Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01389/04.8BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:05/25/2016
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:OPOSIÇÃO
GERÊNCIA DE FACTO VS GERÊNCIA DE DIREITO
Sumário:I - Para responsabilizar subsidiariamente o gerente pelas dívidas tributárias da sociedade, não basta a outorga de poderes «nominais» de gerência, exige-se precisamente o exercício dessas funções, o exercício efectivo dos poderes que recebe, e não apenas a aparência do seu exercício.
II - A responsabilização subsidiária pressupõe o poder de controlar e determinar a vontade social, definindo o seu rumo e estratégia e tudo o que se relaciona com a sua estabilidade, progresso ou sobrevivência, exteriorizando as suas opções, incluindo as de pagar, ou não pagar, as dívidas tributárias.
III - A distinção entre o mero gerente nominal do gerente efectivo reside no poder subjacente à realização dos actos. O gerente nominal, ou «meramente de direito», pode praticar actos aparentes de gerência, mas fá-lo desacompanhado dos inerentes poderes, normalmente a «mando» de alguém que na organização societária se resguarda de «assinar» e comprometer-se, mas que ainda assim detém o poder efectivo de controlar os destinos da sociedade incluindo os de «mandar assinar» documentos da sociedade, como gerente, alguém que, de facto, o não é.
IV - Estas situações ocorrem na maior parte das vezes num contexto em que, de um lado, está o «gerente efectivo», regra geral o detentor do capital e do poder que lhe subjaz, que oculta essa qualidade (normalmente por dificuldades de financiamento junto da banca devido a antecedentes de incumprimento, ou por restrição do uso de cheques, etc.; do outro lado, está (quase sempre) um sujeito numa relação de dependência (filho, empregado, cônjuge) ou de favor, que por isso aceita «assinar», ou «dar o nome».
V - Quando assim procede, quando «assina» ou «dá o nome», não o faz no uso de qualquer critério de oportunidade ou prossecução de interesse estatutário que não domina, mas sim para satisfazer um interesse pessoal alheio ao qual está vinculado ou subordinado por razões «não estatutárias».
VI - Neste cenário, o mero gerente de direito pratica actos formais de gerência; porém, fá-lo na dependência do gerente efectivo que lhe determina a «oportunidade», o «que», o «como» e o «quando» fazer. A sua função «esgota-se» nas assinaturas e não «pode» (porque não tem o poder) ir para além disso.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:Fazenda Públicaa
Recorrido 1:J...
Decisão:Negado provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

A Excelentíssima Representante da Fazenda Pública interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, proferida em 29/04/2011, que julgou procedente a oposição deduzida por J…, contribuinte fiscal n.º 1…, contra a execução fiscal n.º 1872200301008552, contra si revertida e originariamente instaurada contra a sociedade “F…, LDA.”, por dívidas relativas a IVA do ano de 2002, no montante de €16.258,35.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
«A douta sentença recorrida julgou a oposição procedente, determinando, consequentemente, a extinção da execução quanto à reversão contra o oponente por ter concluído que:
“A Administração Fiscal limitou-se a reverter a execução contra o oponente porque o mesmo constava como gerente da primitiva devedora e não lhe haviam sido encontrados bens suficientes para garantir a dívida.
Sucede que, FP não fez prova qualquer prova de que o oponente tenha exercido de facto as funções de gerente, designadamente não juntou prova documental que sustentasse a reversão feita.”
B - A Fazenda Pública, não se conforma com o probatório fixado, atentas as soluções de direito configuráveis para a decisão da causa, assim como com a aplicação do direito efectuada, especificando quanto ao primeiro aspecto:
B.1. discorda dos factos dados como provados no segmento final dos pontos i), j) e com o ponto k), porquanto da concatenação dos elementos probatórios é manifesta a contradição com os factos exarados nos pontos f), g) e segmento inicial do ponto j);
B.2. discorda do facto dado como não provado.
