Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:168/14.9BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:01/30/2025
Relator:LUÍS BORGES FREITAS
Descritores:ILEGITIMIDADE PASSIVA
CONTRATO ADMINISTRATIVO DE PROVIMENTO
AÇÃO ADMINISTRATIVA COMUM
Sumário:I - Se a relação que se estabeleceu entre o Autor e a Polícia de Segurança Pública (mais rigorosamente, com o Estado) assentou na celebração de um contrato de provimento, a relação que o mesmo desencadeou tem natureza contratual.
II - Ao pedir a condenação do Estado a pagar-lhe a remuneração decorrente da prestação de trabalho extraordinário, noturno, em dias de descanso semanal e complementar e em feriados, bem como a compensação referente ao regime de prevenção, fá-lo invocando a existência do referido contrato, na medida em que foi esse contrato que gerou a aplicabilidade do conjunto de normas que passaram a regular a relação jurídica por ele titulada.
III - A pretensão formulada emerge, portanto, dessa relação contratual.
IV - Na medida em que na presente ação não está em causa a prática ou omissão de um ato administrativo, aplica-se o que resulta do disposto no artigo 11.º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, pelo que parte demandada é, necessariamente, o Estado.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Social
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul:


I
J… interpôs recurso jurisdicional do despacho saneador de 29.3.2021 do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que, julgando procedente a exceção de ilegitimidade passiva, absolveu da instância o ESTADO.

Concluiu as suas alegações de recurso nos seguintes termos, que se transcrevem:

1.ª ) O presente recurso é interposto de despacho-saneador/sentença, datado de 29.03.2021, no qual se decidiu decretar a ilegitimidade passiva do réu Estado, representado em juízo pelo M.P. (Ministério Público);
2.ª ) Discorda o Recorrente do entendimento subscrito no referido despacho-saneador/sentença, com base em diversos argumentos:
a) Erro de fundamentação (art. 89º n.º 1, alínea d) do CPTA);
b) Da legitimidade do réu Estado quanto às ações administrativas comuns relativas a responsabilidade contratual (art. 37º n.º 2, alínea h) do CPTA); e
c) Da admissibilidade de suprimento ou sanação da eventual ilegitimidade passiva
3.ª ) A sentença recorrida padece de um vício de fundamentação, bem como de tramitação (art. 89º n.º 1, alínea d) do CPTA);
4.ª ) A sentença recorrida foi proferida no âmbito de uma ação administrativa comum, cuja tramitação segue a que consta do regime processual civil (arts. 35º n.º 1 e 42º n.º 1 do CPTA);
5.ª ) No entanto, o fundamento da sentença recorrida radica numa norma processual que não é aplicável à tramitação deste tipo de ação, pois o art. 89º n.º 1, alínea d) do CPTA reporta-se às ações administrativas especiais (arts. 35º n.º 2 e 46º n.º 1 do CPTA);
6.ª ) Consequentemente, a sentença recorrida enferma de erro na fundamentação (art. 639º n.º 2, alínea c) do CPC ex vi arts. 35º n.º 1 e 42º n.º 1 do CPTA), pois aplica uma norma processual (art. 89º n.º 1, alínea d) do CPTA) que não é aplicável ao tipo de ação em causa nos presentes autos (ação administrativa comum) e à respetiva tramitação;
7.ª ) O CPTA, até 2015, caracterizava-se por um modelo dualista quanto às formas de processo, que se baseava na distinção entre ação administrativa comum (art. 37º e segs. do CPTA) e ação administrativa especial (art. 46º e segs. do CPTA);
8.ª ) O fundamento dessa distinção radicava no exercício de poderes de autoridade da Administração Pública, que ficava “reservado” para a ação administrativa especial;
9.ª ) O objeto da ação administrativa comum inclui a responsabilidade contratual de entidades públicas, como decorre do art. 37º n.º 2, alínea h) do CPTA;
10.ª ) As ações administrativas comuns relativas à responsabilidade contratual de entidades públicas devem ser instauradas contra o Estado, sob pena de falta de personalidade judiciária e ilegitimidade passiva (dos respetivos ministérios), de acordo com o art. 11º do CPC ex vi art. 1º do CPA e arts. 10º n.º 2 e 11º n.º 2 do CPTA, respetivamente;
11.ª ) A doutrina e a jurisprudência nacional reafirmam este entendimento (a título de exemplo, vide Acórdão do TCA Norte de 25.01.2019, proferido no Proc. n.º 02200/14.7BEPRT);
12.ª ) A jurisprudência do TCA Sul confirma este entendimento, no âmbito de ações administrativas comuns relativas a créditos salariais decorrentes da celebração (e execução) de um contrato de trabalho em funções públicas (Acórdãos de 30.04.2015 e 04.10.2018, proferidos nos Procs. n.º/s 11243/14 e 1907/12.8BELSB, respetivamente);
13.ª ) Defende e sustenta o Recorrente que o entendimento da referida jurisprudência do TCA Sul é aplicável mutatis mutandis à situação sub iudice;
14.ª ) A presente ação administrativa comum reporta-se a responsabilidade contratual, na qual o autor / Recorrente peticiona créditos laborais / salariais decorrentes de trabalho extraordinário, noturno e em dias de descanso semanal e complementar e em regime de prevenção, realizados no âmbito da execução do contrato de provimento que esta celebrara com a PSP (Polícia de Segurança Pública);
15.ª ) O que está em causa é, assim, a aplicação do art. 37º n.º 2, alínea h) do CPTA, isto é, a execução do contrato celebrado entre o Recorrente e a PSP e o pagamento de quantias decorrentes dessa mesma execução;
16.ª ) E, neste tipo de ações de responsabilidade contratual, a legitimidade passiva recai ou pertence ao Estado;
17.ª ) A sentença recorrida procede a uma errónea interpretação do art. 37º n.º 2, alínea e) do CPTA, pois o cumprimento das quantias peticionadas pelo recorrente não decorrem diretamente de normas jurídico-administrativas, mas da execução de um contrato (como expressamente reconhece o tribunal a quo);
18.ª ) Contrariamente ao decidido na sentença recorrida, o Estado Português, representado em juízo pelo M.P., não padece de ilegitimidade passiva, para efeitos do art. 89º n.º 1, alínea d) do CPTA, atendendo ao objeto do litígio dos presentes autos, que se cifra, em responsabilidade contratual (créditos laborais devidos pela execução de contrato de provimento celebrado entre o Recorrente e a PSP), para efeitos do art. 37º n.º 2, alínea h) do CPTA), pois nestas situações a legitimidade passiva recai sobre o Estado, nos termos e ao abrigo do disposto nos arts. 10º n.º 2 e 11º n.º 2 do CPTA;
19.ª ) Subsidiariamente, e caso se sustente a ilegitimidade passiva do réu Estado, essa exceção dilatória sempre seria passível de ser suprida ou sanada, em sede de despacho pré-saneador (arts. 590º n.º 2 e 6º n.º 2 do CPC ex vi arts. 35º n.º 1 e 42º n.º 1 do CPTA);
20.ª ) A doutrina (Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha) e a jurisprudência nacional (Acórdão STA de 19.05.2016, proferido no Proc. n.º 01080/05) defendem o suprimento/sanação do pressuposto processual da ilegitimidade passiva;
21.ª ) O princípio pro actione (art. 7º do CPTA) reforça esta solução, de suprimento/sanação do pressuposto processual da ilegitimidade passiva;
22.ª ) Isto é, se o princípio pro actione deve favorecer a emissão de pronúncias de mérito (evitando-se, assim, pronúncias excessivamente formalistas quanto à análise dos pressupostos processuais), a eventual ilegitimidade passiva do réu Estado português não deveria ter conduzido (de forma imediata e sem contraditório) à absolvição da instância;
23.ª ) Razão pela qual, caso se sustente a ilegitimidade passiva do réu Estado português, sempre seria possível, previamente à absolvição da instância decretada na sentença recorrida (nomeadamente, em sede de despacho pré-saneador), o suprimento ou sanação dessa exceção dilatória, nos termos e ao abrigo dos arts. 590º n.º 2 e 6º n.º 2 do CPC ex vi arts. 35º n.º 1 e 42º n.º 1 do CPTA; e
24.ª ) Em suma, e face ao anteriormente exposto, deve a sentença recorrida ser reapreciada e revogada no que respeita aos tópicos de discordância expostos pelo ora Recorrente e que fundamentam o presente recurso.


