Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:602/24.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:05/23/2024
Relator:MARCELO DA SILVA MENDONÇA
Descritores:IPDLG;
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO RELATIVA À MATÉRIA DE FACTO - ÓNUS A CARGO DO RECORRENTE - ART.º 640.º DO CPC – REJEIÇÃO;
INDISPENSABILIDADE;
SUBSIDIARIEDADE
Sumário:I - O recurso ao processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, ainda que intentado por cidadãos estrangeiros que tenham despoletado o procedimento administrativo com vista à emissão de autorização de residência em território nacional para actividade de investimento, depende da verificação, ante os factos concretos, do pressuposto da indispensabilidade desse meio processual, isto é, da sua necessidade para a emissão urgente de uma decisão de mérito imprescindível à protecção de um direito, liberdade e garantia, tendo em conta o estatuído pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
II - Tendo presente o pressuposto da indispensabilidade, impõe-se que do caso concreto transpareça uma evidente situação de urgência que não possa ou não seja suficientemente acautelada, em tempo útil, pelo normal decretamento de uma providência cautelar, em processo que é igualmente de natureza urgente, eventualmente complementada pelo reforço de garantias que dimana da possibilidade do decretamento provisório da medida cautelar, no que se caracteriza pelo requisito da subsidiariedade, cuja exigência resulta da conjugação entre os artigos 109.º, n.º 1, e 110.º-A, n.º 1, do CPTA.
III - Faltando a demonstração dos pressupostos supra descritos, resulta a ausência de idoneidade do meio processual, razão pela qual não é de admitir o articulado inicial, devendo o juiz, em consequência, rejeitar liminarmente a petição inicial, atento o disposto no artigo 110.º, n.º 1, do CPTA.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: I - Relatório.

I…, V…, S…, D… e A…, cidadãos de nacionalidade russa, doravante Recorrentes, que no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TACL) deduziram intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias contra a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P. (AIMA) e contra o Ministério da Administração Interna, doravante Recorridos, com vista à intimação dos Recorridos para, em síntese, dar andamento ao procedimento administrativo de autorização de residência para actividade de investimento, que culmine na emissão dos correspondentes títulos de residência, inconformados que se mostram com a sentença do TACL, de 01/02/2024, que decidiu rejeitar liminarmente o requerimento inicial, contra a mesma vieram interpor recurso ordinário de apelação, apresentando alegações, nas quais formulam as seguintes conclusões (transposição feita a partir da peça de recurso inserta no SITAF):

1. Conforme exposto, a decisão recorrida indeferiu liminarmente a petição inicial por suposta inadequação do meio processual utilizado pelos Recorrentes.

2. A decisão recorrida não permite distinguir os fatos que foram considerados como provados e relevantes, de modo que é obscura quanto aos seus fundamentos, devendo ser declarada nula. A decisão recorrida é ainda nula pois afirma que determinados factos não foram provados, incorrendo em excesso de pronúncia, pois isto não poderia ser decidido em sede liminar.

3. A decisão merece ser reformada quanto aos pressupostos fáticos, vez que foram demonstrados vários factos que não foram considerados pela decisão recorrida, que estão efetivamente demonstrados na P.I.

4. Os direitos, liberdades e garantias estão suficientemente densificados e alegados pela P.I. aperfeiçoada e documentos anexos, de modo que a decisão recorrida merece ser reformada admitindo-se o cabimento da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias dos Autores, de modo a aplicar a jurisprudência do Tribunal Administrativo sobre o tema.

5. Como demonstrado, uma eventual tutela cautelar não resguarda os interesses, liberdades e garantias dos Recorrentes, pois estes pretendem ver a sua situação resolvida de forma definitiva e não provisória, devendo a decisão recorrida ser reformada neste ponto, admitindo-se o cabimento da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias e determinando o prosseguimento da presente ação.

6. A decisão recorrida aplica o direito de forma equivocada, pois não há qualquer visto que se adeque a situação dos Recorrentes, tendo os Recorrentes solicitado as suas autorizações de residência, estes aguardam a decisão dos seus pedidos e não soluções intermediárias, devendo a sentença ser reformada neste ponto, admitindo-se os pedidos formulados na P.I.

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, com as legais consequências, fazendo-se assim a devida reforma da sentença do tribunal a quo para que seja intimada as Entidades Requeridas, ora Recorridas a, no prazo razoável, instruir e decidir os pedidos de concessão de autorização de residência dos Recorrentes.


