Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
| Processo: | 2154/10.9BELSB |
| Secção: | CA |
| Data do Acordão: | 04/21/2021 |
| Relator: | PEDRO NUNO FIGUEIREDO |
| Descritores: | PLANO DE ORDENAMENTO DO PARQUE NATURAL DA ARRÁBIDA CONDICIONAMENTOS A VEDAÇÕES INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA |
| Sumário: | I. Os condicionamentos às vedações entre terrenos integrados no Parque Natural da Arrábida, previstos no âmbito dos usos e atividades admitidos nas edificações e infraestruturas situadas nesta área, cf. artigo 31.º, n.º 4, do Regulamento do Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 141/2005, aplicam-se tanto em em meios rurais como em meios urbanos. II. Não é de interpretar restritivamente o texto legal se fica por demonstrar que o seu sentido literal, abrangendo quer meios rurais quer meios urbanos, atraiçoa o pensamento do legislador. |
| Votação: | UNANIMIDADE |
| Aditamento: |
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| Decisão Texto Integral: | Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul I. RELATÓRIO M....., S.A., intentou ação administrativa especial contra o Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, I.P., peticionando a anulação do parecer de 20/04/2010 da entidade requerida, relativo à legalização de vedação na Quinta ...... Citada, a entidade requerida apresentou contestação, com defesa por exceção e por impugnação. Por sentença de 20/03/2013, o TAF de Almada julgou a ação improcedente. Inconformada, a autora interpôs recurso daquela decisão, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem: “1.ª Ao julgar improcedente a presente acção, decidindo que o acto impugnado não padece do vício de violação de lei, por ter interpretado e aplicado de forma correcta o art. 31.°, n.° 4, do RPOPNA ao caso sub judice, na medida em que entendeu ser não admissível no caso a interpretação restritiva do aludido preceito, a decisão recorrida fez uma errada aplicação do art. 9.° do Código Civil, e, consequentemente, uma errada aplicação do aludido artigo do RPOPNA. 2.ª Com efeito, ao sustentar que a redacção do art. 31.°, n.° 4, do RPOPNA não é de molde a suscitar grandes dúvidas acerca do âmbito de aplicação da norma, pelo que deve ser aplicado de forma estritamente literal, o Tribunal a quo desconsidera que a tarefa interpretativa é necessária em relação a todas as normas e que se impõe às entidades administrativas, não podendo estas limitar-se, na aplicação da lei, a uma mera tarefa de subsunção. 3.ª Desconsidera ainda o Tribunal a quo que, na situação sub judice, a interpretação literal da disposição mencionada põe-nos perante uma pluralidade de significados, pois a expressão "terrenos" poderá querer significar toda e qualquer parcela de terra não ocupada por edificações, quer esteja integrada em meios urbanos quer esteja integrada em meios rurais, como parece sustentar-se na decisão recorrida, ou poderá querer referir-se apenas a prédios ou parcelas delimitadas de solo inseridos em meio rural ou natural, como sustenta a a., ora recorrente. 4.ª Nesta hipótese de pluralidade de significados, a solução interpretativa definitiva alcança-se através da interpretação lógica, tendo em atenção a ratio legis, que indica qual dos sentidos gramaticais presentes na lei é aquele que está em concordância com o seu espírito e, por isso, deve prevalecer, 5.ª No caso em apreço, e para respeitar a ratio legis da imposição dos dois tipos de vedação prevista no n.° 4 do artigo 31.° do RPOPNA - que o Tribunal reconhece residir na prossecução do interesse público da conservação da natureza e da biodiversidade, permitindo a passagem das várias espécies de animais de uns terrenos para outros, evitando a fragmentação de habitats e o efeito barreira para as espécies mais sensíveis entre os dois relevados significados gramaticais da expressão "terrenos", deve escolher-se o segundo dos apontados sentidos pois é o que melhor se coaduna com a ratio legis da disposição mencionada. 6.ª Com efeito, quando os prédios ou parcelas de terreno em questão estão localizados em malhas de cariz marcadamente urbano e, inclusive, a vedação que se pretende colocar confronta com uma estrada nacional, como sucede no caso sub judice, a relevada ratio legis não tem aplicação, uma vez que a ocupação e a intervenção humanas características das zonas urbanas, sobretudo quando se verificam ao longo de séculos, como sucede no caso de ....., comprometem, por si, o desenvolvimento natural das espécies animais e vegetais, não fazendo, por isso, sentido, insistir-se na preservação da biodiversidade no meio de uma vila ou zona urbana. 7.ª A decisão recorrida desconsiderou, assim, que a interpretação do artigo 31.°, n.° 4 do RPOPNA segundo a qual o aludido preceito tem e só quis ter por objecto a vedação de terrenos localizados em áreas rurais ou naturais, não cabendo na sua previsão a vedação de edifícios ou logradouros localizados em malhas de cariz marcadamente urbano, como sucede com o Palácio e Quinta da ....., que está perfeitamente inserido na localidade de ....., reconduz-se, afinal, a uma interpretação literal (ou declarativa) restrita da norma em apreço, que «apenas esclarece qual das significações em jogo é, legislativamente, a correcta». 8.