Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00804/11.9BEBRG-A
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:07/07/2017
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Luís Migueis Garcia
Descritores:MATÉRIA DE FACTO. VONTADE REAL DOS DECLARANTES. HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO. CESSÃO DE CRÉDITOS.
Sumário:
I) – A determinação da vontade real dos contraentes implica julgamento de matéria de facto.
II) – No que se refere ao julgamento da matéria de facto os poderes conferidos ao tribunal ad quem pelo artº 662º, nº1 do actual CPC devem ser articulados com o disposto no artº 607, n.º 5º, nº 1, quando refere que “o juiz aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:RPV
Recorrido 1:Município de Vila Verde
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte, Secção do Contencioso Administrativo:
RPV (R. … Braga) interpõe recurso jurisdicional de decisão do TAF de Braga, em incidente de habilitação de cessionário, julgado improcedente.
Conclui:
1. A sentença em crise não fez uma correta interpretação e aplicação da lei e da prova documental dos autos.
2. Não sendo aceitável que tenha sido dado como não provado que a sociedade C..., Lda transmitiu ao recorrente os créditos reclamados no processo principal.
Senão vejamos:
3. No processo principal, a sociedade C..., Lda, interpôs uma ação contra o Município de Vila Verde para ser ressarcida de todos os danos sofridos com a não concretização do negócio referente ao lote B-cinco, nomeadamente por este não ter a área constante da escritura, o que impossibilitou a referida sociedade de construir um pavilhão industrial, bem como o vender a terceiros.
4. Mais alegou que pela respetiva impossibilidade de construção do referido lote sofreu vários prejuízos.
5. Tais despesas foram pagas pelo Cessionário.
6. No próprio contrato de cessão de quotas entre os atuais sócios da sociedade C... e os anteriores sócios (entre eles o ora cessionário) ficou logo acordado que caberia a este a responsabilidade pelo pagamento de quaisquer encargos com o referido lote.
7. Desta forma, por contrato de cessão de créditos a sociedade Autora cedeu ao Recorrente o crédito que detinha sobre o Município de Vila Verde tal como peticionada nesses mesmos autos principais.
8. A data da elaboração do documento de cessão de créditos, bem como hoje, a lei não impõe o reconhecimento de assinaturas como condição de validade do contrato.
9. O Recorrido impugnou a assinatura, mas os próprios reconheceram e aceitaram a sua assinatura, tendo referido que tudo o que dizia respeito ao lote 5-cinco era da responsabilidade do Cessionário.
10. Lido o conteúdo da presente cessão, verifica-se que mesma vai completamente de encontro com a cláusula oitava do contrato de cessão de quotas da sociedade C..., Ida
11. O contrato de cessão de quotas foi celebrado em 26/10/2008.
12. Ou seja, do próprio contrato de cessão de quotas e renúncia à gerência, celebrado entre o ora cessionário (e restantes sócios), então na qualidade de sócio da C..., Lda e os atuais sócios, ficou expressamente consignado a presente situação e referente ao lote B-cinco, conforme resulta desta cláusula oitava do contrato.
13. A veracidade da presente cessão afere-se até pelo facto de ter sido sempre o Recorrente quem assumiu o pagamento das despesas com a prestação bancária (capital e juros) do empréstimo contraído para aquisição do bem referido nos autos, pagamento de impostos, escrituras, etc,
14. A sentença em crise fundamenta o não reconhecimento da presente cessão, por o Recorrente não ter reclamado o crédito na insolvência.
15. Mas é precisamente por existir a presente cessão de créditos, em consonância com o próprio contrato de cessão de quotas, que o Recorrente não tinha nada a reclamar da Insolvente!
16. Também apenas pelo conteúdo do contrato de cessão de quotas e consequentemente do contrato de cessão de crédito, se compreende que também a Sra Administradora de Insolvência nada tenha reclamado do Município de Vila Verde no que se refere ao Lote B-cinco.
17. Quanto à não apresentação imediata da cessão de créditos, tal é perfeitamente compreensível como forma de facilitar o andamento do processo e a continuação da composição do litígio, uma vez que a formalização da cessão de créditos se deu já na pendencia dos autos.
