Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 436/23.9BELRA |
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Secção: | CT |
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Data do Acordão: | 09/26/2024 |
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Relator: | PATRÍCIA MANUEL PIRES |
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Descritores: | BENEFÍCIO FISCAL PORTADORES DE INCAPACIDADE REAVALIAÇÃO MÉDICA PRINCÍPIO DO TRATAMENTO MAIS FAVORÁVEL PRINCÍPIO DA IGUALDADE |
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Sumário: | I - O desiderato do legislador, com a implementação do regime legal previsto nos n.ºs 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei 202/96, de 23 de outubro, visou salvaguardar a situação dos portadores de incapacidade que tendo sido sujeitos à realização de uma nova junta médica, viram o grau de incapacidade que lhes foi fixado à data da avaliação ou da última reavaliação alterado em consequência de modificações, efetivamente, verificadas no seu estado clínico. II - A atribuição de um grau de incapacidade inferior ao grau anteriormente certificado, é irrelevante para a manutenção dos benefícios fiscais que vem usufruindo porquanto trata-se de um grau de incapacidade inferior que respeita à mesma patologia clínica, caso em que se mantém o resultado da avaliação anterior (mais favorável). III - Para ocorrer uma inequívoca violação do princípio da igualdade é imperioso que estejamos a falar de situações exatamente com os mesmos contornos, exigindo-se, assim, a apelidada igualdade vertical e horizontal. IV - Tal interpretação não permite a concessão ad aeternum de um benefício fiscal, na medida em que o que está em causa não é um benefício perpétuo, mas sim a manutenção de um benefício cuja avaliação anterior já o reconhecia. |
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Votação: | Unanimidade |
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Indicações Eventuais: | Subsecção Tributária Comum |
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Aditamento: | ![]() |
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Decisão Texto Integral: | ACÓRDÃO I-RELATÓRIO
O Digno Representante da Fazenda Pública, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por F… na sequência da prolação do despacho de indeferimento do recurso hierárquico apresentado contra o despacho de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra o ato de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), do ano de 2020. A Recorrente, apresentou as suas alegações de recurso nas quais formulou as conclusões que infra se reproduzem: “A) A Impugnante, foi submetida a duas Juntas Médicas, em face de doença prevista nos capítulos XVI e IV da Tabela Nacional de Incapacidade (TNI), da qual resultou a atribuição de incapacidade de 60%, e posteriormente de 32,5%, da qual 25% relativa à referida doença prevista nos capítulos XVI e IV, conforme Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, nos termos da TNI, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007. B) Encontramo-nos perante uma situação em que na avaliação anterior e na mais recente foi utilizada a mesma Tabela, pelo que há que observar, o disposto nos nºs 7 e 8 do art.4º do DL n.º 202/96, conjugado com a norma interpretativa do artigo 4.º-A, aditada ao DL n.º 202/96, de 23 de outubro, pela Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro, e a aplicação do princípio da aplicação da lei mais favorável ao avaliado. C) Entendemos que a interpretação naquela, deve ser a que respeite os direitos já adquiridos dos cidadãos/contribuintes ou dos direitos que vêm exercendo. D) Assim, os cidadãos/contribuintes não podem ser prejudicados, num ano de imposto do IRS, nos direitos que, entretanto, tenham adquirido e/ou estejam a exercer, pelo facto de uma avaliação ou reavaliação, em determinado momento desse ano, vir a certificar uma incapacidade inferior a 60%. E) Desta forma temos de concluir que: - Caso, no ano em que decorra o processo de revisão/reavaliação, resulte a emissão de um novo atestado médico de incapacidade multiusos, que certifique uma incapacidade para um grau inferior a 60%, aplica-se a norma de salvaguarda da avaliação mais favorável, tendo o sujeito passivo em IRS o direito de beneficiar