ª Ainda que assim não se entenda, e se considere que o termo "terreno" contido no preceito em apreço significa "toda e qualquer parcela de terra", o que apenas como hipótese se refere, sem conceder, o acórdão recorrido incorreu em erro ao não tomar em devida consideração que no caso em apreço se justifica e deve ter lugar a interpretação restritiva do artigo 31.°, n.° 4, do RPOPNA, e precisamente por duas das razões apontadas por Francesco Ferrara transcritas na decisão recorrida: por um lado, a aplicação estritamente literal, sem restrições, do dispositivo em análise, ultrapassa o fim para que foi ordenado (contraria a sua razão de ser); por outro lado, a aplicação literal da norma, entendida no modo geral como está redigida, contradiz outro texto de lei. 9.ª Atendendo à já mencionada ratio do n.° 4 do artigo 31.° do RPOPNA, compreende-se que seja para os prédios inseridos em meio rural ou natural - maxime em plena Serra da Arrábida, onde os valores de conservação da natureza são mais relevantes e exigem níveis mais elevados de protecção - que se afigure adequada uma vedação dos tipos previstos nessa disposição. 10.ª Para um edifício ou logradouro inserido em meio urbano afigura-se claramente desadequado uma vedação em arame e estacas ou em rede ovelheira, assim como se afigura manifestamente desadequado quando a vedação se destina a proteger um edifício classificado como monumento nacional, um dos raros exemplares em Portugal da arquitectura civil do séc. XVI. 11.ª Assim, atendendo à ratio que presidiu à previsão dos dois tipos específicos de vedação na norma transcrita, impõe-se a conclusão de que a aplicação estritamente literal, sem restrições, do dispositivo em análise, ultrapassa o fim para que foi ordenado, pelo que a correcta aplicação da lei impõe que, seguindo a lição de Ferrara, se recorra a uma interpretação restritiva do aludido preceito, reconhecendo que o mesmo tem e só quis ter por objecto a vedação de terrenos localizados em áreas rurais ou naturais, não cabendo na sua previsão a vedação de edifícios (ou logradouros) localizados em malhas de cariz marcadamente urbano. 12.ª Por outro lado, a aplicação estritamente literal do disposto no n.° 4 do artigo 31.° do RPOPNA, impondo que a vedação do Palácio e Quinta da ....., que integra património classificado como monumento nacional, se fizesse apenas com recurso a vedação em arame e estacas ou em rede ovelheira conflitua sem margem para dúvidas - pela manifesta desfiguração e até degradação que tal tipo de vedação provocaria no monumento em causa - com o disposto em diversas normas legais, constantes, designadamente da Lei n.° 107/2001, de 8 de Setembro, do Decreto-Lei n.° 140/2009, de 15 de Junho, e do Decreto-Lei n.° 309/2009, de 23 de Outubro, que integram o regime da protecção do património cultural, assim como com as regras e princípios constantes de instrumentos internacionais que são parte integrante do ordenamento jurídico português, designadamente na Carta Europeia do Património Arquitectónico, adoptada pelo Conselho da Europa em Outubro de 1975, e na Convenção para a Salvaguarda do Património Arquitectónico da Europa, assinada em Granada a 3 de Outubro de 1985 e aprovada para ratifica-ção pela Resolução da Assembleia da República n.° 5/91, de 23 de Janeiro, tudo conforme melhor se deixou explicitado nos n.°s 34 a 50 antecedentes, que aqui se dão por reproduzidos. 13.ª E a referida interpretação literal conflitua ainda com o preceituado na al. a) do próprio n.° 4 do art. 31.° do RPOPNA, onde se estabelece que as vedações admitidas «devem ser implantadas de forma a assegurar a sua integração paisagística», pois não é crível que o legislador tenha admitido ficar assegurada a integração paisagística de uma vedação em rede ovelheira ou em arame e estacas quando a mesma se destinasse a vedar um edifício ou um logradouro localizado em pleno meio urbano e, muito menos, quando a mesma se destinasse a vedar património classificado como monumento nacional. 14.ª Do exposto resulta que, no caso em apreço, se deve concluir que a aplicação literal da norma, entendida no modo geral como está redigida, contradiz diversos outros textos de lei - no caso, até, de leis hierarquicamente superiores, pois que o RPOPNA é um normativo meramente regulamentar pelo que, na senda da lição de Francesco Ferrara, também pelas razões ora aduzidas se justifica a interpretação restritiva do preceituado no n.° 4 do art. 31.° do RPOPNA. 15.ª Do exposto resulta ainda que improcedem os vários argumentos aduzidos pelo Tribunal a quo na decisão recorrida, pois que, no caso em apreço, os vários princípios interpretativos consagrados no art. 9.° do Código Civil, incluindo a própria letra da lei, justificam e impõem a interpretação do art. 31.°, n.° 4, do RPOPNA propugnada pela a., ora recorrente, deixando incólumes a certeza e a segurança jurídicas na aplicação da lei. 16.ª Como ensina João Baptista Machado, se, a partir do texto da lei, e dentro dos limites que a sua significação comporta, se conclui que a razão de ser da norma é tal que ela não pode ser aplicada, sem mais, a todas as situações a que ela era aparentemente aplicável, então «o intérprete não deve deixar-se arrastar pelo alcance aparente do texto, mas deve restringir este em termos de o tornar compatível com o pensamento legislativo». 17.ª É ainda o mesmo autor que esclarece que, na hipótese a solução mais acertada, atendendo à ratio legis, não corresponder à interpretação mais natural e directamente condizente com a fórmula verbal adoptada, como sucede no presente o caso, se verifica uma colisão entre as duas presunções consagradas no n.