Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00710/12.0BEAVR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:02/22/2013
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:José Augusto Araújo Veloso
Descritores:ARTICULAÇÃO ESPECIFICADA
PRINCÍPIOS COOPERAÇÃO E CONTRADITÓRIO
PERICULUM IN MORA
PADRÃO DO HOMEM MÉDIO
Sumário:I. A exigência de «especificação articulada» dos fundamentos do pedido cautelar louva-se na necessidade de haver clareza na exposição, e de haver ordem na mesma, cooperando a parte, assim, na simplificação da tarefa dos demais operadores judiciários, e sobretudo permitindo à contra-parte uma inequívoca impugnação especificada de quanto ela articula;0
II. Na base dessa exigência formalista estão princípios basilares do direito processual: nomeadamente o princípio da «cooperação» e o do «contraditório»;
III. Os prejuízos de difícil reparação que integram o «periculum in mora» exigido na tutela cautelar não são aferidos pelo padrão do homem médio, como é costume fazer no âmbito da tutela jurisdicional dos danos morais, pois o que aí está em causa são prejuízos muito provavelmente causados ao real e concreto requerente cautelar.
*Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:Município de Ovar
Recorrido 1:VL(...)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
Relatório
O Município de Ovar [MO] interpõe recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro [TAF] em 26.10.2012 – que suspendeu a eficácia do despacho datado de 21.05.2012 em que o Presidente da Câmara Municipal de Ovar [CMO] ordenou, a título preventivo e até à conclusão do respectivo processo disciplinar, a transferência do trabalhador VL(...)da B(…) de E(…) para o M(…) de A(…)a sentença recorrida foi proferida no âmbito de processo cautelar em que o ora recorrido VL(…) demanda o MO formulando ao TAF a pretensão conservatória que acabou por ver deferida.
Conclui as suas alegações da forma seguinte:
1- Por força do disposto no artigo 114º, nº3 g), do CPTA, o requerimento inicial da providência impetrada teria de ter sido deduzido por artigos;
2- Conforme o TAF expressamente declarou [e os autos mostram], o requerente não articulou aquela peça processual;
3- Nestas condições, o TAF deveria ter notificado o requerente para suprir a falta, sob pena de rejeição do pedido [artigo 116º, nº2 a), do CPTA];
4- «A norma que manda articular as peças processuais não é despicienda: ela visa obrigar as partes a exporem com clareza as suas pretensões.
Simultaneamente, simplifica-se a tarefa de todos os operadores judiciários» [AC STJ de 05.06.1997, Rº376/97];
5- É essa, de resto, a única forma de permitir uma simples e inequívoca impugnação especificada dos factos do requerimento inicial, por referência aos artigos em que vêm alegados;
6- Ao apreciar a providência sem que o requerente tivesse corrigido a apontada deficiência, o TAF violou, por erradas interpretação e desaplicação, o estatuído nos artigos 114º nº3 g) e 116º nº2 a) do CPTA;
7- Na avaliação dos danos alegados pelo requerente, o que releva é estabelecer se o acto suspendendo é, típica ou normalmente, apto a produzir aqueles efeitos num homem médio colocado na situação daquele, sendo inatendível uma qualquer específica ou patológica sensibilidade que, porventura, se verifique em concreto;
8- No caso vertente, é manifesto que isso não sucede, porquanto o acto suspendendo pode ser tomado como acto simples e normal de gestão de pessoal, independente da pendência de processo disciplinar, e não tem, por isso mesmo, carácter minimamente vexatório ou infamante;
9- Mostra-se, pois, erradamente aplicado o preceito do artigo 120º nº1 alínea b) do CPTA;
10- O TAF incorreu em erro de julgamento, ao sustentar, em parte, a inexistência de prejuízo para o interesse público no facto de a participante dos factos que deram origem ao processo de inquérito ter passado a frequentar outra b(…), que não aquela em que o requerente prestava serviço, quando a conclusão a tirar deveria ter sido exactamente a inversa: tanto a presença do ora recorrido no local era prejudicial para o interesse público que pelo menos uma utente se viu forçada a passar a frequentar outra b(…), porque - e só porque - naquela se encontrava o requerente!
11- Não sendo exigível que os cidadãos suportem ser alvo do assédio narrado no PA pela participante e estando este indiciariamente provado nos autos, não podem os órgãos municipais deixar de tutelar os direitos e interesses legítimos da munícipe queixosa?!
12- A manutenção da situação poria em causa o interesse público, com a limitação da prossecução das atribuições do município, em matéria de educação e cultura, e deixaria ferida a imagem do Município, como pessoa de bem e respeitadora da legalidade e dos direitos dos cidadãos;
13- A ponderação de interesses imposta pelo ditame do artigo 120º nº2 do CPTA impediria também, o decretamento da providência. Ao decidir o oposto, o TAF ofendeu o citado preceito.
Termina pedindo a revogação da sentença recorrida, o convite do requerente cautelar a articular a peça inicial, e, de todo o modo, a improcedência da pretensão cautelar.
O recorrido apresentou contra-alegações - «corpo» das alegações: 143 pontos; «conclusões» das alegações: 194 pontos.
O Ministério Público pronunciou-se a favor do não provimento do recurso jurisdicional [artigo 146º, nº1, do CPTA].
A esta pronúncia não houve qualquer reacção das partes.
De Facto
São estes os factos considerados indiciariamente provados na sentença recorrida:

A) O Requerente exerce funções na CMO(…), há mais de 17 anos – ver PA [processo individual];

B) O Requerente reside em (…);

C) O Requerente frequenta o curso de Direito da Universidade de Coimbra, encontrando-se nesta altura no 3º ano daquele curso – facto não impugnado;

D) Desde o ano de 2009 o Requerente encontra-se a exercer funções na Biblioteca de (…) – ver PA [processo individual];

E) Na sequência de participação de uma utente daquela B(…) autuada e registada sob o nº10385 foi instaurado contra o Requerente um processo de inquérito, por alegadamente o Requerente ter acedido a meios informáticos para obter o número de telemóvel da referida utente da B(…) de (…), de nome J(…), com (…) anos de idade e através daquele método, alegadamente ter enviado para a mesma uma mensagem, convidando aquela para tomar um café no bar do Hotel (…), sito em Esmoriz – ver Processo de inquérito juntos aos autos pela Entidade requerida;

F) Foi nomeada como instrutora do referido inquérito a Drª SB(…), a qual elaborou, após diligências instrutórias efectuadas, o Relatório nºPI-DAF/--/V/2012, da qual consta entre o demais o seguinte:



ver folhas 40 e seguintes do Processo de Inquérito;

G) Sobre o referido Relatório foi exarado no dia 21 de Maio de 2012 pelo Presidente da Câmara Municipal de Ovar o seguinte Despacho:

“Participe-se ao Ministério Público [como proposto]
Instaure-se processo disciplinar. Nomeio como instrutora a Drª SB(…).
Dê-se conhecimento ao Sr.º Vereador V(…) [RSH e Div. da Cultura sob a sua suspeição] continue sob a sua supervisão para colocar outro funcionário em (…) e reafectar o funcionário a outro serviço” ver folha 40 do Processo de inquérito;

H) Na sequência do referido Despacho foi instaurado processo disciplinar contra o Requerente designado por PI/DAF/V/---/2012, tendo em 28 de Maio de 2012 a instrutora nomeada dado início à respectiva instrução, e disso dado conhecimento ao Requerente – ver folhas 1 e seguintes do Processo disciplinar junto aos autos pela Entidade requerida;

I) Por comunicação de serviço n.º 01/2012/DC enviada ao Requerente via email em 29.05.2012 foi o Requerente notificado da decisão colocação do mesmo no M(…) de Arada a partir de 31 de Maio de 2012 – ver folha 14 do Processo disciplinar;

J) Consta da referida comunicação o seguinte:

K) No âmbito do referido procedimento disciplinar, o Requerente apresentou a sua defesa por escrito, alegando, entre o demais, vícios processuais relacionadas com a falta de notificação da participação, em violação do princípio do contraditório, da igualdade e das garantias de defesa consagradas na Constituição da República Portuguesa, violação da lei, por em sede de Inquérito a Senhora Instrutora ter inquiriu a dita J(…) o ora Requerente e apenas duas das oito testemunhas por si arroladas, existindo assim manifesta falta de promoção de diligências essenciais para a descoberta da verdade, o que consubstancia nulidade de todo o processo disciplinar; negando ter praticado qualquer infracção de natureza disciplinar, pois não foi o autor do envio da mensagem supra indicada para a referida utente, constando dos autos uma declaração proferida por RL(…), assumindo a pratica de tal acto, tendo confessado que se apropriara abusivamente do telemóvel do Requerente — para remeter sem o seu consentimento uma mensagem à referida utente, fazendo-se passar pelo Requerente seu Irmão com a intenção de o animar e de facilitar o encontro de uma cara metade — namorada, pois via-o bastante triste e abatido, em virtude de o mesmo ainda não ter a sua parte afectiva preenchida ou estabilizada, já que o mesmo após o seu divórcio, teve um segundo relacionamento que durou quase dois anos, tendo após isso, duas ou três relações afectivas, mas que terminaram de modo consensual, e que se considera assente que a dita RL(…) encontrou no interior da (…) uma agenda, da qual retirou o número de telemóvel de uma tal J(…), que era o primeiro nome que aparecia naquela, tendo, pois, tal escolha sido aleatória – ver PA, designadamente folhas 226 e seguintes;

L) Consta dos autos disciplinares uma declaração proferida por RL(…), com o seguinte teor:

ver folha 69 dos autos e PA;

M) Após a aplicação da referida medida de transferência do Requerente, este adoeceu, tendo apresentado baixa médica – ver certificado de incapacidade temporária para o trabalho constante do PA [processo individual do Requerente];

N) O Requerente está afastado das suas funções profissionais na (…), desde 31 de Maio de 2012;

O) A paragem da sua actividade profissional na (…), mexeu com a saúde do Requerente de modo grave, porquanto implica uma alteração brusca das suas rotinas diárias – facto não especificadamente impugnado; ver atestado médico a folha 63 e certificado de incapacidade temporária para o trabalho constante do Processo individual do Requerente;

P) O Requerente é uma pessoa com saúde frágil, entrando rapidamente em depressão associada a uma distúrbio de ansiedade (vulgares ataques de pânico), quando as suas rotinas mudam bruscamente obrigando-o o ser medicamente seguido – facto não especificadamente impugnado; ver atestado médico a folha 63;

Q) A execução da ordem de transferência do Requerente da (…) de Esmoriz para o Museu de (…), obriga-o a fazer um trajecto diário de 80 Km;

R) Conforme resulta do Relatório Médico juntos aos autos pelo Requerente, o mesmo frequenta datado de 8 de Junho de 2012 o mesmo frequenta a consulta do Dr. AL(…), que exerce funções na clínica médica psiquiátrica de Ovar, devido a sofrer de transtorno de humor (depressão) e transtorno fóbico ansioso graves, de evolução prolongada, enxertados numa personalidade com traços ansiosos obsessivos, com baixa tolerância a situações de contrariedade e perturbação do seu quotidiano, com história de agravamento insidiosos e de agudizações múltiplas, ultimas das quais (....) na sequência da morte da sua mãe há cerca de um mês, pelo que (...) a eventual mudança de sector laboral do paciente, por alteração na rotina agravará o seu quadro clínico, colocando-o numa situação de absoluta incapacidade laboral – ver folha 63;

S) O afastamento do Requerente do cargo de funcionário da BM(…) de Esmoriz traz-lhe um sentimento de enorme tristeza e grande desmotivação – facto não especificadamente impugnado;

T) Desde a prática do acto em causa ao Requerente, o mesmo passa muitas noites sem conseguir dormir, tendo até já desmaiado – facto não especificadamente impugnado;

U) Dão-se como reproduzidos os elementos clínicos juntos aos autos pelo Requerente a folha 208 [consulta e certificado de incapacidade temporária para o trabalho por doença de 31.08.12 a 29.09.12];

V) O Requerente propôs a presente acção em 31.07.2012 acompanhada de requerimento de protecção jurídica na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos no processo que apresentou na delegação regional de Ovar da Segurança Social requerimento;