C - No que concerne à alínea i), não pode ser dado como provado que o oponente se limitava a desempenhar a função de técnico de assistência e de montagens, no que concerne à alínea j) não pode ser dado como provado que quem tratava de tudo na empresa era o Eng. L… e no que concerne à alínea k) não pode ser dado como provado todo o seu teor, quando muito pode ser considerado que as testemunhas tinham a percepção de que assim era.
D - Afere-se dos autos que o oponente era gerente, exercendo efectivamente o cargo, através da assinatura conjunta que era necessária para vincular a sociedade perante terceiros, mantendo-se esta forma conjuntiva de obrigar a sociedade, desde 1982, até ao período a que se reporta a dívida e na data do seu vencimento.
E - Mais se afere, que o oponente exercia a sua actividade na sociedade, sendo remunerado pelas suas funções e assinando os cheques e demais documentos necessários ao giro comercial, dedicando a sua atenção especialmente ao sector de montagens de equipamentos de frio e os outros gerentes aos assuntos administrativos.
F - O facto de alguns gerentes se ocuparem de determinados sectores mais operacionais inerentes ao desenrolar da actividade da empresa enquanto outros gerentes se ocupam de tarefas mais administrativas, não implica que se esqueça a necessidade da intervenção conjunta de todos eles para vincular a sociedade, o que implica a co-actuação de todos eles nos aspectos fundamentais da vida da empresa.
G - Os gerentes delimitaram áreas em que cada um intervinha mais directamente e confiavam uns nos outros, sem contudo terem ao longo dos anos alterado a forma de obrigar da sociedade que exigia a intervenção conjunta de todos os gerentes.
H - Tal facto é elucidativo de que, pese embora existisse divisão de tarefas e confiança recíproca, não se abdicasse de que o exercício da gerência fosse conjuntivo, caso contrário, não se teria mantido como manteve a forma de obrigar a sociedade e ter-se-iam simplificado procedimentos com a aposição de fórmula disjuntiva no modo de obrigar a sociedade.
I - O oponente tinha consciência da necessidade da sua assinatura para vincular a sociedade e assinava os cheques que lhe dessem a assinar os outros sócios e gerentes com quem conjuntamente exercia a gerência, não tendo renunciado ao cargo nem tendo deixado de assinar os documentos necessários à continuação em actividade da empresa, até ao período a que respeita a dívida.
J - O oponente afirma que assinava cheques e outros documentos que lhe eram apresentados sem deles tomar conhecimento e sem tomar decisões sobre o rumo da empresa o que não é congruente com a sua afirmação que “de todo o modo sempre a gerência actuou sem qualquer culpa na falta de pagamento das contribuições”, porquanto alhear-se do modo de gestão da sociedade, voluntariamente, desconhecendo o destino e as decisões subjacentes à assinatura de cheques e de outros documentos que vinculavam a empresa não é compatível com o conhecimento e com a afirmação de que sempre a gerência actuou sem qualquer culpa na falta de pagamento das contribuições.
K - Se não se controla a forma como são preenchidos e o destino que vai ser dado aos cheques e demais documentos assinados, isso permite que outrem os utilize para fins alheios à empresa, depauperando o seu património e impedindo a satisfação dos seus créditos e não permite a quem assim actuou, de forma alheada à gestão da sociedade, estar munido do conhecimento acerca do modo dessa gestão que lhe permita afirmar que “sempre a gerência actuou sem culpa na falta de pagamento das contribuições”.
L - Ou bem que o oponente afirma que se alheava da gerência da empresa não fazendo parte das decisões tomadas nem quando apunha a sua assinatura em cheques e outros documentos, ou bem que se afirma com conhecimento acerca dessa gestão para poder reputa-la de sem culpa na falta de pagamento das contribuições.
M - Ao anuir em apor a sua assinatura em cheques e outros documentos, dando ordens de pagamento em nome e no interesse da sociedade, o oponente assumia as decisões subjacentes, cooperando e co-responsabilizando-se no exercício de uma função própria de gerência, sendo irrelevante o facto de não praticar quaisquer outros actos em nome da sociedade.