O Recorrido apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

1. Alega o Recorrente que o despacho ora recorrido padece de erro de fundamentação uma vez que a este tipo de ação – ação administrativa comum – não se aplica o artigo 89º, nº 1, alínea d) do CPTA, que se reporta às ações administrativas especiais (artigos 35º, nº 2 e 46º, nº 1, do CPTA).
2. Mais entende o mesmo que o Réu Estado Português tem legitimidade quanto às ações administrativas comuns relativas a responsabilidade contratual (artigo 37º, nº 2, alínea h), do CPTA), que devem assim ser instauradas contra si, sob pena de falta de personalidade judiciária e ilegitimidade passiva (dos respetivos ministérios), de acordo com o artigo 11º, do CPC ex vi artigo 1º, do CPA e artigos 10º, nº 2 e 11º, nº 2, do CPTA, respetivamente.
3. Salvo o devido respeito, não tem, porém, o Recorrente qualquer razão.
4. Senão vejamos.
5. Através da presente ação, o Autor, ora Recorrente, pretende obter o pagamento de trabalho extraordinário, noturno, em dias de descanso semanal, complementar e feriados, assim como o pagamento de compensação referente ao regime de prevenção, montantes acrescidos dos respetivos juros de mora, pelo serviço prestado, entre 6 de junho de 1983 e 31 de dezembro de 2011, enquanto médico de divisão da PSP.
6. A presente ação tem na realidade por objeto uma relação jurídica administrativa fundada numa relação laboral de direito público entre o Autor e a PSP.
7. A PSP é uma força de segurança, sem personalidade e capacidade judiciária, que se integra na estrutura do Estado Português através do Ministério da Administração Interna, nos termos do disposto nos artigos 2º da Lei nº 53/2007, de 31 de agosto, 4º, nº 1, alínea a) e 6º, nº 2, da Lei Orgânica do Ministério da Administração Interna, aprovada pelo Decreto-Lei nº 126-B/2011, de 29 de dezembro.
8. De acordo com o artigo 10º, nº 1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), sob a epígrafe “legitimidade passiva”, “cada ação deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor.”.
9. E, resulta do nº 2, do referido artigo, “quando a ação tenha por objeto a ação ou omissão de uma entidade pública, a parte demandada é a pessoa coletiva de direito público ou, no caso do Estado, o ministério a cujos órgãos seja imputável o ato jurídico impugnado ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os atos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos.”.
10. Pretendendo o Autor, ora Recorrente, o reconhecimento de direitos e a prática de atos/adoção de comportamentos por parte de um serviço do Estado, integrado num dos seus ministérios, sendo a causa de pedir a atuação desse mesmo organismo, parte legítima na presente ação é, efetivamente, o ministério que tutela esse serviço.
11. Assim, é sobre o Ministério da Administração Interna que o Autor, ora Recorrente, pretende ver reconhecidos os direitos que invoca, e sobre cujos órgãos recairia, no caso, ser julgada procedente a presente ação, o dever de praticar os atos jurídicos/observar os comportamentos pretendidos.
12. Por outro lado, os pedidos formulados pelo Autor, ora Recorrente, não configuram pretensões respeitantes à interpretação, validade ou execução de contratos, não corporizando, assim, os mesmos uma ação sobre contratos, nos moldes previstos nos artigos 37º, nº 2, alínea h), do CPTA.
13. Ora, contrariamente ao defendido pelo Recorrente não pode, assim, consequentemente, ser o Réu Estado Português, demandado por via do que dispõe o artigo 11º, nº 2, do CPTA.
14. Pelo que é, na realidade, o Ministério da Administração Interna, e não o Estado Português, que tem legitimidade passiva, nos termos do disposto no artigo 10º, nºs 1 e 2 do CPTA, sendo o Réu, ora Recorrido, apenas um terceiro face à relação jurídica controvertida, tal como a mesma é configurada pelo Autor, ora Recorrente.
15. Por outro lado, e ao contrário do que refere o ora Recorrente, a mera indicação do artigo 89º do CPTA não configura qualquer erro de fundamentação podendo, quanto muito, dar lugar a uma retificação ou eventual reforma da decisão recorrida, nos termos do disposto nos artigos 613º, 614º e 616º, do CPC.