W) A fls. 168 dos autos veio o Requerente informar os autos que o requerido apoio judiciário foi parcialmente deferido, permitindo o pagamento da taxa de justiça e demais encargos do processo de modo faseado;

X) A utente participante dos factos que deram origem ao processo do inquérito e disciplinar identificados supra, e no seio do qual foi proferida a decisão de transferência do Requerente da BM(…) de Esmoriz para o NM(…) frequenta agora a BM(…) de Ovar, aqui efectuando as consultas e requisições que necessita – ver auto de declarações inserto no Processo de inquérito a folha 241 e seguintes.


De Direito
I. Cumpre apreciar as questões suscitadas pelo ora recorrente, o que deverá ser efectuado dentro das balizas estabelecidas, para o efeito, pela lei processual aplicável - ver artigos 660º nº2, 664º, 684º nº3 e nº4, e 685º-A nº1, todos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 140º do CPTA, e ainda artigo 149º do CPTA.

II. A sentença recorrida decretou a suspensão de eficácia do despacho de 21.05.2012 do Presidente da CMO que ordenou, a título preventivo e até conclusão do processo disciplinar, a transferência do requerente cautelar da B(…) de Esmoriz para o M(…) de Arada.
Fê-lo por entender que estava perante pretensão com natureza conservatória, e que se verificava, em concreto, o fumus non malus juris e o periculum in mora exigidos pela alínea b) do nº1 do artigo 120º do CPTA, e, ainda, que a tal decretamento não se opunha a ponderação de interesses e danos exigida pelo nº2 desse mesmo artigo.
O requerido cautelar, MO, discorda desta decisão judicial por entender estar errado o julgamento de direito feito pelo TAF quanto ao periculum in mora [conclusões 7ª a 9ª] e quanto à ponderação de interesses e danos [conclusões 10ª a 13ª]. Discorda, ainda, do facto de o TAF não ter notificado o requerente cautelar para reduzir a artigos o conteúdo do requerimento inicial, o que, a seu ver, configura uma deficiência que viola os artigos 114º, nº3 alínea g), e 116º, nº2 alínea a), do CPTA [ver conclusões 1ª a 6ª].
À apreciação desses invocados erros de julgamento se reduz, pois, o objecto deste recurso jurisdicional.

