Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
I – RELATÓRIO
Recorrente: Ministério da Agricultura e do Mar, pela Direcção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos
Recorrido: N... – Consultadoria Náutica, Ldª; Nz... – Consultadoria Náutica, Ldª
Vem o recurso interposto da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou parcialmente procedente a supra identificada acção administrativa comum, na qual era pedido, designadamente:
— ser ordenado que o réu “se abstenha a título definitivo de recusar a admissão a exame de cidadãos comunitários com fundamento na inexistência de documento comprovativo de residência em Portugal e, em caso de sucesso nesse exame, sejam autorizados a navegar as embarcações correspondentes à carta a cujo exame se submeteram; e,
— Seja condenado a pagar à A. N... uma indemnização no valor de 101.154,48 (cento e um mil cento e cinquenta e quatro euros e quarenta e oito cêntimos), a título de responsabilidade civil extracontratual, pelos danos patrimoniais directamente provocados pela actuação ilícita descrita na presente acção;
— Seja condenado a pagar à A. Nz... uma indemnização no valor de 268.813,84 (duzentos e sessenta e oito mil oitocentos e treze euros e oitenta e quatro cêntimos), a título de responsabilidade civil extracontratual, pelos danos patrimoniais directamente provocados pela actuação ilícita descrita na presente acção;
— Seja condenado a pagar às AA. uma indemnização no valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) a cada, a título de responsabilidade civil extracontratual, pelos danos morais directamente provocados pela actuação ilícita descrita na presente acção;
— Seja condenado a pagar a ambas as AA. uma indemnização, a título de responsabilidade civil extracontratual, pelos danos patrimoniais directamente provocados pela actuação ilícita descrita na presente acção e necessários para a reconstituição da situação que existiria caso tal actuação não houvesse ocorrido, cuja quantia se relega para execução de sentença. E ainda, inserto na parte final do articulado;”.
O objecto do recurso é delimitado pelas seguintes conclusões da respectiva alegação(1):
“1ª – O nº 1 do artigo 29º do Decreto-Lei nº 124/2004, de 25 de Maio, impõe ao IPTM, IP, que só pode emitir cartas de navegador de recreio a quem possua residência em Portugal;
2ª – Por via dessa regra, o réu, aqui recorrente, passou a não admitir a exame de navegador de recreio os formandos que não demonstrassem residir em Portugal;
3ª – Tal norma, constante do nº 1 do artigo 29º do Decreto-Lei nº 124/2004, de 25 de Maio, não viola o direito comunitário, seja o artigo 49º do TCE (hoje artigo 56º do TFUE) seja de qualquer outro, por violação do princípio de livre prestação de serviços seja de qualquer outro.
4ª – Trata-se de exames de Estado, cuja realização, controlo e fiscalização pertence exclusivamente aos organismos do Estado, estando por isso, subtraídos à iniciativa privada e integrado o exercício de autoridade pública,
5ª - Não se lhe aplicando a regulamentação comunitária sobre liberdade de prestação de serviços, por força do disposto nos artigos 48º e 55º do TCE (actualmente os artigos 51º e 62º do TFUE). Para além do mais,
6ª - Trata-se manifestamente de matéria de interesse e ordem pública, face à necessidade de preservar a segurança marítima e a salvaguarda da vida do mar, exigindo um controlo efectivo aos detentores de habilitação para comandar embarcações de recreio;
7ª - Tais limitações de exigência de residência, de resto, constam igualmente na regulamentação comunitária e na legislação nacional no que respeita à condução automóvel (directiva 91/439/CEE e Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro); de resto,
8ª - As autoras, ora recorridas mantêm intacta a liberdade de prestação de serviços de formação náutica, sendo que o seu escopo social é, dentre muitas outras, a formação náutica e não a realização de exames para a obtenção de cartas de navegadores de recreio, sendo estes uma competência exclusiva do Estado.
9ª - A sentença sob recurso faz errada interpretação e aplicação da lei ao declarar violadora do Direito Comunitário (o artigo 49º do TCE ou qualquer outro) a norma constante do nº 1 do artigo 29º dói Decreto-lei nº 124/2004, pelo que deve ser revogada;
10ª – Não devendo o réu, aqui recorrente ser condenado a abster-se de recusar a admissão de cidadãos comunitários com fundamento na inexistência de documento comprovativo de residência em Portugal; em todo o caso, e por mera hipótese contrária, sem conceder,
11ª - Nunca poderia ser assacada ao réu aqui recorrente, qualquer conduta ilícita, geradora de responsabilidade civil extracontratual por danos, é que,
12ª – O facto gerador de qualquer eventual e hipotética conduta ilícita diz respeito ao exercício da função legislativa, isto é, verificar-se-ia uma desconformidade da lei com o direito internacional (no caso, com o Direito Comunitário). Ora,
13ª - É pacificamente aceite, na doutrina e na jurisprudência, que a Administração está impedida de desaplicar uma lei com fundamento na sua inconstitucionalidade ou na sua ilegalidade, a menos que tal seja declarado pelo poder judicial. Porém,
14ª – A actividade do réu, aqui recorrente, circunscreve-se ao âmbito administrativo, carecendo de qualquer competência legislativa; ademais,
15ª – Embora integrado na administração indirecta do Estado, o réu é uma pessoa colectiva distinta daquele, dotado de personalidade jurídica própria. Assim,
16ª – Qualquer eventual responsabilidade civil extracontratual derivada de facto ilícito proveniente de acto legislativo é completamente estranha ao réu, carecendo de ilegitimidade passiva para o efeito, não existindo por parte dele, do réu, qualquer grau de culpa (mesmo leve ou negligente) nem nexo de causalidade entre o facto e o dano, requisitos essenciais para eventual condenação no caso em apreço; De facto,
17ª - No âmbito dos limites da sua actividade administrativa, o réu estava obrigado a tomar a atitude que efectivamente tomou, não podendo desaplicar uma norma vigente na ordem jurídica nacional;
18ª - Na sentença sob recurso fez-se errada interpretação e aplicação da lei (nomeadamente do Decreto-lei nº 48051, de 21 de Novembro de 1967, bem como das normas aplicáveis do Código Civil – art. 487º - e ainda do Decreto-lei nº 257/2002, de 22 de Novembro, pelo que deve ser revogada e substituída por decisão que absolva o réu, aqui recorrente do pedido de indemnização a título de danos patrimoniais por conduta ilícita;
19ª - Assim como por danos não patrimoniais a idêntico titulo, pelas mesmas razões, mas ainda também porque os alegados danos não patrimoniais identificados não passam de meros incómodos e contrariedades, insusceptíveis da tutela jurídica, nos termos do artigo 496º do Código Civil.
20ª - De igual forma, a sentença recorrida fez errada interpretação e aplicação da lei no que respeita à condenação do réu no pagamento de € 21.753,48, por danos causados à autora Nz..., Ldª resultantes do alegado incumprimento pelo réu da decisão proferida em sede cautelar. È que,
21ª – Para além de a autora Nz..., Ldª não ter chegado a deduzir pedido de condenação a tal título, na altura e pela forma prescrita na lei, o que impede o Tribunal a decidir para além do pedido (artigo 661º - nº 1 do C.P.C.).
22ª - A sentença proferida no processo cautelar não chegou a ser notificada à entidade requerida, como prescreve e exige o disposto no artigo 122º do CPTA, não bastando para o efeito a notificação ao respectivo mandatário, dado tratar-se de facto pessoal (como de resto também previsto no nº 2 do artigo 253º do Cód. Proc. Civil).
23ª - Mesmo que assim não fosse, também não seria caso para proferir a condenação a esse título, uma vez que se verifica erro de julgamento quanto à matéria de facto no que respeita à resposta dada aos quesitos (pontos) 35º e 36º, os quais devem ser considerados não provados, atento o depoimento das testemunhas que fundamentaram aquela decisão (CSSV e JLSG), bem como o conteúdo do documento nº 27, junto com a petição inic9ial, os quais se mostram desadequados às respostas dadas pelo Tribunal.
24ª - Pelo que, também neste caso, a sentença sob recurso deve ser revogada e o réu absolvido do pedido, assim se fazendo completa e inteira JUSTIÇA”.
As Recorridas contra-alegaram, em termos que se dão por reproduzidos, e, tendo formulado conclusões, aqui se vertem:
“• Face ao exposto, a douta decisão recorrida não padece de nenhum dos vícios que lhe são apontados pelo Recorrente, antes revelando adequada ponderação de todos os elementos que foram carreados para os autos;
• Com efeito, a decisão sob censura fez exacta interpretação do condicionalismo fáctico subjacente e adequada interpretação e aplicação do direito impendente, pelo que deve ser mantida na integra;
• É inquestionável que a aplicação da norma do n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 124/2004 a cidadãos comunitários por parte do IPTM é ilegal;
• Os poderes de autoridade do IPTM no que respeita à sua responsabilidade civil extra-contratual, no âmbito da execução das suas actividades são inequívocos e resultam, legal e expressamente, do disposto na al. e) do artigo 5º do Decreto-Lei n.º 257/2002, de 22 de Novembro.
Nestes termos, e nos que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, negando provimento ao recurso e, em consequência, confirmando, integralmente, a douta Sentença recorrida, farão, como sempre, inteira e sã J U S T I Ç A !”.
O Ministério Público, notificado ao abrigo do disposto no artº 146º, nº 1, do CPTA, não se pronunciou.
As questões suscitadas(2) e a decidir(3), se a tal nada obstar, resumem-se em determinar se a decisão recorrida: fez errada interpretação e aplicação da lei ao declarar violadora do Direito Comunitário (o artigo 49º do TCE ou qualquer outro) a norma constante do nº 1 do artigo 29º do Decreto-Lei nº 124/2004; fez errada interpretação e aplicação da lei (nomeadamente do Decreto-Lei nº 48051, de 221 de Novembro de 1967, bem como das normas aplicáveis do Código Civil — artigo 487º — e ainda do Decreto-Lei nº 257/2002, de 22 de Novembro; se fez errada interpretação e aplicação da lei no que respeita à condenação do réu no pagamento de € 21.753,48, por danos causados à autora Nz..., Ldª resultantes do alegado incumprimento pelo réu da decisão proferida em sede cautelar; se ocorre erro de julgamento quanto à matéria de facto no que respeita à resposta dada aos quesitos (pontos) 35º e 36º, os quais devem ser considerados não provados.
Cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 – OS FACTOS ASSENTES NA DECISÃO RECORRIDA
Na sentença sob recurso ficou assente o seguinte quadro factual, ora impugnado quanto aos factos assentes em SS) e TT):
A) Os Sócios das AA detinham uma sociedade denominada Fl.... No ano 2000 foi constituída, por um dos sócios, a A. N... e, no ano de 2003, pelo outro sócio, a A. Nz... - resposta ao ponto 13.º da Base Instrutória..
B) As AA são Escolas de Formação Náutica, que têm por objecto social, entre outras atribuições, a consultadoria, formação, manutenção e instalação de infra-estruturas náuticas – ponto A) da Matéria de Facto Assente.
C) Desde 1997 que os sócios das AA têm prestado a formação obrigatória para o exame de cartas de navegador de recreio a cidadãos portugueses e igualmente a cidadãos comunitários - espanhóis e franceses – resposta ao ponto 1.º da Base Instrutória.
D) A carta de navegador de recreio, emitida pelo IPTM, pode ser obtida pelos pretendentes, através da formação e inscrição a exame: na Escola Náutica Infante D. H..., na Escola de Pesca e da Marinha do Comércio, ou através de entidades formadoras, como é o caso das AA, Escolas de Formação Náutica – ponto C) da Matéria de Facto Assente.
E) No âmbito da sua actividade de formação, as AA. são competentes para dar a formação inerente à carta de navegador de recreio e de propor os respectivos candidatos a exame – ponto B) da Matéria de Facto Assente.
F) A formação náutica tem em vista a preparação dos formandos para a realização dos respectivos exames – resposta ao ponto 41.º da Base Instrutória.
G) As AA. sempre puderam e podem desenvolver a sua actividade de formação náutica, dentre outras - resposta ao ponto 39.º da Base Instrutória.
H) O recurso aos serviços de cursos de formação de navegador de recreio é efectuado em Portugal, maioritariamente, por cidadãos portugueses e espanhóis – resposta ao ponto 12.º da Base Instrutória.
I) O recurso aos serviços de cursos de formação de navegador de recreio é efectuado em Portugal, maioritariamente, por cidadãos portugueses - resposta ao ponto 46.º da Base Instrutória..
J) Fruto do melhor poder de compra dos cidadãos espanhóis, do maior número de embarcações de recreio espanholas, do menor custo dos cursos e exames de navegador de recreio em Portugal, e da conveniência geográfica, existia, até à data, grande procura, por parte dos cidadãos espanhóis, dos cursos de navegador de recreio portugueses - resposta ao ponto 13.º da Base Instrutória.
K) Nos termos do disposto no Decreto-lei n.º 79/2005, de 15 de Abril, o Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos (Instituto Público), está integrado no Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações – ponto AA) da Matéria de Facto Assente.
L) As actividades exercidas pelo IPTM no que respeita à regulação, licenciamento e fiscalização das actividades marítimas, à certificação de navios e tripulantes e à emissão de cartas de navegador de recreio, são actos de gestão pública, uma vez que compreendem o exercício de uma função pública, originariamente estadual, conforme, aliás, se encontra disposto no Decreto-lei n.º 257/2002, de 22 de Novembro – ponto BB) da Matéria de Facto Assente.
M) As embarcações de recreio só podem navegar sob o comando de titulares de carta de navegador de recreio; as cartas de navegador de recreio são emitidas pelo IPTM e, a obtenção de carta de navegador de recreio depende de aproveitamento em curso de navegador de recreio – ponto H) da Matéria de Facto Assente.
N) O R é o Instituto responsável pela realização de exames e correspectiva emissão de cartas de navegador de recreio – ponto D) da Matéria de Facto Assente.
O) É ao R. que cabe marcar a data do exame de que se trata, cabendo aos requerentes meramente propor uma data, que a entidade competente aceita ou não, de acordo com as suas próprias disponibilidades, nomeadamente a disponibilização de um membro para presidente ao júri dos concursos – resposta ao ponto 56.º da Base Instrutória.
P) Este Regulamento [da Náutica de Recreio], numa primeira fase constava do Decreto-Lei n.º 329/95, de 9 de Dezembro, posteriormente alterado pelo Decreto-Lei n.º 567/99, de 23 de Dezembro – ponto I) da Matéria de Facto Assente.
Q) Em 25 de Maio de 2004, foi publicado o Decreto-Lei 124/2004 que aprovou o actual Regulamento e que, entre outras pouco significativas alterações, estipulou, no seu artigo 29.º, que as cartas de navegador de recreio são emitidas “a quem possua residência em território nacional” – ponto J) da Matéria de Facto Assente.
R) Do dia 1 de Janeiro de 2004 até ao dia 31 de Julho de 2004 foram realizados 271 exames a cidadãos espanhóis, com a inerente obrigatória formação prestada pela A. N..., e 242 exames a cidadãos espanhóis com a referida formação prestada pela A. Nz... – resposta aos pontos 3.º, 14.º e 48.º da Base Instrutória.
S) Contabilizando o n.º de exames realizados desde o dia 1 de Janeiro de 2004 ao dia 31 de Julho de 2004 (data a partir da qual a actuação do IPTM começou a reduzir a procura nos serviços das AA), a referida média é de 38 exames, no que respeita à A. N..., e de 34 exames, no que respeita à A. Nz... – resposta ao ponto 18.º da Base Instrutória.
T) Através de fax datado de 25 de Junho de 2004, o IPTM informou que “após a entrada em vigor do novo Regulamento da Náutica de Recreio aprovado pelo Decreto-Lei n.º124/2004, de 25 de Maio, o IPTM, em cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 29.º daquele diploma, apenas emitirá cartas de navegador de recreio a quem possua residência em território nacional e apresente documento comprovativo de ter obtido aproveitamento em cursos frequentados para o efeito dentro dos pressupostos previstos no artigo 35.º do citado diploma” – ponto K) da Matéria de Facto Assente.
U) Concluindo, a final, que “as escolas de Formação de Navegadores de Recreio deverão, assim, assegurar o rigoroso cumprimento da lei relativamente à referida disposição, sem prejuízo do dever fiscalizador cometido ao IPTM” – ponto L) da Matéria de Facto Assente.
V) Do dia 1 de Agosto ao dia 12 de Dezembro de 2004, realizaram exame: (i) pela formadora A. N..., 89 alunos de nacionalidade espanhola; e, pela formadora A. Nz..., 45 alunos de nacionalidade espanhola – ponto M) da Matéria de Facto Assente.
W) Tendo o IPTM considerado o pedido de marcação de exames dos examinandos, cidadãos da União Europeia, “em conformidade com as normas em vigor”, uma vez indicado, na respectiva ficha de inscrição, o local em que se encontravam temporariamente a residir no território nacional para efectuar o referido exame – ponto N) da Matéria de Facto Assente.
X) O IPTM, desde o mês de Dezembro do ano de 2004, tem vindo a recusar a admissão de cidadãos comunitários ao exame para a carta de navegador de recreio, com base no disposto no n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 124/2004, de 25 de Maio – ponto E) da Matéria de Facto Assente.
Y) De 9 de Dezembro de 2004 a 18 de Dezembro de 2005 o IPTM recusou a realização de exame de vários cidadãos comunitários com base na falta de variadas provas, por parte dos mesmos, de possuírem residência em território nacional – ponto F) da Matéria de Facto Assente.
Z) No dia 8 de Dezembro de 2004, através de fax dirigido à A. Nz..., e 9 de Dezembro, através de fax dirigido à N..., veio o IPTM informar que “da listagem dos candidatos a exame para obtenção da carta de navegador de recreio a realizar nos próximos dias 11 e 12 de Dezembro e por Vós submetida, constam alguns cidadãos nacionais de países comunitários, relativamente aos quais se suscita a dúvida quanto à sua residência em território nacional (…) Atendendo à proximidade das datas dos exames e por forma a não criar prejuízos para os interessados, confirma-se a realização dos exames, solicitando-se o Vosso melhor empenhamento no sentido de ser fornecido, com carácter de urgência, clarificação e confirmação adequada de prova de residência em território nacional nos termos dispostos nas alíneas a) b) e c) do número 1 do artigo 15.º do D.L. 60/93, de 3 de Março” – ponto O) da Matéria de Facto Assente.
AA) Estes alunos não foram admitidos a exame pelo IPTM – ponto E) da Matéria de Facto Assente.
BB) A A. N... requereu a inscrição a exame, para os dias 18 e 19 de Dezembro, de onze cidadãos espanhóis, requerimentos estes que foram indeferidos - ponto Q) da Matéria de Facto Assente.
CC) A A. Nz... requereu a inscrição de seis pessoas, duas das quais cidadãos espanhóis – ponto R) da Matéria de Facto Assente.
DD) No dia 16 de Dezembro de 2004, através de fax dirigido à Nz..., o IPTM veio responder a este requerimento, confirmando a marcação do exame requerido para o dia 19 de Dezembro, informando contudo que “os candidatos a exame são 4 (quatro) de acordo com a lista aprovada em anexo a esta comunicação, não sendo aceite a realização do exame aos cidadãos de nacionalidade estrangeira, relativamente aos quais não tenha sido feita prova de residência” - ponto S) da Matéria de Facto Assente.
EE) A A. Nz... enviou ao IPTM, no dia 17 de Dezembro de 2004, as fichas de inscrição de XLMSC e de DTB, salientando que “essa é a prática corrente e comum para cidadãos portugueses (que poderão ter ou não residência em Portugal), ou seja, se a simples declaração de residência é tida como boa para cidadãos portugueses, terá forçosamente que ser igualmente tida como boa para cidadãos de um país membro da U.E.” – ponto T) da Matéria de Facto Assente.
FF) O fax a que se alude no ponto anterior não mereceu resposta por parte do IPTM – resposta ao ponto 4.º da Base Instrutória.
GG) Os alunos mencionados foram recusados a efectuar o exame na própria data em que se apresentaram para fazer o efeito - no dia 19 de Dezembro – ponto U) da Matéria de Facto Assente.
HH) Perante a posição adoptada face aos seus formandos espanhóis, as AA vieram expor, em 29 de Dezembro de 2004, ao ora R, os motivos de direito que evidenciavam a ilegalidade da conduta daquele Instituto ao excluir cidadãos comunitários da possibilidade de realização de exame de carta de navegador de recreio, por falta de residência em território nacional – ponto V) da Matéria de Facto Assente.
II) Em resposta, recebida a 2 de Fevereiro de 2005, o IPTM veio esclarecer, sumariamente que: O IPTM tem vindo a efectuar a correcta aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 29.º do Decreto-lei n.º 124/2004; A Directiva n.º 2004/38/CE não parece ser aplicável à situação em apreço, uma vez que não foi introduzida no direito interno, nem se encontra ultrapassado o prazo previsto para o efeito; Que tal Directiva, apenas estabelecendo regras quanto à residência de cidadãos comunitários, não seria aplicável ao caso por não ter relação directa com o diploma legal referenciado; e que, Os requisitos de admissão em nada têm a ver com a liberdade de prestação de serviços, mas sim com a “natural distribuição de competências e disponibilização de serviços públicos” - ponto W) da Matéria de Facto Assente.
JJ) Em 24 de Fevereiro de 2005, os mesmos cidadãos espanhóis admitidos a exame nos termos da alínea W) candidataram-se ao exame para carta de patrão local, apresentando os mesmos documentos, tendo sido, em 28 de Fevereiro de 2005, recusados por falta de documento comprovativo de residência em Portugal – ponto X) da Matéria de Facto Assente.
KK) À semelhança dos dois referidos cidadãos comunitários, qualquer outro cidadão que não detivesse residência em território português, pese embora já tivesse efectuado exame, perante o IPTM, ficou impedido de evoluir tirando a carta seguinte – como, por exemplo, a carta de patrão de costa – ponto Y) da Matéria de Facto Assente.
LL) Em data posterior aos referidos factos, dia 17 de Janeiro de 2005, veio o IPTM admitir a exame para carta de marinheiro dois cidadãos de nacionalidade espanhola, tendo sido aceites, para prova do pressuposto constante do n.º 1 do artigo 29.º do Regulamento da Náutica de Recreio, o cartão de contribuinte português dos mesmos – ponto Z) da Matéria de facto Assente.
MM) Após a notificação em 21 de Novembro de 2005, do Acórdão do TCA Norte proferido no processo cautelar apenso, decorreu ainda o prazo para requerimentos de aclaração ou de dedução de quaisquer nulidades, só tendo transitado em julgado no dia proposto para a realização dos alegados exames – resposta ao ponto 57.º da Base Instrutória.
NN) Uma vez decretada a providência cautelar dependente da presente acção, o IPTM ainda recusou a admissão a exame de doze cidadãos espanhóis, com fundamento na sua falta de residência em território português, em 30 de Novembro de 2005 – resposta ao ponto 5.º da Base Instrutória.
OO) Desde o momento da decisão da providência cautelar, em 18 de Novembro de 2005, e passados nove dias sobre a notificação da mesma aos respectivos mandatários, que ocorreu no dia 21 de Novembro de 2005, o IPTM veio ainda a recusar a admissão para realização de exame de carta de navegador de recreio, de 12 cidadãos espanhóis, precisamente com base na falta de residência dos mesmos em território português – resposta ao ponto 32.º da Base Instrutória.