° 3 do art. 9.° do Código Civil (a presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e a presunção de que se exprimiu de forma correcta), que deve ser resolvida por apelo aos outros elementos interpretativos consagrados no n.° 1 do mesmo artigo. 18.ª No caso sub judice, a acrescer ao elemento racional, o próprio elemento interpretativo sistemático valida a interpretação restritiva do n.° 4 do artigo 31.° do RPOPNA, como resulta do extensamente explicitado supra. 19.ª Deste modo, o Tribunal a quo fez uma errada aplicação do preceituado no n.° 3 do cit. art. 9.° do Código Civil ao entender que o legislador regulamentar conhecia os limites do PNA, a natureza das áreas suas confinantes e a diversidade das áreas que integram os terrenos abarcados peio Parque e que, portanto, se não distinguiu a solução a dar às vedações das diferentes áreas do Parque, era necessário presumir que o tinha feito intencionaimente. 20.ª Como bem alerta Inocêncio Galvão Telles, muitas vezes se argumenta com a máxima "onde a lei não distingue, também nós não devemos distinguir", «para impor o respeito da letra dum preceito que abrange uma série de casos e que se não quer ver limitado apenas a aigum ou alguns deles. Se o princípio pudesse aplicar-se cegamente, isso significaria a negação pura e simples da interpretação restritiva. Esta, com efeito, consiste precisamente em distinguir à face do espírito onde a lei não distingue na sua letra». 21.ª Por último, note-se que é ainda totalmente infundado e inadmissível do ponto de vista jurídico, por fazer tábua rasa do carácter geral e abstracto que deve acompanhar as normas legais, o argumento do Tribunal a quo segundo o qual, em vez de se aplicar a lei através da operação interpretativa, que se pretende justa e adequada ao caso concreto, na medida do permitido pela letra da lei e pelo seu espírito, melhor seria proceder-se à criação ou alteração de tantas leis quanto os casos específicos que vão surgindo no seu âmbito de aplicação. 22.ª Assim, a interpretação adequada do n.° 4 do artigo 31.° do RPOPNA, nos termos já expostos, considere-se ela uma interpretação declarativa restrita, ou uma interpretação restritiva, obriga a que se considere que a norma em apreço só tem por objecto a vedação de terrenos localizados em áreas rurais ou naturais, não cabendo na sua previsão a vedação de edifícios ou logradouros localizados em malhas de cariz marcadamente urbano, como sucede com o Palácio e Quinta da ....., perfeitamente inseridos na localidade de ....., ou, pelo menos, não cabendo na sua previsão a vedação de património arquitectónico classificado. 23.ª Pelo que o acto impugnado se encontra ferido de vício de violação de lei, por errada aplicação do art. 9.° do Código Civil e errada interpretação do disposto no n.° 4 do artigo 31.° do RPOPNA, devendo, em consequência, ser anulado, nos termos do preceituado no artigo 135.° do Código de Procedimento Administrativo.” A entidade requerida apresentou contra-alegações, terminando as mesmas com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem: “1º A decisão sob recurso não merece qualquer censura, tendo decidido bem quer de facto quer de Direito, não enfermando de nenhum dos vícios imputados pelo recorrente e muito menos erro manifesto de julgamento. 2º A vedação encontra-se inserida numa propriedade que, nos termos do Regulamento do Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.° 141/2005, de 23 de Agosto, tem a classificação de “Área de Protecção Complementar do Tipo II”, sendo, nos termos do artigo 11º do Regulamento do POPNA, área rural. 3º A norma do n.° 4 do artigo 31.° do Regulamento do Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida não faz distinção, concluindo-se que a sua aplicação vale para toda a área do parque natural sujeita a regime de protecção, desde que as respectivas disposições específicas permitam este tipo de construção. 4° A vedação da recorrente não cumpre qualquer das alternativas previstas naquela disposição. 5º Não se pode fazer uma interpretação restritiva da norma em causa, pois que se, por mera hipótese académica, se se anuísse na alegação da recorrente, teríamos na área do Parque Natural Arrábida que apenas os terrenos (ou prédios rústicos, como defende a recorrente) localizados em solo rural estariam sujeitos às condicionantes do n.° 4 do artigo 31.°. 6º Como refere a decisão sob recurso “ (...) nada se descortina, especialmente no RPOPNA, que possa fundamentar a interpretação restritiva propugnada pela Autora. De resto, nem é crível que o legislador regulamentar não tivesse presente a diversidade de áreas que integram os terrenos do Parque Natural da Arrábida, nomeadamente a sua confinância parcial com estrada nacional (...). Da própria utilização do vocábulo «terreno» nada se retira em abono da tese da Autora, se pensarmos que está em causa a vedação de uma designada quinta (...), sendo certo que também nada de concreto nos traz a alegada inserção em meio urbano”. 7° O que numa interpretação a contrario significaria que os casos de vedações de propriedades, com ou sem edificações, sitas em área urbana ou em área rural, seriam sempre admitidos porquanto não teriam quaisquer critérios de viabilidade ou com efeito paramétrico aplicáveis. 