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Os Recorridos não contra-alegaram.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
O parecer do MP foi notificado às partes.
Sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, por se tratar de processo urgente (cf. artigo 36.º, n.º 2, do CPTA), mas com apresentação prévia do projecto de acórdão, o processo vem à conferência da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS para o competente julgamento.
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II - Delimitação do objecto do recurso.
Considerando que são as conclusões de recurso a delimitar o seu objecto, nos termos conjugados dos artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, cumpre apreciar e decidir, resumidamente, o seguinte:
a) Em primeiro lugar, no que toca à factualidade, se é de admitir a impugnação dos Recorrentes sobre a decisão relativa à matéria de facto;
b) Em segundo lugar, se ocorre a arguida nulidade da sentença por obscuridade dos fundamentos quanto aos factos provados e por “excesso de pronúncia”, alegando os Recorrentes que a sentença afirma determinados factos que não foram provados;
c) Em terceiro lugar, se a decisão recorrida, ao sindicar a matéria da idoneidade do meio processual, incorreu em erro de julgamento ao considerar que, ante os factos concretamente alegados pelos ora Recorrentes, não se verificava o pressuposto da indispensabilidade, conforme prescreve o n.º 1 do artigo 109.º do CPTA a quem queira lançar mão do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.
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III - Matéria de facto.
A decisão recorrida fixou a factualidade nos seguintes moldes:
Julgam-se provados os seguintes factos, pertinentes para a apreciação da causa:
1. Os Requerentes não residem em Portugal (facto confessado, cf. intróito do douto r.i. deduzido).
2. Em 05.03.2023, os Requerentes apresentaram junto dos Requeridos pedidos de concessão de autorização de residência para actividade de investimento em território nacional (facto confessado, cf. artigo 1.º do douto r.i. deduzido).
3. Em 27.01.2024, os Requerentes apresentaram a juízo o requerimento inicial dos presentes autos de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias (cf. comprovativo de entrega da petição junta a fls. 1-7 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
A decisão recorrida não fixou factos não provados.
O Artigo 640.º do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, prescreve o seguinte:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
O citado comando legal cria um ónus de impugnação especificada a cargo dos que pretendam recorrer da decisão relativa à matéria de facto.
No caso vertente, como acima vimos, a decisão recorrida dedicou um capítulo específico aos factos provados. Como tal, se os Recorrentes pretendiam impugnar aquela decisão sobre a matéria de facto (a única factualidade que se mostra fixada pela sentença recorrida), incumbia-lhes cumprir com a obrigação de especificação prevista nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, indicando: os concretos pontos de facto que consideravam incorrectamente julgados; os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto impugnados; e a decisão que, no seu entender, devia ter sido proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Pois bem, nada disso foi feito pelos Recorrentes no recurso “sub judice”, pelo que, tendo incumprido o ónus de especificação que sob os mesmos impendia, está votada ao insucesso qualquer impugnação sobre a decisão relativa à matéria de facto, que, com efeito, é rejeitada, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 640.º do CPC.
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IV - Fundamentação de Direito.
a) Da arguida nulidade da sentença
O n.º 1 do artigo 615.º do CPC estipula o seguinte:
1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Em primeiro lugar, tratando-se de uma decisão liminar de rejeição do articulado inicial, considera-se que a factualidade inclusa nos pontos 1. a 3. do probatório fixado na sentença recorrida é mais do que suficiente, porquanto, não versando a decisão “sub judice” sobre o mérito da causa, mas antes sobre os pressupostos de admissibilidade do meio processual, quaisquer outros factos a fixar (que os Recorrentes nem sequer especificaram nas suas conclusões de recurso) ter-se-iam por desnecessários e inúteis.
Em segundo lugar, ao contrário do que alegam os Recorrentes, a factualidade levada à decisão recorrida encontra uma correlação directa com a prova indicada para cada um dos factos, ou seja, para cada facto, o Tribunal a quo assinalou o meio probatório a partir do qual, segundo a sua convicção, extraiu a comprovação da realidade ou da existência do respectivo facto (factos admitidos por acordo das partes e provados por prova documental inserta nos autos), ilações essas que se mostram claras e entendíveis, mas que os Recorrentes, contudo, não lograram colocar em crise no âmbito das suas conclusões de recurso.
Em terceiro lugar, os Recorrentes aludem a “excesso de pronúncia”, alegando que a sentença afirma determinados factos que não foram provados, quando tal, segundo os Recorrentes, não podia ter sido decidido em sede liminar do processo.