PP) A Autora Nz..., notificada do Acórdão que decidiu provisoriamente a questão, informou os seus clientes comunitários sem residência em território português da possibilidade de realizarem de novo o seu exame de carta de navegador de recreio – resposta ao ponto 33.º da Base Instrutória.
QQ) Os doze cidadãos espanhóis terão vindo a Portugal com o intuito de beneficiarem de formação náutica, o que terão decidido ainda antes de em Espanha se ter conhecimento da decisão do Tribunal Administrativo – resposta ao ponto 55.º da Base Instrutória.
RR) A três dias da realização do referido exame a A. Nz... viu-se confrontada com a recusa de admissão aos mesmos e necessidade de justificação do sucedido aos clientes aos quais havia prestado a necessária formação – resposta ao ponto 34.º da Base Instrutória.
SS) A A. Nz..., de forma a salvaguardar a sua imagem e evitar a legítima reacção judicial dos 12 clientes espanhóis suportou as seguintes despesas:
- Pagamento do alojamento, alimentação de cada cliente, no valor de € 1.200,00 (mil e duzentos euros; e,
- Pagamento da deslocação efectuada por aqueles clientes, no valor de € 382,75 (trezentos e oitenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos) – resposta ao ponto 35.º da Base Instrutória.
TT) O valor resultante dos pagamentos referidos no ponto anterior, com IVA incluído ascendeu a € 21.753,48 (vinte e um mil setecentos e cinquenta e três euros e quarenta e oito cêntimos – resposta ao ponto 36.º da Base Instrutória.
UU) Desde o dia 18 de Dezembro de 2005, que o R. realizou tais exames, a título provisório, nos termos da decisão da providência cautelar, de 17 de Novembro de 2005 – ponto G) da Matéria de Facto Assente.
VV) No que se refere aos exames, já após essa altura, realizados a outros cidadãos comunitários sem residência em território português, os mesmos receberam uma licença provisória após a realização do exame – resposta ao ponto 6.º da Base Instrutória.
WW) Os outros cidadãos nacionais, que realizaram o exame ao mesmo tempo que aqueles, já receberam a sua carta de navegador de recreio – resposta ao ponto 7.º da Base Instrutória.
XX) Estes factos determinaram prejuízos para as ora AA – resposta ao ponto 8.º da Base Instrutória.
YY) O IPTM tem dado integral cumprimento ao Acórdão proferido no procedimento cautelar apenso – resposta ao ponto 54.º da Base Instrutória.
ZZ) Determinados clientes espanhóis das AA que já tinham realizado exames de marinheiro e de patrão local viram-se confrontados com o facto de, caso efectuassem formação para obtenção da carta de patrão de costa ou patrão de alto mar, ser-lhes emitida, apenas, uma licença provisória como comprovativo da pretendida habilitação – resposta ao ponto 29.º da Base Instrutória.
AAA) A partir da data em que o IPTM começou a cumprir a ordem judicial emanada no âmbito do procedimento cautelar apenso, que as ora AA já têm realizado a sua actividade de formação a cidadãos comunitários sem residência em território português, para a competente realização do exame de carta de navegador de recreio junto do IPTM – ponto CC) da Matéria de Facto Assente.
BBB) A actuação do IPTM, na sequência da publicação do diploma legal referido em X), determinou danos para as AA – resposta ao ponto 15.º da Base Instrutória.
CCC) Por força da publicação do diploma referido em X) e da recusa do R. em permitir a realização de exames a cidadãos comunitários sem residência em território nacional desde o dia 25 de Junho de 2004 até Dezembro de 2005, e bem assim, de desde então o R. apenas emitir licenças provisórias a esses cidadãos, as AA. sofreram angústia e criou-se uma imagem negativa a seu respeito no mercado espanhol – resposta ao ponto 31.º da Base Instrutória.
DDD) As AA sofreram danos de imagem – resposta ao ponto 28.º da Base Instrutória.
EEE) Por força do referido em X) e da emissão, pelo R., de licenças provisórias aos cidadãos comunitários não residentes em território nacional, as AA. viram reduzido o número de alunos espanhóis que procuravam formação nas suas escolas – resposta ao ponto 24.º da Base Instrutória.
FFF) As AA. passaram a ter um número de alunos espanhóis mais reduzido do que aquele que tinham antes do R. passar a emitir licenças provisórias – resposta aos pontos 10.º e 16.º da Base Instrutória.
GGG) Redução essa decorrente do conhecimento (divulgado durante o ano de 2005), por parte dos interessados naquele exame, de que não o poderiam fazer mais exame em Portugal – resposta ao ponto 11.º da Base Instrutória.
HHH) Os prejuízos resultantes da diminuição de alunos espanhóis a frequentarem a formação ministrada pelas AA. iniciaram-se a partir do momento em que o R. notificou as escolas suas administradas que tal requisito (o da residência em território português) passaria a ser condição para a admissão ao exame para carta de navegador de recreio, em 25 de Junho de 2004 – resposta ao ponto 21.º da Base Instrutória.
III) As AA. não desencadearam as competentes acções administrativas especiais, com vista a obterem a anulação contenciosa desses actos administrativos praticados pelo R. – resposta aos pontos 50.º e 58.º da Base Instrutória.
JJJ) Sempre que lhe fosse recusado qualquer e cada um dos pedidos de realização de exames de desportistas náuticos – resposta aos pontos 51.º e 58.º da Base Instrutória.
KKK) Os cidadãos comunitários sempre poderiam realizar os seus exames noutro país comunitário, nomeadamente o país da sua residência habitual – resposta ao ponto 42.º da Base Instrutória.
LLL) Em alguns países da União Europeia os cidadãos comunitários podem ficar habilitados para o comando de embarcações de recreio sem necessidade de realização de exames ou da obtenção de carta de desportista náutico – resposta ao ponto 43.º da Base Instrutória.
MMM) Sendo suficiente para aquele efeito, o comprovativo de que efectuaram formação adequada, como acontece, por exemplo no Reino Unido e na Irlanda – resposta ao ponto 44.º da Base Instrutória.
NNN) As AA. no ano de 2006 declararam prejuízos fiscais decorrentes do exercício da sua actividade – resposta ao ponto 17.º da Base Instrutória.
OOO) Releva-se como facto muito importante, para a actividade das AA, a transmissão e fluxo de comunicação ao nível pessoal, de antigos alunos para potenciais alunos, fruto aliás, de se tratar de uma comunidade reduzida e altamente social – resposta ao ponto 23.º da Base Instrutória.
PPP) As AA, uma vez decidida a título final a ilegalidade de tal entendimento (e actuação), terão de proceder a um esforço ainda mais acentuado de reconquista da clientela que anteriormente tinham – resposta ao ponto 25.º da Base Instrutória.
QQQ) Através de inúmeros contactos telefónicos, deslocações ao território espanhol – nomeadamente feiras dedicadas ao tema, portos marítimos, etc. – e um investimento, em geral, da divulgação da retomada possibilidade de se efectuar o exame em questão em Portugal – resposta ao ponto 26.º da Base Instrutória.
RRR) Actuação essa necessária para reconstituir a situação de facto que existia antes da prática dos actos pelo ora R. em apreço – resposta ao ponto 27.º da Base Instrutória.
II.2 – DO MÉRITO DO RECURSO
Vertidos os termos da causa e a posição das partes, passamos a apreciar cada uma das questões a decidir, já acima elencadas.
II.2.1. — Da errada interpretação e aplicação da lei ao declarar violadora do Direito Comunitário (o artigo 49º do TCE ou qualquer outro) a norma constante do nº 1 do artigo 29º do Decreto-Lei nº 124/2004.
Breve síntese do ambiente factual no qual se move a questão ora sub judice: em causa foi colocada a recusa, pelo IPTM à data, de admissão a exame e obtenção da carta de navegador de recreio aos cidadãos comunitários que não tivessem residência em território nacional, com fundamento no artigo 29º, nº 1, do Decreto-Lei nº 124/2004, de 25 de Maio, que aprovou o novo Regulamento da Náutica de Recreio, o que, no caso dos autos, ocorreu desde 09-12-2004 até 18-11-2005, data em que foi decidida a providência cautelar apensa a esta acção, situação que se manteve durante a pendência do processo cautelar.
Responsabilizam o Réu por conduta ilícita e culposa, consubstanciada na referida recusa que reputam ilegal e violadora do direito comunitário e pedem a indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais causados.
Enuncia o Recorrente:
“A questão discutida nos presentes autos reporta ao conteúdo do nº 1 do artigo 29º do Decreto-Lei nº 124/2004, de 25 de Maio.
Esta norma impõe ao réu, aqui recorrente, sem margem para quaisquer dúvidas, que só pode emitir cartas de navegador de recreio a quem possua residência em território nacional português.
Por via dessa regra, a que deve obediência, o réu, aqui recorrente, passou a não admitir a exame de navegadores de recreio os formandos que não demonstrassem residir em Portugal.
Ora, as autoras, ora recorridas, N..., Ldª e Nz..., Ldª, vêm invocar que tal norma, a contida no nº 1 do artigo 29 do Decreto-Lei nº 124/2004, de 25 de Maio, quando aplicada a cidadãos da União Europeia, revela-se desconforme e contrária às regras previstas nos artigos 12º, 49º e 50º do Tratado que institui a Comunidade Europeia (TCE), que proíbem restrições à livre prestação de serviços fundados na nacionalidade e na residência.
Por sua vez, o Tribunal, através da, aliás douta, sentença sob recurso, concluiu pela violação do artigo 49º do TCE (actualmente artigo 56º do Tratado de Funcionamento da União Europeia – TFUE), o qual dispõe que são proibidas as restrições à livre prestação de serviços na Comunidade em relação a nacionais dos Estados – Membros estabelecidos num Estado da Comunidade, referindo que “a norma em causa, ao introduzir como requisito para a emissão de carta de navegador de recreio a posse de residência em território nacional, é violador (ainda que indirectamente) da liberdade de prestação de serviços conforme consagrado pelo Direito Comunitário”.
Não tem porém razão o tribunal ao decidir como decidiu.
É que, a norma constante do nº 1 do artigo 29º do Decreto-Lei nº 124/2004, de 25 de Maio não viola o artigo 49º do TCE (actualmente artigo 56º do TFUE) ou qualquer outro.
E conclui:
“1ª – O nº 1 do artigo 29º do Decreto-Lei nº 124/2004, de 25 de Maio, impõe ao IPTM, IP, que só pode emitir cartas de navegador de recreio a quem possua residência em Portugal;
2ª – Por via dessa regra, o réu, aqui recorrente, passou a não admitir a exame de navegador de recreio os formandos que não demonstrassem residir em Portugal;
3ª – Tal norma, constante do nº 1 do artigo 29º do Decreto-Lei nº 124/2004, de 25 de Maio, não viola o direito comunitário, seja o artigo 49º do TCE (hoje artigo 56º do TFUE) seja de qualquer outro, por violação do principio de livre prestação de serviços seja de qualquer outro.
4ª – Trata-se de exames de Estado, cuja realização, controlo e fiscalização pertence exclusivamente aos organismos do Estado, estando por isso, subtraídos à iniciativa privada e integrado o exercício de autoridade pública,
5ª - Não se lhe aplicando a regulamentação comunitária sobre liberdade de prestação de serviços, por força do disposto nos artigos 48º e 55º do TCE (actualmente os artigos 51º e 62º do TFUE). Para além do mais,
6ª - Trata-se manifestamente de matéria de interesse e ordem pública, face à necessidade de preservar a segurança marítima e a salvaguarda da vida do mar, exigindo um controlo efectivo aos detentores de habilitação para comandar embarcações de recreio;
7ª - Tais limitações de exigência de residência, de resto, constam igualmente na regulamentação comunitária e na legislação nacional no que respeita à condução automóvel (directiva 91/439/CEE e Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro); de resto,
8ª - As autoras, ora recorridas mantêm intacta a liberdade de prestação de serviços de formação náutica, sendo que o seu escopo social é, dentre muitas outras, a formação náutica e não a realização de exames para a obtenção de cartas de navegadores de recreio, sendo estes uma competência exclusiva do Estado.
9ª - A sentença sob recurso faz errada interpretação e aplicação da lei ao declarar violadora do Direito Comunitário (o artigo 49º do TCE ou qualquer outro) a norma constante do nº 1 do artigo 29º dói Decreto-lei nº 124/2004, pelo que deve ser revogada;”.
No âmbito do presente recurso jurisdicional, por acórdão de 05-07-2012 — fls. 949 a 972 dos autos — foi decidido submeter ao Tribunal de Justiça da União Europeia a seguinte questão prejudicial:
“O Direito da EU, face ao princípio da proibição de discriminação entre cidadãos nacionais de um Estado-Membro e cidadãos nacionais de outro Estado-Membro [actual artigo 18º do TFUE, e antigo artigo 12º TCE], face à liberdade de circulação de pessoas na EU e suas excepções [actual artigo 45º nº 3 do TFUE, e antigo artigo 39º do TCE], e face à liberdade de prestação de serviços e suas possíveis restrições [artigo 52º do TFUE, antigo artigo 46º TCE, ex vi artigo 62º do TFUE, e antigo artigo 55º do TCE], deve ser interpretado no sentido de que se opõe a disposição de direito nacional que exija residência no respectivo território para poder ser emitida carta de navegador de recreio?”.
Por acórdão de 06 de Fevereiro de 2014, no processo nº C-509/12, o Tribunal de Justiça da União Europeia (Terceira Secção) declarou:
“Os artigos 52º TFUE e 56º TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem à legislação de um Estado-Membro, como a que está em causa no processo principal, que impõe o requisito de residência no território nacional aos cidadãos da União Europeia que pretendam obter uma carta de navegador de recreio emitida por esse Estado-Membro.”.
Significa isto que o disposto no nº 1 do artigo 29º do Regulamento da Náutica Recreio aprovado pelo Decreto-lei nº 129/2004, na medida em que exige que “as cartas de navegador de recreio são emitidas (…) a quem possua residência em território nacional”, e bem assim as decisões administrativas adoptadas ao abrigo e no sentido da exigência da citada norma, no que a esta exigência tange, violam frontalmente o disposto nos artigos 52º e 56º do TFUE.
A decisão sob recurso, numa exaustiva quão pertinente fundamentação, havia decidido nesse mesmo sentido, transcrevendo-se uma parte da mesma pela relevância decisiva na matéria:
“Em face do exposto, a imposição do requisito de residência para a emissão de cartas de navegador de recreio constitui uma restrição à liberdade de os cidadãos comunitários receberem das AA. (e de outras empresas do mesmo ramo de actividade) os serviços por elas prestados? E uma restrição (ainda que indirecta) à prestação de serviços das AA. a cidadãos comunitários? E a ser considerada restrição encontra-se, ou não, a mesma justificada?
Alega o R. que o regime estabelecido não conflitua com a liberdade de prestação de serviços quer porque não está em causa qualquer prestação de serviços das AA., as quais apenas se dedicam à formação náutica e não à realização de exames e emissão de cartas de navegador, quer porque os potenciais formandos podem deslocar-se a Portugal e receber a formação sem limitações, sendo essa formação reconhecida nos outros Estados Membros, designadamente, para efeitos de realização de exame e emissão de licença e de navegação nos Estados Membros cuja legislação apenas impõe que os navegadores hajam recebido formação.
Como resultou da matéria de facto provada as AA. são Escolas de Formação Náutica cujo objecto social inclui ministrar a formação necessária e obrigatória para a realização do exame exigido para a obtenção de carta de navegador de recreio. É certo, por isso, que a sua actividade não inclui aquela que é a competência do R., ou seja, a realização de exames e a emissão da carta de navegador de recreio (artigos 2.º, n.º 3, 10.º do DL 478/99, e artigo 29.º do RNR).
Todavia, daí não resulta inequívoco que a imposição do requisito de residência previsto no artigo 29.º, n.º 1 do RNR não traduza uma restrição à liberdade quer dos formandos das AA. aqui obterem a sua formação, quer da prestação de serviços das AA. aos cidadãos não residentes.
De facto, a formação ministrada pelas AA. é, essencialmente, dirigida à realização dos exames e à obtenção das cartas de navegador de recreio, as quais não podem ser obtidas sem aproveitamento nesse curso (artigo 29.º, n.º 1 do RNR). Assim, existe uma certa relação umbilical, diríamos de “indivisibilidade” ou “unicidade” entre a actividade de formação das AA. e o fim ao qual a mesma é dirigida.
Essa relação (una) entre a actividade de formação náutica ministrada pelas AA. e a emissão das cartas de navegador de recreio é, aliás, afirmada pelo facto de caber à entidade formadora solicitar ao R. a realização dos respectivos exames (artigo 8.º do DL 478/99) – não podendo, por isso, um qualquer candidato solicitar que esse exame seja efectuado - e de, em regra, se verificar que a realização das provas, quer teóricas, quer práticas, ocorre nas instalações e embarcações das entidades formadoras.
Daqui resulta facilmente perceptível que a aquisição de formação junto das AA. e demais entidades formadoras é, unicamente, orientada para a obtenção da carta de navegador de recreio, existindo uma relação causal entre estas duas “actividades”, de tal forma que restrições à última acarretam (indirectamente) consequências para a primeira. Em suma, impedir que cidadãos comunitários não residentes obtenham em território nacional carta de navegador de recreio acarreta uma restrição (ainda que indirecta) quer à possibilidade de entidades formadoras nacionais prestarem os seus serviços de formação a esses cidadãos comunitários, quer ao acesso desses cidadãos aos serviços por aquelas prestados.
Como se disse em sede cautelar, no Ac. do TCAN de 17.11.2005 (P. 00639/05.8BEPRT), “[é] óbvio que os cidadãos comunitários não residentes, salvo casos excepcionais, apenas frequentarão os cursos de formação náutica ministrados em Portugal motivados pelo intuito de obterem das entidades portuguesas a pretendida carta de navegador de recreio. Assim, torna-se clara a existência de uma conexão de ordem causal entre as restrições opostas a esse naipe de cidadãos comunitários e o previsível acentuado decréscimo da clientela potencial das Recorrentes, atenta a significativa percentagem de estrangeiros, mormente espanhóis, que se demonstra procurarem os seus serviços”.
E note-se que a restrição à liberdade de prestação de serviços, quer dos beneficiários – os formandos cidadãos comunitários não residentes –, quer dos prestadores – in casu as AA. – não deixa de existir pelo facto de os formandos em causa, recebendo a formação com as AA., poderem realizar o exame noutros países europeus ou poderem ficar habilitados a navegar sem realizarem exame ou sem carta de desportista náutico noutros países.
É facto notório que o objectivo dos cidadãos comunitários que se dirigem às AA. para receberem os seus serviços de formação é, em geral, o de obterem a carta de navegador de recreio, e não o de obterem formação para poderem navegar noutros Estados sem carta ou de irem a outro Estado realizar o exame. Necessariamente, confrontados com a impossibilidade de obter a carta de navegador de recreio, apesar da formação recebida ou que venham a receber, deixam de se deslocar a Portugal. Pelo que, quer a sua liberdade de receberem esses serviços no nosso país é coarctada, quer a própria liberdade de prestação de serviços das AA. a esses cidadãos sai diminuída.
Como resulta da jurisprudência do TJUE, verificando-se existir uma restrição potencial à liberdade de prestação de serviços, cabe ao Estado Membro justificá-la à luz das excepções do Tratado ou das excepções desenvolvidas pelo Tribunal.
Ao lado das excepções de ordem pública, serviço público e saúde pública constantes do artigo 46.º do TCE (actualmente artigo 52.º do TFUE), aplicáveis à liberdade de prestação de serviços ex vi artigo 55.º do TCE (actualmente artigo 62.º do TFUE), o TJUE desenvolveu um teste justificativo da restrição.
No Ac. Van Binsberg (C-33/74) o Tribunal estabeleceu as condições necessárias à compatibilidade das restrições à liberdade de prestação de serviços com o Tratado.
Em primeiro lugar, a limitação deve ser dirigida à realização de um interesse público legítimo que não seja incompatível com os objectivos da Comunidade, sendo que propósitos económicos são considerados incompatíveis com o Tratado. Os fins da medida em causa devem ser aferidos objectivamente pelo tribunal nacional (Ac. Finalarte, C-49/98).
Em segundo lugar, a restrição deve ser aplicável de forma igual às pessoas estabelecidas no Estado Membro e sem discriminação.
Em terceiro lugar, a restrição imposta ao fornecedor de serviços deve ser proporcional, no sentido de adequada à prossecução do seu fim legítimo.
Uma quarta condição, enunciada no caso Carpenter (C-60/00), impõe que a restrição respeite os direitos fundamentais.
Como vimos supra, a norma em causa não encontra justificação ao abrigo de qualquer das excepções constantes do artigo 46.º do TCE (actualmente artigo 52.º do TFUE), por não estarem subjacentes a ela quaisquer objectivos de ordem pública ou segurança pública.
Acresce que, relativamente ao teste desenvolvido pelo TJUE, sempre falta à norma em causa o preenchimento dos primeiro e segundo requisitos.
De facto, não se vislumbra como a imposição daquela restrição de residência em território nacional possa ser dirigida à realização de um interesse público legítimo. Como se referiu supra, os propósitos económicos avançados pelo IPTM são considerados incompatíveis com o Tratado. Acresce que, em termos objectivos, não se encontra na lei qualquer demonstração de que o objectivo do legislador foi assegurar a segurança da navegação marítima, nem se verifica que a imposição do requisito de residência redunde em qualquer vantagem para a segurança da navegação marítima. Daí resulta, igualmente, não verificada a adequação da medida ao fim de ordem e segurança pública avançado pelo R..
Donde resulta, igualmente, que a norma em causa, ao introduzir como requisito para a emissão de carta de navegador de recreio a posse de residência em território nacional, é violadora (ainda que indirectamente) da liberdade de prestação de serviços conforme consagrada pelo Direito Comunitário.”.
Improcede, assim, nesta matéria, a alegação do Recorrente.
II.2.2. — Da alegada errada interpretação e aplicação da lei, nomeadamente do Decreto-Lei nº 48051, de 221 de Novembro de 1967, bem como das normas aplicáveis do Código Civil — artigo 487º — e ainda do Decreto-Lei nº 257/2002, de 22 de Novembro.
Conclui o Recorrente, relativamente a esta questão:
“10ª – Não devendo o réu, aqui recorrente ser condenado a abster-se de recusar a admissão de cidadãos comunitários com fundamento na inexistência de documento comprovativo de residência em Portugal; em todo o caso, e por mera hipótese contrária, sem conceder,
11ª - Nunca poderia ser assacada ao réu aqui recorrente, qualquer conduta ilícita, geradora de responsabilidade civil extracontratual por danos, é que,
12ª – O facto gerador de qualquer eventual e hipotética conduta ilícita diz respeito ao exercício da função legislativa, isto é, verificar-se-ia uma desconformidade da lei com o direito internacional (no caso, com o Direito Comunitário). Ora,
13ª - É pacificamente aceite, na doutrina e na jurisprudência, que a Administração está impedida de desaplicar uma lei com fundamento na sua inconstitucionalidade ou na sua ilegalidade, a menos que tal seja declarado pelo poder judicial. Porém,
14ª – A actividade do réu, aqui recorrente, circunscreve-se ao âmbito administrativo, carecendo de qualquer competência legislativa; ademais,
15ª – Embora integrado na administração indirecta do Estado, o réu é uma pessoa colectiva distinta daquele, dotado de personalidade jurídica própria. Assim,
16ª – Qualquer eventual responsabilidade civil extracontratual derivada de facto ilícito proveniente de acto legislativo é completamente estranha ao réu, carecendo de ilegitimidade passiva para o efeito, não existindo por parte dele, do réu, qualquer grau de culpa (mesmo leve ou negligente) nem nexo de causalidade entre o facto e o dano, requisitos essenciais para eventual condenação no caso em apreço; De facto,
17ª - No âmbito dos limites da sua actividade administrativa, o réu estava obrigado a tomar a atitude que efectivamente tomou, não podendo desaplicar uma norma vigente na ordem jurídica nacional;
18ª - Na sentença sob recurso fez-se errada interpretação e aplicação da lei (nomeadamente do Decreto-lei nº 48051, de 21 de Novembro de 1967, bem como das normas aplicáveis do Código Civil – art. 487º - e ainda do Decreto-lei nº 257/2002, de 22 de Novembro, pelo que deve ser revogada e substituída por decisão que absolva o réu, aqui recorrente do pedido de indemnização a título de danos patrimoniais por conduta ilícita;
19ª - Assim como por danos não patrimoniais a idêntico titulo, pelas mesmas razões (…)”.