durante todo esse ano civil do regime fiscal aplicável às pessoas com deficiência fiscalmente relevante; - Nos anos seguintes àquele em que se verifica o processo de revisão/reavaliação, em que resulte desse processo a atribuição de um grau de incapacidade inferior a 60%, o mesmo já não é fiscalmente relevante porquanto os contribuintes não reúnem os pressupostos previstos na lei, pelo que não lhes assiste o direito à aquisição do regime fiscal das pessoas com deficiência. F) Interpretação diferente iria conduzir a manutenção de direitos anteriormente adquiridos e que já foram exercidos, prorrogando esses direitos “ad eternum” (beneficio perpetuo) independentemente da verificação ou não dos respetivos pressupostos. G) se nas situações de reavaliação fosse sempre mantido o grau de incapacidade mais favorável ao avaliado, nos casos em que se traduz numa melhoria da sua situação clínica, o atestado médico de reavaliação seria desnecessário, já que todos teriam direito a manter a situação mais favorável. I) Aquela interpretação promove desigualdade de tratamento entre o cidadão portador de deficiência que por ser de 60% lhe permite aceder a um conjunto de benefícios, sendo posteriormente avaliada numa percentagem inferior, e o cidadão portador de deficiência ao qual, pela primeira vez é reconhecida uma incapacidade inferior a 60%, que não lhe permite usufruir do mesmo conjunto de benefícios, quando na prática têm os dois menos de 60%, e ambos sofrerão das mesmas dificuldades económicas, uma vez que se encontram no mesmo patamar de deficiência. J) Tudo razões que se reputam determinantes para a prolação dum juízo que determine a revogação da decisão aqui recorrida e, do mesmo passo, venha confirmar a valia dos atos tributários impugnados, indevidamente anulados pelo Tribunal a quo. Nestes termos e nos restantes de Direito que o distinto Tribunal entender por bem suprir, advoga a Representação da Fazenda Pública a procedência do presente recurso jurisdicional, determinando-se a revogação da sentença do Tribunal a quo e, desse modo, julgar totalmente improcedente a impugnação interposta pela recorrida, com o que V. Ex.as farão a almejada Justiça!” *** A Recorrida devidamente notificada, para o efeito, não apresentou contra-alegações. *** O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) junto deste Tribunal, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso. *** Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência desta Subsecção do Contencioso Tributário para decisão. *** II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos: “Com relevância para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos: 1) Em 27-09-2018, a Autora foi submetida a Junta Médica, em face de doença prevista nos capítulos XVI e IV da Tabela Nacional de Incapacidade (TNI), da qual resultou a atribuição de incapacidade de 60%, nos termos daquela tabela, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro – cfr. documento a fls. 17 dos autos, que se dá aqui por integralmente por reproduzido; 2) Em 21-06-2019, a Autora foi submetida a nova Junta Médica, da qual resultou a atribuição de uma incapacidade de 32,5%, da qual 25% relativa à referida doença prevista nos capítulos XVI e IV, conforme Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, nos termos da TNI, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro – cfr. documento a fls. 18 dos autos, que se dá aqui por integralmente por reproduzido; 3) No atestado de Incapacidade referido no ponto antecedente, declarou-se “que o utente é portador de deficiência, que de acordo com os documentos arquivados neste serviço lhe conferiram em 27-09-2018 pela TNI aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23/10 o grau de incapacidade de 60%” – cfr. documento a fls. 18 dos autos, que se dá aqui por integralmente por reproduzido; 4) Entre 01-01-2014 e 31-12-2019, encontrava-se averbado no sistema informático da AT o grau de incapacidade de 60% da Impugnante, para efeitos de ser considerada “Deficiência fiscalmente relevante” – cfr. documento a fls. 48 dos autos; 5) Em 01-04-2021, a Impugnante e o seu cônjuge apresentaram a declaração de IRS relativa ao ano de 2020, na qual não declararam qualquer grau de deficiência da Impugnante - cfr. documento a fls. 107 do PAT; 6) Na sequência da declaração mencionada no ponto antecedente, foi emitida a liquidação de IRS relativa ao ano de 2020, n.