N - Em suma, o oponente exerceu de facto funções de gerência da executada, na medida em que praticou actos em representação da mesma, vinculando-a em documentos escritos, apondo a sua assinatura com indicação da sua qualidade de gerente, tendo sido produzida prova documental nesse sentido e resultando também da confissão do oponente, não infirmando essa prova, o que em sede de inquirição de testemunhas foi afirmado, nem lhe retirando a validade o facto de os documentos juntos não se reportarem ao ano da dívida.
O - Concluindo-se pelo não exercício de facto da gerência, não havia demonstração de culpa a efectuar, já, ao invés, concluindo-se pelo exercício da gerência de facto como defendemos que se encontra verificado nestes autos, então, seria ao oponente que incumbiria demonstrar a falta de culpa uma vez que, no art. 24, nº 1 b) da LGT, estabelece-se a responsabilidade subsidiária do gerente pelas dívidas cujo prazo legal de pagamento ocorreu no exercício do seu cargo, desde que o mesmo não prove que lhe não é imputável a falta de pagamento.
P - O próprio oponente profere afirmações de onde se afere o exercício da gerência de forma nada zelosa e diligente, quando reconhece expressamente que assinou ordens de pagamento a favor de terceiros a instituições bancárias, dispondo dos fundos financeiros da sociedade (cheques), que deixava em branco sem cuidar de saber do destino que era dado a esses fundos.
Q - Assinar cheques em branco ou cheques previamente preenchidos mas que se ignora a que pagamentos se destinam, constitui uma forma negligente e censurável de gestão, por ter implicações directas na eventual dissipação dos proventos da sociedade gerida, constituindo, assim, um acto susceptível de afectar o património social e de potenciar a sua insuficiência.
R - Aceitar assinar esse tipo de cheques, demonstra concordância, tácita e negligente, com as directrizes e decisões tomadas sobre a gestão da empresa, tornando eficazes decisões quanto a pagamentos a efectuar, desse modo comparticipando na afectação do património social e tornando-se co-responsável pelo destino das receitas da sociedade, sem curar de saber as motivações e razões subjacentes a essas decisões.
S - Aferindo-se a culpa pela diligência de um bom pai de família, face às circunstâncias de cada caso, não pode considerar-se como actuação de um "bonus pater familiae" a assinatura de cheques de uma sociedade quando se não controla a forma como são preenchidos e o destino que lhes vai ser dado, pois que isso permite que outrem os utilize para fins alheios à empresa, depauperando o seu património e impedindo a satisfação dos seus créditos.
T - Dos elementos constantes do processo, não se conclui pelo afastamento da responsabilidade do oponente pelas dívidas em cobrança nos processos de execução fiscal, devendo os mesmos prosseguir os seus termos contra ele, após a suspensão dos autos, até que sejam excutidos os bens da originária devedora, motivo pelo qual não pode manter-se a douta decisão recorrida por violação do disposto nos art. 23º e 24º , nº 1 b) da LGT e art. 153º CPPT.
Termos em que, deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida.»
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Não houve contra-alegações.
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O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa decidir se a sentença recorrida enferma do invocado erro de julgamento, de facto e de direito.

III. Fundamentação

1. Matéria de facto

Na sentença prolatada em primeira instância, foi proferida decisão da matéria de facto com o seguinte teor:
“Com interesse para a decisão da causa resulta apurada a seguinte factualidade:
a) Por dívidas relativas a IVA do ano de 2002/08, no montante de €16.258,35, foi instaurada conta a sociedade “F…, Lda.” a execução fiscal nº 18722003010008552 (cf. fls. 21 dos autos). ---
b) Em 28/08/2001 foi prestada informação de que a devedora primitiva não possuía bens suficientes para garantir a dívida exequenda (cf. doc. de fls. 22 dos autos). --
c) Em 11/11/2003 foi proferido o projecto do despacho de reversão (cf. doc. de fls. 23 dos autos). ---
d) Em 19/11/2003, o oponente foi notificado para o exercício do direito de audição, o qual veio a exercer em 04/12/2003 (cf. fls. 24 e 25 dos autos). ---
e) Em 31/12/2003 foi proferido despacho de reversão, tendo o oponente sido citado da reversão em 13/01/2003 (cf. doc. de fls. 33 e 34 dos autos). ---
f) O oponente foi nomeado gerente da primitiva devedora em 27/12/1982, conjuntamente com L… e J… (cf. doc. de fls. 28 a 35 dos autos). ---
g) O oponente assinou em 01/09/1992, na qualidade de gerente da primitiva devedora, a carta remetida a M… na qual aceitava a renúncia à gerência e ao contrato de trabalho (cf. fls. 35v dos autos).