Apreciando.
Por um lado, conjugando a aventada causa de nulidade com o demais alegado pelos Recorrentes nesta matéria, há que recentrar e julgar a presente arguição nos seguintes termos: tendo presente o vertido na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, só há nulidade da sentença recorrida se esta não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Mas já não existe uma situação de nulidade quando a sentença, depois de analisado o articulado inicial, considera inexistir justificação factual para o accionamento do meio processual, como acontece no caso vertente, em que, precisamente, foi feito um julgamento que concluiu pela falta de alegação de factos que sustentem a utilização da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.
Neste caso, nenhuma obrigação tinha o Tribunal a quo de especificar fundamentos factuais que reputou de inexistentes ou insuficientemente fundamentadores de uma determinada espécie processual, não decorrendo dessa falta de especificação factual qualquer nulidade da sentença recorrida.
Por outro lado, não é pela circunstância do julgamento do Tribunal a quo ter enveredado pela falta de alegação de factos justificativos do meio processual, que se encontra, depois, impedido de apreciar a subsequente temática sobre os próprios pressupostos legais desse mesmo meio, enunciados no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, nem dessa sindicância dimana qualquer excesso de pronúncia, posto que, se assim fosse, estaria descoberto o caminho para, à míngua de um ónus de alegação factual que aos requerentes do processo de intimação competia cumprir, impedir que os Tribunais analisassem, precisamente, a falta de idoneidade do processo de intimação.
Inexiste, por isso, a nulidade preconizada na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Portanto, se os Recorrentes não concordam com o julgamento que o Tribunal a quo fez sobre a matéria dos pressupostos do processo de intimação, previstos no artigo 109.º, n.º 1, do CPTA, isso já não é, porém, uma questão directa sobre causas de nulidade da sentença recorrida, mas de um eventual erro de julgamento de direito, que não cabe nesta parte apreciar e decidir.
Por fim, cumpre dizer que a decisão recorrida não fixou factos não provados, razão pela qual nenhuma crítica se reconhece contra a mesma neste conspecto.
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b) Do alegado erro de julgamento
Na parte que aqui nos importa perscrutar, vejamos a fundamentação de direito e o dispositivo da sentença recorrida, transcrevendo-se o seguinte excerto, por ser aquele que, de modo mais relevante, interessa à decisão do presente recurso:
(…) Significa isto, assim, que ao requerente de dada intimação caberá alegar e demonstrar, por um lado, a indispensabilidade subjacente à pretensão que vem reclamar a juízo – pretensão essa que sempre terá de se reportar à defesa de um direito, liberdade ou garantia, nos termos a que supra se aludiu – e, por outro, a subsidiariedade do presente meio processual, no sentido de que a tutela peticionada não se compadece com o recurso a qualquer outro tipo de acção de que possa lançar mão, juntamente (ou não) com o competente processo cautelar.
Neste contexto, e compulsados os autos, entende este Tribunal que não se verifica, in concretu, a referida indispensabilidade que necessariamente inere à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, atento o carácter absolutamente excepcional que este meio processual encerra, enquanto mecanismo tendente à prolação de uma decisão urgente e definitiva.
Com efeito, os Requerentes não só não arguem, em termos minimamente consubstanciados, como era seu ónus, “a existência de uma situação jurídica individualizada que caracterize um direito, liberdade e garantia”, como, bem assim, não descrevem qualquer “situação, no caso concreto, de ameaça do direito, liberdade e garantia em causa, que só possa ser evitada através do processo urgente de intimação” (lançando-se aqui mão da formulação propugnada por AROSO DE ALMEIDA e FERNANDES CADILHA, op. cit.).
Efectivamente, analisado o douto r.i. apresentado pelos Requerentes, é possível constatar que os mesmos se limitam a dar conta, de forma algo vaga e falha de concretização, de que:
(i) Foi violado o seu direito de informação procedimental, cuja reparação pode (e deve), no entanto, ter lugar através do meio processual específico e urgente previsto nos artigos 104.º e seguintes do CPTA (intimação para prestação de informações), não encontrando guarida no presente meio de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias;
(ii) São obrigados a manter o investimento por um período muito superior ao que resulta da lei, na medida em que a obrigatoriedade da sua manutenção é computada a partir da data da concessão de autorização de residência, ao que acresce a circunstância de este período não ser igualmente contabilizado para efeitos da contagem do prazo para a concessão de autorização de residência permanente, não se alvitrando, a este respeito, um qualquer direito, liberdade ou garantia que aqui possa estar em causa;