8º A expressão “terrenos” mais não significa, do que a superfície que delimita o espaço da propriedade, seja esta de natureza rústica ou urbana, inserida em solo rural ou urbano e assim, atendendo que o pensamento legislativo contido na norma vertida no n.° 4 do artigo 31.° consagra em termos adequados a solução mais acertada tendo em conta os objectivos de conservação e preservação da área do Parque Natural da Arrábida, pugnando assim pela defesa da biodiversidade da fauna e flora ecológicas, bem como pela tutela do meio ambiente. 9° Assim, conclui-se que a incidência da norma determina que a instalação de vedações nas propriedades inseridas nas Áreas de Protecção Complementar do Parque Natural da Arrábida está sujeita a autorização prévia do recorrido, desde que cumpridos os requisitos próprios do artigo 21.° e do n.°s 4 e 5.° do artigo 31.°, ambos do respectivo Regulamento. 10° Não pode a recorrente, por força dos normativos que consagram o direito de propriedade privada, apelar a um estatuto privilegiado que lhe atribua o direito a excluir-se da aplicação das normas do Piano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida, violando-o, já que este regime para além de visar a salvaguarda e a prossecução do interesse público, não menoriza as medidas indispensáveis à protecção e valorização do património arquitectónico, acautelando o uso dos espaços envolventes, tendo em conta a zona de protecção em que se inserem. 11° Nesta medida, não enferma a douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada dos vícios que lhe são assacados, tendo o Tribunal apreciado correctamente os factos, bem assim subsumido em simultâneo de forma adequada e sagaz aos mesmos, o direito aplicável, porquanto, deverá a douta sentença proferida ser confirmada pelo Tribunal “ad quem”, nos exactos e precisos termos em que foi exarada.” * Perante as conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre aferir do erro de julgamento da sentença na interpretação e aplicação do artigo 31.º, n.º 4, do RPOPNA, por se impor a sua interpretação restritiva, considerando-se que só tem por objeto a vedação de terrenos localizados em áreas rurais ou naturais. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. * II. FUNDAMENTOS II.1 DECISÃO DE FACTO Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos: A. O Palácio e a Quinta da ....., sitos em ....., freguesia de S. Simão, concelho de Setúbal, constituem um conjunto classificado como monumento nacional, confrontam a sul com a Estrada Nacional n.º 10 e situam-se dentro da área do Parque Natural da Arrábida (acordo); B. A ora Autora, na qualidade de proprietária do Palácio e da Quinta da ....., requereu junto da Câmara Municipal de Setúbal o licenciamento de uma vedação a sul da referida Quinta, no limite do prédio misto onde aquela se encontra implantada (acordo); C. A Câmara Municipal de Setúbal notificou a ora Autora, pelo ofício n.º ....., de 27.5.2010, com n.º de saída ....., da proposta de indeferimento da sua pretensão e para se pronunciar em sede de audiência prévia (documento de fls. 142 do processo administrativo apenso); D. A proposta de indeferimento da pretensão da ora Autora teve como fundamento o facto de a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo ter emitido, nos termos do preceituado no art. 13.º-A do regime jurídico da urbanização e edificação, decisão desfavorável (documentos de fls. 25 a 27 dos autos); E. Por seu turno, a decisão da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo foi determinada pelo facto de o Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, I. P., através do Departamento de Gestão das Áreas Classificadas/Litoral de Lisboa e Oeste, ter emitido parecer negativo (documento de fls. 141 do processo administrativo apenso); F. O parecer desfavorável do Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, I. P., assentou nos seguintes fundamentos, constantes do ofício que dirigiu à Câmara Municipal de Setúbal (documento de fls. 130 e 131 do processo administrativo apenso): «Analisada a pretensão, verifica-se que a propriedade denominada Palácio e Quinta da ....., por certidão da 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal, com área total de 61315,06 m2, foi adquirida em 21-09-2000, pela empresa M....., SA, onde foi construída uma vedação, frente sul confinante com a E.N 10, faixa de protecção ao monumento, palácio e cerca, com cerca de 220 m, e a nascente em cerca de 35m, confinante com o arruamento existente. É composta de gradeamento em ferro, com cerca de 2 m de altura, suportada por pilares revestidos a tijoleira maciça, com cerca de 3 m de altura. A propriedade insere-se em Área de Protecção Complementar do Tipo II, estabelecida no Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida, (POPNA), Art.º 20° e 21º, aprovado pela RCM 141/2005, de 23 de Agosto. Este regime de protecção permite a instalação de vedação desde que cumpridos os parâmetros definidos nas respectivas disposições específicas artºs 20º e 21º, bem como a tipologia definida no nº 4 do artº 31° da referida RCM que se transcreve: «Artigo 31.