18. Após decisão, sendo ela favorável, na sua execução seria invocada pelo cessionário.
19. Atenta a insolvência da Autora, mais não teve o Recorrente do que se habilitar, nos termos do art° 356 do CPC.
20. Acresce que o Réu não é credor, e como tal a cessão não está dependente da autorização ou conhecimento do Réu, nem dependente de qualquer prazo.
21. E esta produz efeitos entre partes, sendo certo que em relação ao devedor, produz efeitos a partir do conhecimento deste, salvo se entretanto tiver havido pagamento, o que não foi o caso.
22. Desta foram, a sentença em crise violou, entre outras as normas do art° 577º do CC e art° 356º do CPC.

Sem contra-alegações.
*
O Exmº Procurador-Geral Adjunto junto deste tribunal não emitiu parecer.
*
Cumpre decidir, dispensando vistos.
*
Os factos, que na decisão recorrida vêm enunciados como:
provados:
1. Em 28.4.2011 a C..., Lda. instaurou neste Tribunal a ação administrativa comum contra o Município de Vila Verde corre termos sob numero 804/11.9BEBRG, no qual peticiona a condenação do R. ao pagamento da quantia de € 39.543,09, acrescida de juros de mora, alegando, em suma, que,
• Adquiriu em 23.3.2007 um lote de terreno destinado a construção, sito no Lugar de B..., G…, Vila Verde, com o artigo matricial 342 e que consta no loteamento com a área de 2258m2 e área de implantação de 1350m2;
• Sucede que o lote não tem a área de constante da escritura não sendo possível a construção de edifício com a área de implantação de 1350m2, o que impossibilitou a A. de construir um pavilhão para uso industrial;
• Para aquisição do lote a A. recorreu a um empréstimo bancário de € 50.000,00 e um empréstimo dos sócios no valor € 33.000,00, assumindo a A. o pagamento dos juros;
• A A. teve despesas com a prestação, juros do capital, escrituras, registo, IMT, IMI de 2007 e 2008, projeto de construção, perdeu a possibilidade de vender o lote a uma empresa pelo preço de € 115.000,00;
• O R. retomou o lote pelo preço de venda, tendo a A. despendido quantia com o encerramento do crédito, arcando com as despesas da escritura e do registo;
• Assim, suportou despesas de € 34.043,09 e um dano não patrimonial de € 3.500,00.
docs. de fls. 1 e ss. do processo principal apenso.
2. A C..., Lda. foi declarada insolvente por sentença proferida em 24.10.2012 e transitada em julgado em 14.11.2012. – cfr. doc. de fls. 312 e ss. dos autos principais.
3. Por despacho de 24.1.2013 foi encerrada a liquidação da massa insolvente no âmbito do apenso de liquidação ao processo de insolvência da C..., Lda. – cfr. doc. de fls. 332 dos autos principais.
4. No âmbito da primeira sessão da audiência final realizada em 13.10.2014 no processo 804/11.9BEBRG foi ouvido como testemunha, RPV. – cfr. doc. de fls. 269 e ss. dos autos principais.
5. Foi dado conhecimento da insolvência da C..., Lda. no processo 804/11.9BEBRG aquando da segunda sessão da audiência final realizada em 25.11.2014. – cfr. doc. de fls. 324 e ss. dos autos principais.
6. Em 2.2.2015 foram ARSF e CCFC e a mandatária da C..., Lda. constituída no processo 804/11.9BEBRG notificados para, face à caducidade do mandato forense (art. 110.º CIRE), virem aos autos juntar procuração com ratificação do processado. – cfr. docs. de fls. 347 e ss. dos autos principais.
7. A mandatária do aqui Requerente é a mandatária da C..., Lda. constituída no processo 804/11.9BEBRG.
8. Por despacho de 22.4.2015 foi suspensa a instância no processo 804/11.9BEBRG nos termos do art. 47.º, n.º 3 do CPC. – cfr. doc. de fls. s/n do processo principal.
9. Deste despacho foram notificados em 27.4.2015 ARSF e CCFC e a mandatária da C..., Lda. constituída no processo 804/11.9BEBRG. – cfr. doc. de fls. s/n do processo principal.