º 2021 4004615387, com o valor a reembolsar de 2.738,53 EUR - cfr. documento a fls. 111 do PAT; 7) Em 30-06-2022, a Impugnante e o seu cônjuge apresentaram a declaração de substituição de IRS relativa ao ano de 2020, na qual declararam, no campo previsto para o efeito um grau de deficiência da Impugnante de 60 %, a qual foi considerada não liquidável - cfr. documentos a fls. 107 do PAT; 8) Por requerimento entrado em 27-07-2022, apresentado pela Impugnante e pelo seu cônjuge, estes vieram reclamar graciosamente da liquidação de IRS do ano de 2020, mencionada no ponto 6) supra, por não ter sido tomado em consideração o grau de deficiência de 60% da Impugnante, nos termos da Lei 80/2021 de 29 de novembro - cfr. documento a fls. 3 a 6 do PAT, que se dá aqui por integralmente reproduzido; 9) Em 19-12-2022, a reclamação mencionada no ponto antecedente foi indeferida, com os fundamentos constantes da informação datada de 19-12-2022, na qual consta, designadamente, o seguinte:
«Imagem em texto no original»
«Imagem em texto no original»
«Imagem em texto no original» (…)” - cfr. Documento a fls. 50 a 56 do PAT, que se dá aqui por integralmente reproduzido; 10) Em 20-01-2023, a Impugnante apresentou recurso hierárquico da decisão mencionada no ponto antecedente - cfr. Documento a fls. 93 a 103 do PAT, que se dá aqui por integralmente reproduzido; 11) Em 06-02-2023, o requerimento mencionado no ponto antecedente foi indeferido, com os fundamentos constantes da informação de 03-02-2023, na qual constam, essencialmente os mesmos fundamentos que estiveram na base da decisão a que respeita o ponto 9 supra - - cfr. Documento a fls. 110 a 114 do PAT; *** Da decisão recorrida consta como factualidade não prova o seguinte: “Não existem factos a dar como não provados com interesse para a decisão da proferir”. *** Mais ficou consignado o seguinte: “A decisão da matéria de facto relevante para a decisão da causa efetuou--se com base no exame dos documentos e informações oficiais constantes dos autos, conforme é especificado em cada um desses pontos da matéria de facto provada.” *** III) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida contra o ato de liquidação de IRS, do ano de 2020. Cumpre, desde já, relevar que em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso. Atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto importa, assim, apreciar se a decisão recorrida padece de erro de julgamento por errónea interpretação dos pressupostos de facto e de direito, na medida em que: - Traduz uma interpretação incorreta dos nºs 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, conjugado com a norma interpretativa do artigo 4.º-A, aditada ao Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de outubro, pela Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro; - Tal interpretação consubstancia, sem fundamento legal: o uma prorrogação de direitos “ad eternum”; o uma desigualdade de tratamento. Apreciando. A Recorrente alega que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento quanto à interpretação dos nºs 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, conjugado com a norma interpretativa do artigo 4.º-A, aditada ao DL n.º 202/96, de 23 de outubro, pela Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro, e a concreta aplicação do princípio da aplicação da lei mais favorável ao avaliado. Densifica, para o efeito, que a interpretação que deve ser perfilhada é a de que caso, no ano em que decorra o processo de revisão/reavaliação, resulte a emissão de um novo atestado médico de incapacidade multiusos, que certifique uma incapacidade para um grau inferior a 60%, aplica-se a norma de salvaguarda da avaliação mais favorável, tendo o sujeito passivo em IRS o direito de beneficiar durante todo esse ano civil do regime fiscal aplicável às pessoas com deficiência fiscalmente relevante. Concretizando, no entanto, que o mesmo não pode suceder quanto aos anos seguintes, o que significa, portanto, caso nos anos seguintes àquele em que se verifica o processo de revisão/reavaliação, resultar a atribuição de um grau de incapacidade inferior a 60%, o mesmo já não é fiscalmente relevante porquanto os contribuintes não reúnem os