A sentença, na parte fundamentadora relevante nesta matéria, mostra exarado o seguinte, designadamente:
“(…) As AA., invocando o preenchimento de todos os pressupostos da responsabilidade civil, pedem a condenação do R. ao pagamento de:
- uma indemnização à A. N... no valor de € 101.154,48, a título de responsabilidade civil extracontratual, pelos danos patrimoniais directamente provocados actuação ilícita;
- uma indemnização à A. Nz... no valor de € 268.813,84, a título de responsabilidade civil extracontratual, pelos danos patrimoniais directamente provocados pela actuação ilícita;
- uma indemnização no valor de € 50.000,00 a cada uma das AA., a título de responsabilidade civil extra-contratual, pelos danos morais directamente provocados pela actuação ilícita.
O art. 22.º da C.R.P. estabelece que o «Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem».
À data da ocorrência dos factos dos presentes autos, a concretização desta responsabilidade era feita, em geral, pelo Decreto-Lei n.º 48051, de 21.11.67 que estabelecia o princípio de que «o Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício» (art. 2.º).
De harmonia com o preceituado no art. 483.º do Código Civil, «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Por sua vez, o art. 6.º do Decreto-Lei n.º 48051, de 21.11.67, estabelecia que se consideram «ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração.»
É jurisprudência pacífica que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e pessoas colectivas públicas por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes assenta nos pressupostos da idêntica responsabilidade prevista na lei civil, com as especialidades resultantes das normas próprias relativas à responsabilidade dos entes públicos.
Esses pressupostos, cumulativos, são:
– o facto, que é um acto de conteúdo positivo ou negativo, consubstanciado por uma conduta de um órgão ou seu agente, no exercício das suas funções e por causa delas;
– a ilicitude, traduzida na violação por esse facto de normas legais e regulamentares ou dos princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração (art. 6.º do Decreto-Lei n.º 48051);
– a culpa, como nexo de imputação ético-jurídico que liga o facto ao agente, não sendo necessária uma culpa personalizável no próprio autor do acto, bastando uma culpa do serviço, globalmente considerado;
– o dano, lesão ou prejuízo de ordem patrimonial ou não patrimonial, produzido na esfera jurídica de terceiros; e
– o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Aplica-se também o regime da lei civil quanto ao pressuposto negativo da não existência de culpa concorrente do lesado (art. 570.º do Código Civil) e quanto ao cálculo e limitação da indemnização.
Por estar em causa a violação por uma entidade pública no exercício da função administrativa (de gestão pública, entendido estes como os praticados pelos órgãos e agentes da Administração no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público) de disposições de direito comunitário importa referir o princípio comunitário da responsabilidade dos Estados Membros por incumprimento do Direito da União Europeia. Este princípio é oriundo da jurisprudência do TJUE, tendo sido inicialmente afirmado como “inerente ao sistema do tratado” no Ac. Francovich (C-6/90 e 9/90).
Nos Acs. Brasserie du Pêcheur e Factortame (C-46/93 e C-48/93), o Tribunal veio afirmar que existirá um direito à reparação dos danos resultantes do incumprimento estadual do direito comunitário quando estejam preenchidas três condições: i) a regra de direito comunitário tenha por objecto conferir direitos aos particulares; ii) a violação seja suficientemente caracterizada, sendo que uma violação é suficientemente caracterizada quando um Estado Membro tenha violado de forma manifesta e grave, no exercício da sua competência, os limites impostos ao exercício dessa competência (Ac. Haim (C-424/97)); iii) exista um nexo de causalidade directa entre tal violação (manifesta) e o prejuízo sofrido pelos particulares.
O regime da responsabilidade do Estado pela violação do direito comunitário tem implicações a nível do regime nacional:
i) o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado não pode contrariar o disposto pelo direito comunitário;
ii) vale aqui o princípio da equivalência no sentido de que os Estados Membros não podem, designadamente pela via processual, tornar impossível ou excessivamente difícil a efectivação desse direito;
iii) aplica-se também o princípio da autonomia, entendendo-se que é no âmbito do direito nacional da responsabilidade que incumbe ao Estado reparar as consequências do prejuízo causado, cabendo à ordem jurídica interna de cada Estado Membro designar os órgãos jurisdicionais competentes e regular as modalidades processuais das acções judiciais destinadas a assegurar a protecção plena dos direitos que os particulares retiram do direito comunitário (Ac. Francovich);
iv) as condições fixadas pela legislação nacional não podem ser menos favoráveis que as respeitantes a reclamações semelhantes de natureza interna e não podem ser adoptadas de modo a tornar praticamente impossível ou excessivamente difícil a obtenção da reparação, valendo aqui o princípio da efectividade mínima.
Note-se que a responsabilidade de um Estado por incumprimento do direito comunitário aplica-se a todas as funções do Estado, incluindo o exercício da função administrativa por organismos de direito público (Ac. Haim).
Verifica-se, assim, existirem algumas desconformidades entre o regime material da responsabilidade civil extracontratual pelo exercício da função administrativa e o Direito da União Europeia, designadamente, o conceito de ilicitude não refere o incumprimento do direito comunitário, não se referem os requisitos comunitários da responsabilidade e omite-se a referência aos elementos relevantes para a aferição do requisito da violação suficientemente caracterizada ou violação manifesta do Direito da União.
Não obstante as divergências referidas, os princípios do primado e da lealdade comunitária impõem que o Estado e respectivos órgãos, e concretamente este Tribunal, considerem e observem os requisitos comunitários, assentes no pressuposto de que não se podem aplicar requisitos mais exigentes do que os fixados pela ordem jurídica comunitária. Daí que ao aferirmos se se encontram preenchidos os requisitos (nacionais) da responsabilidade civil extracontratual do Estado o façamos à luz do direito comunitário, afastando, sempre que necessário, os requisitos (nacionais) que se revelem mais exigentes do que os pressupostos da responsabilidade em sede comunitária.
Delineados que estão os contornos essenciais desta questão, vejamos, então, se estão reunidos os pressupostos legais de que depende a responsabilização civil extracontratual do R. com fundamento em facto ilícito.
Quanto ao primeiro pressuposto, ou seja, ao facto, a sua verificação há-de derivar de um evento dominável pela vontade, uma acção ou omissão resultante do exercício de uma actividade regulada por normas de direito administrativo ou de uma acção ou omissão praticada no exercício de funções e por causa desse exercício (artigo 2.º, n.º 1 do DL 48051).
Ora, as AA. provaram que recorriam aos seus serviços de formação de navegador de recreio muitos cidadãos espanhóis, com vista à obtenção em Portugal da carta de navegador de recreio após sujeição a exame( cfr. pontos H), I), R), S) da matéria de facto assente). E provaram que, após a publicação do DL 124/2004 e a partir de Dezembro de 2004, o IPTM começou a recusar a admissão a exame dos cidadãos espanhóis.
Assim, como resulta da matéria de facto provada, designadamente nos pontos X), Y), AA), GG), KK), NN) e OO), não se suscitam dúvidas quanto à existência do facto, o qual se traduz, genericamente, na recusa do R., a partir de Dezembro de 2004, em admitir cidadãos comunitários – essencialmente de nacionalidade espanhola -, não residentes em território nacional, à realização de exames para obtenção de carta de navegador de recreio e a consequente recusa em emitir as respectivas cartas de navegador de recreio a esses cidadãos comunitários.
Por se tratar de um acto jurídico – o acto de recusa - não se discute nos autos a questão da qualificação, representando o mesmo um acto de gestão pública, sendo igualmente, líquido tratar-se de um acto funcional, isto é, ocorrido no exercício de funções e por causa desse exercício.
Quanto ao pressuposto da ilicitude, nos termos do artigo 6.º do DL 48051 “consideram-se ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios e ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração”. Conforme dispõe o artigo 483.º do CC, o acto ilícito pressupõe a violação dos direitos de outrem ou de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
Importa notar que, embora o preceito não se refira expressamente às normas de direito comunitário, a verdade é que decorre do princípio da aplicabilidade directa do direito comunitário que “as disposições de direito comunitário – todas elas, independentemente da sua fonte (originária ou derivada), da sua natureza e do seu nível hierárquico – a partir do momento em que entram em vigor na ordem comunitária inserem-se, automaticamente, de pleno direito, na ordem jurídica interna dos Estados-membros, passando consequentemente, a fazer parte, em posição de primazia, do complexo jurídico (corpos juris) que todos os órgãos do Estado são obrigados a acatar” (Mota de Campos, ob. cit., p. 379). Resultando, por isso, que a violação do direito comunitário pode configurar um comportamento ilícito. Como decorre do ensinamento de Gomes Canotilho, in Comentário ao Ac. STA de 12 de Dezembro de 1989, RLJ n.º 3816, 1992-1993, p. 84), nem toda a violação de uma norma jurídica constitui um facto ilícito, “tem sempre de existir uma específica referência da ordem jurídica objectiva aos direitos subjectivos e posições juridicamente protegidas do particular”. No fundo, a ilicitude não se basta com a mera ilegalidade, antes pressupõe a violação de um direito subjectivo ou de um interesse legalmente protegido, ou seja, de uma norma que se destine a proteger o interesse de outrem.
Para que haja ilicitude é, por isso, necessário que a norma violada tenha entre os seus fins o de proteger o interesse do particular, isto é, que se trate de uma norma de protecção. Para saber “se o particular é titular de um verdadeiro direito subjectivo público (...) é necessário que se reúnam duas condições: // a) A existência de uma regra de direito que obrigue a Administração a adoptar um comportamento determinado (obrigação jurídica imposta à Administração); // b) Que essa norma jurídica se destine – ou pelo menos também se destine – a assegurar a protecção de certos cidadãos (interesses individuais)” (cf. Estêvão Nascimento da Cunha, Ilegalidade Externa do acto administrativo e responsabilidade civil da Administração, Coimbra Editora, p. 222).
Note-se que, como vimos supra, uma das condições para o reconhecimento da responsabilidade extra-contratual do Estado por violação do direito comunitário é a exigência de que a regra de direito comunitário tenha por objecto a protecção dos particulares, pelo que existe, neste ponto, uma equivalência entre a nossa ordem jurídica e a ordem jurídica comunitária porquanto também o TJUE recorre, neste ponto, à teoria da norma de protecção.
Verificou-se no ponto a) que o disposto no artigo 29.º, n.º 1 do RNR ao introduzir um requisito de residência em território nacional para a emissão de cartas de navegador de recreio conflitua com o direito comunitário. Em suma:
- viola o artigo 12.º do TCE (actualmente artigo 18.º do TFUE) que confere o direito de não discriminação entre cidadãos da União em razão da nacionalidade, porquanto estabelece uma condição de residência em território nacional que é mais facilmente preenchida pelos cidadãos nacionais do que pelos cidadãos de outros Estados-Membros;
- interfere com a liberdade de circulação de pessoas (artigo 39.º do TCE, actualmente artigo 45.º do TFUE,), pois reduz a possibilidade de os cidadãos de outros Estados-Membros se deslocarem a Portugal com o intuito de obterem, em igualdade de circunstâncias com os residentes, o título de navegador de recreio;
- conflitua com a liberdade de prestação de serviços (artigo 49.º do TCE, actualmente artigo 56.º TFUE), na medida em que, em razão da “indivisibilidade” ou “unicidade” entre a actividade de formação das AA. e o fim ao qual a mesma é dirigida – a obtenção das cartas de navegador de recreio - acarreta uma restrição (ainda que indirecta) quer à possibilidade de entidades formadoras nacionais prestarem os seus serviços de formação a cidadãos comunitários não residentes, quer ao acesso desses cidadãos aos serviços por aquelas prestados.
Daí que importe, agora, apurar se as normas violadas têm entre os seus fins o de proteger o interesse das AA.
O TJUE julgou por diversas vezes que as normas constantes do Tratado relativas à cidadania europeia, à proibição de discriminação em razão da nacionalidade e às liberdades de circulação de pessoas e serviços gozam de efeito directo, originando a favor dos particulares o direito de exigir dos Estados-Membros o respectivo cumprimento (cf., entre outros, os Acs. Baumbaust (C-413/99), Zhu e Chen (C-200/02, Tas-Hagen (C-192/05), Van Binsberg (C-33/74)).
Entre as exigências e condições a que norma comunitária deve satisfazer para poder ser considerada como directamente aplicável encontra-se a sua aptidão ou vocação para conferir direitos subjectivos, no sentido que a norma atribui direitos individuais que as jurisdições nacionais devem tutelar (Ac. Van Gend en Loos).
No entanto, relativamente ao artigo 12.º do TCE (actualmente artigo 18.º do TFUE) que confere o direito de não discriminação entre cidadãos da União em razão da nacionalidade, ao direito à liberdade de circulação de pessoas (artigo 39.º do TCE, actualmente artigo 45.º do TFUE) e à liberdade de prestação de serviços no que concerne ao beneficiário dos serviços (artigo 49.º do TCE, actualmente artigo 56.º TFUE), não está em causa a protecção de qualquer direito ou interesse legalmente protegido das AA., mas antes dos direitos de cidadania, de igualdade de tratamento e de gozo das liberdades comunitárias dos formandos das AA, o que significa que esta ilegalidade (material) não constitui em relação às AA. um acto ilícito, porque não se violou nenhuma disposição legal de protecção dos interesses das AA. (violou-se, sim, normas protectoras dos interesses e direitos dos formandos das AA.).
Mas já é ilícita a restrição (ainda que indirecta) à possibilidade de entidades formadoras nacionais prestarem os seus serviços de formação a cidadãos comunitários não residentes, por tal restrição redundar, como vimos, na violação da liberdade de prestação de serviços das AA. Atendendo a que as AA., enquanto prestadoras de serviços de um Estado-Membro, são beneficiárias desta liberdade comunitária, daí decorre que o artigo 49.º do TCE (actualmente artigo 56.º TFUE) inclui, no seu escopo, a protecção de direitos subjectivos das AA. – o direito a prestarem os seus serviços de formação a cidadãos comunitários não residentes em território nacional.
Verifica-se, por isso, cumprido o primeiro requisito exigido pela jurisprudência comunitária para originar a responsabilidade do Estado por violação do direito comunitário e, bem assim, também o requisito da ilicitude exigido nos termos da legislação nacional.
Pelo que o acto do R. de recusa de admissão de cidadãos comunitários não residentes a exame para obtenção de carta de navegador de recreio e recusa de emissão do título respectivo é um acto ilícito, caindo, por isso, no âmbito da previsão do artigo 483.º do CC e artigo 6.º do DL 48051.
No que tange ao pressuposto da culpa e/ou a “violação suficientemente caracterizada”, constatada que está a ilicitude, importa agora determinar se ocorre a sua verificação.
A culpa consiste no nexo de imputação ético-jurídica que liga o facto ilícito à vontade do agente, exprimindo uma ligação reprovável ou censurável da pessoa com esse facto, aferida nos termos do artigo 487.º do CC (ex vi artigo 4.º, n.º 1 do citado DL 48.051).
Nos termos do artigo 2.º e 4.º do DL 48051 se o titular do órgão ou agente do facto ilícito agiu no exercício das suas funções e, por causa delas, com mera negligência, há lugar a responsabilidade exclusiva da Administração (embora caiba acção de regresso se houver procedido com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados).
«Agir com culpa significa, pois, actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito. E a conduta é reprovável quando pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo» (cf. A. Varela, in RLJ, ano 102º, p.58 e segs.).
O apelo do legislador ao conceito de bom pai de família, vertido no n.º 2 daquele artigo 487º do CC, implica, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual de entes públicos, a comparação do comportamento ilícito apurado com o que seria exigível a um funcionário ou agente zeloso e cumpridor (cf. neste sentido, por ex., o Ac. STA de 13.05.99, P. 38081).
Como se disse no Ac. do TCA Norte de 25.03.2010 (P. 00341/05.0BEPNF) “afirmar a existência de culpa numa conduta ilícita - seja por violação das prescrições legais estabelecidas, seja por violação das regras de ordem técnica ou de prudência comum que deveriam ter sido adoptadas - implica a formulação dum juízo de reprovação por se reputar que o funcionário/agente, naquele circunstancialismo concreto, tinha obrigação de conformar o seu comportamento de modo a não violar aquelas regras e que o não fez.
Frise-se que a culpa de uma pessoa colectiva, como as em presença, não se esgota na imputação de uma culpa psicológica aos funcionários/agentes que actuaram em seu nome, pois, o facto ilícito gerador dos danos pode resultar de um conjunto, ainda que imperfeitamente definido, de factores, próprios da deficiente organização ou falta de controlo, de cuidados construtivos, de vigilância e/ou de fiscalização exigíveis, ou de outras falhas que se reportam ao serviço como um todo, casos em que se verifica uma culpa do serviço.
É, assim, que podem ser qualificadas como facto ilícito culposo as acções ou omissões que de uma forma ou de outra ofendem a esfera jurídica de terceiros mesmo que tal resulte de uma sucessão de pequenas faltas individualmente desculpáveis.
Note-se que face à definição ampla de ilicitude constante do art. 06.º do DL em referência tem a jurisprudência considerado ser difícil estabelecer uma linha de fronteira entre os requisitos da ilicitude e da culpa, afirmando que, estando em causa a violação do dever de boa administração, a culpa assume o aspecto subjectivo da ilicitude, que se traduz na culpabilidade do agente por ter violado regras jurídicas ou de prudência que tinha obrigação de conhecer ou de adoptar (cfr., entre outros, Acs. STA de 08.11.2007 - Proc. n.º 0634/07, de 05.12.2007 - Proc. n.º 0491/07, de 12/11/2008 - Proc. n.º 0682/07 in: «www.dgsi.pt/jsta»; Acs. TCA Norte de 03.05.2007 - Proc. n.º 00096/04.6BEMDL, de 03.05.2007 - Proc. n.º 00814/04.2BEBRG, de 25.10.2007 - Proc. n.º 00106/05.0BEMDL in: «www.dgsi.pt/jtcn» e de 25.02.2010 - Proc. n.º 00636/05.3BECBR - inédito ainda)”.
Estêvão Nascimento da Cunha (in Ilegalidade externa do acto administrativo e responsabilidade civil da administração, págs. 149 a 160) refere uma tendência de “objectivização” da responsabilidade, designadamente “mediante a consagração jurisprudencial, e agora legal, de uma presunção de culpa leve”. Segundo o autor “a exigência de uma culpa jurídica para que a Administração incorra em responsabilidade por factos ilícitos é, ela própria, atenuada face ao que sucede com a responsabilidade aquiliana no direito civil. Com efeito, a jurisprudência já era unânime, na vigência do DL 48 051, em presumir ao menos uma culpa leve sempre que se verificasse a ilicitude do acto [...]. [...] este pressuposto [da culpa] foi, até certo ponto, absorvido pelo pressuposto da ilicitude, que, a verificar-se indicia ao menos a culpa leve.”
Na realidade, como nota Carlos Alberto Fernando Cadilha (in Regime da Responsabilidade Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas – Anotado, Coimbra Editora, p. 166), o que a jurisprudência vinha afirmando era que “a violação de normas legais ou regulamentares desde logo arrasta uma presunção de negligência”. Admitia-se, assim, “a demonstração da culpa através da utilização, como meio de prova, da presunção judicial: por simples conjectura, o julgador deduzia de um facto conhecido (o erro na aplicação ou interpretação de uma norma) um facto incerto (a culpa na emissão do acto administrativo ilegal)”.
No entanto, acrescenta o mesmo autor, “a culpa comporta um juízo de censura e representa, por isso, algo mais do que a mera constatação da ilegalidade. Ademais, sendo a culpa aferida pela diligência de um funcionário médio (por adaptação do conceito de bonus pater familias), dificilmente se compreenderia que esse funcionário incorresse em conduta culposa sempre que se tivesse limitado a adoptar, na apreciação do caso concreto, uma das soluções plausíveis de direito. Daí que, em relação à prática de actos jurídicos, fosse necessário indagar a existência de culpa em função do circunstancialismo concreto em que o acto tivesse sido praticado (…).”.
Ora, in casu, decorre dos factos que o DL 124/2004 foi publicado em 25.5.2004 (entrando em vigor 30 dias após a sua publicação) e que a partir de Dezembro de 2004 o IPTM começou a recusar a admissão de cidadãos comunitários a exames para a carta de navegador de recreio, com base no disposto no artigo 29.º n.º 1 daquele diploma, por falta de prova de possuírem residência em território nacional.
Como se sabe dispõe o artigo 29.º, n.º 1 do RNR que “Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, as cartas de navegador de recreio são emitidas pelo IPTM a quem possua residência em território nacional e apresente documento comprovativo de ter obtido aproveitamento em curso frequentado para o efeito dentro dos pressupostos previstos no artigo 35.º.”.
Fundado nesta norma, o IPTM recusou a admissão a exame de cidadãos comunitários, formandos das AA., que não apresentassem prova de residência em território nacional, porquanto sendo o exame dirigido à obtenção da carta de navegador de recreio não a poderia emitir a esses cidadãos.
Para aferição da existência de culpa do R. é relevante referir que, apesar de o normativo em causa ter entrado em vigor em Julho de 2004, o IPTM só começou a recusar a admissão dos cidadãos comunitários não residentes a partir de Dezembro desse ano.
Acresce que o R. demonstrou ter dúvidas quanto a determinar, para efeitos daquele normativo, o que constitui prova de residência em território nacional. De facto, inicialmente aceitou a indicação na ficha de inscrição da residência temporária dos cidadãos para a realização do exame, admitiu ainda em Janeiro de 2005 o cartão de contribuinte português, e vem, agora, exigir título de residência emitido pelos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras.
Estas condutas do R. revelam as dificuldades sentidas por este na aplicação e interpretação do normativo em causa, o que denota, no mínimo, que a leitura da mesma não é, de tal forma, clara e óbvia que ao R. apenas se suscitasse um caminho a seguir – o de recusar a aplicação da norma.
Acresce que, como sabemos, a Administração actua ao abrigo do princípio da legalidade, o qual determina que só possa fazer aquilo que a lei lhe permite, considerando-se proibido tudo o que não for permitido. Pelo que, se por um lado mais facilmente pode cair numa situação de ilegalidade, por agir de forma atentatória aos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, por outro lado, a verdade é que em face daquela norma nacional seja razoável questionar se o R. deveria ou não, em nome da interpretação conforme ao direito comunitário e da primazia daquela ordem jurídica, ter recusado a aplicação da norma.