º Edificações e infra-estruturas (…) 4 - As vedações de delimitação dos terrenos devem obrigatoriamente respeitar os seguintes condicionamentos: a) Devem ser implantadas de forma a assegurar a sua integração paisagística; b) Devem ser feitas com recurso ao uso de uma de duas alternativas, devidamente justificadas: i) Fiadas de arame liso com espaçamento mínimo de 0,2 m entre si e ao solo, suportadas por postes de madeira tratada com espaçamento mínimo de 4 m entre si; ii) Rede ovelheira, com malha diferenciada e com o maior espaçamento orientado para baixo, a pelo menos 0,2 m do solo, com uma altura máxima de 1,40 m, suportada por postes de madeira tratada com espaçamento mínimo de 4 m entre si». (…) Pelo exposto e face à legislação em vigor, a vedação executada não segue a tipologia acima referida pelo que se emite parecer desfavorável ao pretendido».” * II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO Conforme supra enunciado, a questão a decidir cinge-se a saber se ocorre erro de julgamento da sentença na interpretação e aplicação do artigo 31.º, n.º 4, do RPOPNA, por se impor a sua interpretação restritiva, considerando-se que só tem por objeto a vedação de terrenos localizados em áreas rurais ou naturais. Da decisão objeto de recurso consta a seguinte fundamentação: “Do teor do n.º 1 [do artigo 9.º do Código Civil] resulta não assistir razão à Entidade Demandada quando, na defesa da observância da letra da lei, invoca o princípio da legalidade. Na verdade, outros elementos de interpretação podem determinar um sentido não coincidente com o resultante da literalidade do texto, sem que tal signifique desrespeito pela solução legal. Como refere Galvão Telles, fazer, nomeadamente, interpretação restritiva «não é rebelar-se contra o legislador, é obedecer-lhe» (Introdução ao Estudo do Direito, vol. I, 1995, p. 181). De qualquer modo, e no caso concreto, entende-se que a redacção utilizada [no artigo 31.º/4 do RPOPNA] não é de molde a suscitar – numa primeira leitura – grandes dúvidas acerca do âmbito de aplicação da norma, a qual se reporta às características das vedações de delimitação dos terrenos integrados no Parque Natural da Arrábida. No entanto, e para a Autora, o dispositivo regulamentar em causa não se deve aplicar a todos aqueles terrenos mas sim e apenas aos «terrenos rústicos localizados em áreas rurais». Se assim não se entender, sempre deverá ficar de fora a «vedação de património classificado». Portanto, e para a Autora, a letra da lei foi para além do seu espírito. Ou seja, o legislador disse mais do que na verdade queria dizer. Reportou-se à generalidade das vedações de delimitação dos terrenos integrados no Parque Natural da Arrábida, quando não teria sido essa a sua real intenção. Importa, então, averiguar se deve ser efectuada tal interpretação restritiva, para o que teremos de ter presente alguns pressupostos essenciais. Desde logo, óbvias razões de certeza e segurança jurídicas exigem especial cuidado nessa eventual opção. Na verdade, é através da letra que o comando legal chega aos seus destinatários. O destinatário normal não conhece, em regra – nem se lhe pode exigir que conheça –, os demais elementos, de natureza lógica, que sustentam o juízo interpretativo (elementos sistemático, histórico e teleológico, numa tripartição tradicional). Portanto, as suas acções são determinadas em função do modo como o legislador lhe transmite a regra de conduta, o que é feito através das palavras utilizadas na redacção da norma em causa, ou seja, da sua letra. Portanto, quando nos afastamos dessa letra, ainda que justificadamente, introduzimos um factor de insegurança na ordem jurídica, tendo em conta, nomeadamente, aqueles que adequaram as suas acções àquela letra, confiando nela. Daí que «[s]ó quando razões ponderosas, baseadas noutros subsídios interpretativos, conduzem à conclusão de que não é o sentido mais natural e directo da letra que deve ser acolhido, deve o intérprete preteri-lo» (Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1993, p. 189). Por outro lado, é necessário ter igualmente em conta que não é pelo facto de se encontrarem explicações lógicas, coerentes, para a solução correspondente à interpretação restritiva que esta deve prevalecer, sem mais. Desde logo, podem existir fundamentos válidos para diversas soluções, inclusivamente de sinal oposto, não sendo, obviamente, lícito ao intérprete sobrepor a sua solução. E assim será ainda que a solução resultante da interpretação restritiva se mostre – à luz de entendimento generalizado uniforme – a mais adequada. Na verdade, tal consideração pode justificar a alteração da lei, através do órgão competente, ou mesmo apenas a sua revogação, mas não é motivo suficiente para fundamentar aquela interpretação. De resto, não tem sido difícil encontrar, na nossa ordem jurídica, soluções consideradas, de modo alargado, como desadequadas (e não por motivos supervenientes), não vindo daí uma imediata conclusão contrária, afinal, ao regime de cessação da vigência das leis que encontramos no artigo 7.º do Código Civil. Terá razão a Autora quando refere que a imposição dos dois tipos de vedação que encontramos no artigo 31.