h) Em 30/01/1997 o oponente assinou em nome da primitiva devedora o “Anexo E” (cf. doc. de fls. 42 dos autos).
i) O oponente era técnico de assistência e de montagens, limitando-se a desempenhar essa função (cf. depoimento das testemunhas). ---
j) O oponente quando assinava cheques fazia-o em branco, e deixava-os no escritório, quem tratava de tudo na empresa era o Eng. L… (cf. depoimento das testemunhas). ---
k) O oponente era um colega de trabalho, não dava ordens a ninguém, tinha inclusive um chefe que mandava nele (cf. depoimento das testemunhas). ---
Factos não provados
Dos autos não resultou provado que o oponente tenha exercido de facto a função de gerente da primitiva devedora no período a que a dívida se reporta (Agosto de 2002), porquanto a fazenda pública não apresentou qualquer prova nesse sentido. ---
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O tribunal firmou a sua convicção nos documentos juntos aos autos e no depoimento das testemunhas arroladas. ---

2. O Direito

A Recorrente imputa à sentença erros de julgamento, de facto e de direito.
Antes de mais importa referir que as questões suscitadas no presente recurso, foram todas já objecto de apreciação neste TCAN, no Acórdão de 03/07/2015, proferido no âmbito do Processo n.º 1326/04.0BEPRT, em situação idêntica à dos presentes autos, verificando-se, aliás, total identidade das conclusões das alegações de recurso, e a cujo entendimento aderimos, sem reservas, razão pela qual nos limitaremos a reproduzir por transcrição, na integra e nos termos que se seguem, em prol da interpretação e aplicação uniformes do direito (artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil).
Aí se escreveu:
«Entre os fundamentos do recurso encontra-se o erro no julgamento da matéria de facto, sem qualquer reparo à sua fundamentação.
Entende a Recorrente que o tribunal recorrido não deveria ter dado como provados os factos, da parte final das als. g) e h) e os factos da al. i), nomeadamente que o oponente se limitava a desempenhar a função de técnico de assistência e de montagens e quem tratava de tudo na empresa era o Eng.º L…; quanto à al. i) não pode ser dado como provado o seu teor, quando muito as testemunhas tinham a perceção de que assim era Nos presentes autos, a Recorrente discorda dos factos dados como provados no segmento final dos pontos i), j) e com o ponto k), porquanto da concatenação dos elementos probatórios é manifesta a contradição com os factos exarados nos pontos f), g) e segmento inicial do ponto j). Contudo, estes pontos correspondem à mesma factualidade inserta nas alíneas g), h) e i) da decisão da matéria de facto no processo n.º 1326/04.0BEPRT..
A Recorrente não explica a razão pela qual o tribunal “a quo” errou nesta apreciação, descredibilização das testemunhas (?) não conhecimento direto e isento dos factos a que depuseram (?), quais as passagens dos depoimentos das testemunhas que não permitem concluir pelos factos indicados como provados, ou que contrariam o teor dos mesmos (?).
A discordância sobre a valoração da prova testemunhal produzida e sobre a convicção do julgador, sem precisar ou identificar o vício lógico em que se incorre não permite alteração da matéria de facto.