10. O presente incidente de habilitação de cessionário foi deduzido em 24.7.2015. – cfr. doc. de fls. 2 dos autos.
não provados:
1. A C..., Lda. transmitiu a RPV os créditos reclamados no processo 804/11.9BEBRG ao Município de Vila Verde.
- # -
Aproveita-se para explicitar o que foi documento [ressalva-se o diferente grafismo] junto pelo requerente da habilitação, ora recorrente, onde buscou alicerce para o que, no entanto e após julgamento, veio supra a ser julgado não provado:
CONTRATO DE CESSÃO DE CRÉDITOS
C..., LDA, contribuinte n° 504…, sociedade comercial com sede no Parque Industrial MB, 58, P…, concelho de Amares, na qualidade de primeira outorgante, e ----------- ­RPV, casado, professor, residente na Rua …, da cidade de Braga, na qualidade de segundo outorgante,-------------------------------------------- Considerando que: ----------------------
1. Por contrato promessa celebrado em 25110/2006, a primeira outorgante prometeu comprar ao Município de Vila Verde o prédio urbano, composto por um lote de terreno destinado a construção, designado por lote B-cinco, sito no lugar de B..., Bç.. e Pt…, freguesia de G..., concelho de Vila Verde, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o número 00429/010905 - Geme, inscrito na respetiva matriz sob o art° 342, pelo preço de 83.004,08€. -----------------------------------------
2. Em 23/07/2007, celebrada a respetiva escritura de compra e venda. -----------------
3. O lote comprado consta no loteamento com a área de Eur: 2258 m2 e com a área de implantação de 1350m2. --------------------
4. O lote em questão não tem a área constante da escritura, não sendo, por isso, possível a construção nele de qualquer edifício com a área de implantação de 1350, conforme consta do loteamento. -----------------------------------------
5. A primeira outorgante, quando deu conta desta limitação, de imediato confrontou o Município de Vila Verde, pois verifica-se uma disparidade entre o lote no projeto e o lote efetivamente existente ------------------------------------------------
6. Face a esta discrepância de área a primeira outorgante viu-se impossibilitada de construir como era seu intento uma pavilhão para uso industrial. -------------------
7. Município de Vila Verde retomou o lote, pelo valor da aquisição. ------------------------
8. Com a respetiva impossibilidade de construção a primeira outorgante sofreu variadíssimos prejuízos, nomeadamente, despesas de juros bancários: 21.199,15€; IMT: 5.395,27€; Escritura de: 1.017,52€; reconhecimentos: 67,90€: lMl 2007: 199,05; IMI 2008: 206,51€; projecto: 5.436,00€; Taxa sanitária: 14,50€; encerramento de crédito: 1.224,46€; Despesas escritura e registo: 300€. ----------------------------
9. A primeira outorgante para recebimento dos prejuízos tidos, intentou contra o Município de Vila Verde a acção n° 804/11.9BEBRG, Unidade Orgânica 1, Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga -------------------------------------------------
10. 10. todas as despesas referidas em 8 dos considerandos foram suportadas pelo segundo outorgante. ------celebram entre si o contrato de cessão de créditos, que há-de regular-se pelas disposições constantes das cláusulas seguintes
PRIMEIRA
11. Pelo Pelo presente contrato a primeira outorgante cede ao segundo - que a aceita - o crédito que detém sobre o Município de Vila Verde e tal como peticionado na ação referida em 9 dos considerandos, assumindo desde já o segundo outorgante todos os direitos e obrigações dele decorrentes.
SEGUNDA
Com a presente cessão a primeira outorgante nada mais tem a receber.
TERCEIRA
A presente cessão é feita a título gratuito, uma vez que foi o segundo outorgante quem suportou as referidas despesas.---.----------------- ----- - --------------- ----------

Braga, aos 30 de Abril de 2012

A PRIMEIRA OUTORGANTE

O SEGUNDO OUTORGANTE
- # -
E ainda para ter presente o teor da dita cláusula “OITAVA” [ressalva-se o diferente grafismo] do contrato de cessão de quotas (da sociedade C..., Lda) com renúncia à gerência, referido pelo recorrente e junto por este, bem como pela Administradora de Insolvência quotas (da sociedade C..., Lda):
OITAVA
1. A sociedade em causa adquiriu um terreno destinado à construção, designado por lote 8-cinco, sito no Lugar de B..., Bouça, Bç… e Pt…, freguesia de G…, concelho de Vila Verde, inscrito na matriz predial sob o artigo 342° e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Verde sob o número 00429/010905.