Como refere Carla Amado Gomes (in “O livro das ilusões: Responsabilidade do Estado por violação do Direito Comunitário, apesar da Lei 67/2007 de 31 de Dezembro”) “é ainda questionável se a Administração não tem a obrigação de emendar a mão do legislador, aplicando a norma comunitária em detrimento de norma nacional […]. Esta interrogação é legítima e demonstra bem a dualidade de perspectivas que a questão envolve. É que, se do ponto de vista do TJCE, o que prevalece é a obrigação de cumprimento do dever de uniformidade de aplicação e da optimização da tutela efectiva, já do ponto de vista do ordenamento nacional, o princípio da separação de poderes pode opor-se frontalmente a este tipo de substituição […].
A dúvida que desponta aqui é a de saber se a Administração está em condições de levar por diante tais operações de reconstrução ou tão somente de desaplicação da norma nacional, em nome da primazia da norma comunitária. Em última análise, como já tivemos oportunidade de escrever numa reflexão anterior, a nossa resposta é negativa ─ salvo, porventura, se a interpretação da norma comunitária estiver sedimentada em jurisprudência do TJCE, hipótese na qual, à semelhança do que ficou afirmado no Acórdão Traghetti a propósito da responsabilidade do juiz, se presume a responsabilidade da Administração.”
A culpa em sentido lato significa não só a imputação de um acto ilícito ao respectivo autor, mas sobretudo o juízo de censura que sobre este recai por não se ter abstido de o praticar. A mera culpa mais não é do que a imprudência, imperícia e ligeireza revelados pelo agente, quando podia e devia ter procedido de outra forma.
Como já referimos supra é de admitir que o R. tenha sentido dificuldade na interpretação da norma, até porque em sede de outras matérias como a da obtenção de carta de condução - referida pelo R. - existem normas de conteúdo semelhante. No entanto, julgamos que tais dúvidas, e em face do circunstancialismo concreto, embora afastando culpa grave, não são de molde a arredar a existência de culpa leve.
De facto, em sede de jurisprudência do TJUE os conteúdos da cidadania europeia e, concretamente, da proibição de discriminação em razão da nacionalidade e das liberdades de circulação de pessoas e de prestação de serviços no espaço comunitário encontram-se amplamente desenvolvidos.
Ao que acresce que o bloco de legalidade, no âmbito do qual o R. deve conformar a sua actividade, abrange o direito comunitário. E, como já aqui foi referido, o princípio do primado impõe-se a todas as entidades públicas dos Estados Membros, devendo estas conhecer o direito comunitário, interpretar as normas nacionais em conformidade com ele e recusar a aplicação das normas nacionais quando contrárias ao direito comunitário.
Assim, existindo jurisprudência insistentemente reafirmada pelo TJUE quanto ao conteúdo do direito de cidadania europeia, da proibição de discriminação em razão da nacionalidade e das liberdades comunitárias e em face das obrigações que sobre ele recaíam, de aceitação da supremacia do direito comunitário e de interpretação da lei nacional conforme ao direito dos Tratados, afigura-se relevante referir que não consta dos autos que os serviços do R. se tenham debatido com a possibilidade de aquela norma poder contrariar o direito comunitário e tenham em algum momento suscitado a referida questão.
Pelo que em face deste circunstancialismo podemos formular um juízo de reprovação da conduta (dos serviços) do R., embora a título de culpa leve.
Como explanado supra os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado consagrados no ordenamento nacional não coincidem, totalmente, com os exigidos pelo ordenamento comunitário.
De facto, não se refere a ilicitude da conduta ou a culpa, antes se demandando uma “violação suficientemente caracterizada” ou “violação manifesta e grave”.
Relativamente a este pressuposto no Ac. Brasserie du Pêcheur o TJUE esclareceu que “entre os elementos que o órgão jurisdicional competente pode ser levado a considerar, importa sublinhar o grau de clareza e de precisão da regra violada, o âmbito da margem de apreciação que a regra violada deixa às autoridades nacionais ou comunitárias, o carácter intencional ou involuntário do incumprimento verificado ou do prejuízo causado, o carácter desculpável ou não de um eventual erro de direito, o facto de as atitudes adoptadas por uma instituição comunitária terem podido contribuir para a omissão, a adopção ou a manutenção de medidas ou práticas nacionais contrárias ao direito comunitário.”
No Ac. Hedley Lomas (C-5/94) ainda acrescentou que “(...) há que considerar que, na hipótese de o Estado-membro em causa, no momento em que cometeu a infracção, não se confrontar com opções normativas e dispor de uma margem de apreciação consideravelmente reduzida, ou mesmo inexistente, a simples infracção ao direito comunitário pode bastar para provar a existência de uma violação suficientemente caracterizada”.
Carla Amado Gomes (in “O livro das ilusões: Responsabilidade do Estado por violação do Direito Comunitário, apesar da Lei 67/2007 de 31 de Dezembro”) esclarece que “ao prescindir do conceito formal de culpa, o TJCE não abdica do teste da diligência do órgão ao qual é directamente imputável a infracção da obrigação comunitária, não hesitando mesmo em eximi-lo de uma responsabilização aparentemente certa. […] Tal lógica é igualmente constatável no Acórdão Brinkmann, aresto no qual o TJCE, reconhecendo embora a omissão de transposição de uma directiva dotada de efeito directo pelo legislador dinamarquês e afirmando a obrigação de aplicação de tais normas pela Administração, acaba por descartar a responsabilidade das autoridades administrativas, aceitando que a interpretação errónea que por elas fora feita se justificava à luz das circunstâncias do caso concreto (§31.).”.
Como fizemos notar supra, esta autora questiona se perante uma norma nacional contrária ao Direito Comunitário a Administração tem ou não a obrigação de afastar a aplicação do dispositivo nacional e embora recusando que, à face da ordem jurídica nacional, a Administração o possa fazer, denota que “do ponto de vista do TJCE, o que prevalece é a obrigação de cumprimento do dever de uniformidade de aplicação e da optimização da tutela efectiva” e que o “TJCE não abdicará da responsabilização da Administração como posição de princípio – sem embargo de a perspectivar de forma despessoalizada, ou seja, num plano puramente funcional”.
Em face dos critérios lançados pelo TJUE parece-nos estar, igualmente preenchido o pressuposto da existência de uma “violação suficientemente caracterizada”.
As normas comunitárias violadas e acima identificadas – referentes à cidadania europeia, à proibição de discriminação em razão da nacionalidade e às liberdades de circulação de pessoas e de prestação de serviços – gozam, como igualmente já referido, de efeito directo. Tal significa que, entre outras características, foram consideradas pelo TJUE como claras, precisas e incondicionais, deixando uma reduzida, se não inexistente, margem de apreciação às autoridades nacionais ou comunitárias.
E já aferimos que não se afigura que as dúvidas interpretativas da norma nacional possam tornar o incumprimento do direito comunitário desculpável.
Daí que, em face da jurisprudência comunitária relativa à responsabilidade pela violação do direito comunitário, consideramos que a infracção apreciada nos autos constitui uma violação suficientemente caracterizada.
No que respeita ao nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo e o dano, a nossa ordem jurídica acolhe a teoria da causalidade adequada, segundo a qual a causa de um dano é a condição que, abstractamente, se mostre apta a produzi-lo. Essa adequação obtém-se a partir de um juízo de prognose a posteriori, baseado no conhecimento médio e na experiência comum, e tomando em conta as circunstâncias do caso.
Segundo esta teoria, dominante na jurisprudência e na doutrina, “o dano considerar-se-á efeito do facto lesivo se, à luz das regras práticas da experiência e a partir das circunstâncias do caso, era provável que o primeiro decorresse do segundo, de harmonia com a evolução normal (e, portanto, previsível) dos acontecimentos” (in Fernando Pessoa Jorge, Ensaio sobre..., pág. 392 e 393, Antunes Varela, Das obrigações em Geral, vol. I, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, pág. 617).
“A teoria da causalidade adequada — pelo menos na sua formulação mais generalizada — parte da situação real posterior ao facto e, normalmente, ao dano e afirma a conexão entre um e outro, desde que seja razoável admitir que o segundo decorreria do primeiro, pela evolução normal das coisas”. Por isso no artigo 563.º do Código Civil, “o legislador quis afirmar uma ligação positiva, em termos de juízo de probabilidade, entre o facto lesivo e o dano” (Pessoa Jorge, Ensaio…, pág. 411 e segs.)
Na formulação negativa da teoria da causalidade adequada, de harmonia com a doutrina de Ennecerus-Lehmann, a condição deixará de ser causa do dano sempre que seja de todo indiferente para a produção do dano e só se tenha tornado condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias. O que afasta os danos que não são consequência normal do facto, mas antes o resultado de uma evolução extraordinária, imprevisível e portanto improvável (os chamados desvios fortuitos).
Contudo, o nexo de causalidade adequada subsiste ainda que o facto ilícito não seja produtor do dano, desde que seja a causa adequada de outro facto que o produz, tendo o segundo origem na oclusão do primeiro, ou como consequência provável dele segundo o curso normal dos acontecimentos.
Cabia aos AA. provar que em resultado da conduta do R. em recusar a admissão de cidadãos comunitários à realização de exame para emissão de carta de navegador de recreio, e consequente emissão do respectivo título lhe sobrevieram danos para a sua esfera jurídica.
Ora, os AA. provaram que o recurso aos serviços de formação de navegador de recreio é efectuado em Portugal, maioritariamente por cidadãos portugueses e espanhóis (pontos H) e I) da matéria de facto) e que existia uma grande procura, por parte dos cidadãos espanhóis, dos cursos de navegador de recreio portugueses (ponto J) da matéria de facto). Tanto mais que provaram que de 01 de Janeiro a 31 de Julho de 2004 foram realizados 271 exames a cidadãos espanhóis com a inerente formação obrigatória prestada pela N..., e 242 exames a cidadãos espanhóis com a referida formação prestada pela Nz..., e de 1 de Agosto a 12 de Dezembro de 2004, realizaram exame, 89 alunos de nacionalidade espanhola pela N..., e 45 pela Nz.... Apurou-se, igualmente, que o IPTM, com base no artigo 29.º, n.º 1 do RNR, recusou a admissão de vários cidadãos comunitários ao exame para a carta de navegador de recreio (pontos X), Y), AA), BB), CC), GG), JJ), NN), OO)).
Dos pontos BBB), CCC), FFF), GGG), HHH) da matéria de facto resultou provado que:
- a actuação do IPTM, na sequência da publicação do RNR determinou danos para as AA., designadamente angústia, imagem negativa no mercado espanhol e danos de imagem;
- em razão da recusa de admissão a exame para obtenção da carta de navegador de recreio, e de emissão de licenças provisórias, as AA. viram reduzido o número de alunos espanhóis que procuravam formação nas suas escolas;
- que a redução do número de alunos espanhóis decorreu do conhecimento de que não poderiam mais fazer o exame em Portugal.
Verifica-se, assim, que as AA. conseguiram demonstrar que a actuação ilícita do R. foi causa dos danos por elas referidos. De facto, como consequência da recusa em admitir os formandos das AA. de nacionalidade espanhola e não residentes em Portugal e propagada a notícia de que os cidadãos não residentes não mais poderiam obter carta de navegador de recreio em Portugal, as AA. viram o seu número de alunos espanhóis reduzido e sofreram danos por ministrarem formação sem que, posteriormente, os formandos conseguissem obter cartas de navegador de recreio definitivas.
Caso os actos de recusa de admissão a exame não tivessem ocorrido, o número de cidadãos espanhóis a obterem formação náutica junto das AA. não seria reduzido. Os factos ilícitos que se apontaram ao R. foram, por isso, causa dos prejuízos sofridos pelas AA.
Considerando que o último requisito exigido pelo direito comunitário é o nexo directo de causalidade entre a violação da obrigação que incumbe ao Estado e o prejuízo sofrido pelo particular, o mesmo equivale ao nexo de causalidade apurado supra, pelo que também se encontra preenchido o terceiro requisito da responsabilidade pela violação do direito comunitário.(…)”.
É a este discurso que o Recorrente se opõe, reiterando nas conclusões da sua alegação o argumento basilar que havia suscitado perante o Tribunal a quo, segundo o qual, na sua actuação, se limitou a dar cumprimento ao disposto no artigo 29º do referido Regulamento aprovado pelo Decreto-Lei nº 124/2004, pelo que não lhe pode ser assacada qualquer conduta ilícita pela eventual desconformidade da lei, designadamente a identificada norma legal, com o Direito comunitário, por estar impedido de desaplicar uma lei com fundamento na sua inconstitucionalidade ou na sua ilegalidade, a menos que tal seja declarado pelo poder judicial, concluindo que a eventual responsabilidade civil extracontratual derivada de facto ilícito proveniente de acto legislativo é completamente estranha ao réu, carecendo de ilegitimidade passiva para o efeito, não existindo qualquer grau de culpa (mesmo leve ou negligente) nem nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Vejamos, pois, a questão sub judice, em face da entidade administrativa em causa, o IPTM, à data, e do princípio da legalidade da Administração Pública (inscrito no nº 2 do artigo 266º da CRP), no sentido de se averiguar se à Administração, concretamente o Réu, à data da prática dos actos de indeferimento que consubstanciam o facto ilícito e culposo, está confinado à observância da identificada norma legal contrária ao Direito Europeu, no quadro de legalidade que lhe confere existência e competência e de juridicidade que aplica, em face da vinculação administrativa à legalidade, como se afigura retirar-se da tese do Recorrente ou se, pelo contrário, tem um papel activo e uma responsabilidade no plano da vinculação à juridicidade(4), designadamente no âmbito da resolução dos conflitos normativos suscitados pelas antinomias jurídicas na resolução de casos concretos, como é o caso presente.
O Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos (IPTM) foi criado pelo Decreto-Lei nº 257/2002, de 22 de Novembro, com atribuições no âmbito da supervisão, regulamentação e inspecção do sector marítimo e portuário, da administração dos portos sob a sua jurisdição, visando a exploração económica, conservação e desenvolvimento, abrangendo o exercício de competência s e prerrogativas de autoridade portuária.
Enquanto instituto público com personalidade jurídica, distinto do Estado, integrava a administração indirecta do Estado, na qual se integra a actividade administrativa de carácter técnico, económico, cultural ou social(5).
Pelo seu lado, o Governo, para além de órgão de condução da política geral do país, é o órgão superior da administração pública — artigo 182º da CRP —, ou seja e para o que importa à economia deste aresto, da administração pública estadual directa ou indirecta(6).
Sendo criado por devolução de poderes do Estado, os institutos estão sujeitos a tutela administrativa — conjunto de poderes de intervenção do Estado na sua gestão — e a superintendência — poder do estado de definir objectivos e guiar a sua actuação.
No caso, o IPTM ficou sujeito à tutela e superintendência do Governo, pelo Ministro das Obras Públicas, Transporte se Comunicações.
O IPTM foi extinto pelo Decreto-Lei nº 7/2012, de 17 de Janeiro, e a suas atribuições no domínio da regulamentação, supervisão e fiscalização do sector marítimo-portuário e da náutica de recreio integradas na Direcção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos.
Os poderes devolvidos àquele IPTM retornaram ao Estado, por diploma legal do Governo, concretamente ao Ministério da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (MAMAOT), cuja lei orgânica foi aprovada pelo referido Decreto-Lei nº 7/2012.
Efectuada esta liminar apresentação do Réu, nestas linhas preliminares de enquadramento cabe ainda dar nota, ainda que muito brevemente, do pano de fundo no qual se inscreve a problemática sub judice.
O Direito, envolvendo as ideias de sintonia e de coerência axiológica entre todos os seus elementos, pressupõe e exige a ausência de contradições internas — cfr. A. Castanheira Neves, A Unidade do Sistema Jurídico: o seu problema e o seu sentido, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J.J. Teixeira Ribeiro, II, Coimbra, 1979, pág. 73 e seguintes.
Todavia, o sistema jurídico, pela sua complexidade dimensional — para maiores desenvolvimentos, veja-se Paulo Otero, in Legalidade e Administração Pública O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, Almedina, 2ª reimpressão da ed. Maio 2003, págs.218 e seguintes —, depara-se com dificuldades várias, decorrentes designadamente da heterogeneidade normativa do sistema, desde logo porque composto por normas que não emanam exclusivamente do poder público interno do Estado, nem durante a vigência de um mesmo texto constitucional, conducente à existência de um ordenamento jurídico susceptível de ser integrado por soluções normativas inspiradas ou ditadas por diferentes valores ou critérios teleológicos, sendo certo que mesmo as normas jurídicas elaboradas com actualidade relativamente a normativos de ordem superior (v.g., a Constituição) são passíveis de desenvolver soluções ao arrepio ou em confronto com a ordem axiológico-teleológica delas resultante.
Por isso, a unidade do ordenamento jurídico não se perfila como algo estático, como um dado adquirido para sempre, mas antes como o resultado de uma dinâmica, de uma conquista renovável ou um resultado a atingir em cada interpretação ou aplicação do Direito.
Da pluralidade de fontes da referida complexidade dimensional, pela pertinência à economia deste aresto, assume aqui particular interesse a referência ao reforço da complexidade do sistema jurídico nos Estados-membros da União Europeia, “pela impregnação das respectivas ordens jurídicas internas através do Direito Comunitário, tanto mais que este revela uma propensão tentacular quanto ao respectivo âmbito material de intervenção, verificando-se hoje que quase todas as áreas relevantes da normatividade interna se encontram «contaminadas» pela ordem jurídica comunitária” — Cfr. Paulo Otero, op. cit., pág. 231(7).
Como verte o referido Autor, “registam-se, em consequência, acrescidos problemas de articulação entre a ordem jurídica comunitária — ela própria assumindo a natureza de um verdadeiro sistema jurídico — e as ordens jurídicas dos diferentes Estados-membros: independentemente da discussão sobre integração ou separação entre os referidos ordenamentos, os princípios da subsidiariedade, do primado, da aplicabilidade directa e do efeito directo do Direito Comunitário e da harmonização progressiva das ordens jurídicas nacionais com o Direito Comunitário mais não traduzem do que critérios ou processos de relacionamento sistémico entre diferentes ordens jurídicas envolvidas em fenómenos de sobreposição normativa de regulamentações”.
A conflitualidade normativa, designadamente no plano axiológico-teleológico, atinente ao momento da criação acaba por se repercutir no momento da sua aplicação, envolvendo não apenas os tribunais mas também a Administração Pública.
Dos variados tipos de conflitualidade normativa dentro de um mesmo sistema jurídico, v.g. casos de «contradições transcendentes», de concorrência alternativa e de concorrência coexistencial entre princípios jurídicos contrários, de incongruências valorativas, de contradições teleológicas e de contradições de técnica normativa — para maiores desenvolvimentos, veja-se Paulo Otero, op. cit., pág. 258 e seguintes —, releva para o presente caso as denominadas antinomias jurídicas, ou seja, a conflitualidade que pode resultar da existência de normas de um mesmo ordenamento jurídico que comportam soluções contraditórias, isto é, incompatíveis entre si em termos lógicos e que nunca podem coexistir validamente dentro do mesmo sistema.
Da pluralidade de fontes da legalidade administrativa relevam para o presente discurso fundamentador as fontes jurídico-positivas, relativamente às quais, como vimos, na sua diversidade podem incidir ou convergir sobre a mesma situação de facto, apontando uma mesma solução ou para soluções que, embora diferenciadas, não envolvam uma exclusão recíproca das soluções apontadas, ou ainda carreando soluções que se excluem mutuamente, como é o caso presente.
É de notar que no âmbito do Direito Comunitário, a Administração Pública nacional actua também como Administração comunitária: “o fundamento de se encontrar na Administração dos Estados-membros a via normal de execução do Direito Comunitário, expressando um importante corolário da subsidiariedade, não pode deixar de se articular com o princípio da cooperação, lealdade ou fidelidade e com o princípio da autonomia: se a cooperação ou a lealdade comunitária ou ainda a designada «cláusula de fidelidade» impõe aos Estados-membros — incluindo às suas administrações — assegurar o cumprimento das obrigações comunitárias, tomando todas as medidas gerais ou especiais para o efeito (cfr. artigo 10º, § 1º, do ex-TCE e actual artigo 4º, § 3, do TUE), o princípio da autonomia, por seu lado, remete para a liberdade de cada Estado a definição das estruturas decisórias internas e dos procedimentos administrativos aptos à implementação do Direito Comunitário”, como refere Paulo Otero, in op. cit., pág. 470 e seguintes.
Portanto, perante esta nova realidade — nova, no sentido de se distanciar da tradicional visão de uma legalidade vinculativa linear e isenta de dúvidas sobre o seu exacto sentido, embora num quadro estruturado pela primazia da competência, tendo na Constituição e na lei não apenas os limites mas também o fundamento da actividade administrativa —, na aplicação do Direito a um caso concreto, um primeiro momento se apresenta como incontornável à Administração, pelos seus órgãos administrativos, consubstanciado na determinação do Direito aplicável à sua actividade decisória, obrigando a uma certeza sobre o Direito a aplicar, podendo envolver a necessidade de definir, em primeiro lugar, a norma ou normas que de entre as normas concorrentes, maxime se antagónicas, deve ser aplicada, pois “o dever de coerência e a inerente prevenção e resolução de antinomias jurídicas, traduzindo expressões da unidade do sistema jurídico, surgem como instrumentos de garantia do princípio da igualdade. Neste contexto, a função administrativa, protagonizada através dos órgãos da Administração Pública, não pode desempenhar um papel neutro, antes se terá de revelar metodologicamente activa na sua vinculação ao dever de coerência do ordenamento, prevenindo e resolvendo as antinomias jurídicas que se atravessarem no exercício da sua actividade” (cfr. Paulo Otero, op. cit., pag. 646-647).
No entanto, importa relevar que os órgãos administrativos não gozam de competência para rejeitar a aplicação de normas inconstitucionais, nem possuem competência para fiscalizar a legalidade ou a validade do Direito Comunitário — para maiores desenvolvimentos, veja-se Paulo Otero, op. cit., pág. 667 e seguintes e 674 e seguintes.
De entre os tipos de antinomias jurídicas — antinomias normativas constitucionais e antinomias normativas não constitucionais — que, como conflito normativo no domínio da aplicação das normas, podem eivar de escolhos o caminho da Administração Pública — para maiores desenvolvimentos, veja-se Paulo Otero, op. cit, pag. 639 e seguintes, 656 e seguintes — destaca-se, para o que importa à questão sub judice, as antinomias não constitucionais e nestas as de nível comunitário, designadamente as que se verificam entre o Direito comunitário (primário ou derivado) e o Direito interno ordinário, nos casos em que um acto comunitário é contrariado por uma norma interna posterior.
Neste caso, deve o órgão administrativo dar preferência a um critério hierárquico, aplicando o acto comunitário, ou à actualidade cronológica, aplicando a norma interna?
Vejamos o que nos diz a jurisprudência comunitária.
O Acórdão Costa/ENEL, de 15 de Julho de 1964, processo 6/64, constituiu o precedente de uma jurisprudência constante do TJ na regulação das relações entre o direito comunitário e o direito dos estados-Membros de acordo com o princípio do primado, que garante a superioridade do direito europeu sobre os direitos nacionais.