III. Da falta de «articulação» do requerimento cautelar.
O requerente cautelar «deve especificar de forma articulada os fundamentos do pedido […]» [artigo 114º, nº3, alínea g), do CPTA], sendo que se essa falta de «especificação articulada» não for por ele «suprida na sequência de notificação para o efeito», isso constitui «fundamento de rejeição» do requerimento cautelar [artigo 116º, nº2 alínea a), do CPTA].
No estrito cumprimento destas normas legais, deveria o TAF, pois, ter proferido despacho liminar a mandar notificar o requerente para suprir a falta de especificação articulada dos fundamentos da sua pretensão. O que não fez.
Deste modo, à irregularidade imputável ao requerente cautelar, adicionou-se a irregularidade do próprio tribunal, na medida em que omitiu o cumprimento de uma exigência que a lei prescreve.
A primeira irregularidade promana de ignorância ou descuido, e era, como vimos, sanável em face da lei.
A irregularidade imputável ao tribunal, que não proporcionou tal sanação, omitindo despacho que a lei prescreve, será fundamento de nulidade processual «se influir no exame ou decisão da causa», com as consequências descritas na lei [artigo 201º do CPC ex vi 1º CPTA].
A exigência de «especificação articulada» dos fundamentos do pedido louva-se na necessidade de haver clareza na exposição, e de haver ordem na mesma, cooperando a parte, assim, na simplificação da tarefa dos demais operadores judiciários, e sobretudo permitindo à contra-parte uma inequívoca impugnação especificada de quanto ela articula.
Na base dessa exigência formalista estão princípios basilares do direito processual: nomeadamente o princípio da cooperação e o do contraditório [ver artigos 266º e 3º do CPC].
A decisão do erro de julgamento invocado pelo ora recorrente passa, portanto, por aferirmos se a omissão, que existiu de facto, da notificação do requerente cautelar para reduzir a artigos os factos e razões de direito que integram a sua peça inicial, influiu no exame ou decisão da pretensão cautelar. Se a resposta for positiva, estaremos não apenas perante errado julgamento de direito mas perante uma omissão ilegal e sancionada com nulidade processual. Se a resposta for negativa, o princípio antiformalista, pro actione ou in dubio pro habilitate instantiae [artigo 7º do CPTA] sugere-nos o aproveitamento do processado.
Ora, devidamente ponderada a oposição deduzida pelo MO, e sem prejuízo de nela ter sido invocada desde início a referida falta de redução das proposições do requerimento cautelar a artigos, o certo é que isso não prejudicou substancialmente a sua impugnação quer dos factos quer das razões de direito nele vertidas. Na verdade, o município requerido declarou aceitar apenas «os factos comprovados pelo processo administrativo» que juntou, manifestou entendimento de que «não se verifica nenhum dos requisitos que poderiam conduzir ao decretamento da providência», e, quanto aos prejuízos invocados, disse que «não só não são de difícil reparação como, a existirem, não apresentam sequer gravidade suficiente para merecerem a tutela do direito».
Como vemos, o requerido manteve eficazmente na esfera do ónus de prova do requerente cautelar o lastro factual necessário ao preenchimento dos requisitos indispensáveis ao decretamento da providência conservatória requerida, apenas admitindo o que resulta do processo administrativo.
Entendemos, portanto, que apesar da referida omissão ilegal, que impediu a sanação da deficiência patenteada pelo requerimento cautelar, não resultaram, a nosso ver, substancialmente prejudicados os princípios que enformam esses ditames formais, e, sobretudo, tal omissão não influiu no exame e decisão da pretensão cautelar.
É neste sentido, e com esta relevância, que decidimos julgar improcedente o erro de julgamento de direito levado às 6 primeiras conclusões do recorrente.
IV. Dos erros de julgamento de direito quanto ao «periculum in mora» e à «ponderação de interesses e danos».
A sentença recorrida faz uma boa introdução ao requisito legal do «periculum in mora».
Nela se sublinha que cabe ao requerente cautelar alegar e provar sumariamente os factos que integrem o fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que ele visa assegurar no processo principal, que esse fundado receio significa um juízo de realidade ou próximo da certeza, e não de mera probabilidade, e que cabe ao julgador cautelar indagar, colocando-se na situação futura de uma hipotética sentença de procedência da acção principal, se existem ou não razões para temer que tal decisão venha a tornar-se inútil [sem qualquer alcance prático] por entretanto se ter consumado uma situação de facto incompatível com ela, ou por se terem produzido prejuízos dificilmente reparáveis para quem dela pretende beneficiar, que obstem à reconstituição natural ou à reintegração da esfera jurídica do beneficiado com a sentença.
E nesta base teórica, segura, suportada pela doutrina e pela jurisprudência, faz-se na sentença recorrida o seguinte julgamento da situação concreta:
[…]
Termos em que, tendo o requerente logrado demonstrar, indiciariamente, e em síntese, que o seu afastamento do cargo de funcionário da Biblioteca de Esmoriz e o impedimento de exercer, de futuro, as mesmas funções no mesmo domicilio profissional o levou a adoecer, agravando-se a sua saúde a cada dia que passa, trazendo-lhe um sentimento de enorme tristeza e grande desmotivação, passa muitas noites sem conseguir dormir, tendo até já desmaiado, juntando um atestado médico datado de 08.06.2012 do qual consta não só que o requerente frequenta a consulta do Dr. AL(…), que exerce funções na clínica médica psiquiátrica de Ovar, “devido a sofrer de transtorno de humor [depressão] e transtorno fóbico ansioso graves, de evolução prolongada, enxertados numa personalidade com traços ansiosos obsessivos, com baixa tolerância a situações de contrariedade e perturbação do seu quotidiano, com história de agravamento insidiosos e de agudizações múltiplas, últimas das quais [...] na sequência da morte da sua mãe há cerca de um mês, pelo que [...] como também que “a eventual mudança de sector laboral do paciente, por alteração na rotina agravará o seu quadro clínico, colocando-o numa situação de absoluta incapacidade laboral”.