º/4 do RPOPNA assentará «na prossecução do interesse público da conservação da natureza e da biodiversidade», permitindo «a passagem das várias espécies de animais de uns terrenos para os outros, evitando a fragmentação de habitats e o efeito barreira para as espécies mais sensíveis». Mas isso não chega para logo considerarmos que tal determinação regulamentar não é aplicável a certos limites do Parque Natural da Arrábida. Na verdade, e perfilhando o entendimento autorizado de Francesco Ferrara, in Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, 1987, p. 149, «[a] interpretação restritiva aplica-se quando se reconhece que o legislador, posto se tenha exprimido em forma genérica e ampla, quis referir-se a uma classe especial de relações», tendo «lugar particularmente nos seguintes casos: 1º se o texto, entendido no modo tão geral como está redigido, viria a contradizer outro texto de lei; 2º se a lei contém em si uma contradição íntima (é o chamado argumento ad absurdum); 3º se o princípio, aplicado sem restrições, ultrapassa o fim para que foi ordenado». Ora, nada se descortina, especialmente no RPOPNA, que possa fundamentar a interpretação restritiva propugnada pela Autora. De resto, nem é crível que o legislador regulamentar não tivesse presente a diversidade de áreas que integram os terrenos do Parque Natural da Arrábida, nomeadamente a sua confinância parcial com estrada nacional, e no qual até se incluem perímetros urbanos (cfr. artigo 23.º/2 do RPOPNA). Da própria utilização do vocábulo «terreno» nada se retira em abono da tese da Autora, se pensarmos que está em causa a vedação de uma designada quinta (a Quinta da .....), sendo certo que também nada de concreto nos traz a alegada inserção em meio urbano. De resto, a Autora, na defesa da sua posição, constrói essa inserção em função do edifício, quando se sabe que o que está em causa é a delimitação do terreno, na terminologia do RPOPNA (que utiliza a contraposição edificações/terrenos). Ora, na situação dos autos, em que temos um prédio misto, é necessário ter presente que está sempre em causa a vedação de um terreno, quer na parte relativa à parte rústica quer na parte relativa a logradouro da parte urbana (de acordo com o disposto no artigo 204.º/2 do Código Civil, o terreno que serve de logradouro ao edifício incorporado no solo não deixa de ter essa natureza pelo facto de integrar o respectivo prédio urbano). Por outro lado, é necessário fazer notar o seguinte: é reiterado o apelo da Autora ao facto de a Quinta da ..... estar «inserida em meio urbano». Trata-se de figura apelativa, para a tese da Autora, ao criar, de certa forma, a imagem de que está em causa uma vedação no meio da vila (expressão esta, sublinhe-se, que não é da Autora). Mas em rigor aquela primeira expressão nada nos dá de relevante. O Parque Natural da Arrábida tem os seus limites, os quais podem ser, nomeadamente, confinantes com áreas urbanas. A existência desses limites e a natureza das áreas confinantes não poderiam ser desconhecidas do legislador regulamentar. Se não distinguiu a solução a dar às respectivas vedações, importa presumir que o fez intencionalmente (de acordo com o artigo 9.º/3 do Código Civil, «[n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados»). Quanto ao facto de estar em causa património classificado, a questão não se coloca, obviamente, quanto à eventual insegurança que pudesse sustentar a inadequabilidade das redes regulamentarmente previstas. Nem é esse, de resto, o aspecto suscitado pela Autora. Quanto ao mais, não se vê o fundamento da afirmação da Autora segundo a qual a solução em causa – pelo menos na leitura feita no parecer impugnado – é violadora «dos princípios técnicos e legais que devem reger a protecção do património histórico arquitectónico», os quais, aliás, não vêm enunciados. Por último, e relativamente ao alegado facto de o ex-Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, I. P., ter dado parecer favorável, também não se vê que daí se possam retirar os efeitos pretendidos pela Autora. Cada uma das entidades que se pronunciam no âmbito do procedimento fá-lo em função da sua área de competências, não prejudicando, obviamente, a pronúncia das demais (cfr. artigo 13.º/3 do regime jurídico da urbanização e edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro). Por todo o exposto, julga-se que o acto impugnado não padece do vício que vem assacado, o que determina a improcedência da presente acção.” Ao que contrapõe a recorrente, em síntese: - a interpretação literal da norma em causa põe-nos perante uma pluralidade de significados, podendo a expressão ‘terrenos’ significar apenas, como defende, prédios ou parcelas delimitadas de solo inseridos em meio rural ou natural; - este significado é o que melhor se coaduna com a ratio legis de prossecução do interesse público da conservação da natureza e da biodiversidade, que não tem aplicação em locais de cariz marcadamente urbano, tratando-se de interpretação literal restrita da norma; - ainda que assim não se entenda, deve ter lugar a interpretação restritiva da norma, pois a sua aplicação literal ultrapassa o fim para que foi ordenado e contradiz textos legais que protegem o património classificado como monumento nacional, Lei n.º 107/2001, Decreto-Lei n.º 140/2009, Decreto-Lei n.º 309/2009, e a Carta Europeia do Património Arquitetónico; - a interpretação literal conflitua ainda com a imposição das vedações admitidas deverem ser implantadas de forma a assegurar a sua integração paisagística, pelo que, a acrescer ao elemento racional, o elemento sistemático valida a interpretação restritiva da norma. Vejamos então. A Resolução do Conselho de Ministros n.º 141/2005 aprovou o Plano de Ordenamento do Parque Natural da Arrábida e o respetivo regulamento (RPOPNA). No capítulo IV deste Regulamento, denominado ‘usos e atividades’, o artigo 24.