Apesar de não expressamente consagrado nos Tratados, o princípio do primado é inerente à própria existência e natureza do Direito da União Europeia e extrai-se ainda implicitamente do artigo 4º, nº 3, do TUE, na medida em que os Estados-membros acordaram, no quadro da legalidade comunitária, abster-se de qualquer medida susceptível de pôr em perigo a realização dos objectivos da União.
Posteriormente, o Acórdão Simmenthal, de 9 de Março de 1978, processo 106/77, veio estabelecer para o juiz nacional o dever de aplicação integral do direito comunitário e de protecção dos direitos que este confere aos particulares, afastando qualquer disposição contrária de direito interno, anterior ou posterior à norma comunitária: “…o juiz nacional, encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do direito comunitário, tem a obrigação de assegurar o pleno efeito dessas normas, deixando se necessário inaplicadas, por sua própria autoridade, qualquer disposição contrária da legislação nacional, ainda que posterior, sem que tenha de pedir ou aguardar a eliminação prévia desta via legislativa ou por qualquer outro processo constitucional”.
De construção jurisprudencial embora, o princípio do primado, pela prevalência do direito comunitário sobre o direito nacional, garante uma protecção uniforme dos cidadãos em todo o território da União Europeia, através do direito europeu.
No caso presente, importa relembrar que ao tempo vigorava no ordenamento jurídico nacional o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas ínsito no Decreto-Lei n.º-Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967.
No âmbito da violação do direito comunitário, a jurisprudência comunitária tem vindo a sedimentar um direito comunitário da responsabilidade extracontratual dos Estados por violação do Direito comunitário, e fê-lo em termos mais amplos que os que eram permitidos pelo Decreto-Lei n.º-Lei n.º 48051, que veio, aliás, a ser revogado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, que aprovou o novo Regime Jurídico da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas.
Considerou o TJUE — Acórdão Francovich, de 19 de Novembro de 1991, Processos n.º C-6/90 e 9/90.6, — que a responsabilização dos Estados-Membros é inerente ao sistema do Tratado, sendo um dos deveres fundamentais dos Estados-Membros o de assegurar a execução do direito comunitário, adoptando todas as medidas necessárias para o fazer e eliminando as consequências jurídicas da sua violação e ainda, para o que ora importa relevar, que a responsabilização dos Estados-Membros pelos danos infligidos a particulares pela violação de direito comunitário é um corolário da plena execução e eficácia das normas comunitárias(8) — veja-se ainda os Acórdãos Brasserie du Pêcher (C-46/93), Factortame (C-48/93), Hedley Lomas (C-5/94), Acórdão Köbler (C-224/01) entre outros, os quais, na sequência do Acórdão Francovich, aprofundam as bases da construção jurisprudencial dos princípios que regem a responsabilidade extracontratual do Estado por violação de direito comunitário, tanto do Estado-legislador (função político-legislativa), como do Estado-administrador (função administrativa) e do Estado-juiz (função jurisdicional).
Esta jurisprudência, designadamente o Acórdão Francovich, fixou ainda os designados princípios da equivalência da protecção jurisdicional e da efectividade mínima, ao determinar, respectivamente, que as condições fixadas pela legislação nacional na reparação dos prejuízos causados por violação de direito comunitário “não podem ser menos favoráveis que as respeitantes a reclamações semelhantes de natureza interna e não podem ser adaptadas de modo a tornar praticamente impossível ou excessivamente difícil a obtenção da reparação — veja-se Maria José Rangel de Mesquita, O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas e o Direito da União Europeia, Almedina, 2009, p. 27 e seguintes (neste ponto, p. 29).
No que toca à responsabilidade ao nível da função administrativa, importa chamar à colação o supra referido Acórdão Hedley Lomas, de 23 de Maio de 1996, Processo n.º C-5/94, com o qual o TJUE submeteu a actividade administrativa a um regime de responsabilidade civil por violação de direito comunitário idêntico ao das demais funções do Estado, considerando, com apoio nos princípios estabelecidos nos Acórdãos Francovich e Brasserie du Pêcheur, que a obrigação, para um Estado-Membro, de reparar os prejuízos causados a um particular devido à recusa de emitir uma licença de exportação, em violação do artigo 34º do Tratado, existe quando (i) a norma de direito comunitário violada tenha por objecto conferir direitos aos particulares, (ii) a violação seja suficientemente caracterizada e (iii) exista um nexo directo de causalidade entre essa violação e o prejuízo sofrido pelos particulares.
Reiterando a jurisprudência do Acórdão Francovich no sentido de que, na ausência de regulamentação comunitária, é no âmbito do direito nacional da responsabilidade que incumbe ao Estado reparar as consequências do prejuízo causado e que os Estados-membros não podem, designadamente pela via processual, tornar impossível ou excessivamente difícil a reparação, neste Acórdão Hedley Lomas decidiu ainda o TJCE que “a simples infracção ao direito comunitário pode ser suficiente para provar a existência duma violação grave e manifesta”.
O Estado é, assim, tratado pelo direito comunitário como uma unidade, independentemente das regras internas de distribuição de competências ou de exercício das suas diversas funções, pois, por força do princípio do primado, todas as funções do Estado estão submetidas ao direito comunitário.
Tal como refere Carla Amado Gomes, O Livro das Ilusões, A responsabilidade do Estado por violação do Direito Comunitário, Apesar da Lei 67/2007 de 31 de Dezembro, Março de 2009, O Acórdão Fratelli Costanzo, 22 de Junho de 1989,processo 103/88, ao afirmar a vinculação de todas as funções do Estado ao dever de lealdade comunitária, aponta para um quadro de predominância da responsabilização da função administrativa face à legislativa e jurisdicional.
Na verdade, concluiu o TJ nos §§ 29 a 33 desse Acórdão Fratelli Costanzo:
“29 Deve lembrar-se que, nos acórdãos de 19 de Janeiro de 1982 (Becker, (/81, Recueil, p. 53, 71) e de 26 de Fevereiro de 1986 (Marshall, 152/84, Colect., p. 737, 748), o Tribunal entendeu que, em todos os casos em que, atento o seu conteúdo, disposições de uma directiva parecem incondicionais e suficientemente preciusas, os particulares têm o direito de as invocar contra o Estado nos tribunais nacionais, quer quando este não fez a sua transposição para o direito nacional nos prazos previstos na directiva quer quando tenha feito uma transposição incorrecta.
30 Há que salientar que se, nas condições acima referidas, os particulares têm o direito de invocar as disposições de uma directiva nos tribunais nacionais é porque os deveres que delas decorrem se impõem a todas as autoridades dos Estados-membros.
31 Seria por outro lado contraditório entender que os particulares têm o direito de invocar perante os tribunais nacionais as disposições de uma directiva que preencham as condições acima referidas, com o objectivo de fazer condenar a administração, e, no entanto, entender que esta não tem o dever de aplicar aquelas disposições afastando as de direito nacional que as contrariem. Daqui resulta que, preenchidas as condições exigidas pela jurisprudência do tribunal para as normas de uma directiva poderem ser invocadas pelos particulares perante os tribunais nacionais, todos os órgãos da administração, incluindo as entidades descentralizadas, tais como as comunas, têm o dever de aplicar aquelas disposições.
32 Mais particularmente no que se refere ao artigo 29, nº 5, da Directiva 71/305, resulta do exame da primeira questão que esta disposição é incondicional e suficientemente precisa para poder ser invocada contra o Estado pelos particulares. Estes podem, por isso, prevalecer-se dela perante os tribunais nacionais e, como resulta do que precede, todos os órgãos da administração, incluindo as entidades descentralizadas, tais como as comunas, são obrigados a aplica-las.
33 Deve portanto responder-se à quarta questão que, tal como o juiz nacional, a administração, incluindo a comunal, tem o dever de aplicar as disposições do nº 5 do artigo 29º da Directiva 71/305 do Conselho, não aplicando as de direito nacional que com elas não estejam em conformidade.”.
Em acórdão mais recente, de 29 de Abril de 1999, Acórdão Erich Ciola, processo C-224/97, o TJ recordou, na esteira do supra citado Acórdão Fratelli Costanzo, que o princípio do primado opera tanto sobre disposições legislativas como administrativas, sendo que “as disposições administrativas de direito interno supra mencionadas não compreendem unicamente normas gerais e abstractas mas igualmente decisões administrativas individuais e concretas” e explicitou que tal princípio também exige o afastamento de “uma decisão administrativa individual e concreta tornada definitiva” que se revele contrária, no caso, à liberdade de prestação de serviços, ou seja, ao direito comunitário.
Nesta sequência jurisprudencial, é de concluir, com Paulo Otero, op. cit., pag. 678, por referência ao Acórdão Fratelli Costanzo, “num certo sentido, que o Tribunal de Justiça veio equiparar os órgãos administrativos dos Estados-membros ao juiz nacional, transformando-os em órgãos administrativos comunitários de aplicação directa e imediata do Direito Comunitário, isto em detrimento do respectivo Direito interno: os órgãos administrativos passam a gozar de um poder de aplicar as directivas comunitárias em termos preferenciais às normas internas que regulam a mesma situação e cujo conteúdo é inconciliável com aquela norma europeia.
Uma tal orientação jurisprudencial comunitária mostra-se perfeitamente compatível com a interpretação da cláusula de empenhamento na construção da União Europeia existente no artigo 7º da Constituição Portuguesa: envolvendo uma prevalência hierárquica do Direito Comunitário sobre o Direito interno ordinário, esta cláusula vincula também a Administração Pública, funcionando como verdadeiro critério automático da resolução de antinomias jurídicas envolvendo actos comunitários e normas de Direito interno.” (nossa ênfase).
Na verdade, dispõe o nº 5 e, mormente, o nº 6 do artigo da CRP:
5. Portugal empenha-se no reforço da identidade europeia e no fortalecimento da acção dos Estados europeus a favor da democracia, da paz, do progresso económico e da justiça nas relações entre os povos.
6. Portugal pode, em condições de reciprocidade, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático e pelo princípio da subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica, social e territorial, de um espaço de liberdade, segurança e justiça e a definição e execução de uma política externa, de segurança e de defesa comuns, convencionar o exercício, em comum, em cooperação ou pelas instituições da União, dos poderes necessários à construção e aprofundamento da união europeia.
Continuando com Paulo Otero, op. cit., pág. 612, dir-se-á que aqui se compreendem dois fenómenos imediatos:
“(i) Em primeiro lugar, as convenções internacionais integrantes do Direito Comunitário primário não podem ser desaplicadas por lei interna posterior, ao invés do que sucede com todas as restantes, uma vez que a sua aplicação na ordem jurídica portuguesa representa um imperativo constitucional e, enquanto tal, passível pelo seu conteúdo de comportar derrogações a outros princípios constitucionais: a unidade do ordenamento jurídico passa, deste modo, por um processo de osmose ou síntese entre a Constituição e o Direito Comunitário primário, salientando-se que a desaplicação interna deste último se traduz sempre numa violação da cláusula constitucional de empenhamento na edificação da união Europeia;
(ii) Em segundo lugar, pelos mesmos argumentos, justificados até através de um raciocínio por maioria de razão, também o Direito Comunitário derivado goza de prevalência sobre o Direito interno infraconstitucional anterior e posterior: a desaplicação do Direito Comunitário derivado pelo Direito interno infraconstitucional padecerá sempre, nos termos da cláusula constitucional de empenhamento na edificação da União Europeia, de inconstitucionalidade.”(9).
Assim, a solução apresenta-se, neste particular aspecto, em face da aplicabilidade directa da cláusula constitucional de empenhamento na construção da União Europeia, que também aqui “funciona como critério automático de resolução de antinomias jurídicas envolvendo actos comunitários que são contrariados por normas internas posteriores, determinando que a Administração Pública deva sempre dar preferência àqueles sobre estas, desaplicando a norma interna contrária e, deste modo, continuando a aplicar o direito comunitário.
Em igual sentido apontaria, aliás, uma resolução do conflito fundada na projecção administrativa do princípio do primado do Direito Comunitário e do princípio da colaboração leal.” — cfr. Paulo Otero, op. cit, pág. 680.
Todavia, não pode deixar de se enfatizar o carácter excepcional desta solução no âmbito da resolução de antinomias normativas no contexto da actuação dos órgãos administrativos, especialmente pela ausência de uma competência formal para rejeitar a aplicação de normas com fundamento na sua ilegalidade ou inconstitucionalidade, transcrevendo-se, pela pertinência, clareza e concisão, o trecho inserido nas páginas 696 a 698 da mesma obra:
“Conclusão: A excepcionalidade da vinculação ao critério hierárquico
15.2.23. Todo o estudo efectuado em tomo da exacta determinação do grau de vinculação administrativa ao critério hierárquico de resolução de antinomias normativas permitiu extrair que, salvo no que diz respeito principalmente aos conflitos que envolvem normas violadoras do cerne da dignidade da pessoa humana, certas violações da Constituição formal ou tratando-se de norma internas que se opõem a determinadas normas do Direito Comunitário, os órgãos administrativos não se encontram habilitados genericamente a desaplicar normas com fundamento na sua invalidade por contrariarem outras que lhes são hierarquicamente superiores, razão pela qual o critério hierárquico exerce uma clara função excepcional na solução de antinomias normativas pela Administração Pública.
Os órgãos administrativos encontram antes nos critérios cronológico e da especialidade os principais instrumentos de resolução das antinomias jurídicas com que se deparam no exercício da sua actividade, circunstância que, tornando excepcional a aplicação do critério hierárquico, se justifica para impedir que emitam um juízo sobre a validade do Direito que aplicam ou, visto de diferente perspectiva, afasta a possibilidade de, por via de regra, rejeitarem a aplicação de uma norma que, servindo de fundamento da respectiva actuação administrativa, se encontra ferida de ilegalidade ou de inconstitucionalidade.
Se, deste modo, se salvaguarda a identidade diferenciadora entre a função administrativa e a função jurisdicional, impedindo que os órgãos administrativos exerçam normalmente um poder de rejeitar a aplicação das normas com fundamento na sua invalidade, garantindo-se a subordinação à legalidade mais imediata ou que de mais perto se lhes impõem, além de se impedir o perigo de instaurar uma anarquia subversiva da legalidade heterovinculativa pelos próprios órgãos administrativos que a essa mesma legalidade estão pela Constituição vinculados, o certo é que, por outro lado, o afastar do critério hierárquico na resolução administrativa de antinomias jurídicas acaba por arrastar consigo um correlativo desprezo pela validade do próprio fundamento normativo da actuação administrativa: a preferência pelos critérios cronológicos e da especialidade na resolução de antinomias entre normas de diferente grau hierárquico, além de distorcer os pressupostos da sua aplicação pensados para antinomias entre normas equiordenadas, acaba por servir de instrumento a um modelo administrativo que prefere uma Administração Pública que aplica normas inválidas — porque nega a competência para os seus órgãos rejeitarem a aplicação de normas ilegais e inconstitucionais — a uma Administração Pública que exerça um controlo consequente sobre a validade do Direito que é chamada a aplicar, resolvendo as antinomias entre normas de diferente grau através do critério hierárquico e mediante a desaplicação das normas inválidas.
Uma tal preferência, alicerçada num fundamento decorrente da necessidade de separação funcional entre administrar e julgar e, simultaneamente, na ausência de norma habilitante de um diferente comportamento pelos órgãos administrativos que sempre se encontram, por natureza e expressa disposição legal, vinculados à lei, se aqui se manifesta pela excepcionalidade da vinculação administrativa ao critério hierárquico na resolução de antinomias jurídicas, acaba por envolver um dilema bem mais profundo: dever-se-á preferir a validade do Direito que a Administração Pública aplica, apesar de envolver uma certa anarquia e insegurança jurídicas, senão mesmo a inversão da função heterovinculativa da legalidade, reconhecendo-se aos órgãos administrativos uma competência normal de rejeição aplicativa das normas heterovinculativas, segundo um juízo de ilegalidade ou inconstitucionalidade pelos próprios efectuada, ou, pelo contrário, será preferível sacrificar momentaneamente a discussão sobre a validade do fundamento normativo da actuação administrativa e, neste sentido, a própria validade da respectiva decisão, negando aos órgãos administrativos uma competência normal para rejeitar a aplicação da normatividade que os heterovincula com base num juízo de ilegalidade ou inconstitucionalidade pelos próprios formulado, remetendo-se para um momento posterior a apreciação judicial da validade da norma aplicada?
A resposta a esta questão dilemática é, em síntese, a temática mais vasta em que se insere a resolução administrativa de antinomias jurídicas através do critério hierárquico, expressando, afinal, uma vertente da própria determinação da legalidade vinculativa da Administração Pública.”.
Concluindo sobre esta vertente, diz o citado Autor, a páginas 728-729:
“O critério hierárquico exerce uma função excepcional na resolução pela Administração Pública de antinomias normativas: são antes os critérios cronológico e da especialidade que fornecem os principais instrumentos de resolução administrativa das antinomias jurídicas.
A excepcionalidade de utilização do critério hierárquico na resolução de antinomias jurídicas pelos órgãos administrativos significa que o ordenamento jurídico-administrativo prefere a segurança à legalidade.
A intervenção activa da Administração Pública na definição do sentido da legalidade que lhe serve de fundamento de actuação criou para a autotutela declarativa um novo espaço de operatividade: além de aplicar o Direito ao caso concreto, os órgãos administrativos também procedem a uma prévia definição do próprio Direito que deverá ser aplicado à decisão do caso concreto — trata-se da autotutela declarativa da normatividade.
Não obstante a excepcional aplicabilidade administrativa do critério hierárquico para a resolução de antinomias, o certo é que a Administração Pública goza de uma implícita competência genérica de fiscalização ou exame da validade das normas que aplica.
A Constituição confere ao Governo, segundo o preceituado pelo seu artigo 199.°, alínea f), uma competência concentrada de fiscalização administrativa da validade de todo o Direito a aplicar pela Administração Pública; não lhe atribui, porém, uma competência genérica de rejeição da aplicação das normas que considera inválidas.
Sendo excepcional a competência administrativa de rejeitar a aplicação de normas consideradas inválidas pelos órgãos da Administração Pública, estes estão vinculados, numa tal hipótese, a aplicar essas mesmas normas: a prática de actos ilegais, enquanto resultado necessário da aplicação de normas inválidas, transforma-se numa obrigação da Administração Pública, permitindo recortar uma ilegalidade administrativa derivada ou consequente que se opõe à ilegalidade directa.
A vinculação dos órgãos administrativos a aplicarem normas inconstitucionais ou ilegais, criando para a Administração Pública uma obrigação subsequente da prática de actos inválidos, traduz uma quebra no sistema jurídico de um Estado de juridicidade.
A unidade do sistema jurídico exige que a lei reconheça à Administração Pública – designadamente ao Governo – uma legitimidade processual activa tendente a obter a declaração judicial da invalidade das normas que servem de fundamento da actuação administrativa e/ou o reconhecimento jurídico-positivo aos órgãos administrativos de uma maior amplitude da competência de recusa de aplicação de normas inválidas.”
Por tanto, conclui Paulo Otero — op. cit., pag. 1101, que “vinculada normalmente a ter de aplicar uma normatividade inconstitucional ou ilegal, enquanto expressão da ausência de um poder administrativo genérico de rejeição aplicativa de normas inválidas, a Administração Pública pode encontrar-se obrigada a praticar actos ilegais revelando-se aqui a incoerência da configuração global do princípio da juridicidade e a quebra da ideia de “sistema” jurídico-administrativo: em tais casos, o sentido vinculativo dos órgãos administrativos à juridicidade é contraditório, imperfeito e incompleto;”.
Esta visão analítica e a conclusão alcançada, que partilhamos e, como tal, aqui adoptamos, não obvia, porém, à responsabilidade civil extracontratual eventualmente decorrente de ilícita «obrigação» pelo incumprimento do Direito da União Europeia.
O princípio da responsabilidade do Estado por violação do Direito da União assim o impõe e, na verificação dos restantes pressupostos, investe os particulares no direito à reparação sempre que os seus direitos sejam afectados por um comportamento ilegal dos organismos do poder legislativo, executivo e judicial, ou seja, uma responsabilidade do estado enquanto Estado-legislador, Estado-Administração e Estado-juiz.
Na verdade, recordam-se aqui os fundamentos desse princípio, vertidos no Acórdão Francovich:
“a) Quanto ao princípio da responsabilidade do Estado
31 Deve recordar-se, antes de mais, que o Tratado CEE criou uma ordem jurídica própria, integrada nos sistemas jurídicos dos Estados-membros e que se impõe aos respectivos órgãos jurisdicionais, cujos sujeitos são não apenas os Estados-membros, mas também os seus nacionais e que, ao mesmo tempo que cria encargos para os particulares, o direito comunitário é também destinado a instituir direitos que se incluem no seu patrimônio jurídico; estes nascem não apenas quando se faz uma atribuição explícita dos mesmos através do Tratado, mas também em virtude das obrigações que o Tratado impõe de forma bem definida quer aos particulares quer aos Estados-membros e às instituições comunitárias (ver acórdãos de 5 de Fevereiro de 1963, Van Gend en Loos, 26/62, Recueil, p. 3, e de 15 de Julho de 1964, Costa, 6/64, Recueil, p. 1141)
32 Deve recordar-se também que, tal como decorre de jurisprudência constante, incumbe aos órgãos jurisdicionais nacionais encarregados de aplicar, no âmbito das suas competências, as disposições do direito comunitário, assegurar o pleno efeito dessas normas e proteger os direitos que as mesmas conferem aos particulares (ver, designadamente, os acórdãos de 9 de Março e 1978, Simmenthal, n.° 16, 106/77, Recueil, p. 629, e de 19 de Junho de 1990, Factortame, n.° 19, C-213/89, Colect., p. 1-2433).
33 Deve concluir-se que a plena eficácia das normas comunitárias seria posta em causa e a protecção dos direitos que as mesmas reconhecem estaria enfraquecida se os particulares não tivessem a possibilidade de obter reparação quando os seus direitos são lesados por uma violação do direito comunitário imputável ao Estado-membro.
34 A possibilidade de reparação pelo Estado-membro é particularmente indispensável quando, como no caso dos autos, o pleno efeito das normas comunitárias está subordinado à condição de uma acção por parte do Estado e, por conseguinte, os particulares não podem, na falta de tal acção, invocar perante os órgãos jurisdicionais nacionais os direitos que lhe são reconhecidos pelo direito comunitário.
35 Daí resulta que o princípio da responsabilidade do Estado pelos prejuízos causados aos particulares por violações do direito comunitário que lhe sejam imputáveis é inerente ao sistema do Tratado.
36 A obrigação de os Estados-membros repararem estes prejuízos tem igualmente o seu fundamento no artigo 5.9 do Tratado, nos termos do qual os Estados-membros são obrigados a tomar todas as medidas gerais ou particulares adequadas para assegurar a execução das obrigações que lhes incumbem por força do direito comunitário. Ora, entre estas obrigações encontra-se a de eliminar as consequências ilícitas de uma violação do direito comunitário (ver, no que respeita à disposição análoga do artigo 86.° do Tratado CECA, o acórdão de 16 de Dezembro de 1960, Humblet, 6/60, Recueil, p. 1125).
37 Resulta de tudo o que precede que o direito comunitário impõe o princípio segundo o qual os Estados-membros são obrigados a reparar os prejuízos causados aos particulares pelas violações do direito comunitário que lhes sejam imputáveis.”.