pressupostos previstos na lei, pelo que não lhes assiste o direito à aquisição do regime fiscal das pessoas com deficiência. Adensando, neste particular, que interpretação diferente conduziria à manutenção de direitos anteriormente adquiridos e que já foram exercidos, prorrogando esses direitos “ad eternum” independentemente da verificação ou não dos respetivos pressupostos. Conclui, advogando que tal interpretação promove desigualdade de tratamento. O Tribunal a quo, por seu turno, após traçar o respetivo enquadramento normativo, e estabelecer a devida subsunção normativa nos nºs 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, conjugado com a norma interpretativa do artigo 4.º-A, aditada ao DL n.º 202/96, de 23 de outubro, pela Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro sustenta que “estando em causa benefícios fiscais que já foram reconhecidos à Autora em anos anteriores, por força da atribuição de uma incapacidade de 60% entre 01-01-2014 e 31-12-2019, conforme informação cadastral da Impugnante no sistema informático da AT, a reavaliação efetuada não pode dar origem a uma perda desses benefícios, à luz das citadas normas.” Apartando, para o efeito, a aplicação do Ofício-Circulado n.º 20244 de 29 de agosto de 2022, invocando, por um lado, a sua não vinculatividade, e por outro lado, que tal entendimento é diametralmente oposto ao entendimento que se afigura resultar do disposto nos n.ºs 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de outubro. Acrescentando, ainda, que “[f]oi precisamente por força deste tipo de interpretação veiculada pela Administração Tributária através de ofícios circulados, designadamente do Ofício-Circulado n.º 20215 de 03-12-2019, e de maneira a que não restassem quaisquer dúvidas que a interpretação correta das referidas disposições era a propugnada na citada jurisprudência, que foi apresentado à Assembleia da República o Projeto de Lei 916/XIV/2ª, através do qual se visava clarificar os processos de revisão ou reavaliação do grau incapacidade, através de uma norma interpretativa ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de outubro.” Sendo que tal projeto acabou por ser aprovado, dando origem à Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro, daí resultando “[q]ue a norma interpretativa aditada ao Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de outubro, no seu artigo 4.º-A, teve como principal finalidade, dissipar as dúvidas geradas pelo Ofício-Circulado n.º 20215 de 03-12-2019, e garantir que, quanto aos benefícios fiscais que sejam concedidos em função da atribuição de um determinado grau de incapacidade, designadamente, os previstos no artigo 87.º do CIRS, o que releva para o seu reconhecimento é o grau de incapacidade que, de acordo com declaração da junta médica, se mostre mais favorável ao avaliado.” Adensando, ainda, que “[a] intenção do legislador, consentânea com a letra da lei, foi a de que, no momento da aferição do preenchimento dos pressupostos para a manutenção ou reatribuição de um determinado direito ou benefício, seja atendido o grau de incapacidade constante da declaração da junta médica que se mostre mais favorável ao avaliado, mantendo portanto o grau de incapacidade anterior e portanto não se pode considerar que naquele caso o cidadão contribuinte tenha sequer deixado de ter um grau de incapacidade fiscalmente relevante, pois manteve o grau que lhe havia sido anteriormente reconhecido.” Concluindo, assim, mediante transposição para o recorte fático dos autos que “[c]om base no último Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, emitido em 21-06-2019, foi atribuída à Autora uma incapacidade de 32,5% (25% resultante da mesma patologia clínica), quando no anterior atestado lhe havia sido atribuída a incapacidade de 60% - cfr. pontos 1) e 2) da fundamentação de facto.” Ademais, não “[d]eixou de se declarar que a Autora “é portadora de deficiência, que de acordo com os documentos arquivados neste serviço lhe conferiram em 04-12-2014 pela TNI aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, o grau de incapacidade de 60%” – cfr. pontos 2) e 3) da fundamentação de facto. Sentenciando, in fine, que “[o] grau de incapacidade a considerar para efeitos de atribuição/manutenção de benefícios fiscais e outros direitos de que já usufruísse em períodos anteriores, é o grau de incapacidade de 60%, por, à luz do artigo 4.