Consequentemente, face ao factos considerados indiciariamente assentes neste processo, o julgador pode concluir, num juízo de quase-certeza, que se não conceder a providência requerida e a entidade requerida avance com a execução do acto suspendendo, muito provavelmente o requerente verá a sua situação de saúde agravada nos moldes em que alegou e provou. Danos que merecem a tutela de direito por configurarem um dano à saúde que atingem um grau de gravidade merecedor de protecção jurídica, integrando por isso a categoria de prejuízos de difícil reparação.
Ou seja, tais prejuízos, reportados à esfera do requerente, conforme os elementos tidos por assentes, enquadram-se na figura de prejuízos de difícil ou impossível reparação, pois que atenta a sua natureza são de impossível compensação por qualquer quantia monetária.
Prejuízos que sendo susceptíveis de configurar danos de impossível ou de difícil restauração natural, no plano dos factos, e conforme à legalidade, levarão a que uma eventual decisão favorável no processo principal seja inútil. Com efeito, atendendo à morosidade normal do processo principal do qual depende a presente providência, para efeitos de decisão final [considerando ainda o tempo necessário para os recursos que da decisão dessa acção possam ser interpostos, e que têm efeito suspensivo da decisão recorrida], quando tal acção principal for julgada, já o requerente se poderá encontrar numa situação clínica mais grave, não se acautelando assim, em tempo útil, os direitos e interesses legítimos que visa assegurar no processo principal...
Em síntese, os factos considerados indiciariamente assentes neste processo cautelar consubstanciam factos concretos susceptíveis de indiciarem a verificação de prejuízos reais na esfera jurídica do requerente, directamente causados pela eventual execução do acto suspendendo, e que são de difícil ou impossível reparação.
Julga-se, assim, verificado o requisito da alínea b) do artigo 120º do CPTA, na parte respectiva.
[…]
O recorrente, MO, não aponta erro de julgamento de facto à sentença recorrida, discorda é da relevância que nela foi dada às repercussões, sumariamente provadas, da transferência provisória do local de trabalho do ora recorrido, pois que, a seu ver, excedem as que seriam de esperar do homem médio colocado na sua situação, e entram no domínio do patológico.
Não é descabida esta apreciação do recorrente, mas, apesar disso, não impõe que este tribunal ad quem altere o julgamento do tribunal a quo.
Do provado resulta, na verdade, que a transferência preventiva e provisória, até à decisão do processo disciplinar, do ora recorrido, da «B(…) de Esmoriz» para o «M(…) de Arada», com a alteração brusca das suas rotinas diárias, teve nele uma repercussão que, no entender do recorrente, é objectivamente desproporcionada.
Sendo pessoa de saúde frágil, dada a depressões e ataques de pânico, ainda por cima com o falecimento temporalmente próximo da sua mãe, adoeceu de modo grave, entrou de baixa médica, sofre de perturbações do sono, de enorme tristeza e grande desmotivação, chegando mesmo a desmaiar [pontos M, O P, R, S e T do provado], sendo que o médico que o assiste, e subscreve substancialmente esse quadro de doença, assegura que a eventual mudança de local de trabalho, pelo que significa de alteração da sua rotina, agravará esse quadro clínico colocando-o numa situação de absoluta incapacidade laboral [ponto R do provado que remete para o «Relatório Médico» de folha 63 dos autos].
Não é o padrão do homem médio, colocado na situação do ora recorrido, que deve ser aqui chamado à colação, tal como o costuma ser no âmbito da aferição da tutela jurisdicional dos danos morais.
Neste âmbito, da tutela cautelar, não está em causa indemnizar os danos acontecidos, mas antes evitar danos futuros provavelmente provocados pela demora do processo principal. O fundado receio de que ocorram estes danos já não tem a ver com o padrão do homem médio, antes é um fundado receio estribado na personalidade, e na situação mais ou menos sadia de um homem real.
Assim, se há lastro factual suficiente para convencer o julgador cautelar, e há, de que a transferência de local de trabalho, por muito preventiva e transitória que seja, perturba gravemente a saúde pelo menos psíquica do requerente, não lhe resta senão julgar preenchido o requisito do «periculum in mora» na vertente do fundado receio da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que ele visa assegurar na acção principal.
Se não temos dúvidas de que esta conclusão estaria certa no caso de se tratar do fundado receio da perturbação ou agravamento de doença física, também não as deveremos ter por estar sobretudo em causa perturbação e agravamento de doença psíquica, pois em ambos os casos é o bem inestimável da saúde que está em causa.
O fundado receio de agravamento da situação clínica do ora recorrido, sabe-se lá com que consequências, constitui, portanto, um quadro integrador do periculum in mora que é exigido pela alínea b) do nº1 do artigo 120º do CPTA, sendo indiferente para o efeito, a nosso ver, que tal quadro se mostre objectivamente desproporcionado em termos da sua aferição pelo padrão reactivo do homem médio que fosse colocado em idêntica situação.
Deve manter-se, pois, o julgamento realizado pelo tribunal de instância relativamente à procedência do «periculum in mora».