Como se sabe, o regime da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas ínsito no Decreto-Lei nº 48051, de 21 de Novembro de 1967, mostrou-se insuficiente na concretização, no plano legislativo, do princípio da responsabilidade patrimonial directa das entidades públicas por danos causados aos cidadãos consagrado no artigo 22º da CRP e ainda relativamente ao Direito Comunitário, por mais amplos os termos do direito europeu da responsabilidade extracontratual dos Estados pela violação do Direito Comunitário.
O ónus da prova da existência de culpa a cargo do particular tem sistematicamente sido considerado pelo TJUE como uma condição que dificulta excessivamente a obtenção de ressarcimento do dano, sendo certo que a definição dos termos da responsabilidade pelo direito nacional deve ocorrer desde que estes não sejam menos favoráveis do que aqueles que são aplicáveis a reclamações semelhantes de natureza interna e, independentemente disso, não tornem impossível na prática ou excessivamente difícil a obtenção da reparação (princípio da efectividade) (cfr. v.g. Acórdão Hedley-Lomas).
Relembra-se que o TJUE, por Acórdão de 14 de Outubro de 2004, processo n.º C-275/03, numa acção por incumprimento de iniciativa da Comissão vs. Portugal, decidiu (nossa ênfase): “Ao não revogar o Decreto‑Lei n.° 48051, de 21 de Novembro de 1967, que subordina a indemnização das pessoas lesadas em consequência da violação do direito comunitário em matéria de contratos de direito público ou das normas nacionais que o transpõem à prova da existência de culpa ou dolo, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 1.°, n.° 1, e 2.°, n.° 1, alínea c), da Directiva 89/665/CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1989, que coordena as disposições legislativas, regulamentares e administrativas relativas à aplicação dos processos de recurso em matéria de adjudicação dos contratos de direito público de obras e de fornecimentos.”.
Volvendo à linha jurisprudencial vertida nos mencionados Acórdão Fratelli Costanzo e Acórdão Erich Ciola, o Acórdão Haim, de 4 de Julho de 2000, caso C-424/97, deixou claro que os três pressupostos avançados nos Acórdãos Francovich e Brasserie du Pêcheur — e, diremos nós, carreados pelo Acórdão Hedley Lomas para o palco da actividade administrativa, que sujeitou a um regime de responsabilidade civil por violação de direito comunitário idêntico ao das demais funções do Estado — são exigíveis tanto no caso de prejuízos de exigida reparação resultarem de uma omissão do Estado — não transposição de directiva —, como no caso de adopção de acto legislativo ou administrativo que atente contra o direito comunitário (v.d. § 37), sendo a sua apreciação sempre casuística — “A apreciação destas condições é função de cada tipo de situação” (Acórdão Norbrook Laboratories, de 2 de Abril de 1998, processo C-127/95).
Pela similitude ao caso que temos presente, vejamos as pertinentes duas questões das três decididas pelo Acórdão Haim:
A primeira questão prejudicial colocada — “«1) Quando um funcionário de um organismo de direito público com autonomia administrativa e financeira de um Estado-Membro, na aplicação do direito nacional no quadro de uma decisão individual, viola o direito primário comunitário, pode, além da responsabilidade do Estado-Membro, verificar-se também a responsabilização do organismo público?” —, tal como enquadrada pelo TJ —: ““25 Pela primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o direito comunitário se opõe a que, para além da responsabilidade do próprio Estado-Membro, possa existir responsabilidade de um organismo de direito público no sentido de reparar os prejuízos causados aos particulares por medidas adoptadas com violação do direito comunitário.” —, foi assim apreciada e decidida:
Quanto a esta questão, considerou e decidiu o TJ, com nossa ênfase:
“26 Recorde-se, a título liminar, que a responsabilidade pelos prejuízos causados aos particulares por violações do direito comunitário imputáveis a uma autoridade pública nacional constitui um princípio inerente ao sistema do Tratado, de que decorrem obrigações para os Estados-Membros (v. acórdãos de 19 de Novembro de 1991, Francovich e o., C-6/90 e C-9/90, Colect., p. I-5357, n.° 35; de 5 de Março de 1996, Brasserie du pêcheur e Factortame, C-46/93 e C-48/93, Colect., p. I-1029, n.° 31; de 26 de Março de 1996, British Telecommunications, C-392/93, Colect., p. I-1631, n.° 38; de 23 de Maio de 1996, Hedley Lomas, C-5/94, Colect., p. I-2553, n.° 24; de 8 de Outubro de 1996, Dillenkofer e o., C-178/94, C-179/94 e C-188/94 a C-190/94, Colect., p. I-4845, n.° 20, e de 2 de Abril de 1998, Norbrook Laboratories, C-127/95, Colect., p. I-1531, n.° 106).
27 Como no essencial salientou o conjunto de governos que submeteu observações ao Tribunal de Justiça e à Comissão, e como decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça, incumbe a cada um dos Estados-Membros assegurar que os particulares obtenham a reparação do prejuízo que lhes causa a violação do direito comunitário, qualquer que seja a autoridade pública que tenha cometido essa violação e qualquer que seja aquela a quem incumbe, em princípio, segundo o direito do Estado-Membro em questão, o ónus dessa reparação (acórdão de 1 de Junho de 1999, Konle, C-302/97, Colect., p. I-3099, n.° 62).
28 Assim, os Estados-Membros não se podem eximir a tal responsabilidade invocando a repartição interna das competências e responsabilidades entre as instituições existentes na sua ordem jurídica interna nem argumentando que a autoridade pública autora da violação do direito comunitário não dispunha das competências, conhecimentos ou meios necessários.
29 Não resulta contudo da jurisprudência referida nos n.os 26 e 27 do presente acórdão que a reparação dos danos causados aos particulares pelas medidas de direito interno tomadas em violação do direito comunitário deva obrigatoriamente ser assegurada pelo próprio Estado-Membro para que se achem cumpridas as suas obrigações comunitárias.
30 Com efeito, tratando-se de Estados-Membros com estrutura federal, o Tribunal de Justiça julgou já que, desde que as modalidades processuais existentes na ordem interna permitam uma efectiva protecção dos direitos que a ordem jurídica comunitária confere aos particulares, sem tornar mais difícil invocar estes direitos do que aqueles que lhes advêm da ordem jurídica interna, a reparação dos prejuízos causados aos particulares por medidas de ordem interna adoptadas com violação do direito comunitário não deve necessariamente ser assegurada pelo Estado federal para que se encontrem satisfeitas as exigências comunitárias do Estado-Membro em causa (acórdão Konle, já referido, n.°s 63 e 64).
31 Tal é igualmente válido para os Estados-Membros, com ou sem estrutura federal, em que determinadas tarefas legislativas ou administrativas são assumidas de forma descentralizada por autarquias dotadas de alguma autonomia ou por qualquer outro organismo de direito público juridicamente distinto do Estado. Em tais Estados-Membros, a reparação dos prejuízos causados aos particulares por medidas de ordem interna adoptadas com violação do direito comunitário por um organismo de direito público pode, pois, ser por este garantida.
32 O direito comunitário também não se opõe a que possa existir responsabilidade dos organismos de direito público de repararem os prejuízos causados aos particulares por medidas por eles adoptadas com violação do direito comunitário, para além da responsabilidade do próprio Estado-Membro.
33 Recorde-se a este respeito a jurisprudência constante segundo a qual, sem prejuízo do direito à reparação que tem fundamento directo no direito comunitário quando estejam reunidas as três condições acima apontadas, é no âmbito do direito nacional que regula a responsabilidade que compete ao Estado reparar as consequências do prejuízo causado, sendo certo que as condições fixadas pelas legislações nacionais em matéria de reparação dos danos não podem ser menos favoráveis do que as respeitantes a reclamações semelhantes de natureza interna e não podem estar organizadas de forma a, na prática, tornarem impossível ou excessivamente difícil a obtenção da reparação (acórdãos, já referidos, Francovich e o., n.os 41 a 43, e Norbrook Laboratories, n.° 111).
34 À luz do que precede, cabe responder à primeira questão que o direito comunitário não se opõe a que exista responsabilidade dos organismos de direito público para repararem os prejuízos causados aos particulares por medidas por eles adoptadas com violação do direito comunitário, para além da responsabilidade do próprio Estado.”.
A segunda questão apreciada (assim colocada em sede de reenvio prejudicial: “2) Em caso afirmativo, verifica-se uma violação qualificada do direito comunitário num caso em que um funcionário nacional aplicou o direito nacional que viola o direito comunitário ou não aplicou o direito nacional em conformidade com o direito comunitário tendo em conta que o funcionário, na sua decisão, não tinha qualquer liberdade de apreciação?”), reformulada pelo TJ, foi a seguinte: “35 Na segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se, no caso de um funcionário nacional ter aplicado as disposições nacionais contrárias ao direito comunitário ou ter aplicado o direito nacional de forma não conforme com o direito comunitário, existe violação caracterizada, na acepção da jurisprudência do Tribunal de Justiça, pelo mero facto de o funcionário não dispor de qualquer margem de apreciação ao adoptar a sua decisão.”.
A apreciação e decisão verteu, designadamente, o seguinte, com nossa ênfase:
“36 No respeitante às condições em que um Estado-Membro está obrigado a reparar os prejuízos assim causados, resulta da jurisprudência referida que elas são três, a saber, que a norma jurídica violada vise atribuir direitos aos particulares, que a violação seja suficientemente caracterizada e que exista um nexo de causalidade directo entre a violação da obrigação que incumbe ao Estado e o prejuízo sofrido pelas pessoas lesadas. A apreciação destas condições é função de cada tipo de situação (acórdão Norbroo k Laboratories, já referido, n.° 107).
37 Estas três condições são exigidas tanto no caso de os prejuízos cuja reparação é pedida resultarem de uma omissão do Estado-Membro, por exemplo, em caso de não transposição de uma directiva comunitária, como no de decorrerem da adopção de um acto legislativo ou administrativo que viole o direito comunitário, quer tenha sido adoptado pelo próprio Estado-Membro quer por um organismo de direito público juridicamente independente do Estado.
38 No que respeita mais especificamente à segunda dessas condições, o Tribunal já decidiu que, por um lado, uma violação do direito comunitário é suficientemente caracterizada quando um Estado-Membro tenha violado de forma manifesta e grave, no exercício da sua competência normativa, os limites impostos ao exercício dessa competência (v. acórdãos, já referidos, Brasserie du pêcheur e Factortame, n.° 55; British Telecommunications, n.° 42, e Dillenkofer e o., n.° 25) e, por outro, que, na hipótese de o Estado-Membro em causa, no momento em que cometeu a infracção, dispor de uma margem de apreciação consideravelmente reduzida, ou mesmo inexistente, a simples infracção ao direito comunitário pode bastar para provar a existência de uma violação suficientemente caracterizada (v. acórdãos, já referidos, Hedley Lomas, n.° 28, e Norbrook Laboratories, n.° 109).
39 Recorde-se, a este respeito, que a obrigação de reparar os prejuízos causados aos particulares não pode ficar subordinada a uma condição extraída do conceito de culpa que vai além da violação suficientemente caracterizada do direito comunitário (acórdão Brasserie du pêcheur e Factortame, já referido, n.° 79).
40 Ora, a margem de apreciação referida no n.° 38 do presente acórdão é aquela de que dispõe o Estado-Membro em causa. A respectiva existência e alcance são determinados em função do direito comunitário e não do direito nacional. A margem de apreciação eventualmente concedida pelo direito nacional ao funcionário ou à instituição autora da violação do direito comunitário é, pois, irrelevante a este respeito.
41 Decorre igualmente da jurisprudência referida no mesmo n.° 38 que uma mera infracção ao direito comunitário cometida por um Estado-Membro pode constituir violação suficientemente caracterizada, não o sendo porém necessariamente.
42 Para determinar se tal infracção ao direito comunitário constitui violação suficientemente caracterizada, o órgão jurisdicional nacional a que seja submetido um pedido de reparação deve atender a todos os elementos que caracterizam a situação que lhe é submetida.
43 Entre tais elementos, constam designadamente o grau de clareza e de precisão da regra violada, o carácter intencional ou involuntário do incumprimento verificado ou do prejuízo causado, o carácter desculpável ou não de um eventual erro de direito, o facto de as atitudes adoptadas por uma instituição comunitária terem podido contribuir para a adopção ou a manutenção de medidas ou práticas nacionais contrárias ao direito comunitário (v. acórdão Brasserie du pêcheur e Fractortame, já refendo, n.° 56, no que se refere às condições de responsabilização do Estado por actos e omissões do legislador nacional contrárias ao direito comunitário).
44 No que se refere à aplicação de tais elementos ao caso vertente, decorre da jurisprudência do Tribunal de Justiça que tal aplicação deve, em princípio, ser feita pelos órgãos jurisdicionais nacionais (acórdão Brasserie du pêcheur e Factortame, já refendo, n.° 58), de acordo com as orientações fornecidas pelo Tribunal de Justiça para se proceder a tal aplicação (acórdão Konle, já referido, n.°58).
45 Recorde-se, a este respeito, que a norma de direito comunitário em causa é uma disposição do Tratado directamente aplicável desde o final do período de transição previsto no Tratado, que ocorreu muito tempo antes dos factos do processo principal.
46 Contudo, quando o legislador alemão adoptou o § 3 da ZOK e quando a KVN recusou a inscrição de S. Haim no registo dos médicos dentistas, o Tribunal de Justiça não proferira ainda o acórdão Vlassopoulou, já referido, em cujo n.° 16 julgou pela primeira vez que incumbe aos Estados-Membros a que seja submetido um pedido de autorização de exercício de uma profissão cujo acesso esteja condicionado, nos termos da legislação nacional, à posse de um diploma ou qualificação profissional tomarem em consideração os diplomas, certificados e outros títulos que o interessado adquiriu com o objectivo de exercer essa mesma profissão noutro Estado-Membro, procedendo a uma comparação entre as competências comprovadas por esses diplomas e os conhecimentos e habilitações exigidos pelas regras nacionais.
47 Foi em aplicação do mesmo princípio que o Tribunal de Justiça julgou, no n.° 29 do acórdão Haim I, que o artigo 52.° do Tratado não permite que as autoridades competentes de um Estado-Membro recusem a contratação, como dentista convencionado de uma instituição de seguro de doença, de um nacional de outro Estado-Membro que não possua qualquer dos diplomas mencionados no artigo 3.° da Directiva 78/686, mas que tenha sido autorizado a exercer, e efectivamente tenha exercido, a sua profissão, tanto no primeiro como no segundo Estado-Membro, com o fundamento de ele não ter efectuado o estágio preparatório exigido pela legislação do primeiro Estado, sem verificar se, e na afirmativa em que medida, a experiência que o interessado comprova possuir corresponde à exigida por essa legislação.
48 À luz dos critérios e observações referidos nos n.°s 43 a 47 do presente acórdão, compete ao órgão jurisdicional nacional verificar se, no processo principal, existe ou não violação caracterizada do direito comunitário.
49 Cabe responder à segunda questão prejudicial que, para determinar se existe ou não violação caracterizada do direito comunitário, na acepção da jurisprudência do Tribunal de Justiça, há que atender à margem de apreciação de que dispõe o Estado-Membro em causa. A existência e o alcance de tal margem de apreciação devem ser determinados em função do direito comunitário, e não do direito nacional.”.
Vejamos agora em concreto, revertendo para o presente caso o supra exposto.
Como vimos, um Estado-Membro está obrigado a reparar os prejuízos assim causados por violação do Direito comunitário quando se verificam as seguintes condições: (i) que a norma jurídica vise atribuir direitos aos particulares; (ii) que a violação seja suficientemente caracterizada e (iii) que exista um nexo de causalidade directo entre essa violação e o prejuízo sofrido pelos particulares.
São estes os requisitos aplicáveis no presente caso, recordando-se que a obrigação de reparar os prejuízos causados aos particulares não pode ficar subordinada a uma condição extraída do conceito de culpa que vai além da violação suficientemente caracterizada do Direito comunitário (referidos acórdãos Brasserie du Pêcheur e Factortame).
Por outro lado, a apreciação destas condições é função de cada tipo de situação, sendo as mesmas exigíveis também nos casos, onde o presente se inscreve, de os prejuízos cuja reparação é pedida decorrerem da adopção de um acto legislativo ou administrativo que viole o direito comunitário, quer tenha sido adoptado pelo próprio Estado-Membro quer por um organismo de direito público juridicamente independente do Estado.
Quanto à verificação das duas primeiras das condições, vejamos.
O IPTM, à data, recusou a vários formandos clientes das Autoras a admissão a exame para verificação do aproveitamento em curso frequentado para o efeito para obtenção de carta de navegador de recreio, do que decorreu para aquelas prejuízos que por via da presente acção pretendem lhes sejam ressarcidos.
Essa recusa apoiou-se na norma do nº 1 do artigo 29º do Decreto-Lei nº 124/2004, de 25 de Maio, designadamente no segmento que dispunha que «as cartas de navegador de recreio são emitidas pelo IPTM a quem possua residência em território nacional» (nossa ênfase).
Como vimos, o TJUE, na sequência de reenvio prejudicial, decidiu que “Os artigos 52º TFUE e 56º TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem à legislação de um Estado-Membro, como a que está em causa no processo principal, que impõe o requisito de residência no território nacional aos cidadãos da União Europeia que pretendam obter uma carta de navegador de recreio emitida por esse Estado-Membro.”.
O capítulo 2 do TFUE é dedicado ao direito de estabelecimento, dispondo o seu artigo 49.º (ex-artigo 43.º TCE): «No âmbito das disposições seguintes, são proibidas as restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado-Membro no território de outro Estado-Membro. Esta proibição abrangerá igualmente as restrições à constituição de agências, sucursais ou filiais pelos nacionais de um Estado-Membro estabelecidos no território de outro Estado-Membro.
A liberdade de estabelecimento compreende tanto o acesso às actividades não assalariadas e o seu exercício, como a constituição e a gestão de empresas e designadamente de sociedades, na acepção do segundo parágrafo do artigo 54.º, nas condições definidas na legislação do país de estabelecimento para os seus próprios nacionais, sem prejuízo do disposto no capítulo relativo aos capitais.».
O artigo 52.º (ex-artigo 46.º TCE) do TFUE, dispõe no seu nº 1: «1. As disposições do presente capítulo e as medidas tomadas em sua execução não prejudicam a aplicabilidade das disposições legislativas, regulamentares e administrativas, que prevejam um regime especial para os estrangeiros e sejam justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública.».
O artigo 56.º (ex-artigo 49.º TCE) do TFUE, por sua vez, dispõe no seu nº 1: «No âmbito das disposições seguintes, as restrições à livre prestação de serviços na União serão proibidas em relação aos nacionais dos Estados-Membros estabelecidos num Estado-Membro que não seja o do destinatário da prestação.».
Assim, em face do decidido pelo TJUE em sede de reenvio prejudicial, é de concluir que, perante os referidos normativos do TFUE, a norma nacional em crise não se justificava, designadamente a título de medidas derrogatórias previstas no artigo 52º TFUE ex vi artigo 62º TFUE, constituindo, outrossim, uma proibida restrição à livre prestação de serviços na União.
Nesta matéria, considerou e concluiu, designadamente, o TJUE no acórdão tirado em sede de reenvio prejudicial:
«10 A título preliminar, importa recordar que, por um lado, o direito à livre prestação de serviços pode ser invocado por uma empresa relativamente ao Estado em que está estabelecida, quando os serviços são prestados a destinatários estabelecidos noutro Estado-membro e, por outro, este direito implica a liberdade de os destinatários de serviços se deslocarem a outro Estado-membro para aí beneficiarem de um serviço, sem serem afectados por restrições — cfr., designadamente, Acórdão Ciola, de 29 de Abril de 1999 (processo C-224/97).
11 Do mesmo modo, as pessoas estabelecidas num Estado-Membro, que se deslocam a outro Estado-Membro na qualidade de turistas ou no âmbito de uma viagem de estudos, devem ser consideradas destinatárias de serviços, na aceção do artigo 56.º TFUE (v. acórdão de 15 de junho de 2010, Comissão/Espanha, C-211/08, Colet., p. I-5267, n.º 51 e jurisprudência referida).
12 Por conseguinte, num litígio como o do processo principal, as disposições relativas à livre prestação de serviços previstas nos artigos 56.º TFUE a 62.º TFUE são aplicáveis, por um lado, à prestação de serviços de formação para obtenção da carta de navegador, propostos pelas escolas náuticas, como a N... e a Nz..., a estudantes de outros Estados-Membros que não residam em Portugal e que pretendam obter a sua carta de navegador nesse Estado-Membro, bem como, por outro, à obtenção desses mesmos serviços pelos referidos estudantes.
13 É forçoso concluir que uma disposição de direito nacional como a em causa no processo principal, que limita a emissão da carta de navegador aos residentes do Estado-Membro em questão, viola a proibição, prevista no artigo 56.°, n.º 1, TFUE, de qualquer restrição à prestação de serviços.
14 Com efeito, embora tal disposição do direito português seja indistintamente aplicável aos nacionais e aos não nacionais e não assente, assim, na nacionalidade dos candidatos à obtenção da carta e navegador, adota, contudo, como critério decisivo, o lugar da residência. Ora, é jurisprudência constante que uma disposição nacional que preveja uma distinção com base no critério da residência cria o risco de actuar principalmente em detrimento dos nacionais de outros Estados-Membros, na medida em que os não residentes são quase sempre não nacionais (v., neste sentido, acórdão de 7 de maio de 1998, Clean Car Autoservice, C-350/96, Colet., p. I-2521, n.° 29; acórdão Ciola, já referido, n.º 14; e acórdão de 25 de janeiro de 2011. Neukirchinger, C-382/08. Colet., p. I-139. n.° 34).
15 A legislação em causa no processo principal é, assim, suscetível de afetar certos destinatários do serviço em causa, ou seja, os estudantes que não residem em Portugal, que seguiram uma formação ministrada pela N... ou pela Nz... e que, valendo-se desse ensino, pretendem obter a sua carta de navegação em Portugal.
16 Do igual modo, a legislação nacional criou um entrave à livre prestação de serviços de formação náutica prestados por escolas como a N... ou a Nz..., uma vez que os estudantes que não residem em Portugal poderão não mostrar interesse nas formações dessas escolas, dado que posteriormente obter a carta de navegador.
17 Daqui decorre que uma legislação nacional que tenha por efeito, por um lado, dissuadir os nacionais da União que não residam em Portugal de se deslocarem a este Estado-Membro para aí prosseguirem uma formação tendo em vista obter uma carta de navegador emitida por esse Estado-Membro e, por outro, tornar menos atractivos os serviços oferecidos pelas escolas náuticas aos alunos que não residam em Portugal, visto estes não poderem apresentar-se a exame para obter uma carta de navegador nesse Estado-Membro nem obter essa carta, constitui uma restrição à livre prestação de serviços no sentido do artigo 56.°, primeiro parágrafo, TFUE. ».
Impõe-se, assim, a conclusão de que, estando as Autoras sediadas em Portugal e enquanto prestadoras do serviço em causa no espaço comunitário, as normas jurídicas comunitárias violadas garantem, nas condições que estabelecem, o direito a uma livre prestação desses serviços a nacionais da União que não residam em Portugal.