2. Esta aquisição foi efectuada com recurso a contrato de leasing imobiliário, celebrado com o F..., S.A., pelo qual a sociedade se obrigou a pagar a quantia de € 50.000,00 em prestações mensais.
3. Por ser do interesse e conveniência dos ora cedentes, o terreno em causa manter-se em nome da sociedade, até que aqueles o transfiram para seu nome ou outra entidade.
4. Enquanto o terreno se mantiver em nome da sociedade, os Primeiros, Segundo e Terceiro Outorgantes responsabilizam-se solidariamente pelo pagamento de todas as prestações devidas ao F... e ainda todos os impostos, taxas e quaisquer outras quantias que sejam exigidas à sociedade.
5. Os Outorgantes cedentes obrigam-se a entregar mensalmente, até ao dia 23, a quantia de € 650,00, destinada a pagar ao F... a prestação relativa ao contrato de leasing imobiliário.
*
Do mérito da apelação:
O recorrente não se conforma com a decisão recorrida, a qual julgou «improcedente a presente habilitação de cessionário e, em consequência, não se considera RVS habilitado para prosseguir como autor os termos da demanda no processo 804/11.9BEBRG.».
A Mmª juiz considerou, sob:
«(…)
IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
A habilitação, regida pelo art. 356.º do CPC, implica a modificação da instância quanto às pessoas, ou seja, a substituição de alguma das partes na relação substantiva em litigio por ato entre vivos.
Está em causa no n.º1 deste normativo a habilitação do cessionário do direito em litigio para com este prosseguir a causa, sendo que é pressuposto da habilitação do cessionário, desde logo, que lhe tenha sido transmitido o direito ou coisa objeto do litigio, e que essa aquisição do direito pelo requerente da habilitação tenha ocorrido na pendencia da ação declarativa.
Com efeito, como nota Salvador da Costa (in Os incidentes da instancia, p. 279) “o normativo em análise apenas visa a habilitação do adquirente ou cessionário da coisa ou direito em litígio, exigindo que haja ocorrido, na pendencia de uma causa, a transmissão por acto entre vivos da coisa ou do direito, objecto imediato da controvérsia nela dirimenda”.
A cessão de créditos «pode definir-se como a sucessão num crédito por efeito de um negócio jurídico inter vivos ( v.g., venda, doação, troca...) através do qual o credor transmite a um terceiro o seu direito» (J. Dias Marques, Noções Elementares de Direito Civil, 7º edição, pg.188).
Ora, sucede que o Requerente não demonstrou que a C..., Lda. lhe tenha transmitido por negocio inter vivos os créditos reclamados no processo 804/11.9BEBRG ao Município de Vila Verde.
Com efeito, não obstante ter juntado aos autos um documento designado “contrato de cessão de créditos”, porque impugnada a sua validade pela parte contrária, foi afastada a força probatória do documento, sendo que nem o depoimento das testemunhas ouvidas foi suficiente para demonstrar a materialidade das declarações contidas no documento ou para considerar ter ocorrido a convergência das vontades do Requerente e da C..., Lda. que conduziriam à demonstração da celebração do negócio jurídico.
Na falta de demonstração da ocorrência da transmissão pela C..., Lda. ao aqui Requerente do crédito em litigio no processo 804/11.9BEBRG, tal basta para concluir que o requerente não provou ser cessionário ou adquirente desse crédito e, consequentemente, não pode o mesmo ser habilitado a prosseguir a causa como autor.
(…)».
Extraiu correcta conclusão, perante os factos fixados.
No contexto, seria ao requerente da habilitação que incumbiria provar a cessão de créditos que arvorou como causa justificativa do incidente.
Isto, conforme repartição do ónus da prova entre autor e réu, pelo modo como este princípio geral está consignado no art.º 342 do Código Civil: a quem invoca um direito em juízo incumbe fazer a prova dos factos, positivos ou negativos, constitutivos do direito alegado ("actore non probante reus absolvitur"); à parte contrária compete provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito ("reus excipiendo fit actor").
Porém, entende o recorrente que o tribunal julgou com erro ao dar como não provado que “A C..., Lda. transmitiu a RPV os créditos reclamados no processo 804/11.9BEBRG ao Município de Vila Verde.
Mas não tem razão.