A alteração da matéria de facto nos moldes pretendidos pelo Tribunal de Recurso só poderá ocorrer em situações de erro manifesto ou grosseiro ou se os elementos documentais fornecerem uma resposta inequívoca em sentido diferente daquele que foi considerado em 1ª instância.
O erro deve ser evidenciado pela Recorrente, no caso da prova testemunhal a indicação exata das passagens da gravação, rejeitando-se a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, mas apenas de concretas questões de facto controvertidas, com indicação, no seu entender, de qual a decisão alternativa deve ser proferida pelo tribunal de Recurso, em sede de reapreciação dos meio de prova.
Por outro lado, considera existir nos factos provados contradição entre eles, os das als. g) a i) com os que constam da al. f) e segmento final da al. h), mas também aqui não explica em que se consubstancia a contradição, sendo que da leitura dos mesmos essa contradição não resulta clara nem evidente Trata-se da mesma alegação, onde a Recorrente discorda dos factos dados como provados no segmento final dos pontos i), j) e com o ponto k), porquanto da concatenação dos elementos probatórios é manifesta a contradição com os factos exarados nos pontos f), g) e segmento inicial do ponto j). Contudo, esta invocada contradição reporta-se à mesma factualidade inserta nas alíneas f) e h) da decisão da matéria de facto no processo n.º 1326/04.0BEPRT..
Na verdade, a Recorrente não deu cabal cumprimento ao ónus que sobre si recaía, de especificar os concretos pontos de facto que considerou incorretamente julgados e de indicar as passagens dos depoimentos transcritos em que se apoiou para os dar como não provados, excertos desses factos (art. 690ºA, nºs 1 e 2 do CPC).
Em vez disso, o Recorrente remeteu-se em bloco para o conteúdo dos depoimentos, ou seja, quedou-se por um recurso genérico contra a errada decisão da matéria de facto, atirando para o tribunal de recurso a tarefa de averiguar e adivinhar os factos que tinha em vista e as passagens dos depoimentos escritos que os confirmavam ou não confirmavam.
Aliás, o que a Recorrente pretende, do modo como estruturou o seu recurso, é uma repetição do julgamento da matéria de facto pelo tribunal de recurso, ou seja, um reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso.
Com efeito, a lei [art. 640º do CPC] impõe que na impugnação da matéria de facto o recorrente obrigatoriamente especifique, sob pena de rejeição:
a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [indicar a resposta que, no seu entender, deve ser dada às questões de facto impugnadas]. No caso de prova gravada, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
Razão porque ao abrigo de tal norma se rejeita o recurso nesta parte.
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Estabilizada a matéria de facto objeto de crítica no recurso, e, por isso, fixado o quadro factual, resta-nos agora analisá-lo à luz do direito, para daí emergir a solução do caso e saber se a sentença fez uma errada apreciação dos factos em ordem ao direito que foi aplicado.
Entende a Recorrente que dos autos afere-se o exercício efetivo do cargo através da assinatura conjunta de que era necessária para vincular a sociedade, desde 1982 até ao período a que se reporta a dívida e por ser remunerada as suas funções, tendo consciência da importância da sua assinatura para vincular a sociedade e deixando cheques assinados em branco sem cuidar de saber do destino que era dado a esses fundos.
No caso em análise e no que ao imposto respeita, IVA de 2002, mês de dezembro Nestes autos, Agosto do mesmo ano., o regime legal aplicável é o previsto no artigo 24º da Lei Geral Tributária (LGT), preceito que dispõe nos seguintes termos:
“1 - Os administradores, diretores e gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração ou gestão em pessoas coletivas e entes fiscalmente equiparados são subsidiariamente responsáveis em relação a estas e solidariamente entre si:
a) Pelas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se tenha verificado no período de exercício do seu cargo ou cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado depois deste, quando, em qualquer dos casos, tiver sido por culpa sua que o património da pessoa coletiva ou ente fiscalmente equiparado se tornou insuficiente para a sua satisfação;
b) Pelas dívidas tributárias cujo prazo legal de pagamento ou entrega tenha terminado no período do exercício do seu cargo, quando não provem que não lhes foi imputável a falta de pagamento.” (sublinhado nosso)
É seguro que o oponente era gerente de direito desde 1982 até 2000, a partir desta data, embora não exista no processo elementos que confirmem a nomeação do oponente como gerente, ela não foi contestada pelo interessado, o qual terá mantido a nomeação de gerente.