Voltemo-nos agora para a «ponderação de interesses e danos» feita na sentença recorrida.
Verificados que se encontram os requisitos do fumus non malus juris [2ª parte da alínea b) do nº1 do artigo 120º do CPTA], que o recorrente não pôs em causa, e do periculum in mora [1ª parte da alínea b) do nº1 do artigo 120º do CPTA, que este tribunal superior confirma, importa, na verdade, proceder à ponderação de interesses e danos imposta pelo nº2 do mesmo artigo 120º do CPTA. Nele se estipula que apesar da verificação desses dois requisitos, a adopção da providência será recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados, em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pelam adopção de outras providências.
Na sentença recorrida o tribunal a quo sublinha, e muito bem, louvando-se até em jurisprudência deste mesmo tribunal, que o que está em causa nesta ponderação não é o interesse público que está subjacente à prática do acto suspendendo, pois esse já encontrou resposta na prolação do mesmo, mas antes os interesses específicos, públicos ou privados, cuja intensidade exija a produtividade imediata de efeitos do acto, devido aos danos que para eles provavelmente resultarão da suspensão da sua eficácia.
Trata-se, pois, e fundamentalmente, de ponderar os danos ou prejuízos a esses interesses específicos, públicos ou privados, que resultariam da concessão ou da recusa da pretensão cautelar pedida ao tribunal. Se o juízo cautelar for no sentido da superioridade dos danos que resultariam da concessão, o tribunal recusa. Se o juízo cautelar for no sentido da superioridade dos danos que resultariam da recusa, o tribunal concede.
O julgamento concreto da sentença recorrida foi do seguinte teor:
[…]
Nesta sede, o requerente alegou que da adopção da presente providência não advirá qualquer prejuízo para o interesse público sendo que a entidade requerida, neste contexto, limita-se a alegar que a não execução do acto suspendendo trará prejuízos para “a imagem do serviço da B(…), com uma utente, pelo menos, que se sente coagida a deixar de entrar no local, dada a presença do requerente.”
Ora, os argumentos apresentados nesta sede pela entidade requerida consubstanciam em parte o fundamento do próprio acto suspendendo [“a imagem do serviço da B(…)...”], e não a invocação de prejuízos concretos e suficientes para o interesse público invocado. Não sendo bastante para preencher este requisito [verificação de danos para o interesse público causados pela adopção da presente providência, superiores aos que resultariam da sua recusa] a alegação de que existe pelo menos “uma utente, que se sente coagida a deixar de entrar no local, dada a presença do requerente”.
Sendo que, resulta ademais do probatório que a referida utente, participante dos factos que deram origem ao processo do inquérito e disciplinar identificados supra, e no seio do qual foi proferida a decisão de transferência do requerente da «BM(…) de Esmoriz» para o «NM(…) de Arada», frequenta agora a BM(…) de Ovar, aqui efectuando as consultas e requisições que necessita.
Pelo que forçoso é concluir não ocorrer no caso sub judice qualquer dano especifico ao interesse público que prevaleça sobre os interesses privados do requerente supra referenciados e que justifique a não suspensão de execução do acto suspendendo.
Termos em que, ponderados os interesses em presença, os danos e prejuízos indiciariamente provados, considera-se que da concessão da presente providência não resultam danos ponderosos para o interesse público superiores aqueles que poderiam resultar para o requerente com a recusa da presente providência – ver nº2 e nº5 do artigo 120º do CPTA.
[…]