(iii) Estão impedidos de entrar em território nacional, vêem o seu direito de ir e vir cerceado e a sua legalização é uma condição sine qua non para que possam beneficiar dos demais direitos dos cidadãos comuns, como sejam a segurança, tranquilidade, liberdade de circulação e saúde, sendo que, a este respeito, não só este Tribunal não logra alcançar em que medida é que tais bens jurídicos se encontram concretamente ameaçados como, bem assim, há que ter presente que, ao não residirem em Portugal (cf. facto 1. firmado supra), o princípio da equiparação consignado no artigo 15.º, n.º 1, da Lei Fundamental não lhes é aplicável (neste sentido, vide o acordado pelo SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO, no aresto prolatado em 10.09.2020, no âmbito do processo n.º 01798/18.5BELSB); e
(iv) A conduta dos Requeridos viola o direito à boa administração inscrito no artigo 41.º, n.º 1, da CDFUE e mostra-se materialmente inconstitucional, por violação do princípio da dignidade da pessoa humana, da igualdade (na medida em que tal resulta da sua nacionalidade) e da segurança jurídica, tudo circunstâncias que este Tribunal entende não configurarem direitos, liberdades ou garantias em sentido próprio, passíveis de serem tutelados através da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias (o que resulta evidente do cotejo do supracitado artigo 109.º do CPTA com a sistematização do diploma constitucional).
Assim, não só não identifica este Tribunal qual o direito, liberdade ou garantia de que os Requerentes são titulares que aqui se encontra concretamente em causa como, bem assim, não se perscruta se, e em que medida, é que o mesmo se encontra a ser a tal ponto ameaçado que apenas o emprego do presente meio processual de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias se mostre apto a contrariar tais lesões.
Em face do exposto, resulta, assim, manifesto que a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias não se afigura, na situação sub judice, indispensável à tutela que os Requerentes aqui vêm reclamar, circunstância que impõe a rejeição liminar do r.i. apresentado, o que se julga de seguida, sem necessidade de maiores desenvolvimentos.
Não se encontrando observada a previsão do artigo 110.º-A, n.º 1, do CPTA, uma vez que não se aventa, em face do concreto pedido formulado pelos Requerentes, a possibilidade de interposição de processo cautelar com idêntico objecto (ou com vista a defender instrumentalmente essa mesma pretensão) nem, bem assim, uma qualquer urgência na obtenção de tal tutela, não se lançará mão da prerrogativa que aí é conferida ao julgador.
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Em face do que antecede, julgo inobservado o requisito da indispensabilidade que necessariamente inere à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, circunstância que consubstancia uma excepção dilatória inominada, nos termos conjugados dos artigos 109.º, n.º 1, e 110.º, n.º 1, ambos do CPTA, e, em consequência, rejeito liminarmente o requerimento inicial apresentado por IRINA BELSKAIA, VLADIMIR BELSKIY, SERGEI BELSKII, DMITRI BELSKII e ALEKSANDRA BELSKAIA
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Desde já adiantamos que o assim decidido pelo Tribunal a quo é para confirmar.
A decisão recorrida labora no domínio adjectivo prévio, que se encontra inculcado a montante da fase de sindicância do mérito da causa. Isto é, tendo o Tribunal a quo que emitir um despacho liminar, a proferir no prazo máximo de 48 horas, nos termos do artigo 110.º, n.º 1, do CPTA, é nesse preciso momento inicial que se impõe ao juiz aquilatar sobre a verificação dos pressupostos do processo de intimação, que se encontram plasmados no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
Em resultado dessa primeira análise, o juiz da causa tanto pode admitir a petição inicial, seguindo-se a citação da outra parte, como pode rejeitá-la, nesta última hipótese, se algum dos pressupostos enunciados no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA não se mostrar, em concreto, preenchido.
“In casu”, foi precisamente o que ocorreu. O Meritíssimo Juiz a quo, tendo que proferir o despacho inicial no processo de intimação que lhe calhou em distribuição, emitiu, ante as circunstâncias do caso concreto, a decisão liminar de rejeição da p.i. com base no fundamento já atrás veiculado: a falta do pressuposto da indispensabilidade.
E decidiu bem, como veremos já de seguida.
O n.º 1 do artigo 109.º do CPTA dita o seguinte: “A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar” (destaques nossos).
O processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias é de utilização excepcional, cujos requisitos encontram-se formulados no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA em termos intencionalmente restritivos, segundo o entendimento sufragado no “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, de Mário Aroso de Almeida e de Carlos Alberto Fernandes Cadilha, 5.ª Edição, 2022, Almedina, página 929, em anotação ao artigo acabado de citar.
Antecipamo-nos a dizer que, tendo presente os pressupostos vertidos no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA (indispensabilidade e subsidiariedade), não se mostra preenchido no caso em apreço nenhum deles.