Houve, assim, uma clara violação do Direito comunitário pelas decisões administrativas adoptadas pelo IPTM no presente caso ao abrigo do nº 1 do artigo 29º do Regulamento da Náutica de Recreio aprovado pelo Decreto-Lei n.º 124/2004, de 25 de Maio, sendo de notar que as razões às quais o Réu pretendeu arrimar, em justificação e já em sede de contestação da acção, a solução normativa adoptada, designadamente a equiparação com a emissão de cartas de condução automóvel, não se mostram invocadas no preâmbulo do citado diploma legal, nem quaisquer outros atinentes fundamentos, como também as não encontrou o TJUE, no citado acórdão em sede de reenvio prejudicial, que, nesta matéria, considerou:
«18 Importa, em seguida, examinar em que medida a restrição em causa no processo principal pode ser admitida a título de medidas derrogatórias expressamente previstas no artigo 52.º TFUE, aplicável nesta matéria por força do artigo 62.º TFUE, ou justificada, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, por razões imperiosas de interesse geral (v. acórdão de 12 de julho de 2012, HIT e HIT LARIX, C-176/11, ainda não publicado na Coletânea, n.º 20). No entanto, é ainda necessário que a aplicação dessa medida seja adequada para garantir a realização do objectivo invocado e não exceda o necessário para alcançar esse objectivo (acórdão de 13 de dezembro de 2012. Caves Krier Frères. C-379/11. Ainda não publicado na Coletânea, n.º 48 e jurisprudência referida).
19 A esse respeito, o Governo português alega que a restrição em causa no processo principal é necessária por razões de ordem pública, no caso concreto a necessidade de esse Estado-Membro garantir um nível de segurança elevada no mar, o que exige, designadamente, assegurar o controlo efectivo dos titulares de cartas de navegador. O requisito de residência, previsto na legislação nacional, é essencial para este efeito. Este governo observa, além disso, que o próprio direito derivado da União admite o princípio da imposição de um requisito de residência, remetendo, a esse respeito, para o artigo 7.°, n.º 1, alínea b), da Diretiva 91/439/CEE do Conselho, de 29 de julho de 1991, relativa à carta de condução, p.1).
20 É certo que o objectivo de segurança e de ordem pública expressamente previsto no artigo 52.º TFUE e ao qual se refere o Governo português, constitui um objectivo legítimo que poderia, em princípio, justificar uma restrição à livre prestação de serviços. Todavia, ao contrário do que esse governo alega, o requisito de residência, em causa no processo principal, não pode ser justificado por esse objectivo. Com efeito, o recurso a semelhante justificação pressupõe a existência de uma ameaça real e suficientemente grave que afete um interesse fundamental da sociedade (acórdão de 21 de janeiro de 2010, Comissão/Alemanha, C-S46/07, Colet., p.I-439, n.º 49 e jurisprudência referida). Ora, o Governo português não alega de modo algum que tais circunstâncias se verificam no caso em apreço.
21 Além disso, há que constatar que um requisito como o requisito de residência, em causa no processo principal, que não tem nenhuma ligação com a formação seguida e a capacidade para navegar, não é adequado em si mesmo para contribuir para o objectivo pretendido, ou seja, garantir a segurança da navegação marítima.
22 De mais a mais, e ao contrário do que sustenta o Governo português, é irrelevante que o artigo 7.°, alínea b), da Diretiva 91/439, e, actualmente, o artigo 7.°, n.º 1, alínea e), da Diretiva 2006/126/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de dezembro de 2006, relativa à carta de condução (JO L 403, p. 18), só autorize a emissão de uma carta de condução europeia aos requerentes com residência habitual no território do Estado-Membro em causa ou que possam provar que aí estudam há pelo menos seis meses. Com efeito, diferentemente da situação em causa no processo principal, o requisito de residência previsto nessas directivas determina, num domínio harmonizado do direito da União, a competência de cada Estado-Membro no que respeita à concessão da carta de condução europeia.
23 Em todo o caso, o objectivo de garantir um melhor nível de segurança no mar pode ser alcançado por meios menos restritivos da livre prestação de serviços, designadamente pela fixação de um nível elevado do grau de exigência do exame tendo em vista a obtenção da carta de navegador.
24 Por conseguinte, há que responder à questão submetida que os artigos 52.º TFUE e 56.º TFUE devem ser interpretados no sentido de que se opõem à legislação de um Estado-Membro, como a que está em causa no processo principal, que impõe o requisito de residência no território nacional aos cidadãos da União que pretendam obter uma carta de navegador emitida por esse Estado-Membro.».
Perante esta apreciação, é de concluir pela manifesta violação das identificadas normas comunitárias (artigos 49º, 52º e 56º do TFUE), com carácter intencional e não desculpável, pois nenhum fundamento derrogatório atendível foi invocado para a implementação da norma nacional violadora do direito comunitário e nenhum dos argumentos suscitados a posteriori perante o TJUE teve, por este, acolhimento, o que denota nula margem de apreciação da possibilidade da sua adopção no âmbito das identificadas normas do direito comunitário; consequentemente, os actos jurídicos de recusa da admissão a exame dos cidadãos comunitários por falta de comprovativo da residência em território nacional português, que ao seu abrigo foram praticados pelo Réu ora Recorrente na relação sub judice com as Autoras e ora Recorridas, mostram-se igualmente contrários ao direito comunitário, sendo certo que a margem de apreciação eventualmente concedida pelo direito nacional ao funcionário ou à instituição autora da violação do Direito comunitário é irrelevante na determinação e alcance dessa violação e a simples infracção ao Direito comunitário pode bastar para provar a existência de uma violação suficientemente caracterizada, o que acontece quando a entidade nacional, no momento em que cometeu a infracção, dispõe de uma margem de apreciação consideravelmente reduzida, ou mesmo inexistente, como é o caso presente.
Verificam-se, assim, no presente caso, as duas primeiras condições supra indicadas: não só as identificadas normas visam atribuir direitos aos particulares e em cujo âmbito de protecção se situam os direitos e interesses defendidos pelas Autoras ora Recorrentes, como, outrossim, a sua violação se apresenta suficientemente caracterizada, nos termos expostos pelo próprio TJUE, a partir da evidenciada incompatibilidade da norma interna com o Direito comunitário, o que abre o caminho à obrigação de reparar os prejuízos causados às Autoras, pois tal obrigação não pode ficar subordinada a uma condição extraída do conceito de culpa que vá além da violação suficientemente caracterizada do direito comunitário como aqui acontece.
Quanto ao nexo de causalidade directo entre essa violação e o prejuízo sofrido pelas Autoras, permanecem os fundamentos da decisão sob recurso, na medida em que, não incluído no objecto do recurso, ex officio não merecem qualquer reparo.
Quanto ao dano ou prejuízo será apreciado de seguida, na medida da sua impugnação pelo Recorrente.
II.2.3. — Do erro de julgamento quanto à matéria de facto no que respeita à resposta dada aos quesitos 35º e 36º [factos SS) e TT) da matéria assente] e da errada interpretação e aplicação da lei no que respeita à condenação do réu no pagamento de € 21.753,48, por danos causados à autora Nz..., Ldª resultantes do alegado incumprimento pelo réu da decisão proferida em sede cautelar.
Vejamos sucessivamente estas interligadas questões.
Os factos assentes em SS) e TT) são os seguintes:
SS) A A. Nz..., de forma a salvaguardar a sua imagem e evitar a legítima reacção judicial dos 12 clientes espanhóis suportou as seguintes despesas:
- Pagamento do alojamento, alimentação de cada cliente, no valor de € 1.200,00 (mil e duzentos euros; e,
- Pagamento da deslocação efectuada por aqueles clientes, no valor de € 382,75 (trezentos e oitenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos) – resposta ao ponto 35.º da Base Instrutória.
TT) O valor resultante dos pagamentos referidos no ponto anterior, com IVA incluído ascendeu a € 21.753,48 (vinte e um mil setecentos e cinquenta e três euros e quarenta e oito cêntimos – resposta ao ponto 36.º da Base Instrutória.
Nesta matéria, a decisão sob recurso pronunciou-se assim:
“d) Do pedido de ressarcimento dos danos patrimoniais sofridos em consequência do incumprimento pelo R. da sentença proferida no âmbito do processo cautelar apensado aos presentes autos.
A A. Nz... pede, ainda, o ressarcimento dos danos patrimoniais sofridos em consequência do incumprimento pelo R. da sentença proferida no âmbito do processo cautelar apensado aos presentes autos, uma vez que em 21.12.2005 o IPTM recusou a admissão a exame de 12 cidadãos espanhóis sendo a A. obrigada a devolver os montantes pagos pelos candidatos com o curso de formação e a pagar as despesas de alijamento, alimentação e deslocação dos mesmos, no montante total de € 28.812,36.
Quanto a este pedido apurou-se que:
“MM) Após a notificação em 21 de Novembro de 2005, do Acórdão do TCA Norte proferido no processo cautelar apenso, decorreu ainda o prazo para requerimentos de aclaração ou de dedução de quaisquer nulidades, só tendo transitado em julgado no dia proposto para a realização dos alegados exames – resposta ao ponto 57.º da Base Instrutória.
NN) Uma vez decretada a providência cautelar dependente da presente acção, o IPTM ainda recusou a admissão a exame de doze cidadãos espanhóis, com fundamento na sua falta de residência em território português, em 30 de Novembro de 2005 – resposta ao ponto 5.º da Base Instrutória.
OO) Desde o momento da decisão da providência cautelar, em 18 de Novembro de 2005, e passados nove dias sobre a notificação da mesma aos respectivos mandatários, que ocorreu no dia 21 de Novembro de 2005, o IPTM veio ainda a recusar a admissão para realização de exame de carta de navegador de recreio, de 12 cidadãos espanhóis, precisamente com base na falta de residência dos mesmos em território português – resposta ao ponto 32.º da Base Instrutória.
PP) A Autora Nz..., notificada do Acórdão que decidiu provisoriamente a questão, informou os seus clientes comunitários sem residência em território português da possibilidade de realizarem de novo o seu exame de carta de navegador de recreio – resposta ao ponto 33.º da Base Instrutória.
QQ) Os doze cidadãos espanhóis terão vindo a Portugal com o intuito de beneficiarem de formação náutica, o que terão decidido ainda antes de em Espanha se ter conhecimento da decisão do Tribunal Administrativo – resposta ao ponto 55.º da Base Instrutória.
RR) A três dias da realização do referido exame a A. Nz... viu-se confrontada com a recusa de admissão aos mesmos e necessidade de justificação do sucedido aos clientes aos quais havia prestado a necessária formação – resposta ao ponto 34.º da Base Instrutória.
SS) A A. Nz..., de forma a salvaguardar a sua imagem e evitar a legítima reacção judicial dos 12 clientes espanhóis suportou as seguintes despesas:
- Pagamento do alojamento, alimentação de cada cliente, no valor de € 1.200,00 (mil e duzentos euros); e,
- Pagamento da deslocação efectuada por aqueles clientes, no valor de € 382,75 (trezentos e oitenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos) – resposta ao ponto 35.º da Base Instrutória.
TT) O valor resultante dos pagamentos referidos no ponto anterior, com IVA incluído ascendeu a € 21.753,48 (vinte e um mil setecentos e cinquenta e três euros e quarenta e oito cêntimos) – resposta ao ponto 36.º da Base Instrutória.”
Não importa aqui voltar a enunciar os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado, mas apenas determinar se in casu os mesmos estão ou não preenchidos.
Quanto ao acto o mesmo consubstancia uma acção que se traduz na recusa de admissão a exame de doze cidadãos espanhóis, com fundamento na sua falta de residência em território português, em 30 de Novembro de 2005, já após ter sido decretada a providência cautelar.
É este acto ilícito?
Nos termos do art.º 158.º, “as decisões dos tribunais administrativos são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer autoridades administrativas” (n.º 1) implicando “a nulidade de qualquer acto administrativo que desrespeite uma decisão judicial” (n.º 2).
Por regra, o dever de acatamento das sentenças judiciais só se coloca a partir do respectivo trânsito em julgado, o mesmo sucedendo com as decisões jurisdicionais dos tribunais administrativos, que só adquirem plena eficácia e exequibilidade a partir de tal momento, que marca o dies a quo do prazo para a execução espontânea por banda da Administração (art.º 160.º, n.º 1).
Contudo, a respeito das providências cautelares dispõe o n.º 1 do artigo 122.º do CPTA que “a decisão sobre a adopção de providências cautelares é urgentemente notificada à autoridade, para cumprimento imediato”.
Bem se percebe o carácter urgente dos processos cautelares e da própria notificação da adopção de medidas cautelares, desde logo, porque, em regra, um dos seus pressupostos é o periculum in mora, pretendendo-se evitar a criação de situações de facto consumado ou prejuízos de difícil reparação.
Daí que, igualmente, esteja expressamente previsto que tais decisões são de “cumprimento imediato”, incumbindo à Administração a adopção imediata e urgente de medidas dirigidas a dar cumprimento à decisão cautelar, por exemplo ordenando que os seus serviços se abstenham de prosseguir na execução.
O dever de acatamento das providências cautelares é, por isso, imediato, independentemente do trânsito em julgado da decisão.
Aliás, outro entendimento não faria sentido. Tendo em conta que o artigo 143.º, n.º 2 do CPTA estabelece que os recursos interpostos de decisões respeitantes à adopção de providências cautelares têm efeito meramente devolutivo, admitir-se que no período que medeia entre o decretamento da providência e o da interposição de recurso não incidisse sobre a Administração o dever do seu acatamento, seria permitir que nesse período esta pudesse desrespeitar a decisão e, dessa forma, retirar a utilidade quer da decisão quer do próprio efeito devolutivo do recurso.
Ora, tal é suficiente para aferir que a conduta do R. de recusa de admissão a exame de cidadãos espanhóis já após o decretamento e notificação da decisão aos mandatários é ilegal por violação dos artigos 122.º, n.º 1 e 158.º do CPTA.
Mas é também ilícita, porquanto sendo certo que a ilicitude não se basta com a mera ilegalidade, está em causa a violação de normas que inequivocamente se destinam a proteger o interesse daqueles que obtêm provimento judicial das suas pretensões. Tratam-se, de facto, de normas de protecção, protecção do interesse de realização do direito.
E esta ilicitude é confirmada expressamente pelo disposto no artigo 158.º, n.º 2, e 159.º, n.º 1, al. a) do CPTA, segundo o qual a prevalência das decisões dos tribunais administrativos sobre as das autoridades administrativos faz incorrer os autores de actos administrativos que desrespeitem uma decisão judicial em responsabilidade civil.
Assim, consubstanciando em conduta activa de inexecução da decisão da providência cautelar, a recusa de admissão a exame dos doze cidadãos espanhóis em 30.11.2005 constitui facto ilícito.
E este facto ilícito foi causa adequada à produção dos danos sofridos pela A. Nz....
De facto, notificada da decisão provisória a Nz... informou os seus clientes comunitários sem residência em território nacional da possibilidade de realizarem de novo o seu exame, confiando no acatamento pelo R. da decisão cautelar.
É irrelevante que os cidadãos em causa tenham vindo a Portugal antes de em Espanha se ter conhecimento da decisão, porquanto o R. não poderia a partir do momento em que a decisão lhe foi notificada recusar a sua admissão a exame.
Em face da recusa em admitir a exame os formandos da A. já após a decisão da providência cautelar, esta teve que suportar as despesas de deslocação, alojamento e alimentação daqueles formandos que vieram, propositadamente a Portugal, realizar o referido exame. O qual só não se realizou por facto imputável ao R.. Pelo que, do mesmo modo, tais despesas não teriam sido suportadas pela A. não fosse o facto ilícito do R.
Daí que recusa de admissão a exame desses cidadãos em incumprimento da decisão cautelar pelo R. seja causa adequada às despesas que se provou que o R. suportou no sentido de salvaguardar a sua imagem e evitar a legítima reacção judicial dos doze clientes espanhóis.
Assim, da actuação ilícita do R. resultou um dano (emergente) no valor total de € 21.753,48 (conforme pontos SS) e TT) da matéria de facto provada) correspondente a:
- Pagamento do alojamento, alimentação de cada cliente, no valor de € 1.200,00 (mil e duzentos euros); e,
- Pagamento da deslocação efectuada por aqueles clientes, no valor de € 382,75 (trezentos e oitenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos).
Termos em que é o R. civilmente responsável pelos danos patrimoniais da A. Nz..., no valor total de € 21.753,48, resultantes do incumprimento pelo R. da decisão proferida em sede cautelar.”.
A impugnação do Réu assenta em três pontos:
(i) A alegação de que a Autora Nz... não chegou a deduzir pedido de condenação a tal título, na altura e pela forma prescrita pela lei, o que impede o Tribunal a decidir para além do pedido (artigo 661º, nº 1, do CPC);
(ii) A alegação de que se verifica erro de julgamento quanto à matéria de facto no que respeita à resposta dada aos quesitos (pontos) 35º e 36º, os quais devem ser considerados não provados;
(iii) A alegação de que a sentença proferida no processo cautelar não chegou a ser notificada à entidade requerida, como prescreve e exige o disposto no artigo 122º do CPTA, não bastando para o efeito a notificação ao respectivo mandatário, dado tratar-se de facto pessoal (como de resto também previsto no nº 2 do artigo 253º do Cód. Proc. Civil).
Vejamos.
(I) Quanto ao argumento de que a Autora Nz... não chegou a deduzir pedido de condenação a tal título, na altura e pela forma prescrita pela lei, não pode concluir-se pela sua verificação, em face do constante na petição inicial (p.i.).
Na verdade, a matéria em crise vem alegada nos artigos 226º a 234º da p.i. em termos que identificam o montante global dos respectivos “danos directamente causados pela actuação ilícita em causa nos presentes autos” e, acrescentam as Autoras, “que deverão, naturalmente, integrar o valor da indemnização devida pelo ora R. pela sua actuação ora descrita”.
Ora, tendo a Autora Nz... formulado um pedido de condenação do Réu a pagar-lhe uma “indemnização no valor de 268.813,84€, a título de responsabilidade civil extracontratual por danos patrimoniais directamente provocados pela actuação ilícita descrita na presente acção” (nossa ênfase), afigura-se indubitável que neste pedido se integra o valor da indemnização devida pelo Réu pela sua actuação descrita nos referidos artigos 226º a 234º da p.i..
O que é confirmado pelo montante global peticionado: o valor dos danos invocados pela Nz... no artigo 209 da p.i., de 240.001,92€, somado ao dano invocado no artigo 232 da mesma p.i., de 28.812,36€, perfaz 268.814,28€, valor que corresponde grosso modo (ressalvando-se eventual erro de escrita) ao montante global peticionado de 268.813,84€.
Não se mostra violado o disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 467º do CPC61 e actualmente no artigo 552º do CPC2013, nem o artigo 661º, nº 1, do CPC61 e actualmente no artigo 609º do CPC2013.
(II) Quanto ao alegado erro de julgamento da matéria de facto no que respeita à resposta dada aos quesitos (pontos) 35º e 36º, entende o Recorrente que devem ser considerados não provados os factos insertos na base instrutória no “ponto 35º” e no “ponto 36º”.
Os quesitos em crise:
“35º E, de forma a salvaguardar a sua imagem e evitar a legítima reacção judicial dos referidos clientes, a Autora Nz... teve de suportar os seguintes custos:
— Devolução do valor pago pelo obrigatório curso de formação para a realização daquele exame, no valor de €588,24 (quinhentos e oitenta e oito euros e vinte e quatro cêntimos (cfr. doc. nº 25 que ora se junta e cujo conteúdo se dá por inteiramente reproduzido para todos os efeitos legais);
— Pagamento do alojamento, alimentação de cada cliente, no valor de €1.200,00 (mil e duzentos euros; e,
— Pagamento da deslocação efectuada por aqueles clientes, no valor de €382,75 (trezentos e oitenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos) cada?”.
“36º Tudo, acrescido de IVA e multiplicado pelo número de cidadãos comunitários recusados, isto ér, doze, perfaz o montante global de €28.812,36 (vinte e oito mil oitocentos e doze euros e trinta e seis cêntimos)?”.
As respostas a esses quesitos pelo Tribunal a quo:
“Ponto 35º — Provado apenas que a Autora Nz..., de forma a salvaguardar a sua imagem e evitar uma eventual reacção judicial dos 12 clientes espanhóis suportou as seguintes despesas: — Pagamento do alojamento e alimentação de cada cliente, no valor de € 1.200,00 a cada; — Pagamento da deslocação efectuada por aqueles clientes, no valor de €382,75 a cada um.”.
“Ponto 36º — Provado que o valor resultante dos pagamentos referidos em 35º, com IVA incluído, ascendeu a € 21.753,48.”.
A respectiva fundamentação:
“Pontos 35º e 36º: A matéria de facto dada como provada, ainda que restritivamente, constante destes pontos da base instrutória resultou do depoimento das testemunhas apresentadas pelas AA., CSSV e JLSG, que confirmaram que aquela Autora teve de pagar aos formandos as despesas que as mesmas tiveram tendo em vista a realização do exame, cujo pedido de marcação o Réu indeferiu e bem assim da consideração da factura de fls, 96 dos autos da qual consta a importância devolvida pela Autora Nz....”.
As razões do Recorrente para que tais factos se considerem como não provados:
“Ora vejamos o que as duas testemunhas indicadas disseram sobre tal matéria (os quesitos) 35º e 36º).
Assim, quanto à testemunha CSSV, referiu logo no início do depoimento que é funcionária da autora N..., Ldª, onde trabalha desde o ano de 2000.
E, todo o seu depoimento foi suportado à actividade da autora N..., Ldª.
Sobre a matéria dos referidos quesitos disse o seguinte às perguntas que lhe foram colocadas pelo Ilustre Mandatário das autoras:
Pergunta: “ … E em relação …. aos custos e gastos que as pessoas tiveram …. com a apresentação a exame, na altura em que o exame foi indeferido pelo IPTM, com base na falta de residência em Portugal?
Esses custos foram suportados por quem?
A senhora recorda-se? Sabe?”
Resposta da Pergunta:
“Pelas escolas. Tinha que ser. Mesmo assim se nos afectou tanto em termos de imagem, se não nos salvaguardássemos ainda pior seria”.
Pergunta: “Fizeram a devolução dos custos às pessoas? Fizeram?”
Resposta da Testemunha:
“Exacto”.
Pergunta: “A senhora tem ideia de valores?”
Resposta da Testemunha:
“Não posso assegurar um valor preciso; sei que foi bastante. Cada pessoa pagou € 221,00 e esses valores foram devolvidos às pessoas; alguns deles; não digo que foi a totalidade; a maior parte foi devolvida; Não tenho dúvidas”.
E mais não disse a testemunha CSSV.
É de realçar que esta testemunha sempre se foi referindo ao longo de todo o seu depoimento apenas e só à autora N..., Ldª, onde trabalha desde o ano de 2000 e sobre a qual tem conhecimento da respectiva actividade.
Por outro lado, apenas consegue referir a quantia de € 221,oo por aluno, que teria sido devolvida, não na totalidade mas apenas em parte, sendo que tal importância diz respeito à inscrição dos alunos (que inclui igualmente o custo a pagar ao IPTM, IP pelo exame).
Note-se ainda que tal depoimento foi efectuado sem qualquer enquadramento de tempo e lugar, nem um mínimo de precisão quanto a valores.
De seguida, depôs a testemunha JLSG.
Esta testemunha declarou logo no início do seu depoimento que é sócio da autora N..., Ldª, onde exerce as funções de coordenador técnico-pedagógico.
Sobre a matéria dos quesitos 35º e 36º nada foi perguntado a esta testemunha, que naturalmente, nada disse a respeito da matéria constante de tais quesitos.