º, n.ºs 7 e 8 e 4.º-A, ser o grau de incapacidade fiscalmente relevante.” E a verdade é que, não se vislumbra que a decisão recorrida padeça do erro de julgamento que lhe é assacado, tendo o Tribunal a quo realizado uma interpretação conforme com a letra e a ratio legis. Senão vejamos. Comecemos por convocar o quadro jurídico aplicável. Preceitua o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de outubro, com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12 de outubro, sob a epígrafe “Avaliação de incapacidade” que: “1 - A avaliação da incapacidade é calculada de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro (…) 7 - Sem prejuízo do disposto no n.º 1, nos processos de revisão ou reavaliação, o grau de incapacidade resultante da aplicação da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais vigente à data da avaliação ou da última reavaliação é mantido sempre que, de acordo com declaração da junta médica, se mostre mais favorável ao avaliado. 8 - Para os efeitos do número anterior, considera-se que o grau de incapacidade é desfavorável ao avaliado quando a alteração do grau de incapacidade resultante de revisão ou reavaliação implique a perda de direitos que o mesmo já esteja a exercer ou de benefícios que já lhe tenham sido reconhecidos. 9 - No processo de revisão ou reavaliação, o grau de incapacidade resultante da aplicação da Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais mantém-se inalterado sempre que resulte num grau de incapacidade inferior ao grau determinado à data da avaliação ou última reavaliação.” Tendente à clarificação dos processos de revisão ou reavaliação do grau de incapacidade, foi apresentado à Assembleia da República o Projeto de Lei n.º 871/XIV/2.ªextratando-se da sua “exposição de motivos”, designadamente, o seguinte: “Nesse Ofício Circulado (n.º 20215, de 3 de dezembro de 2019) passa a ler-se que «os atestados médicos de incapacidade multiusos emitidos ao abrigo do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de outubro (alterado e republicado através do Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12 de outubro), mantêm-se válidos desde que certifiquem incapacidades definitivas, ou seja, não suscetíveis de reavaliação» e que «sempre que, das situações de revisão ou reavaliação, que determinem a atribuição de um grau de incapacidade diferente do anteriormente certificado, não resultante da alteração de critérios técnicos, o grau que resulta deste procedimento releva fiscalmente quando reúna os pressupostos previstos na lei, deficiência igual ou superior a 60%, sendo reconhecido um benefício ex novo». Ou seja, o princípio da avaliação mais favorável que sempre vigorou, passa a aplicar-se apenas quando existirem alterações técnicas na tabela de incapacidades, deixando de aplicar-se às novas avaliações e reavaliações. Esta alteração (que acontece, diga-se, por via de uma nova interpretação e sem nunca se alterar a própria legislação) está já a ter impactos graves na vida de muitas pessoas que, de um momento para o outro, contra as suas expectativas e até contra a informação prestada pelos serviços e repartições de finanças, ficaram sem benefícios e apoios de que usufruíam e que constituíam um direito adquirido. (…). O facto de em determinado momento existir uma evolução positiva da doença não quer dizer que deixe de existir doença ou que os impactos sociais e económicos da mesma tenham desaparecido. Mas, com o novo despacho do SEAF sobre o assunto, desaparecem os apoios a estas pessoas. Alguém que está a recuperar de uma doença grave e incapacitante continua a ter despesas acrescidas na área da saúde e em muitos casos mantém dificuldades para o trabalho e na reintegração no mercado de trabalho. Por tudo isso, e porque o histórico e a história da doença impactam no presente, fazia e faz sentido manter o princípio da avaliação mais favorável para que se mantenham, por mais um período de tempo, os apoios necessários a estas pessoas. O que está em causa não é um benefício perpétuo, mas sim a manutenção do benefício se a avaliação imediatamente anterior reconhecia esse direito. (…). Por isso, apresenta-se este projeto de lei, que consagra de forma inequívoca o princípio da avaliação