16. A propósito da ilegitimidade passiva do Estado Português em situações similares à dos presentes autos, vejam-se, a título meramente exemplificativo, os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, de 22.01.2021, processo nº 0052/17.1 BEBRG-S1, de 13.11.2020, processo nº 00440/15.0 BEVIS, de 3.04.2020, processo nº 02778/14.5BEPRT, de 30.11.2016, processo nº 01682/07.8 BEPRT, de 5.02.2016, processo nº 000558/12.1 BEVIS, de 22.02.2007, processo nº 02242/04.0 BEPRT, bem como o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 18.06.2020, processo nº 193/16.5 BELSB-S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
17. Alega, por fim, o Recorrente que, caso se sustente a ilegitimidade passiva do Réu Estado, essa exceção dilatória sempre seria passível de ser suprida ou sanada, em sede de despacho pré-saneador (artigos 590º, nº 2 e 6º, nº 2 do CPC ex vi artigos 35º, nº 1 e 42º, nº 1 do CPTA), não conduzindo (de forma imediata e sem contraditório) à absolvição da instância.
18. Antes de mais, refira-se que, mais uma vez, contrariamente ao invocado pelo Recorrente, o Mmº Juiz a quo proferiu despacho, em 22 de fevereiro de 2021, suscitando oficiosamente a questão da ilegitimidade passiva do Réu Estado Português e notificou as partes desta matéria de exceção, dando-lhes direito ao contraditório, direito que, aliás, ambas as partes exerceram.
19. A propósito desta questão, e não obstante não existir unanimidade quanto à mesma, veja-se a citada fundamentação constante do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 21.12.2018, processo nº 00786/17.3BEPNF, disponível em www.dgsi.pt, para a qual aqui se remete, dando-se a mesma por integralmente reproduzida.
20. Na verdade, as exceções dilatórias só são supríveis se tal estiver legalmente previsto e as leis processuais civil e administrativa não preveem o suprimento da ilegitimidade passiva singular, sendo que somente é imposto o suprimento oficioso da falta de pressupostos processuais se estes forem suscetíveis de sanação.
21. Neste sentido, veja-se António Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, II volume, 3ª Edição, 2000, Almedina, página 64, que refere que são insanáveis a ilegitimidade singular, a falta de personalidade judiciária (fora do caso referido no artigo 8º, atual artigo 14º do CPC), a incompetência absoluta, o caso julgado e a litispendência.
22. Veja-se, ainda, também com esta posição, José Lebre de Freitas, in A Ação Declarativa Comum À luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª Edição, Coimbra Editora, página 158.
23. A possibilidade de sanação das exceções dilatórias está limitada ou condicionada a que não implique a inutilidade de tudo o que se tiver processado, pois a ideia que a ela preside é que devem ser removidos todos os impedimentos da decisão de mérito que possam sê-lo.
24. De facto, o eventual suprimento da exceção verificada nestes autos, através do convite ao aperfeiçoamento, não permitiria o aproveitamento dos atos processuais praticados no processo, obrigando à apresentação de nova petição, a nova citação e à repetição de toda a tramitação processual, o que configura, verdadeiramente, uma nova instância.
25. Mais acresce que, ainda que a propósito da eventual sanação da falta de personalidade judiciária, no Acórdão do STA de 24.5.2018, processo nº 0166/18, disponível em www.dgsi.pt, foi fixada a seguinte jurisprudência: “numa acção administrativa comum para efetivação de responsabilidade contratual ou extra-contratual, instaurada contra um Ministério, a sanação da falta de personalidade judiciária não é possível e não sendo sanável, também não pode ser objecto de suprimento, sendo determinante da absolvição da instância, nos termos do preceituado no artº 278º, nº 1, alínea c) do Código do Processo Civil”.
26. Por outro lado, sempre se dirá, ainda, que poderia o Autor, ora Recorrente, querendo, lançar mão do disposto no artigo 279º, do CPC.
27. Bem andou, assim, o Mmº Juiz a quo ao considerar que o Réu, Estado Português, não tem legitimidade passiva nestes autos, determinando consequentemente a sua absolvição da instância.
28. A douta decisão recorrida não padece, assim, de qualquer vício, devendo, consequentemente, manter-se na íntegra.
29. Face a todo o exposto, entende-se não assistir qualquer razão ao Recorrente, devendo, consequentemente, ser julgado improcedente na totalidade o presente recurso.