Dos factos provados resulta que: o oponente quando assinava cheques fazia-o em branco e deixava-os no escritório, quem tratava de tudo na empresa era o Eng.º L….
Na sentença sancionou-se um entendimento que exonera o oponente da responsabilidade pelas dívidas, com a qual a recorrente discorda frontalmente.
O problema passa por saber quem exerce de facto a gerência, ou seja, quem está na origem das decisões no seio da sociedade; quem as toma verdadeiramente. Ou, ainda, o facto de existir cheques assinados em branco pelo oponente permite concluir pela gerência de facto.
A aferição do “exercício de facto da gerência” é, assim, um processo lógico que envolve sobretudo a identificação de quem ocupa a posição de decisor; o próprio exercício de facto da gerência apresenta-se-nos mais como uma situação do que como um processo.
De acordo com o art. 259º do C.S.C. ao gerente compete praticar os atos que forem necessários ou convenientes para a realização do objeto social, com respeito pelas deliberações dos sócios.
Por sua vez, o art. 260º estatui sobre a vinculação da sociedade, ou seja, que esta se efetiva através dos atos praticados pelos gerentes, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhe confere, vinculando-a perante terceiros, mediante atos escritos apondo a sua assinatura com a indicação dessa qualidade.
Resulta desde logo, deste quadro legal, que esta gerência é a título de direito, nomeação em escritura pública ou mediante assembleia de sócios, ficando de fora os gerentes de facto a que alude o art. 24º, n.º1, da LGT “(…)gerentes e outras pessoas que exerçam ainda que somente de facto (…)”
No quadro jurídico-fiscal, de acordo com a norma do art. 24º, o exercício da gerência tem uma maior abrangência, apelando para uma ampla e diversificada panóplia de atos praticados por aqueles, ainda que não estando em condições legais para vincular a sociedade, tomam as rédeas da empresa e são quem, ainda que não possuindo a qualidade jurídica, determinam e vinculam a sociedade.
Colocada a questão sob este ângulo, teremos então que avaliar, no caso, se há elementos para além dos já acima identificados que permitam concluir por tal desiderato.
Temos também por assente que é à administração fiscal, enquanto exequente, como titular do direito de executar o património do responsável subsidiário, que compete demonstrar os pressupostos da reversão, designadamente o efetivo exercício de facto da gerência [externada em factos da vida real da empresa que permitam concluir que aquela pessoa controlava os desígnios da sociedade de forma clara e consciente].
Por outro lado, é pacífico que não há qualquer presunção legal que faça decorrer da qualidade de gerente de direito o efetivo exercício dessa função ou que faça inverter o ónus da prova que recai sobre a AT.
Por fim, também não permite sem mais uma presunção judicial, pois esta, assenta sempre em ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido; poderá acontecer, caso a caso, com base na prova produzida, com base nas regras da experiência e em juízos de probabilidade se infira a gerência efetiva de outros factos.
A Recorrente esgrime a sua razão com as seguintes afirmações: o oponente exercia a sua atividade na sociedade, sendo remunerado pelas suas funções e assinando cheques e demais documentos necessários ao giro comercial; pela assinatura conjunta necessária para vincular a sociedade perante terceiros desde 1982 até à data da constituição e cobrança da dívida.
Mas nem todas as afirmações feitas pela recorrente têm a correspondente materialidade no processo, desde logo aonde estão os demais documentos assinados pelo oponente; aonde estão os cheques assinados por ele, apenas tal facto resulta de uma confissão judicial do oponente, ao declarar e assumir tal facto no seu articulado.
