o acto impugnado, com os naturais reflexos na modificação objectiva da instância (art. 63º do CPTA).
Em confronto ficam o interesse do particular em garantir a efectividade do direito à tutela jurisdicional, economizando meios e tempo no reconhecimento da invalidade do acto lesivo, e o interesse próprio da Administração em rever os seus actos antes que o tribunal o possa fazer. Para saber qual dos interesses deve prevalecer, impõe-se uma tarefa de ponderação dos princípios em conflito, optimizando e/ou harmonizando cada um deles, em face das circunstâncias do caso, de forma a conseguir-se, na medida melhor possível, um resultado de concordância prática.
O princípio do acesso efectivo à justiça, na sua vertente de favorecimento do processo (ou princípio pro actione), no caso concreto dos autos, deve prevalecer sobre a garantia do poder de autotutela administrativa.
Por um lado, o processo disciplinar iniciou-se e foi totalmente instruído nos serviços do Ministério da Saúde, serviço onde a arguida exercia funções à data infracção. Só foi aplicada pela entidade recorrida, porque a arguida mudou de ministério e o artigo 41º do ED nesse caso, determina que a pena seja aplicada pela autoridade de que depende no momento da decisão final. Ora, a impugnação administrativa necessária efectuada perante a nova entidade não tem o mesmo efeito, sobretudo se pudesse assentar em razões de conveniência, do que teria se fosse perante a hierarquia do lugar de origem, pois foi aí que os factos ocorrerem, que o passado e a personalidade da arguida são conhecidos e que, por regra, se situam os elementos de prova a recolher.
Por outro lado, o regime do recurso tutelar necessário, por ser interposto pela arguida, não permite a reformatio en pejus, (nº 7 do art. 75º do ED), só pode ter por fundamento a legalidade do acto e não a inconveniência (art. 177º do CPA). Perante este regime, deve-se concluir que o recurso tutelar serve predominantemente os interesses da arguida, que terá aí mais uma oportunidade de ver anulada ou diminuída a pena. E se assim é, não pode deixar de se considerar que protecção do interesse do autor em ver a situação resolvida pela via judicial deve prevalecer relativamente ao interesse da tutela em averiguar da correcção ou incorrecção da decisão impugnada, prevalência que torna dispensável, no caso concreto, o pressuposto processual do recurso tutelar necessário.

3.4. A outra questão posta em recurso diz respeito à prescrição do procedimento disciplinar, a única julgada pela sentença recorrida.
A sentença considerou que a infracção disciplinar cometida com a contratação do engenheiro consumou-se no momento da contratação, não sendo um “facto continuado” cujo prazo prescricional só começasse a correr com a cessação da infracção.
Ao invés, o recorrente entende que se está perante uma infracção continuada, uma vez que a arguida, enquanto dirigente, podia ter cessado o contrato no fim do seu termo, o que nunca fez até à data em que cessou funções no serviço onde a infracção foi cometida.
Os factos relevantes para esta questão, de forma resumida, são os seguintes:
- em 23/03/1998, a arguida autorizou a adjudicação dos serviços de fiscalização da empreitada de construção do Centro de Saúde de Carrazeda de Ansiães à firma E…, Lda;
- em 27/7/1998, celebrou com o Eng. A… um contrato de avença para a prestação de serviços, entre os quais o acompanhamento e fiscalização de obras, pelo período de 12 meses, automática e sucessivamente prorrogável, sendo o avençado sócio-gerente da E…;
- em 26/8/2002, em virtude de atrasos na construção do Centro de Saúde foi ordenado um processo de inquérito para apurar as responsabilidades por esse facto;
- em 6/11/ 2002, foi ordenada a instauração de processo disciplinar à arguida por duas infracções disciplinares, uma por não acompanhar, com rigor e zelo, a construção da obra e outra por ter celebrado um contrato de avença com um sócio-gerente da empresa já contratada para fiscalizar a obra.
A sentença recorrida apenas se pronunciou sobre a prescrição do procedimento disciplinar relativamente à infracção cometida com a contratação do engenheiro: se o contrato ocorreu em 27/7/98 e o procedimento disciplinar foi instaurado em 6/11/2002, é evidente que foi ultrapassado o prazo de três anos que o nº 1 do artigo 4º do Estatuto Disciplinar prescreve para o efeito.
Mas, deverá o prazo de prescrição, no caso concreto, ser contado desde a última data em que a arguida teve oportunidade de o fazer cessar?
A questão é pertinente porque põe em jogo o princípio da unidade da infracção disciplinar com a teoria da infracção continuada.