II
Sabendo-se que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do apelante, as questões que vêm submetidas à apreciação deste tribunal de apelação consistem em determinar se o despacho saneador recorrido errou:

a) Ao aplicar o disposto no artigo 89.º/1/d) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos;
b) Ao considerar o Estado parte ilegítima;
c) Ao considerar insanável a referida ilegitimidade.


III
1. O Código de Processo nos Tribunais Administrativos estabelecia o seguinte no seu artigo 10.º, na parte agora relevante (tem-se em conta a redação aplicável ao caso dos autos, ou seja, a vigente até à data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro):

«1 - Cada acção deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor.
2 - Quando a acção tenha por objecto a acção ou omissão de uma entidade pública, parte demandada é a pessoa colectiva de direito público ou, no caso do Estado, o ministério a cujos órgãos seja imputável o acto jurídico impugnado ou sobre cujos órgãos recaia o dever de praticar os actos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos.
3 - Os processos que tenham por objecto actos ou omissões de entidade administrativa independente, destituída de personalidade jurídica, são intentados contra o Estado ou a outra pessoa colectiva de direito público a que essa entidade pertença.
(…)».


2. Do normativo transcrito resulta, portanto, que os ministérios são os demandados nas situações a que alude o n.º 2/2.ª parte. E não o poderiam ser, sem tal norma, na medida em que não detêm personalidade jurídica. A personalidade jurídica é do Estado, pessoa coletiva na qual os ministérios se integram. Não tendo personalidade jurídica, não têm igualmente personalidade judiciária (cf. o artigo 11.º/2 do Código de Processo Civil). Portanto, não podem ser parte (n.º 1 do mesmo artigo).

3. No entanto, sendo este o princípio geral – o da coincidência entre personalidade jurídica e personalidade judiciária -, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos acrescenta às situações de extensão da personalidade judiciária contempladas no Código de Processo Civil o que decorre do invocado artigo 10.º/2/2.ª parte.

4. E é assim, portanto, que os Ministérios têm personalidade judiciária nas ações que tenham por objeto a ação ou omissão de um órgão integrado num ministério. Por outro lado, e nessas ações, são necessariamente a parte passiva. Em rigor, decorre da imposição da legitimidade passiva a atribuição da correspondente, e por ela limitada, personalidade judiciária.

5. Sucede que, utilizando uma técnica desadequada, o legislador, através de uma norma relativa ao patrocínio judiciário e à representação em juízo, provocou «efeitos colaterais» no regime que havia contemplado no artigo 10.º (a expressão é de Esperança Mealha, Personalidade Judiciária e Legitimidade Passiva das Entidades Públicas, CEDIPRE online, n.º 2). Trata-se da norma contida no n.º 2 do artigo 11.º, cuja redação é – era – a seguinte:


«Sem prejuízo da representação do Estado pelo Ministério Público nos processos que tenham por objecto relações contratuais e de responsabilidade, as pessoas colectivas de direito público ou os ministérios podem ser representados em juízo por licenciado em Direito com funções de apoio jurídico, expressamente designado para o efeito, cuja actuação no âmbito do processo fica vinculada à observância dos mesmos deveres deontológicos, designadamente de sigilo, que obrigam o mandatário da outra parte».


6. Temos, portanto, que se alude à representação do Estado pelo Ministério Público nos processos que tenham por objeto relações contratuais e de responsabilidade. O que apenas poderá significar, então, que nessas ações a parte demandada é o Estado. Conjugando o artigo 10.º/2 e o artigo 11.º/2 temos, numa primeira abordagem, o seguinte:

a) Nas ações que tenham por objeto a ação ou omissão de um órgão integrado num ministério, parte demandada é o respetivo ministério;
b) Nas ações que tenham por objeto relações contratuais e de responsabilidade parte demandada é o Estado.

7. A distribuição de papéis, do lado passivo, entre o Estado e os Ministérios faz-se, portanto, de acordo com a divisão precedente (desconsidera-se, porque irrelevante para o caso dos autos, as nuances que resultam da presença, ou não, de atos de autoridade, e que poderá provocar desvios à regra formulada).