Recordemos o que, com boa desenvoltura, foi exarado em fundamentação da aquisição de convicção probatória:
«(…)
A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto provada resultou dos elementos especificamente identificados em cada um dos pontos do probatório, resultando essencialmente da análise dos documentos juntos aos autos e do depoimento das testemunhas ouvidas, a saber, ARSF, CCFFC, AMOS e RCV.
Conforme resulta do ponto 1 dos Factos não provados o Tribunal considerou que não ficou demonstrada a materialidade da cessão do crédito reclamado nos autos principais.
Com efeito, para a demonstração da cessão de créditos o Requerente juntou aos autos o documento de fls. 5 e ss. dos autos e, bem assim, arrolou testemunhas.
Quanto aos documentos particulares estabelece o art. 374º, nº 1, do C.Civil, que "a letra e a assinatura, ou só a assinatura, de um documento particular consideram-se verdadeiras, quando reconhecidas ou não impugnadas pela parte contra quem o documento é apresentado, ou quando este declare não saber se lhe pertencem, apesar de lhe serem atribuídas, ou quando sejam havidas legal ou judicialmente como verdadeiras".
Relativamente à sua força probatória dispõe o art. 376º do C.Civil que "o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações nele atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento" (nº 1), sendo que "os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante" (nº 2).
"A força probatória do documento particular circunscreve-se, assim, no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo respectivo subscritor. Tal como no documento autêntico, a prova plena estabelecida pelo documento respeita ao plano da formação da declaração, não ao da sua validade ou eficácia. Mas, diferentemente do documento autêntico, que provém duma entidade dotada de fé pública, o documento particular não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objecto da sua percepção directa. O âmbito da sua força probatória é, pois, bem mais restrito". (José Lebre de Freitas, "A Falsidade no Direito Probatório", Coimbra, 248 e 249).
Nessa medida, apesar de demonstrada a autoria de um documento, daí não resulta necessariamente que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provados, que o mesmo é dizer que daí não advém que os documentos provem plenamente os factos eles referidos.
É que a força ou eficácia probatória plena atribuída pelo nº 1 do art. 376.º do C.Civil às declarações documentadas limita-se à materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não abrangendo a exatidão das mesmas.
Na verdade, mesmo que um documento particular goze de força probatória plena, tal valor reporta-se tão só às declarações documentadas, ficando por demonstrar que tais declarações correspondiam à realidade dos respectivos factos materiais. (Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra, 1985, página 523, nota 3).” (cf. Ac. STJ de 9.12.2008, P. 08A3665).
Considerando o exposto porque o documento particular constante dos autos não prova plenamente os factos que nele sejam narrados como praticados pelo seu autor ou como objeto da sua perceção direta, e o Requerido não o reconheceu, importava que o Requerente, através de outros meios de prova, demonstrasse a ocorrência do negócio de cessão de créditos.
Só que o depoimento das testemunhas ouvidas foi insuficiente para esse efeito.
De facto, foi ouvido inicialmente ARSF, o qual, à alegada data de celebração do negócio contido no documento designado “Contrato de Cessão de créditos” era, tal como a testemunha CCFFC, sócio gerente da cedente C..., Lda.
O depoimento desta testemunha mostrou-se parco, escasso, incoerente e inverosímil, não revelando sequer razão de ciência quanto à matéria referente à celebração do negócio pelo facto de não ter participado no mesmo.
Referiu não estar a par das questões da C..., Lda. por ser a esposa que tratava de tudo a respeito e se encontrar, à data, a trabalhar em Barcelona, e não se recordar de qualquer cessão de créditos.
O Tribunal não deu, igualmente, credibilidade à testemunha CCFFC por o seu depoimento se ter mostrado inconstante, incoerente, inconsistente, lacunoso e inverosímil.
Afigura-se inconsistente que, como adiantado pela testemunha, logo após a cessão de quotas da C..., Lda. em 2008 se tenham apercebido das dificuldades financeiras, tendo a testemunha afirmado de forma insistente e assertiva que imputava as responsabilidades pela sua difícil situação ao aqui Requerente, sendo certo que nesse mesmo ano de 2012 as dificuldades já eram tais que se apresentaram à insolvência – cuja sentença veio a ser proferida em Outubro de 2012 - mas, apesar dessa animosidade, não só tenham alegadamente continuado a assinar e aceitar tudo quanto o senhor RVS lhes apresentava no que respeitava à situação do litigio com o Município de Vila Verde, como a “prescindir” de um crédito que a C..., Lda. detinha e que respeitava ao senhor RVS.