Aonde está comprovado que a função de gerente era remunerada, seria remunerada, naturalmente, a sua atividade de técnico de reparação de eletrodoméstico e refrigeração. Afinal esta remuneração que relevo tem para o cargo da gerência?
Pese embora aquela confissão de assinar cheques em branco pudesse ser um ponto de partida sempre carecia de melhor contextualização, ou dito de outro modo, de melhor concretização no sentido de que a atividade referida era indispensável para o giro comercial, sem o qual não poderia ser realizado e que de tal facto tinha plena consciência o oponente.
Ora, não se encontra no processo um único elemento que permita inferir que o oponente ao assinar alguns cheques em branco estava de forma consciente a contribuir para os destinos da sociedade, vinculando-a e delimitando a intervenção empresarial.
Por outro lado, a prova produzida veio contrariar o que sustenta a Recorrente, porquanto o seu papel na sociedade era de técnico/empregado, recebendo ordens e, ao contrário, não as promovia.
Para que se verifique a gerência de facto é essencial que o gerente atue, no exercício de poderes de gerente, sustentadas nas deliberações, administrando e representando a empresa nos negócios e exteriorizando a vontade daquelas perante terceiros.
Os factos provados não englobam atos ou comportamentos concretos que indiciem o exercício efetivo por parte do recorrido, ónus que cabe à Fazenda.
Não tendo, assim, acontecido fica a dúvida razoável, sobre o exercício da gerência por parte do oponente, não merecendo, neste contexto, censura a decisão recorrida.»
Além do referido no processo n.º 1326/04.0BEPRT, a decisão da matéria de facto nos presentes autos inclui ainda a factualidade vertida nas alíneas g) - o oponente assinou em 01/09/1992, na qualidade de gerente da primitiva devedora, a carta remetida a Manuel Miranda Flores na qual aceitava a renúncia à gerência e ao contrato de trabalho - e h) - em 30/01/1997 o oponente assinou em nome da primitiva devedora o “Anexo E”.
Contudo, acompanhando a decisão recorrida, entendemos que tal matéria de facto não permite retirar a ilação de que o oponente exerceu efectivamente, de facto, a gerência. Isto porque, a restante matéria de facto apurada infirma tal conclusão:
O oponente limitava-se a desempenhar a função de técnico de assistência e de montagens [cfr. alínea i)]; quem tratava de tudo na empresa era o Eng. L… [cfr. alínea j)]; o oponente não dava ordens a ninguém, tinha inclusive um chefe que mandava nele [cfr. alínea K)].
Na sentença recorrida julgou-se da seguinte forma:
“(…) Assim, provada que seja a gerência de direito, incumbe à FP provar a gerência de facto, uma vez que a lei não se basta com a mera designação de gerente, desacompanhada do exercício efectivo do cargo. ---
Ora, no caso em apreço a AT partiu da premissa da gerência de direito, nada se aduzindo ou provando no que tange à gerência efectiva ou de facto. ---
Efectivamente o despacho de reversão ínsito nos autos bastou-se com a verificação da qualidade de gerente do oponente, nada dizendo ou provando no que tange ao exercício daquele cargo. ---
A Fazenda pública sustenta a legalidade da reversão, designadamente pelo facto do oponente referir que algumas vezes assinava cheques quando para isso era solicitado e de existirem pelo menos dois documentos por si assinados na qualidade de gerente da primitiva devedora (cf. factualidade apurada).
Ora, para além dessa alegação sustentada na afirmação do oponente, nenhuma outra prova foi feita pela Fazenda Pública, no sentido de provar que o oponente tenha praticado acto consubstanciados no exercício efectivo de funções de gerência, designadamente não foi junta qualquer prova documental, como por exemplo cópias de declarações ou documentos apresentados pela primitiva devedora e subscritos pelo oponente enquanto gerente. ---
Concretizemos. ---
Os documentos que foram juntos aos autos assinados pelo oponente reportam-se aos longínquos anos de 1992 e 1997, quando as dívidas em apreço são do ano de 2002.-
Aqueles dois únicos documentos, distantes no tempo em relação ao período a que se reporta a dívida, desacompanhados doutros elementos de prova, mormente relativos ao ano de 2002, por si só são insuficientes para comprovar a gerência de facto no período a que se dívida se refere.