8. De qualquer modo, o que importa ter em conta para o presente recurso é o seguinte: nas ações que tenham por objeto relações contratuais a parte demandada é o Estado, por determinação das normas, conjugadas, contidas nos artigos 10.º/2 e 11.º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

9. Como mostram os autos a relação jurídica estabelecida entre o Recorrente e a Polícia de Segurança Pública (em rigor, o Estado) emergiu da celebração de um contrato de provimento (o qual consubstancia um contrato administrativo). Portanto, quando o Recorrente veio a juízo pedir a condenação do Recorrido a pagar-lhe a remuneração decorrente da prestação de trabalho extraordinário, noturno, em dias de descanso semanal e complementar e em feriados, bem como a compensação referente ao regime de prevenção, fê-lo invocando a existência do referido contrato, na medida em que foi esse contrato que gerou a aplicabilidade do conjunto de normas que passaram a regular a relação jurídica por ele titulada. Relação jurídica de natureza contratual, pois.

10. Deste modo, a presente ação tem por objeto a relação contratual que se estabeleceu entre o Recorrente e a Polícia de Segurança Pública (mais rigorosamente, o Estado, a pessoa coletiva na qual se integra aquela força de segurança).

11. Se assim é, importa concluir que parte demandada terá de ser o Estado, como foi.

12. É certo que o saneador recorrido chamou à colação jurisprudência que alegadamente confortaria a decisão nele tomada. Invocou-se, por isso, o acórdão de 13.11.2020 do Tribunal Central Administrativo Norte, processo n.º 00440/14.0BEVIS, o qual teria tratado «situação idêntica à dos presentes autos, onde através de acção administrativa comum se peticionava também o pagamento de créditos salariais por trabalho prestado na PSP e em que também era demandado o Estado Português».

13. Sucede, no entanto, que a situação ali tratada não é idêntica à dos presentes autos. Pelo contrário, é bem diversa, na medida em que inexiste qualquer relação contratual. A relação jurídica do Autor no processo n.º 00440/14.0BEVIS constituiu-se por nomeação, não por contrato.

14. Já quanto ao acórdão de 5.2.2016 do referido tribunal superior, proferido no processo n.º 000558/12.1BEVIS, é verdade que o mesmo aponta no sentido do saneador recorrido. No entanto, de modo algum se acompanha o entendimento ali adotado.

15. Na verdade, pode ler-se nesse acórdão o seguinte:

«Não obstante, a relação material controvertida, tal como configurada pela Autora, não configura uma relação contratual, mas ao invés uma relação jurídica baseada em omissões imputadas à entidade pública (Ministério da Educação) do dever de prestar directamente resultante da lei (entre outros, 252.º e 253.º do RCTFP), por efeito da cessação do contrato em causa. Relação que constitui o Ministério numa obrigação a que corresponde um direito de crédito por parte da Autora.

«Ou seja, e como veremos melhor, sem prejuízo da relação contratual estabelecida, a montante, entre o Autora e o demandado Ministério, a vinculação da Administração aos reclamados deveres de prestar resulta, directa e suficientemente, de normas de Direito Administrativo (no caso, do Regime do Contrato de Trabalho em Funções Públicas), não correspondendo a invocada recusa de entregar as quantias peticionadas ou de prestar facto a um acto administrativo de indeferimento mas a uma mera declaração de recusa.

«Por conseguinte, tal omissão de prestar (falta de pagamento de créditos laborais aquando da cessação do referido contrato, legal e directamente exigíveis pela Autora enquanto contratada pelo Ministério da Educação) insere-se, nos termos do artigo 37.º do CPTA, no âmbito de aplicação da acção administrativa comum, enquanto o meio legal adequado ao conhecimento da pretensão em causa (cfr. aplicação conjugada dos artigos 35.° e 37.º n.º 2, v.g. alínea e) do CPTA).


«Neste sentido, estabelece o artigo 37.º do CPTA que
seguem a forma da acção administrativa comum os processos que tenham por objecto litígios cuja apreciação se inscreva no âmbito da jurisdição administrativa e que, nem neste Código nem em legislação avulsa, sejam objecto de regulação especial (nº 1), exemplificando o seu nº 2 os processos que, pelo objecto do respectivo litígio, seguem a forma de acção administrativa comum.