As dúvidas do Tribunal quanto ao depoimento destas duas testemunhas e que conduziram à sua não valoração dos depoimentos para efeitos da demonstração do negócio de cessão de créditos, mais resultaram de ser incoerente que tenham assumido as elevadas responsabilidades no âmbito do contrato de cessão de quotas (conforme as clausulas quarta e quinta de fls. 30 e ss. dos autos), que existam dois contratos de cessão de quotas com valores a pagar distintos e assinados pelos mesmos e, simultaneamente, aleguem desconhecer a razão pela qual existem dois contratos com o mesmo objeto.
As constantes incoerências e insuficiências dos depoimentos destas testemunhas, quer ao nível da sua desresponsabilização pela atividade e destino da C..., Lda. no que à testemunha Ricardo Ferreira concerne, quer no que se reporta à relação entre, por um lado, a importância das responsabilidades que assumiram e, por outro, um alegado desconhecimento do preço pago pela cessão de créditos e notória leviandade e negligencia no que respeita a um assunto com a importância que para a vida da C..., Lda. representava como é o do crédito dos autos, conduziram a que o Tribunal não pudesse firmar a convicção quanto à materialidade dos factos constantes do documento particular designado “cessão de créditos”.
Note-se que nem o depoimento da testemunha RCV serviu para contrariar a perceção do Tribunal quanto à falta de consistência do depoimento daquelas testemunhas, pois que esta testemunha revelou profundo desconhecimento quanto à matéria dos autos, tendo, aliás, notado que não tinha intervenção no que respeitava às questões da sociedade, desconhecendo quer o preço pelo qual as quotas tinham sido cedidas, quer a própria cessão de créditos em causa neste apenso.
O tribunal valorou positivamente o depoimento da testemunha AMOS no que respeita à matéria do processo de insolvência da C..., Lda., pela razão de ciência demonstrada, já que foi administradora de insolvência, e pela espontaneidade e tempestividade das declarações, a sua constância e coerência interna, a sua verosimilhança, decorrente da ausência de contraste com outros elementos probatórios que apontassem no sentido contrário.
Referiu que não só aquele contrato de cessão de créditos nunca lhe foi apresentado, não obstante as obrigações que recaiam sobre os sócios da insolvente, como o crédito subjacente além de não reclamado e reconhecido, não constava da contabilidade da insolvente sequer como crédito litigioso, não sendo pois objeto da liquidação. Mais fez notar que, pelo menos desde Junho ou Julho de 2013, quando encetou contacto, que o senhor RVS conhecia a situação de insolvência da C....
A inverosimilhança da materialidade do negócio de cessão do crédito reclamado no processo principal mais resulta da conjugação dos factos retirados do depoimento desta testemunha, quanto à circunstancia de nunca ter sido conhecida anteriormente tal cessão de créditos, com a sucessão de eventos ocorridos no processo principal e inscritos nos pontos 4 a 9 dos Factos Provados. Com efeito, é manifestamente incompreensível que, não obstante a alegada data de celebração do contrato de cessão de créditos em 2012, o aqui Requerente que, pelo menos desde Junho/Julho de 2013 conhecia a situação de insolvência da C..., e prestou em 2014 depoimento nos autos principais e que, como resultou do depoimento das testemunhas, tem sido quem suporta todos os custos dos autos e tem interesse na lide por ser alegadamente o titular do crédito reclamado, não obstante já ser desde 2012 cessionário, em nenhuma dessas apresentou o documento que titulava a cessão de crédito, nem requereu a sua habilitação. Só veio a faze-lo decorridos cerca de 8 meses da data em que foi dado conhecimento nos autos principais da insolvência da C... e já quando os autos se encontravam suspensos pela caducidade do mandato da mandatária da C... e falta de constituição de novo mandatário pelos sócios daquela.
Todos estes elementos probatórios foram suficientes para que o Tribunal considerasse não terem sido provados os factos compreendidos nas declarações constantes no documento designado cessão de créditos, nem que tal cessão dos créditos peticionados no processo principal tenha ocorrido.
(…)».
Flui muito claramente que o julgamento envolveu o controlo de interpretação da declaração negocial, no que se refere à determinação do sentido da vontade real dos intervenientes, questão ainda situada no domínio dos factos.