º enuncia os usos e atividades admitidos na área do parque natural, entre os quais se encontram as edificações e infraestruturas, alínea g), definindo-se nos artigos seguintes um conjunto de práticas de acordo com os objetivos de conservação da natureza em presença e da correta gestão dos recursos naturais. O artigo 31.º do RPOPNA, com a epígrafe ‘edificações e infraestruturas’, prevê o seguinte: “1 - No PNA as novas edificações devem enquadrar-se na paisagem natural envolvente, ficando sujeitas a critérios de qualidade ao nível do partido arquitetónico adotado, dos cromatismos e dos materiais utilizados, não podendo ultrapassar o número de dois pisos acima do solo e altura total máxima de 6,5 m. 2 - Nos terrenos cujos fundos estejam a um nível inferior ao da frente e cujo declive seja superior a 20% só pode existir um piso acima da cota da referida frente desde que não exceda 6,5 m, medidos do ponto de menor cota até à linha superior do beirado, platibanda ou guarda do terraço. 3 - Nas áreas de proteção complementar a distância de qualquer nova construção a implantar relativamente ao limite do terreno não pode ser inferior a 6 m. 4 - As vedações de delimitação dos terrenos devem obrigatoriamente respeitar os seguintes condicionamentos: a) Devem ser implantadas de forma a assegurar a sua integração paisagística; b) Devem ser feitas com recurso ao uso de uma de duas alternativas, devidamente justificadas: i) Fiadas de arame liso com espaçamento mínimo de 0,2 m entre si e ao solo, suportadas por postes de madeira tratada com espaçamento mínimo de 4 m entre si; ii) Rede ovelheira, com malha diferenciada e com o maior espaçamento orientado para baixo, a pelo menos 0,2 m do solo, com uma altura máxima de 1,40 m, suportada por postes de madeira tratada com espaçamento mínimo de 4 m entre si; 5 - Os projetos de arquitetura são obrigatoriamente acompanhados, para além do disposto na legislação aplicável, dos seguintes elementos: a) Planta de localização num extrato de carta publicado por organismo oficial, na escala de 1:10000 e ainda na escala de 1:1000 ou de 1:2000; b) Levantamento topográfico e da vegetação, à escala conveniente, abrangendo uma área envolvente da parcela adequada à avaliação da integração e os elementos ou valores naturais e construídos/singulares, servidões administrativas, restrições de utilidade pública e infraestruturas existentes, e identificação de espécies arbóreas e dos maciços de vegetação natural existentes; c) Planta de implantação, à escala conveniente, com a identificação de espécies vegetais de porte arbóreo e de maciços de vegetação significativos a manter e a eliminar durante a execução dos trabalhos e a modelação do terreno proposta; d) Projeto de arquitetura paisagista; e) Levantamento fotográfico do local e envolvente próxima; f) Plano de cores e materiais; g) Quadro síntese de áreas; h) Projeto do muro de vedação, à escala conveniente, com indicação dos materiais e do processo construtivo adotado. 6 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, quando os projetos se referirem a obras de ampliação, alteração, reconstrução ou recuperação, devem também ser acompanhados dos seguintes elementos: a) Levantamento fotográfico do edifício existente; b) Levantamento desenhado, à escala de 1:50 ou de 1:100, do edifício existente; c) Proposta de alterações com recurso às cores convencionais; d) Resultado final das alterações; e) Levantamento desenhado e fotográfico dos elementos arquitetónicos mais significativos a considerar no projeto de recuperação e reabilitação. 7 - Todos os projetos de arquitetura a desenvolver dentro do Parque Natural deverão ser obrigatoriamente da autoria de arquitetos. 8 - Todos os projetos de arquitetura paisagista deverão ser obrigatoriamente da autoria de arquitetos paisagistas.” É este o enquadramento da norma em causa. Impõe-se, com as balizas definidas pelo artigo 9.º do Código Civil, retirar da lei a melhor interpretação. Segundo o respetivo n.º 1, “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos jurídicos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”. Impondo o nº. 2 que “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. Finalmente, diz-nos o n.º 3 que “o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”, na fixação do sentido e alcance da lei. Todas as normas devem ser objeto de interpretação, ainda que o seu sentido literal aparente ser inequívoco. O citado artigo 9.º pressupõe que o labor interpretativo parta do sentido literal da norma, mas não se pode quedar por aí, posto que se afigura necessária uma “tarefa de interligação e valoração, que excede o domínio literal” (Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 2001, pág. 392). Sem perder de vista que a “letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação (…) funciona[ndo] também como limite da busca do espírito. Os seus possíveis sentidos dão-nos como que um quadro muito vasto, dentro do qual se deve procurar o entendimento definitivo da lei. Para além disto, porém, não se estaria a interpretar a lei mas a postergá-la, chegando-se a sentidos que não encontrariam na letra qualquer afinidade” (op.cit.) Como consta do acórdão do STJ de 04/05/2011 (proc. n.º 4319/07.1TTLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), “nesta tarefa de interligação e valoração que acompanha a apreensão do sentido literal, intervêm elementos lógicos, apontando a doutrina elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica (sobre este tema, cf. Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 3.ª edição, tradução, pp. 439-489; Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª reimpressão, Coimbra, 2000, pp. 175-192; Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, tradução de Manuel de Andrade, 3.ª edição, 1978, pp. 138 e seguintes). O elemento sistemático compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo do instituto em que se integra a norma interpretada, isto é, que regulam a mesma matéria (contexto da lei), assim, como a consideração de disposições legais que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins (lugares paralelos). Compreende ainda o lugar sistemático que compete à norma interpretanda no ordenamento global, assim como a sua consonância com o espírito ou unidade intrínseca de todo o ordenamento jurídico. O elemento histórico abrange todas as matérias relacionadas com a história do preceito, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios. O elemento racional ou teleológico consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar. Segundo a doutrina tradicional, o intérprete, socorrendo-se dos elementos interpretativos acabados de referir, acabará por chegar a um dos seguintes resultados ou modalidades de interpretação: interpretação declarativa, interpretação extensiva, interpretação restritiva, interpretação revogatória e interpretação enunciativa. Na interpretação declarativa, o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto direto e claramente comporta, por ser esse o que corresponde ao pensamento legislativo. A interpretação declarativa pode ser restrita ou lata, segundo toma em sentido limitado ou em sentido amplo as expressões que têm vários significados: tal distinção, como adverte Francesco Ferrara (ob. cit., pp. 147-148), não deve confundir-se com a interpretação extensiva ou restritiva, pois nada se restringe ou se estende quando entre os significados possíveis da palavra se elege aquele que parece mais adaptado à mens legis”. No caso vertente, temos que a norma em causa estabelece condicionamentos às vedações entre terrenos integrados no Parque Natural da Arrábida, no âmbito dos usos e atividades admitidos nas edificações e infraestruturas situadas nesta área. Nesta medida, bem se vê que nada na letra da lei permite amparar a conclusão da recorrente no sentido do normativo em questão não ter aplicação em locais de cariz marcadamente urbano. É que a indisputada ratio legis da norma, traduzida na prossecução do interesse público da conservação da natureza e da biodiversidade, encontra-se na génese da imposição de regras quanto aos usos e atividades admitidos na área do Parque Natural, e em concreto aqui quanto às edificações e infraestruturas ali erigidas. Não se encontrando na letra da lei qualquer afinidade com o entendimento proposto pela recorrente, há que concluir que o que a mesma propõe é postergá-la, não interpretá-la, na adequada expressão do autor supra citado. Tem, assim, todo o fundamento aqui apelar ao brocardo ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus, ao contrário do que vem sustentado, na medida em que a expressão ‘terrenos’ utilizada no normativo em questão abrange necessariamente a sua integração quer em meios urbanos quer em meios rurais. Quanto à necessidade de uma interpretação restritiva da norma, igualmente claudica a pretensão da recorrente. Na interpretação restritiva, “o intérprete chega à conclusão de que o legislador adotou um texto que atraiçoa o seu pensamento, na medida em que diz mais do que aquilo que se pretendia dizer. Também aqui a ratio legis terá uma palavra decisiva” (Baptista Machado, op.cit., pág. 186). Já se viu que a ratio legis da norma se traduz na prossecução do interesse público da conservação da natureza e da biodiversidade. E para se chegar à conclusão de que o texto legal, abrangendo quer meios rurais quer meios urbanos, atraiçoa o pensamento do legislador, teria a recorrente de o demonstrar inequivocamente. Quando, como impõe o citado artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil, a identificação da intenção do legislador terá de encontrar na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Nas palavras de Baptista Machado, “na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto, nem sempre exato, de que o legislador soube exprimir com correção o seu pensamento” (op.cit., pág. 182). Recortado o alcance da lei nos termos supra expostos, não se pode acompanhar a recorrente na argumentação exposta, pois que não demonstra, como conclui a recorrida, que a visada prossecução do interesse público menorize as medidas indispensáveis à proteção e valorização do património arquitetónico, acautelando o uso dos espaços envolventes, considerando a zona de proteção em que se inserem. Nem se vislumbra, por falta de concretização e demonstração, em que medida a erigida interpretação do normativo do RPOPNA impede que seja assegurada a integração paisagística das vedações. Em suma, será de negar provimento ao presente recurso e confirmar a decisão recorrida. * III. DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida. Custas pela recorrente. Lisboa, 21 de abril de 2021 Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, o relator consigna e atesta que as Juízas Desembargadoras Ana Cristina Lameira e Catarina Vasconcelos têm voto de conformidade com o presente acórdão. (Pedro Nuno Figueiredo) |