mais favorável nos processos de revisão ou reavaliação do grau de incapacidade, de forma a que este não fique sujeito a interpretações ou reinterpretações mais ou menos criativas, mas com alto impacto negativo na vida de quem vive com doenças graves e incapacitantes. Propõe-se que, nos casos de incapacidade temporária, para além das situações de alteração do grau de incapacidade resultante a alteração de critérios da tabela de avaliação, vigore também o princípio da avaliação mais favorável quando a alteração do grau de incapacidade resulta da alteração da situação clínica. Nestes casos, sempre que a reavaliação implique a perda de direitos que o avaliado já esteja a exercer ou de benefícios que já lhe tenham sido reconhecidos ter-se-á em consideração a avaliação imediatamente anterior e sendo esta a mais favorável é ela que será mantida até próxima reavaliação” (cf. disponível para consulta em www.parlamento.pt). No mesmo sentido, foi também apresentado o Projeto de Lei n.º 916/XIV/2ª, do qual consta, na respetiva “exposição de motivos”, e além do mais, o seguinte: “A questão é simples. Se a patologia que esteve na origem da atribuição da incapacidade permanece, e continua a constar do atestado médico de incapacidade multiusos, o que releva para o reconhecimento de direitos e benefícios previstos na lei é o grau de incapacidade que, de acordo com declaração da junta médica, se mostre mais favorável ao avaliado. Significa que, o grau de incapacidade correspondente à data dessa avaliação ou da última reavaliação se mantém sempre que, de acordo com declaração da junta médica, se mostre mais favorável ao avaliado. Justifica-se este entendimento porque a patologia que conduziu à atribuição do grau de incapacidade não desapareceu. Sucede, todavia, que o Ofício Circulado n.º 20215 2019-12-03 da Autoridade Tributária e Aduaneira, que materializa a decisão emanada por Despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, introduz uma nova interpretação da lei cujo resultado prático é a eliminação do artigo 4º no Decreto – Lei nº 202/96, de 23 de outubro. Esta interpretação para além de se revelar contrária à lei, revela uma profunda insensibilidade por estas pessoas, subvertendo inclusive os objetivos que estiveram na base desta lei” (1-cfr. projeto de lei n.º 871/XIV, disponível em www.parlamento.pt.). Ora, tais projetos, conforme mencionado e bem na decisão recorrida, vieram a ser aprovados, dando origem à Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro de 2021, que procedeu ao aditamento do artigo 4.º-A, do citado Diploma Legal, o qual, sob a epígrafe “norma interpretativa”, preceituou que: “1 À avaliação de incapacidade prevista no artigo anterior aplica-se o princípio da avaliação mais favorável ao avaliado, nos termos dos n.ºs 7 e 8 do artigo anterior. 2 Sempre que do processo de revisão ou reavaliação de incapacidade resulte a atribuição de grau de incapacidade inferior ao anteriormente atribuído, e consequentemente a perda de direitos ou de benefícios já reconhecidos, mantém-se em vigor o resultado da avaliação anterior, mais favorável ao avaliado, desde que seja relativo à mesma patologia clínica que determinou a atribuição da incapacidade e que de tal não resulte prejuízo para o avaliado”. Assim, da interpretação conjugada dos normativos supra expendidos, dimana, desde logo, que o legislador, com o regime legal previsto nos n.ºs 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei 202/96, de 23 de outubro, teve como desiderato salvaguardar a situação dos portadores de incapacidade que tendo sido sujeitos à realização de uma nova junta médica, viram o grau de incapacidade que lhes foi fixado à data da avaliação ou da última reavaliação alterado em consequência de modificações, efetivamente, verificadas no seu estado clínico. Note-se que, a própria menção legal de que a manutenção do grau de incapacidade mais favorável ocorre sempre que “a perda de direitos ou de benefícios já reconhecidos” e “desde que seja relativo à mesma patologia clínica que determinou a atribuição da incapacidade” tem em vista acautelar a perda de direitos e benefícios de que o utente beneficiava com a avaliação/certificado anterior relativo à mesma patologia, não desconhecendo, portanto, o legislador essa concreta situação e