Relativamente ao documento referenciado na fundamentação, de referir apenas o mesmo é completamente desenquadrado da matéria de facto em causa, não identifica a causa nem prova qualquer pagamento.
Trata-se de uma factura emitida por uma entidade estranha aos autos, cuja origem se desconhece igualmente.
Estranhamente identifica um período compreendido entre 24 de Novembro de 2005 a 03 de Dezembro de 2005, o que é manifestamente excessivo para se reportar a pessoas que poderiam realizar um exame no dia 03 de Dezembro de 2005.
Em suma trata-se de um documento completamente desadequado para provar a matéria de facto a que se referem os quesitos 35º e 36º
Por último há que destacar que em momento algum se prova a exigência de pagamentos (devoluções) por parte dos alegados alunos espanhóis que se teriam deslocado a Portugal, nem a efectivação de tais pagamentos/devoluções, sendo que, em qualquer caso, a alegada deslocação dessas pessoas teria sido efectuada sem que, em todo o caso, os exames estivessem confirmados.
Nestes termos, verifica-se erro de julgamento no que respeita à decisão proferida sobre a matéria de facto, concretamente a resposta dada aos quesitos 35º e 36º a qual deve ser revogada e substituída por decisão de Não provado em qualquer deles e, consequentemente, o réu, ora recorrente, absolvido da condenação no pagamento de qualquer indemnização a título de incumprimento em sede cautelar.
Em cumprimento do disposto no artigo 685º-B do Cód. processo Civil, consigna-se que os concretos pontos da matéria de facto que se consideram incorrectamente julgados são os 35º e 36º, e os concretos meios probatórios que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida são, “a contrario”, o documento nº 27 junto com a petição inicial (doc. 96 dos autos), bem como os documentos da 1º e da 2ª testemunhas inquiridas, respectivamente CSSV e JLSG, cujos depoimentos constam da cassete nº 1, lado A (CSSV) e lado B (JLSG).”.
Em sede de contra-alegações, as Recorridas nada disseram sobre esta matéria.
Apreciando.
A acção da qual emana o presente recurso jurisdicional foi intentada em 2006, a decisão recorrida foi proferida em 05-11-2010 e o recurso que temos presente foi interposto em 10-12-2010, pelo que lhe é aplicável o CPC1961 na versão anterior ao Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto — cfr. artigo 11º deste diploma legal.
Na fundamentação das respostas aos quesitos, particularmente aos pontos 35º e 36º ora em crise, decorre que foi decisiva para a formação da convicção da Senhora Juiz do TAF a quo a prova testemunhal e, sobretudo, a documental ali indicada.
O Recorrente opera na sua alegação uma apreciação crítica desses meios de prova capaz de demonstrar a existência do invocado erro de julgamento com interferência no resultado, parcial embora, da acção.
Assim, nada impede a alteração da decisão sobre essa matéria de facto se, na reapreciação a efectuar, os elementos de prova acessíveis ao Tribunal e as regras da experiência, por solução diversa, assim o determinarem.
Contudo, eventual alteração deve ser efectuada com segurança e rodeada das necessárias precauções, centrando-se nas desconformidades encontradas entre a prova produzida e os fundamentos da decisão sobre a matéria de facto indicados pelo julgador a quo, os quais, em conjunto com outros elementos probatórios e nos termos das als. a) e b) do nº 1 do art. 712º do CPC, habilitem a concluir em sentido diverso quanto aos concretos pontos de facto impugnados.
Tal como salienta o sumariado no acórdão do STJ, de 01-07-2010, processo nº 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1, “O julgamento da matéria de facto em 2ª instância não se pode limitar a ser um mero controle da flagrante desconformidade com os elementos de prova do julgamento de facto em 1ª instância com os elementos de prova. Sendo certo que o recurso não significa um julgamento ex novo, mas a reapreciação da decisão recorrida, tal não quer dizer que essa reapreciação não imponha, da parte da Relação, a formação de uma convicção própria que deverá ser cotejada com aquela que está em apreço.”.
Assim, na reapreciação da prova feita pela 2ª instância não se procura obter uma nova convicção a todo o custo, mas verificar se a convicção expressa pelo Tribunal a quo — convicção que, enquanto processo intuitivo, assentou na totalidade da prova, implicando a valoração de todo o acervo probatório que o juiz ou o colectivo a quo teve ao seu dispor — tem suporte razoável, atendendo aos elementos que constam dos autos, e aferir se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da atinente matéria de facto.
Não pode ignorar-se que, com excepção dos meios de prova cujo valor probatório é fixado na lei — v.g., documentos escritos, autênticos (artigo 371º, nº 1, do CC), documentos particulares (artigo 376º, nº 1, do CC); confissão escrita, judicial (artigo 358º, nº 1, do CC) ou extrajudicial (artigo 358º do CC); presunções legais stricto sensu (artigo 350º do CC) —, a apreciação da prova pelo julgador de 1ª instância é livre — v.g., quanto à prova testemunhal (artigo 396.º do CC), prova por inspecção (artigo 391.º do CC) e à prova pericial (artigo 389.º do CC) — e construída dialecticamente na base dos princípios da imediação e da oralidade, pelo que, na reapreciação a efectuar pela 2ª instância é necessário que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo Recorrente e em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos referidos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nessa parte.
No presente caso, a prova dos factos em crise assentou em prova documental e depoimentos das mencionadas testemunhas, que o Recorrente transcreveu e sobre os quais as Recorridas nada disseram, resultando deste últimos a convicção de que as Autoras e ora Recorridas terão procedido à devolução de quantias (em montante total ignorado) a clientes (em número que não esclareceram) por motivo relacionado com a não realização do exame para a obtenção de carta de navegador de recreio a realizar no dia 03-12-2005.
Na verdade, ouvida a gravação do depoimento da testemunha CSSV, do mesmo resulta que a menção em abstracto de devolução a alguns clientes os valores (montante ignorado) por estes pagos; todavia, não a todos os clientes, ou, segundo o seu depoimento, “a alguns deles, pois a alguns não podemos dizer que foi na totalidade porque alguns deles ainda foram a exame em 2006”.
Acrescente-se que a testemunha, funcionária da N..., questionada sobre matéria sem distinção de referência à N... ou à Nz..., revelou um grau elevado de desconhecimento relativamente a formandos da sociedade Nz...: v.g., à questão “A senhora tem conhecimento de que alguns formandos se possam ter apresentado a exame com um documento que era o cartão de contribuinte português?” respondeu: “Pela N..., não. Que eu tenha conhecimento, não. Pela N..., não.”
Quanto à testemunha JLSG, ouvida a gravação do seu depoimento, conclui-se que nada disse sobre a matéria dos referidos quesitos.
Pelo depoimento das mencionadas testemunhas não nos é possível formar a convicção de que a Autora Nz... suportou despesas de alojamento e alimentação relativas a 12 clientes, no valor individual de 1.200,00€, bem como da sua deslocação, no valor individual de 382,75€, mas apenas a de que terá havido devolução de quantias, em montante ignorado, a alguns formandos, em número não apurado ou referido, o que se revela manifestamente insuficiente para prova dos referidos factos alegados, pelo que, pelos seus depoimentos, as respostas aos quesitos não poderiam ser as que se assentaram.
Em todo o caso, para prova dos factos ora em causa havia sido oferecido o documento junto a fls. 96 dos autos — identificado como «doc. 27» —, sendo este o segundo dos meios de prova, relevados na fundamentação, que suportou o assentamento dos factos relativos aos pontos 35º e 36º da base instrutória, na parte ora em crise.
Esse documento «doc. 27» foi oferecido para prova do alegado no artigo 231º da petição inicial, sendo que, da matéria ali alegada, ficou “Provado apenas que a Autora Nz..., de forma a salvaguardar a sua imagem e evitar uma eventual reacção judicial dos 12 clientes espanhóis suportou as seguintes despesas: — Pagamento do alojamento e alimentação de cada cliente, no valor de € 1.200,00 a cada; — Pagamento da deslocação efectuada por aqueles clientes, no valor de €382,75 a cada um.” E do ponto 36º — “Provado que o valor resultante dos pagamentos referidos em 35º, com IVA incluído, ascendeu a € 21.753,48.”.
Da respectiva fundamentação consta apenas a “consideração da factura de fls, 96 dos autos da qual consta a importância devolvida pela Autora Nz....”, ou seja, o documento em crise serviu, em complemento da prova testemunhal, para prova do montante devolvido pela Autora Nz....
A “importância devolvida” reporta-se a um pagamento a ser provado pelo, para tanto, oferecido meio de prova.
O que não acontece, no caso, senão, vejamos.
De acordo com as regras do ónus da prova constantes dos artigos 342° e seguintes do Código Civil, sobre as Autoras, ora Recorridas, designadamente a Nz..., recaía o ónus da prova do efectivo “pagamento do alojamento, alimentação de cada cliente, no valor de € 1.200,00” e bem assim do alegado “pagamento da deslocação efectuada por aqueles clientes, no valor de €382,75 (…) cada”, o que aquelas não cumpriram com a junção da referida factura nº130942596.
O referido «doc. 27» é documento particular e quanto a estes dispõe o artigo 374º, nº 1, do Código Civil que «A letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando este declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras», não tendo, no caso, sido impugnadas.
Relativamente à sua força probatória dispõe o artigo 376º, nº 1, do mesmo diploma legal que «O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações nele atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento», acrescentando o seu nº 2 que «Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante», pelo que “(…) a força probatória do documento particular circunscreve-se, assim, no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo respectivo subscritor. Tal como no documento autêntico, a prova plena estabelecida pelo documento respeita ao plano da formação da declaração, não ao da sua validade ou eficácia. Mas, diferentemente do documento autêntico, que provém duma entidade dotada de fé pública, o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objecto da sua percepção directa. O âmbito da sua força probatória é, pois, bem mais restrito.(…)” — cfr. José Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, Almedina, 1984, pags. 55 - 56.
O caso presente não se subsume à previsão normativa do nº 2 do artigo 376° do Código Civil, que lhe é inaplicável; por outro lado, tendo sido levados à base instrutória os atinentes factos alegados no articulado em 231º e 232º da petição inicial (quesitos 35º e 36º da base instrutória) por terem sido impugnados, da prova testemunhal efectuada, no que tange às declarações neles insertas, de harmonia com o preceituado nos artigos 392º e 393º (este, a contrario) do Código Civil, não resultou prova do seu conteúdo.
O dito documento «doc. 27», de fls. 96 dos autos, é um documento particular (artigo 376º, nº 1, do CC) que contém a menção “Factura” apenas, que não factura-recibo ou outra menção ou assinatura do responsável pelo seu pagamento.
A factura documenta a dívida contraída pela recepção das mercadorias ou, neste caso, dos serviços prestados, segundo as condições acordadas entre o fornecedor e o cliente.
Ora, “tanto a factura como a nota de débito constituem documentos contabilísticos elaborados no seio da empresa e que se destinam ao exterior.
A factura deve visualizar-se como o documento contabilístico através do qual o vendedor envia ao comprador as condições gerais da transacção realizada. Por sua vez, a nota de débito consiste no documento em que o emitente comunica ao destinatário que este lhe deve determinado montante pecuniário.
Ambos os documentos surgem na fase de liquidação da importância a pagar pelo comprador, assim não fazendo prova do pagamento do preço pelo mesmo comprador e, por consequência, prova de que se concluiu a compra e venda (somente a emissão de factura/recibo ou de recibo faz prova do pagamento e quitação - cfr.artº.787, do C.Civil)” — cfr. entre outros, acórdão do TCA Sul, de 19-03-2015, processo nº 08300/14.
Donde, esse meio probatório oferecido mostra-se, em concreto, inidóneo a provar a ocorrência dos alegados factos, ou seja a “devolução”, leia-se o pagamento de tais quantias.
Na factura, enquanto documento de venda emitido a um cliente, é obrigatória a identificação do cliente, nomeadamente o nome e a identificação fiscal.
O «doc. 27» consubstancia cópia simples de uma factura emitida por “Astixano” ao cliente “Nz... formacion e consultoria náutica”, escrita em língua castelhana.
Quem é a Astixano, a que se dedica, qual o seu relacionamento com a Nz... – Consultadoria Náutica, Ldª? Não se sabe, pois dos autos não consta.
Nem mesmo dos balancetes da Nz... – Consultadoria Náutica, Ldª, juntos aos autos, se vislumbra identificação possível daquela entidade, na relevância que assumem enquanto quadro recapitulativo de todas as contas do razão, onde consta a soma do débito e do crédito de cada conta e os respectivos saldos, devedores ou credores — veja-se, para aprofundar o conceito, António Borges, Azevedo Rodrigues, Rogério Rodrigues, Elementos de Contabilidade Geral, Áreas editora, 2000, Página 82).
Na verdade, verifica-se que, tendo a Autora Nz... – Consultadoria Náutica, Ldª, apresentado “Balancete geral financeira Acumulado”, relativo aos anos de 2004 e 2005 — doc. 23 junto com a p.i. —, dos mesmos não consta a Astixano de entre os fornecedores nacionais ali identificados, como também não apresenta fornecedores não nacionais.
Por outro lado, quem é a “Nz... formacion e consultoria náutica”? Não se sabe, pois dos autos não consta. Certo é que nenhum elemento permite concluir, com rigor mínimo, que “Nz... formacion e consultoria náutica”, ademais desacompanhada de identificação fiscal, se identifique com a Autora “Nz... – Consultadoria Náutica, Ldª”, pessoa colectiva nº 506..., do que poderia admitir-se demonstração em face do disposto nos artigos 392º e 393º, este a contrario, do Código Civil, o que não ocorreu.
Verifica-se ainda a existência de contradições que, embora em si mesmo pudessem ser ultrapassados enquanto eventuais erros, no seu conjunto mais inculcam a idéia de que a alegação não tem sustentação na realidade patenteada no referido “doc. 27”.
Quanto ao valor, o alegado pagamento da deslocação alegadamente efectuada por “aqueles clientes”, de “€ 382,75”, não corresponde ao valor inscrito no documento oferecido em prova, nem corresponde ao valor escrito por extenso.
Na verdade, o valor que consta da cópia da factura junta como «doc. 27» é de 362,75€, o qual multiplicado por 12 daria como resultado 4.353,00 e, somado ao restante, o total de 18.753,00€, valores que constam da factura.
Já o alegado valor de “€ 382,75”, ignorando já o que do extenso consta, “trezentos e oitenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos”, não encontra correspondência naquele dito documento e daria, isso sim, o resultado de 4.593,00€, num total de 18.993,00€, valores que a cópia da referida factura não documenta.
E também não é transparente a referência a “aqueles clientes” no artigo 231º da p.i., pois se é certo que já no artigo 226º da petição inicial (p.i.) se referem os “cidadãos espanhóis”, também é verdade que no 1º parágrafo-travessão dos sequenciais parágrafos do referido artigo 231º da p.i. se alega (o que não foi provado, é certo, mas irrelevando, todavia, para o aspecto ora em consideração, a sua prova ou não prova) a devolução do valor pago pelo obrigatório curso de formação, oferecendo-se o documento 25 como meio de prova; ora, o doc. 25 refere-se a clientes que para além de não incluírem os nomes dos clientes espanhóis identificados no doc. 26, incluem, isso sim, nomes de pessoas com morada indicada, todos eles, em Portugal, o que exclui o conjunto dos clientes espanhóis afastados da possibilidade de obtenção dos títulos de permissão de navegação em causa. Se a sua junção serviu apenas para ilustrar ou provar o valor pago pelo curso, não se compreende — aliás, em caso algum se compreende — que a referência alegatória sejam clientes residentes em Portugal, relativamente aos quais não se coloca a inadmissibilidade a exame fundada no facto de residirem fora do território nacional, ao invés de directamente ser alegada matéria relativa aos clientes espanhóis.
Outro aspecto fulcral e não explicado pelo alegado reporta-se ao seguinte:
As Autoras e ora Recorridas, sediadas em território português, têm por objecto social, entre o mais, “dar formação inerente à carta de navegador de recreio e de propor os respectivos candidatos a exame”, “sendo os referidos cursos de formação e consequente admissão a exame precisamente aqueles a que os cidadãos comunitários não residentes em território português foram (…) impedidos de frequentar”.
O Réu — à data, o IPTM — era o responsável pela realização dos exames e correspectiva emissão das cartas de navegador de recreio.
Neste cenário, e à mingua de factos que, alegados e provados, pudessem lançar luz sobre o tema, como compreender que os 12 clientes/alunos devessem deslocar-se ao território português para frequentar o referido curso e realizar o mencionado exame perante o IPTM, e, simultaneamente, efectuem, todos eles, despesas de alojamento e alimentação aparentemente em território espanhol, com necessidade de “transporte aereo ida y vuelta desde distintas ciudades”, no período de 24 de Novembro a 3 de Dezembro de 2005, sendo esta a data do exame que não foi realizado e tendo havido recusa pelo Réu, três dias antes desta última data, de admissão a exame dos candidatos?
Em suma: (i) Não se mostra provado que os serviços descritos no doc. 27 tenham sido facturados à Autora “Nz... — Consultadoria Náutica, Ldª”; (ii) não se mostra provado o alegado pagamento das quantias constantes do “doc. 27”; (iii) não se mostra provado, sequer alegado, um mínimo quadro de factos que confira verosimilhança aos factos ora colocados em crise, no contexto dos restantes factos alegados e provados pelas partes.
Embora a reapreciação da matéria de facto por parte deste TCA tenha um campo muito restrito, limitado apenas aos casos em que ocorre flagrantemente uma desconformidade entre a prova produzida e a decisão tomada, nomeadamente quando não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação, verifica-se, no caso presente, essa insustentabilidade.
Neste contexto, não se mostra possível corroborar o julgado pelo Tribunal a quo nesta matéria, antes resultando a existência do invocado erro de julgamento com interferência no resultado, parcial embora, da acção, devendo, nessa medida e extensão, anular-se a decisão sob recurso.
Assim, aos pontos 35º e 36º da Base Instrutória, responde-se:
“Ponto 35º: Não provado.
Ponto 36º: Não provado.”.
Entende, com razão, o Réu e ora Recorrente que, consequentemente, deve ser “absolvido da condenação no pagamento de qualquer indemnização a título de incumprimento em sede cautelar”.
Na verdade, pode haver lugar a responsabilidade civil quando deva ser reparado um dano sofrido.
O dano a ressarcir é, pois, fundamental pressuposto cuja verificação desde logo se exige para que — na verificação dos restantes cumulativos pressupostos — surja a obrigação de indemnização (cfr. artigos 483º e 562º, ambos do Código Civil, sendo o presente um caso de responsabilidade por facto ilícito).
Não provaram as Autoras que:
SS) A A. Nz..., de forma a salvaguardar a sua imagem e evitar a legítima reacção judicial dos 12 clientes espanhóis suportou as seguintes despesas:
- Pagamento do alojamento, alimentação de cada cliente, no valor de € 1.200,00 (mil e duzentos euros; e,
- Pagamento da deslocação efectuada por aqueles clientes, no valor de € 382,75 (trezentos e oitenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos) – resposta ao ponto 35.º da Base Instrutória.
TT) O valor resultante dos pagamentos referidos no ponto anterior, com IVA incluído ascendeu a € 21.753,48 (vinte e um mil setecentos e cinquenta e três euros e quarenta e oito cêntimos – resposta ao ponto 36.º da Base Instrutória.
Donde deve improceder o atinente pedido de condenação do Réu ao pagamento da reclamada quantia de 21.753,48€.
Procede a alegação do recorrente nesta matéria.
Prejudicado fica o conhecimento das demais questões.
III. DECISÃO
Termos em que os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte acordam em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:
a) Revogam a decisão ínsita no ponto IV da decisão recorrida, qual seja: “condenar o R. a pagar à A. Nz... a quantia de € 21.753,48 (vinte um mil setecentos e cinquenta e três euros e quarenta e oito cêntimos, a título de danos patrimoniais resultantes do incumprimento pelo R. da decisão proferida em sede cautelar”.
b) Mantêm no mais, com a fundamentação supra exarada, a decisão sob recurso, designadamente o decidido sob os pontos I, II, III e V do decisório.
Custas por ambas as partes na proporção de 2/3 a cargo do Recorrente e 1/3 da responsabilidade das Recorridas.
Notifique e D.N..
Porto, 02 de Julho de 2015
Ass.: Helder Vieira
Ass.: Alexandra Alendouro
Ass.: João Beato
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(1) Nos termos dos artºs 144.º, n.º 2, e 146.º, n.º 4, do CPTA, 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, n.ºs 3 e 4, e 685.º-A, n.º 1, todos do CPC, na redacção decorrente do DL n.º 303/07, de 24.08 — cfr. arts. 05.º e 07.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 41/2013 —, actuais artºs 5.º, 608.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 4 e 5, 639.º e 640º do CPC/2013 ex vi artºs 1.º e 140.º do CPTA.
(2) Tal como delimitadas pela alegação de recurso e respectivas conclusões — artigos 608º, nº 2, e 635º, nºs 3 e 4, 637º, nº 2, 639º e 640º, todos do Código de Processo Civil ex vi artº 140º do CPTA.
(3) Para tanto, e em sede de recurso de apelação, o tribunal ad quem não se limita a cassar a decisão judicial recorrida porquanto, “ainda que declare nula a sentença, o tribunal de recurso não deixa de decidir o objecto da causa, conhecendo do facto e do direito”, reunidos que se mostrem os necessários pressupostos e condições legalmente exigidas — art. 149.º do CPTA.
(4) Marcelo Rebelo de Sousa, in Lições de Direito Administrativo, Vol. I, Lex, pag. 86, refere-se a bloco de legalidade, enquanto conjunto formado pelos princípios e regras constitucionais, internacionais e legais, bem como actos como os regulamentos administrativos, os contratos administrativos e de Direito Privado e actos administrativos constitutivos de direitos, que, nos termos da lei, condicionam a actuação da Administração Pública.
(5) Veja-se Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Almedina, 1992, Vol. I, p. 350 e seguintes.
(6) Veja-se J.J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, anotação ao artigo 185º, pag. 732.
(7) Com nota de rodapé no texto citado: “Neste sentido, cfr. Maria Luisa Duarte, O Direito Comunitário do Trabalho, Tópicos de Identificação, in Maria Luisa Duarte, Estudos de Direito da União e das Comunidades Europeias, Coimbra, 2000, p. 255-256.
(8) Veja-se Fausto de Quadros, Responsabilidade dos poderes públicos no direito comunitário: responsabilidade extracontratual da comunidade europeia e responsabilidade dos Estados por incumprimento do Direito Comunitário, Sep. de 3º Colóquio hispano-luso de derecho administrativo, Valladolid, 16-18 octubre de 1997, p. 137 e seguintes, 148 e seguintes.(9) De notar, tal como o Autor citado o faz, que “fazendo derivar esse primado do Direito Comunitário derivado do artigo 8º, nº 3, da Constituição, cfr. António Vitorino, A Adesão de Portugal às Comunidades Europeias, Lisboa, 1984, p. 54; Moitinho de Almeida, Direito Comunitário, p. 102; André Gonçalves Pereira / Fausto de Quadros, Manual…, pp. 132 ss; Gomes Canotilho /Vital Moreira, Constituição…, 3ª ed., pp. 89-90; Nuno Piçarra, O Tribunal…, pp. 85-86; Maria Luísa Duarte, O Tratado…, pp. 699-700; IDEM, O artigo 10º…, p. 92; IDEM, A Constituição Portuguesa e a União…, pp. 95 e 196.”. |