«Assim, seguem a forma de acção administrativa comum, entre outros, os processos que tenham por objecto litígios relativos ao
reconhecimento de situações jurídicas subjectivas directamente decorrentes de normas jurídico-administrativas ou de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo (alínea a)), bem como à condenação da Administração ao cumprimento de deveres de prestar que directamente decorram de normas jurídico-administrativas e não envolvam a emissão de um acto administrativo impugnável, ou que tenham sido constituídos por actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo, e que podem ter por objecto o pagamento de uma quantia, a entrega de uma coisa ou a prestação de um facto”. (alínea e)); (…)”».

16. A primeira observação que o acórdão convoca é a contradição constante dos primeiro e segundo parágrafos transcritos. Na verdade, depois de se afirmar que «a relação material controvertida, tal como configurada pela Autora, não configura uma relação contratual», logo se salvaguarda, na apreciação que se seguiu, que é «sem prejuízo da relação contratual estabelecida, a montante, entre o Autora e o demandado Ministério». E é esta, naturalmente, a ideia correta. Isto no confronto com a primeira. Porque igualmente se discorda da afirmação de que a relação contratual está «a montante».

17. A montante está o contrato. A relação decorre dele e enquadrará, enquanto execução desse contrato, todos os atos que venham a ser praticados no âmbito dessa relação e com ela conexos.

18. Portanto, a afirmação de que «a invocada recusa de entregar as quantias peticionadas ou de prestar facto [não corresponde] a um acto administrativo de indeferimento mas a uma mera declaração de recusa» - que serviu, e bem, para fundamentar a aplicação da ação administrativa comum – teria de ter conduzido à solução oposta àquela que o acórdão veio a adotar. Tanto mais que o próprio acórdão afirmou que «[o] regime legal inserto no n.º 2 do artigo 10.º do CPTA aplica-se às acções administrativas que tenham por objecto a acção ou omissão de uma entidade pública, na forma de acções administrativas especiais (arts. 50.º e ss., 66.º e ss. e 72.º e ss do CPTA) bem como às acções de reconhecimento de direito ou de condenação à adopção ou abstenção de comportamentos (v.g. as previstas no artigo 37.º, n.º 2, als. a), b), c), d) e e) do CPTA)» (destaque e sublinhado nossos). Não obstante, aplicou esse regime a uma ação que considerou dever assumir a forma de ação administrativa comum.

19. De resto, não se poderá afirmar que determinada relação não tem natureza contratual porque «ao invés [é] uma relação jurídica baseada em omissões imputadas à entidade pública (Ministério da Educação) do dever de prestar directamente resultante da lei». A natureza contratual de uma relação jurídica decorre do seu elemento constitutivo, não das ações ou omissões que possam ocorrer na sua execução.

20. De realçar, aliás, a declaração de voto que consta do acórdão em causa: «(…) discordo, no entanto, do entendimento segundo o qual, em situações como a dos autos, não estejamos ainda perante uma relação contratual, no âmbito da qual a Entidade Demanda, e atenta a circunstância de se tratar de uma Ação Administrativa Comum, seria o Ministério Público em representação do Estado Português».

21. E assim é. Tal como se entendeu no acórdão de 13.6.2014, também do Tribunal Central Administrativo Norte, processo n.º 00748/12.7BEAVR, em que o litígio emergia de um contrato de trabalho a termo resolutivo certo celebrado entre a ali autora e uma escola secundária.

22. Também aí a sentença do tribunal de primeira instância considerou que a ação tinha «por objecto omissões imputadas a entidade pública (o Réu Ministério da Educação) reputadas por ilegais por violação da lei (no caso, entre outros, dos artigos 252.º e 253.º do RCTF), mais precisamente «a omissão do dever legal de prestar directamente resultante da lei (por efeito da cessação dos contratos em causa nos autos)». Ou seja, «a relação jurídica não é puramente de responsabilidade contratual, antes se ancora, em primeira linha, no alegado incumprimento de normas legais, enquanto normas jurídico-administrativas, das quais as Autoras consideram resultar directamente a sua pretensão, delas se retirando um dever de prestar imputável ao Réu, e consequentemente, dos contratos em causa, por considerarem que elas são aplicáveis à cessação dos mesmos».