Em princípio, a conduta do arguido deve ser apreciada globalmente, considerando o conjunto das infracções imputadas e correspondendo a todas elas uma única pena (cfr. art. 14º do ED). Assim não acontece para efeitos de prescrição, em que se deve considerar separadamente cada uma delas, desde que devidamente autonomizadas em função dos diferentes deveres funcionais violados: os prazos de prescrição correm separadamente por cada infracção, desde «a data em que a falta foi cometida» ou desde a data em que for «conhecida» pelo dirigente máximo do serviço (nº 1 e 2 do art. 4º do ED)
Acontece que nem sempre é fácil autonomizar a infracção para esse efeito, uma vez que a violação do mesmo dever funcional pode consubstanciar-se na prática de uma série de actos que se vão repetindo, por acção ou omissão, até ao último. Estes casos, por analogia com o que se passa no direito criminal, são enquadrados na figura da infracção permanente ou na figura da infracção continuada, para as quais as alíneas a) e b) do artigo 119º do Código Penal dispõem um regime diferente de prescrição: a infracção permanente prescreve desde o dia em que cessa a consumação; a infracção continuada prescreve desde o dia da prática do último acto infraccional.
O direito administrativo disciplinar, sobretudo pelo labor da jurisprudência, tem feito uso dos conceitos de “crime permanente” ou “duradouro” e do de “crime continuado”, próprios do direito penal, tendo em vista sobretudo determinar o momento a partir do qual se inicia o procedimento disciplinar: «na falta de qualquer indicação no Estatuto Disciplinar quanto à estrutura da infracção continuada e da infracção permanente e às repercussões sobre o instituto da prescrição, deverão aplicar-se, a título supletivo, os princípios do direito penal dados os termos essencialmente análogos em que se conjugam, nestes dois ramos de direito, os valores ou pontos de vista que intervêm no desenho destas figuras jurídicas» (cfr. Ac. do STA de 16/4/97, rec. nº 021488).
O crime continuado está definido no artigo 30º nº 2 do Código Penal como «a realização plúrima do mesmo tipo ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente». Esta definição constitui uma abstracção jurídica para efeitos de unificação formal de não apenas um mas vários crimes em concurso, real ou ideal, homogéneo ou heterogéneo, e tendo em vista a punição do seu agente com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação (art. 78º nº 5 do CP).
A norma estabelece, como requisitos do crime continuado, que esteja em causa o mesmo bem jurídico, que a actividade seja executada de forma homogénea, no quadro de uma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. Apesar de só haver crime continuado quando haja vários crimes em concurso, a figura não conforma uma hipótese de pluralidade ou de concurso de crimes, mas de unidade jurídica criminosa. Como recorda Figueiredo Dias, numa visão material das coisas, o crime continuado não deixa de constituir «uma unidade jurídica construída sobre uma pluralidade efectiva de crimes». (As Consequência do crime, pág. 296). Como unidade jurídica que é, terá de ser tratado em todos os seus aspectos, como impõe a própria lei quando afirma constituir um só crime a realização plúrima do mesmo ou de diferentes tipos de crime, verificados que sejam aqueles pressupostos.
Mas, se a factualidade histórica constituir apenas um único crime, ainda que de execução prolongada no tempo, já não é qualificada como “crime continuado”, mas como uma única infracção de execução materialmente fraccionada ao longo do tempo.
Ora, atenta a razão da prescrição, ligada «a exigências político-criminais claramente ancoradas na teoria das finalidades das sanções criminais» (Figueiredo Dias, ob. cit., 699), então justifica-se que o prazo que é função da pena aplicável à infracção mais grave, só se inicie com a consumação do último dos actos, momento em que, de facto, cessa a prática do crime.
No direito disciplinar, a relevância da “teoria da unidade do acto”, através dos conceitos de infracção continuada, tem sido sobretudo criada para marcar o início do cômputo do prazo da prescrição do procedimento disciplinar, dado que, diferentemente do que acontece no direito penal, a continuação infraccional só pode relevar para graduação ou atenuação extraordinária da medida disciplinar (arts. 28º e 30º do ED).
O mesmo ocorre nos tipos de crimes permanentes ou duradouros. Por contraposição aos crimes instantâneos, a consumação destes crimes prolonga-se no tempo, por vontade do autor. Segundo Eduardo Correia, na estrutura dos crimes permanentes distinguem-se duas fases: uma, que se analisa na produção de um estado antijurídico, que não tem, aliás, nada de característico em relação a qualquer outro crime, e, outra, esta propriamente típica, que corresponde à permanência ou, vistas as coisas de outro lado, à manutenção desse evento, e que para alguns autores consiste no não cumprimento do comando que impõe a remoção pelo agente dessa compressão de bens ou interesse jurídicos em que a lesão produzida pela primeira conduta se traduz. (Direito Criminal, I, p. 309).