pretendendo, naturalmente, salvaguardá-la. Dir-se-á, portanto, que a atribuição de um grau de incapacidade inferior ao grau anteriormente certificado, é irrelevante para a manutenção dos benefícios fiscais que vem usufruindo porquanto trata-se de um grau de incapacidade inferior que respeita à mesma patologia clínica, caso em que se mantém o resultado da avaliação anterior (mais favorável). O que significa, portanto, que o entendimento do Tribunal a quo não merece qualquer censura, tendo realizado uma correta interpretação da sua letra e ratio legis, na medida em que no momento da aferição do preenchimento dos pressupostos para a manutenção ou reatribuição de um determinado direito ou benefício, deve ser atendido o grau de incapacidade constante da declaração da junta médica que se mostre mais favorável ao avaliado, mantendo, portanto, o grau de incapacidade anterior. Destarte, impõe-se concluir que nos casos em que ambas as avaliações foram efetuadas à luz do TNI aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro, a AT deve relevar o grau de incapacidade inicialmente fixado em 60% quando em exame de reavaliação esse grau vier a ser fixado abaixo desse valor percentual, em ordem ao princípio da avaliação mais favorável, previsto nos n.ºs 7 a 9 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12 de Outubro, e no artigo 4.º-A do mesmo diploma, introduzido pela Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro. Aliás, sublinhe-se e reitere-se que este entendimento se infere do próprio teor dos trabalhos preparatórios da Lei n.º 80/2021. (2-cfr. o já citado projeto de lei n.º 871/XIV.) Ora, transpondo o quadro normativo e os considerandos de direito vertidos anteriormente para a realidade fática dos autos, conclui-se que, tendo a Requerente: - A 27 de setembro de 2018, sido submetida a Junta Médica, em face de doença prevista nos capítulos XVI e IV da TNI da qual resultou a atribuição de incapacidade de 60%, nos termos daquela tabela, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro; - A 21 de junho de 2019, foi submetida a nova Junta Médica, da qual resultou a atribuição de uma incapacidade de 32,5%, sendo 25% respeitante à referida doença prevista nos capítulos XVI e IV, conforme Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, nos termos da TNI, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro; - Por força da aludida incapacidade, usufruído de vários benefícios, mormente em sede tributária, A conclusão que se impõe retirar é a de que se encontram preenchidos os requisitos previstos na lei para que a mesma beneficie da avaliação mais favorável, em conformidade com a bem fundamentada decisão recorrida. Com efeito, não obstante o grau de desvalorização atribuído à Recorrida ter diminuído, a verdade é que a doença patológica se mantém continuando, portanto, a ser portadora de uma deficiência que é certificada pela Junta Médica. Aliás, no atestado de Incapacidade resultante da Junta Médica realizada em 21 de junho de 2019, consta expressamente a menção de “[q]ue o utente é portador de deficiência, que de acordo com os documentos arquivados neste serviço lhe conferiram em 27-09-2018 pela TNI aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23/10 o grau de incapacidade de 60%”. No mesmo sentido se doutrinou no Aresto prolatado por este Tribunal, no âmbito do processo nº 1276/23.0BELRA, de 19 de junho de 2024, tendo a, ora, Relatora integrado o Coletivo enquanto Segunda Adjunta, a cuja fundamentação jurídica, naturalmente, se adere e se transcreve nos trechos que se reputam de relevo para o caso vertente: “De facto, resultando provado que em 2014 foi reconhecida à Recorrida uma incapacidade de 66% (cf. ponto 1, da fundamentação de facto), tendo a mesmo, por força dessa incapacidade, usufruído de vários benefícios, nomeadamente em sede tributária, e que essa incapacidade foi reavaliada em 2020 em 25%, tendo origem na mesma patologia e constando do atestado médico de incapacidade multiuso, no campo referente ao n.º 7 do artigo 4.º do Decreto-lei n.º 202/96, com a redação do Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12 de outubro, que “é portador de deficiência que de acordo com os documentos arquivados neste Serviço lhe conferiram em 19-09-2014 pela TNI aprovada pelo Decreto-lei n.