Competia à FP o ónus da prova dos pressupostos da responsabilidade subsidiária do gerente. Ora, nada o fazendo, deve contra si ser valorada a falta de prova sobre o efectivo exercício da gerência. ---
A Administração Fiscal limitou-se a reverter a execução contra o oponente porque o mesmo constava como gerente da primitiva devedora e não lhe haviam sido encontrados bens suficientes para garantir a dívida. ---
Sucede que, a FP não fez qualquer prova que o oponente tenha exercido de facto as funções de gerente, designadamente não juntou qualquer prova documental que sustentasse a reversão feita. ---
Assim, não resultou qualquer prova nestes autos pelo que o oponente é parte ilegítima. --- (…)”
Corroborando este julgamento, em concatenação com o já decidido no âmbito do processo n.º 1326/04.0BPRT, impõe-se negar provimento ao recurso. Na medida em que a função do oponente se esgota nas assinaturas dos documentos mencionados nas alíneas g) e h), não terá ido para além disso, dada a sua relação de dependência, enquanto empregado (que até tem um chefe que lhe transmite ordens).
Destarte, na improcedência de todas as conclusões de recurso, impera negar provimento ao mesmo, mantendo a sentença recorrida.

Conclusão/Sumário

I - Para responsabilizar subsidiariamente o gerente pelas dívidas tributárias da sociedade, não basta a outorga de poderes «nominais» de gerência, exige-se precisamente o exercício dessas funções, o exercício efectivo dos poderes que recebe, e não apenas a aparência do seu exercício.
II - A responsabilização subsidiária pressupõe o poder de controlar e determinar a vontade social, definindo o seu rumo e estratégia e tudo o que se relaciona com a sua estabilidade, progresso ou sobrevivência, exteriorizando as suas opções, incluindo as de pagar, ou não pagar, as dívidas tributárias.
III - A distinção entre o mero gerente nominal do gerente efectivo reside no poder subjacente à realização dos actos. O gerente nominal, ou «meramente de direito», pode praticar actos aparentes de gerência, mas fá-lo desacompanhado dos inerentes poderes, normalmente a «mando» de alguém que na organização societária se resguarda de «assinar» e comprometer-se, mas que ainda assim detém o poder efectivo de controlar os destinos da sociedade incluindo os de «mandar assinar» documentos da sociedade, como gerente, alguém que, de facto, o não é.
IV - Estas situações ocorrem na maior parte das vezes num contexto em que, de um lado, está o «gerente efectivo», regra geral o detentor do capital e do poder que lhe subjaz, que oculta essa qualidade (normalmente por dificuldades de financiamento junto da banca devido a antecedentes de incumprimento, ou por restrição do uso de cheques, etc.; do outro lado, está (quase sempre) um sujeito numa relação de dependência (filho, empregado, cônjuge) ou de favor, que por isso aceita «assinar», ou «dar o nome».
V - Quando assim procede, quando «assina» ou «dá o nome», não o faz no uso de qualquer critério de oportunidade ou prossecução de interesse estatutário que não domina, mas sim para satisfazer um interesse pessoal alheio ao qual está vinculado ou subordinado por razões «não estatutárias».
VI - Neste cenário, o mero gerente de direito pratica actos formais de gerência; porém, fá-lo na dependência do gerente efectivo que lhe determina a «oportunidade», o «que», o «como» e o «quando» fazer. A sua função «esgota-se» nas assinaturas e não «pode» (porque não tem o poder) ir para além disso.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso.
Custas a cargo da Recorrente, nos termos da tabela I-B – cfr. artigos 6.º, n.º 2, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais.
Porto, 25 de Maio de 2016.
Ass. Ana Patrocínio
Ass. Ana Paula Santos
Ass. Fernanda Esteves