Como também refere este eminente mestre de Coimbra, a existência do dever de cessar o estado antijurídico criado, faz distinguir os crimes permanentes dos crimes de efeitos permanentes, aqueles que se esgotam num único momento, mas cujos efeitos se podem prolongar no tempo. É pois, importante não confundir o crime instantâneo com o crime permanente, quando de um crime instantâneo derivam efeitos que podem considerar-se permanentes, dado que se prolongam no tempo. Todavia, são efeitos que dizem respeito às consequências nocivas que podem derivar do crime, em nada alterando a sua estrutura no que se refere à instantaneidade da consumação.
Como nos crimes permanentes, a consumação ocorre logo que se cria o estado antijurídico, mas persiste até que tal estado tenha cessado, naturalmente que o prazo a prescrição só se pode iniciar desde o dia em que cessa a consumação.
Se num primeiro momento a jurisprudência administrativa não acolheu a figura de infracção continuada (cfr. Ac. de 29/3/90, rec. nº 25.187), a verdade é que acabou por a introduzir no direito disciplinar, com o sentido acima referido, distinguindo-a da infracção permanente e, aplicando, por analogia, ao prazo de prescrição do procedimento disciplinar as regras do direito penal (cfr. Acs. do STA de 27/9/90, rec. nº 020399; de 9/7/92, rec. nº 020399, de 20/10/92, rec. nº 027026, de 19/12/95, rec. nº 027026, de 16/2/97, rec. nº 021488 e de 16/1/2003, rec. nº 064/02, todos in www.dgsi.pt).
Posto isto vejamos então como qualificar os factos pelos quais a arguida foi acusada e condenada.
Conforme se escreve na acusação e no relatório que fundamenta a pena disciplinar, a infracção imputada à arguida é a seguinte: «ter contratado o Eng –Técnico Civil A… para a execução de tarefas entre as quais o acompanhamento e fiscalização de obras, nomeadamente a relativa ao C.S. de Carrazeda de Ansiães, sem que a adjudicação dos serviços de fiscalização à Firma E…, Lda, fosse reavaliada à luz dessa simultaneidade e similitude de funções do referido técnico, atento os dois estatutos funcionais ao abrigo dos quais ele se movimentava na Sub-Região de Saúde de Bragança, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar supra».
Nesta síntese dos factos constantes dos artigos 33 a 44 da acusação, dados como provados no relatório final, imputa-se à arguida uma conduta intencional que abrange uma acção, a celebração do contrato de avença, uma omissão, a não reavaliação do contrato de fiscalização, e um resultado, a prestação dos mesmos serviços pela mesma pessoa. E considera-se que esta conduta, pelo resultado que produziu, constitui uma violação culposa do dever de prossecução do interesse público (nº 2 do art. 3º do ED), do dever de imparcialidade (nº 2 do art. 3º e al. c) do nº 2 do art. 25º do ED), do dever de zelo (al. b) do nº 4 do art. 3) e o dever de lealdade (al. d) do nº 4 do art. 3).
Tal como vem configurado o comportamento ilícito, não se vislumbra uma pluralidade real de factos que possa ser tomado unitariamente como uma só infracção. A violação dos aludidos deveres funcionais consumou-se com a celebração do contrato de avença “sem que” se tivesse nesse momento reavaliado o contrato que já existia com a empresa de que o avençado era sócio-gerente. A continuação da conduta infraccional, fundada num condicionalismo externo que facilita a repetição da violação dos deveres funcionais e susceptível de determinar a diminuição do grau de culpa, só podia ocorrer com as renovações sucessivas do contrato de avença, no pressuposto de que se mantinha a mesma situação.
Só que, nos termos da cláusula 6º do contrato de avença foi estipulado que ele é «automática e sucessivamente prorrogável por iguais períodos, se não for rescindido ou denunciado por qualquer das partes». Ora, ao contrário da renovação expressa, que representaria a repetição da violação do mesmos deveres funcionais, a omissão da declaração de denúncia não tem autonomia relativamente à omissão de fazer cessar a todo o tempo a situação antijurídica criada pelo contrato.
Dir-se-á, então, que a manutenção ininterrupta do contrato de avença e dos efeitos lesivos dele decorrentes faz perdurar no tempo a violação de deveres até ao momento em que cesse a situação por ele criada. Sendo assim, o contrato de avença, associado à omissão duradoura de cumprir o dever de eliminar a situação ilegal por ele criada, qualifica a infracção como permanente.