º 352/2007, de 23 de outubro o grau de incapacidade de 66% (sessenta e seis por cento)” (cf. ponto 2, da fundamentação de facto) não resta senão concluir que se encontram preenchidos os requisitos previstos na lei para que o mesmo beneficie da avaliação mais favorável. De relevar, outrossim, que não logra provimento a argumentação atinente à implementação de uma desigualdade de tratamento, na medida em que para ocorrer uma inequívoca violação do princípio da igualdade é imperioso que estejamos a falar de situações exatamente com os mesmos contornos, exigindo-se, assim, a apelidada igualdade vertical e horizontal. O Tribunal Constitucional tem-se pronunciado, diversas vezes, sobre o princípio da igualdade tributária, convocando-se, neste particular, o Acórdão n.º 590/2015 (4-Processo nº 590/2015, processo nº 542/2014, de 11 de novembro de 2015.) que se transcreve na parte que para os autos releva: “O princípio constitucional da igualdade tributária, como expressão específica do princípio geral estruturante da igualdade (artigo 13.º da Constituição), encontra concretização “na generalidade e na uniformidade dos impostos. Generalidade quer dizer que todos os cidadãos estão adstritos ao pagamento de impostos (…); por seu turno, uniformidade quer dizer que a repartição dos impostos pelos cidadãos obedece ao mesmo critério idêntico para todos” (TEIXEIRA RIBEIRO, Lições de Finanças Públicas, 5.ª edição, pág. 261). E tal critério, como sublinha CASALTA NABAIS, encontra-se no princípio da capacidade contributiva: “Este implica assim igual imposto para os que dispõem de igual capacidade contributiva (igualdade horizontal) e diferente imposto (em termos qualitativos ou quantitativos) para os que dispõem de diferente capacidade contributiva na proporção desta diferença (igualdade vertical)” (Direito Fiscal, 7.ª edição, 2012, pág. 155). Como pressuposto e critério de tributação, o princípio da capacidade contributiva “de um lado, constituindo a ratio ou causa da tributação afasta o legislador fiscal do arbítrio, obrigando-o a que na seleção e articulação dos factos tributários, se atenha a revelações da capacidade contributiva, ou seja, erija em objeto a matéria coletável de cada imposto um determinado pressuposto económico que seja manifestação dessa capacidade e esteja presente nas diversas hipóteses legais do respetivo imposto” (CASALTA NABAIS, ob. cit., pág. 157).” In casu, como é bom de ver, não está na mesma situação o cidadão portador de deficiência que por ser de 60% lhe permite aceder a um conjunto de benefícios, sendo posteriormente avaliada numa percentagem inferior, e o cidadão portador de deficiência ao qual, pela primeira vez é reconhecida uma incapacidade inferior a 60%, que não lhe permite usufruir desses benefícios. Ademais, importa sublinhar que situações idênticas à da Recorrida serão tratadas da mesma forma. Aliás, a diferenciação propugnada pela AT é que, em bom rigor, seria atentatória do princípio da igualdade. Destarte, em face de todo o exposto, não se vislumbra, de todo, qualquer violação do aludido princípio, sendo a interpretação, ora, perfilhada a que se coaduna com os princípios da legalidade, igualdade e justiça tributária. Por fim, e no concernente ao argumento atinente à alegada concessão ad aeternum do benefício fiscal, o mesmo, igualmente, não procede, bastando, para o efeito, ter presente o teor dos trabalhos preparatórios da lei interpretativa que originou o aditamento do artigo 4.º-A ao DL 202/96, de 23 de outubro, no qual é claramente evidenciado que “[o] que está em causa não é um benefício perpétuo, mas sim a manutenção do benefício se a avaliação imediatamente anterior reconhecia esse direito” Face a todo o exposto, há que concluir-se que não estão verificados os pressupostos de facto e de direito que fundamentaram o ato impugnado, secundando-se, assim, o entendimento propugnado pelo Tribunal a quo com a consequente manutenção da decisão visada. *** IV. DECISÃO
Face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso tributário, Subsecção Comum, deste Tribunal Central Administrativo Sul em: -NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA, a qual, em consequência, se mantém na ordem jurídica. Custas pela Recorrente. Lisboa, 26 de setembro de 2024 (Patrícia Manuel Pires) (Cristina Coelho da Silva) (Susana Barreto) |