No caso, como o tribunal “a quo” explicou, perante escrito particular sem força vinculativa plena que pudesse ser oposta a terceiro, portanto livremente apreciável.
E «No que se refere ao julgamento da matéria de facto os poderes conferidos ao tribunal ad quem pelo artº 662º, nº1 do actual CPC devem ser articulados com o disposto no artº 607, n.º 5º, quando refere que “ o juiz aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto».» (Ac. deste TCAN, de 10-03-2017, proc. nº 01347/08.3BEPRT).
O recorrente coloca em causa o juízo alcançado pelo que é de prova documental, que entende apontar noutro sentido de decisão.
Mas – estando controvertida a vontade real dos declarantes - assinalou o tribunal “a quo”, «importava que o Requerente, através de outros meios de prova, demonstrasse a ocorrência do negócio de cessão de créditos.
Só que o depoimento das testemunhas ouvidas foi insuficiente para esse efeito.
(…)
nem o depoimento das testemunhas ouvidas foi suficiente para demonstrar a materialidade das declarações contidas no documento ou para considerar ter ocorrido a convergência das vontades do Requerente e da C..., Lda. que conduziriam à demonstração da celebração do negócio jurídico.».
O recorrente não belisca esta afirmação de insuficiência.
Pelo menos, pelo que advém (ou do que falta) da prova testemunhal.
E, nessa base, o processo íntimo de formação de juízo afigura-se racional e lógico.
Nada do que o recorrente agora invoca em recurso impõe que se alcance diferente solução:
- são espúrios apontamentos a desnecessidade de reconhecimento de assinaturas ou a sua não impugnação, que vêm reportadas à validade da cessão de créditos e à autoria do documento, quando essas não constituíram questões de premissa;
- fraqueja a verosimilhança de coerente explicação para uma cessão de créditos na base do que vem na referida cláusula “OITAVA” do contrato de cessão de quotas, quando não se alcança razão do recorrente aparecer aqui como único beneficiário e do mesmo passo há notícia testemunhal de a cessão agora apresentada não ser único instrumento contratual com mesmo objecto mas valores diferentes;
- engana-se o recorrente quando supõe negativa apreciação do tribunal por simples falta de reclamação do crédito na insolvência; o tribunal deu conta do depoimento prestado pela Administradora de Insolvência, segundo a qual o alegado crédito não foi reclamado na insolvência (mais depondo no sentido de que o “contrato de cessão de créditos nunca lhe foi apresentado”; pelo não é de aceitar que “pelo conteúdo do contrato de cessão de quotas e consequentemente do contrato de cessão de crédito, se compreende que também a Sra Administradora de Insolvência nada tenha reclamado do Município de Vila Verde no que se refere ao Lote B-cinco”); o que reflectiu negativamente foi antes tal crédito sequer constar como crédito litigioso da insolvente, que assim pudesse abrir portas à reclamação por via de uma cessão, e sobre o “atraso” com que essa suposta cessão de 2012 veio a ser “exercida” nos presentes autos, tendo como “incompreensível que, não obstante a alegada data de celebração do contrato de cessão de créditos em 2012, o aqui Requerente que, pelo menos desde Junho/Julho de 2013 conhecia a situação de insolvência da C..., e prestou em 2014 depoimento nos autos principais e que, como resultou do depoimento das testemunhas, tem sido quem suporta todos os custos dos autos e tem interesse na lide por ser alegadamente o titular do crédito reclamado, não obstante já ser desde 2012 cessionário, em nenhuma dessas apresentou o documento que titulava a cessão de crédito, nem requereu a sua habilitação. Só veio a faze-lo decorridos cerca de 8 meses da data em que foi dado conhecimento nos autos principais da insolvência da C... e já quando os autos se encontravam suspensos pela caducidade do mandato da mandatária da C... e falta de constituição de novo mandatário pelos sócios daquela.”;
- o que também aparta que se tenha tão “tardia” habilitação como “perfeitamente compreensível como forma de facilitar do andamento do processo e a continuação da composição do litígio”.
A sentença recorrida não merece modificação.
*
Pelo exposto, acordam em conferência os juízes que constituem este Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso.
Custas: pelo recorrente.

Porto, 7 de Julho de 2017.
Ass.: Luís Migueis Garcia
Ass.: Alexandra Alendouro
Ass.: João Beato Sousa