O recorrente discorda deste julgamento fundamentalmente por duas razões: - primo porque o facto de a participante ter passado a frequentar a «B(…) de Ovar» e não o seu pólo de «Esmoriz» é um dano ao interesse público que sobreleva eventuais danos causados ao requerente; secundo porque a manutenção da situação limitaria a prossecução das atribuições do município em matéria de educação e cultura, e deixaria ferida a sua imagem de respeitador da legalidade e dos direitos dos cidadãos.
Note-se que não está em causa, nesta sede cautelar, abençoar ou sancionar comportamentos. Isso será feito na sede própria, seja disciplinar, seja penal, ou sejam ambas.
Neste âmbito cautelar, o requerente, presumido inocente, que impugnou ou vai impugnar a legalidade do acto que o transferiu de local de trabalho até ser decidido o processo disciplinar que lhe foi instaurado, apenas visa evitar os danos que para ele resultarão, com muita probabilidade, da demora em obter uma decisão definitiva em tal processo judicial impugnatório.
É assim, de uma forma juridicamente asséptica, que deveremos abordar a ponderação de interesses e danos em causa.
No caso concreto, como se constata das conclusões do relatório do processo de inquérito e do teor do acto suspendendo [pontos F) e G) do provado], a medida preventiva de transferência foi imposta ao recorrido por se entender haver prejuízo «para o serviço, no sentido em que existe uma utente do mesmo que se coíbe de o utilizar».
Ora, este interesse público, que obviamente tem a ver com a imagem da bm(…), que deve estar aberta e disponível, sem quaisquer constrangimentos, a todos os munícipes, é o que subjaz à prolação do despacho que ordena a transferência de local de trabalho do ora recorrido. E ele não poderá ser simplesmente repetido em sede de ponderação de interesses e danos como motivo justificativo da recusa da suspensão de eficácia.
O recorrente, enquanto requerido cautelar, deveria ter alegado algo de mais específico em termos de prejuízos, dado que aquilo que invoca em termos de lesão da sua imagem e limitação do exercício das suas atribuições em matéria educativa e cultural não surge como manifesto ou ostensivo [nº5 do artigo 120º do CPTA].
Efectivamente, não são os eventuais prejuízos à participante e utente da biblioteca que estão aqui em causa, mas os que respeitam à entidade requerida, e a verdade é que não surge como manifesto que essa utente, participante, tenha confundido a «imagem e o bom nome do Município de Ovar» com a conduta eventualmente menos própria de um seu trabalhador, tanto mais que ela continuou a frequentar a mesma bm, embora não o fazendo no pólo de «Esmoriz».
Esta alteração de comportamento por parte da utente traduz-se certamente em alguns transtornos para a mesma, é natural. Mas não tem de ser o MO a assumir as suas dores de forma a sobrelevar os danos provavelmente causados ao recorrido com a aplicação da dita medida preventiva.
Assim, embora se compreenda a opção feita pela mesma, e a sua aplicação preventiva e provisória não traduza qualquer pré-juízo sancionatório da conduta investigada, certo é que a aplicação dessa medida gera um fundado receio de danos à saúde do recorrido, nos termos acima referidos, que sobrelevam os eventualmente causados ao interesse público tal como foram invocados pelo recorrente.
Deve, por conseguinte, ser negado provimento ao recurso do MO, e ser mantida a sentença recorrida do TAF de Aveiro.
Assim se decidirá.
DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal Central, em conferência, negar provimento ao recurso jurisdicional e manter a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente artigos 446º do CPC, 189º do CPTA, e regras do RCP [alterado pela Lei nº7/2012 de 13.02] e Tabela I-B a ele Anexa.
D.N.
Porto, 22.02.2013
Ass.: José Veloso
Ass.: Fernanda Brandão
Ass.: Isabel Soeiro