23. Esse entendimento não foi, naturalmente, aceite pelo tribunal de apelação, o qual, assumindo, corretamente, o pressuposto de que o «disposto no artigo 11.º, n.º2 do CPTA sobre a representação orgânica do Estado pelo Ministério Público nos processos que tenham por objeto relações contratuais e de responsabilidade, interfere com os critérios de atribuição de personalidade judiciária aos Ministérios, constantes do n.º2 do art.º 10.º do CPTA», salientou que «a jurisprudência dos tribunais superiores da jurisdição administrativa tem sido unânime, reafirma-se, no entendimento segundo o qual o regime inserto no n.º 2 do art.º 10.º do C.P.T.A. (…) vale apenas para as ações administrativas especiais de impugnação de ato, condenação à prática de ato legalmente devido e de impugnação de normas [cfr. arts. 50.º e segs., 66.º e segs. e 72.º e segs. CPTA] e, bem assim, para as ações de reconhecimento de direito ou de condenação à adoção ou abstenção de comportamentos [v.g., as previstas no art. 37.º, n.º 2, als. a), b), c), d) e e) do CPTA], não sendo aplicável às ações administrativas comuns que tenham por objeto relações contratuais ou de responsabilidade civil do Estado, situação em que apenas pode ser demandado como réu o Estado, por só este deter personalidade judiciária, uma vez que o artigo 11.º, n.º 2 do CPTA, pelos seus termos, não tem o alcance de conferir personalidade judiciária a quem não a possui no âmbito das referidas ações».

24. E ali se explicou, com muito interesse: «a situação jurídica laboral apresenta um conteúdo complexo derivado de regras legais e convencionais (fixadas pelas partes através da conclusão do contrato de trabalho), que se aplicam em conjunto, por força da celebração de um contrato de trabalho, independentemente de constarem expressamente ou não do contrato e da existência ou não de expressa remissão para as mesmas. (…) a relação administrativa estabelecida através da celebração de um contrato de trabalho entre a Administração Publica e um trabalhador, pela qual o mesmo é afeto à realização de um fim de imediata utilidade pública, é, pois, uma relação contratual. (…) o facto jurídico que serve de fundamento à ação, diversamente do afirmado na sentença recorrida, é a relação contratual que foi estabelecida entre as ora Recorridas e o MEC através dos sobreditos contratos individuais de trabalho a termo resolutivo certo que foram outorgados. Tais contratos de trabalho, não só são condição sine qua non ao exercício do direito à compensação por caducidade e pagamento dos demais créditos salariais reclamados, como lhes servem de enquadramento. (…) Nas ações baseadas em contratos, o núcleo essencial da causa de pedir é, por conseguinte, constituído pela celebração de certo contrato gerador de direitos. E sendo assim, tendo em conta o disposto no artigo 11.º, n.º2 do CPTA quem tinha personalidade judiciária para ser demandado como réu nos presentes autos de ação administrativa comum era o Estado e não o MEC, como se verifica que sucedeu».

25. É isto, precisamente, tal como igualmente veio a ser entendido nos acórdãos de 30.4.2015 e 4.10.2018 do Tribunal Central Administrativo Sul, proferidos, respetivamente, nos processos n.ºs 11243/14 e 1907/12.8BELSB (ambos, aliás, invocados pelo Recorrente).

26. No caso que nos ocupa, a relação que se estabeleceu entre o Recorrente e a Polícia de Segurança Pública (mais rigorosamente, com o Estado) assentou na celebração de um contrato de provimento. Este contrato desencadeou, portanto, uma relação contratual, que passou a ser regulada pelo complexo normativo aplicável a essa relação jurídica. A pretensão formulada pelo ora Recorrente emerge dessa relação contratual. Na medida em que na presente ação não está em causa a prática ou omissão de um ato administrativo, aplica-se o que resulta do disposto no artigo 11.º/2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, pelo que parte demandada é, necessariamente, o Estado. O que significa que assiste razão ao Recorrente. Fica, por isso, prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas no presente recurso.


IV
Em face do exposto, acordam os Juízes da Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho saneador recorrido e determinar que os autos voltem ao Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa para aí prosseguirem os seus termos.

Custas pelo Recorrido (artigo 527.º/1 e 2 do Código de Processo Civil).



Lisboa, 30 de janeiro de 2025.

Luís Borges Freitas – relator
Rui Fernando Belfo Pereira – 1.º adjunto
Maria Helena Filipe – 2.ª adjunta