O problema é que a acusação e a decisão disciplinar descrevem o comportamento da arguida como se tratasse de uma infracção que se esgotou no momento da celebração do contrato de avença, esquecendo a factualidade que fazia persistir o dever de remoção da situação ilícita.
Ora, para se determinar até que momento existiu o dever de restaurar a situação de legalidade perturbada pelo contrato de tarefa, impõe-se localizar o facto ilícito e verificar se a acusação o especifica em termos de se poder determinar o momento em que cessou.
Como se vê da cláusula primeira do contrato de avença, o objecto do contrato consistiu na prestação de «serviços de assessoria técnica na área de instalação e equipamentos que lhe forem solicitados pela entidade contratante», nomeadamente «avaliação e elaboração de relatórios sobre o estado das instalações, propostas para orçamentos anuais e plurianuais, elaboração de processos de obras de remodelação e conservação; avaliação de projectos de estabilidade, instalações e equipamentos de águas e esgotos e de gás; análise e acompanhamento de projectos de edifícios; concursos de empreitada de obras públicas, aquisição de bens e serviços; acompanhamento e fiscalização de obras, incluindo análise e/ou elaboração de autos de medição, revisões de preços, autos de consignação e recepção, etc; elaboração, concurso e análise de processos para aquisição e instalação de equipamentos, organização e eventual informatização do serviço de instalações e equipamentos, e demais serviços na área de instalações e equipamentos».
Como se vê, o objecto do contrato de avença não só não se destina especificamente à coordenação, fiscalização e controlo da execução da empreitada de construção do Centro de Saúde, como os serviços avençados vão muito além dos trabalhos adjudicados à empresa E…. Só há incompabilidade entre os dois contratos se ao avençado «forem solicitados» trabalhos incluídos no contrato de fiscalização.
A acusação assenta toda na existência dessa incompabilidade, quando refere que o engenheiro avençado ficou numa situação de “duplicação de funções”, ao passar a realizar “idêntica tarefa técnica” ou a “mesma actividade de acompanhamento e fiscalização”, sem que a arguida tivesse providenciado pela “revisão da adjudicação” à E… (41º a 44º).
A duplicidade de funções só existe efectivamente se no âmbito da avença forem incluídos os trabalhos adjudicados à empresa E…. Não é o contrato que, por si, constitui violação culposa de deveres funcionais, mas sim o facto do avençado, nessa qualidade, executar trabalhos que fazem parte da fiscalização da empreitada. O facto ilícito disciplinar localiza-se aqui mesmo, na circunstância de em determinado momento ou período ter existido duplicidade de funções. Se o serviço concretamente distribuído ao avençado não englobasse a fiscalização do Centro de Saúde de Carrazeda de Ansiães, onde encontrar a duplicidade de funções?
Assim sendo, para se poder determinar quando se consumou a infracção duradoura, era necessário que a acusação tivesse especificado de quando e até quando é que a arguida ou os respectivos serviços distribuíram ao avençado trabalhos englobados no contrato de fiscalização adjudicado à E…. Ora, a acusação não concretiza nada disso, desconhecendo-se quando é que existiu duplicidade de serviços, por quanto tempo ela se prolongou, se nas datas das sucessivas renovações automáticas ainda estava vigente o contrato de fiscalização, e mesmo quando é que cessou o contrato de avença.
A recorrente entende que a infracção se consumou com o termo de funções da arguida, uma vez que até essa data teve sempre condições para rescindir ou denunciar o contrato. Mas, para que a consumação da infracção tivesse perdurado até esse momento era preciso demonstrar que o avençado executou ininterruptamente, na qualidade de avençado, as funções próprias do contrato de fiscalização. Simplesmente, nada disso consta da acusação e só por mera presunção se podia lá chegar. A acusação construiu o ilícito disciplinar sempre em volta do contrato de avença, como se o momento da sua outorga fosse o momento de consumação da infracção, o que levou ao acerto da decisão recorrida. A infracção disciplinar, nos termos em que foi acusada, estava prescrita à data da instauração do procedimento disciplinar. Com efeito, da acusação nada consta sobre o trabalho que o avençado, a solicitação da arguida, tivesse prestado no Centro de Saúde por conta da avença.
4. Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
TCAN, 27 de Maio de 2010.
Ass. Lino José Baptista Rodrigues Ribeiro
Ass. Carlos Luís Medeiros de Carvalho
Ass. Antero Pires Salvador