Em termos sintéticos, a indispensabilidade do processo de intimação significa, de acordo com a doutrina inscrita na obra e pelos autores já atrás assinalados, que a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias não é a via normal de reação a utilizar em situações de lesão ou ameaça de lesão de direitos, liberdades e garantias. A via normal de reação é a da propositura de uma ação não urgente (…)”, “associada à dedução do pedido de decretamento de uma providência cautelar, destinada a assegurar a utilidade da sentença que, a seu tempo, vier a ser proferida no âmbito dessa ação. Só quando, no caso concreto, se verifique que a utilização das vias não urgentes de tutela não é possível ou suficiente para assegurar o exercício, em tempo útil, do direito, liberdade ou garantia é que deve entrar em cena o processo de intimação.
A intervenção da intimação está, assim, excluída nas situações em que a célere emissão de uma decisão sobre o mérito da causa, que ponha definitivamente termo ao litígio, não é indispensável para proteger o direito, liberdade ou garantia, bastando, para o efeito, a propositura de uma ação não urgente, complementada pelo decretamento de uma providência cautelar que dê uma regulação provisória ao caso.
Pelo contrário, o processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias há de ser chamado a intervir em situações que não possam ser acauteladas deste modo, porque é urgente a obtenção de uma pronúncia definitiva sobre o mérito da causa.” (cf. páginas 933 a 935 da obra citada).
Sobre a subsidiariedade, importa salientar que o processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias foi instituído como um meio subsidiário de tutela, vocacionado para intervir como uma válvula de segurança do sistema de garantias contenciosas, nas situações – e apenas nessas – em que as outras formas de processo do contencioso administrativo não se revelem aptas a assegurar a proteção efetiva de direitos, liberdades e garantias” e que “Quando se afirma que o processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias só deve intervir quando os processos não urgentes não se mostrem capazes de assegurar uma proteção adequada, esta afirmação tem, pois, em vista os processos não urgentes, devidamente complementados pelo sistema de tutela cautelar, com todas as possibilidades que ele comporta – com natural destaque, quando tal se mostre necessário, para a mais efetiva de todas, que é o decretamento provisório de providências cautelares” (cf. a obra e autores que temos vindo a citar, de páginas 935 a 937).
Doutrinam ainda Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha na obra citada, na página 932, que “A utilização da intimação não está sujeita a prazo de caducidade (…)”, “mas, a nosso ver, só se justifica se esse for o único meio que em tempo útil permita evitar a lesão do direito, pelo que está necessariamente associada a uma situação de urgência” (destaque nosso).
Compulsado o fio condutor das conclusões recursivas, que delimitam o objecto do recurso, não se vislumbra a alegação de factualidade que sirva para justificar a indispensabilidade do uso do processo de intimação, pois que, nada de urgente ou premente dali se infere no sentido de ser necessária uma tutela imediata e definitiva dos direitos esgrimidos pelos Recorrentes.
Decidiu bem a sentença recorrida ao considerar que o direito à informação procedimental não tem guarida processual pela intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, prevista no artigo 109.º do CPTA, mas sim pela intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões, conforme o disposto no artigo 104.º do CPTA.
Por outro lado, o inconformismo dos Recorrentes pela demora da Administração na decisão do competente procedimento administrativo de autorização de residência, ainda que compreensível e legítimo, não é, por princípio, debelado pelo acesso imediato ao processo urgente de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, dado que, ante a inércia decisória da Administração, o contencioso administrativo prevê outros meios aos quais os interessados podem recorrer previamente, com especial prevalência para a acção administrativa de condenação à prática de acto devido, consagrada no artigo 37.º, n.º 1, alínea b), do CPTA (meio processual não urgente), eventualmente complementada com o requerimento incidental de processo cautelar para adopção de providência cautelar antecipatória (processo urgente), que ainda pode ser reforçado com o seu decretamento provisório, nos termos do artigo 131.º do CPTA.
O acabado de referir no parágrafo precedente já transvasa para a matéria do pressuposto da subsidiariedade, é certo, mas que igualmente não se verifica no caso em apreço.
Sobre tal pressuposto, não é por demais chamar à colação jurisprudência da Secção de Contencioso Administrativo deste mesmo TCAS, que admite, inclusive, que “os limites da tutela cautelar, impostos pela provisoriedade que a estruturam, consentem a concessão da autorização de residência a título provisório, por esta não conduzir a uma situação definitiva e irreversível, isto é, por não levar ao esgotamento da respectiva acção principal.”, mais propugnando este TCAS que a emissão da autorização de residência é compatível com uma definição cautelar.” (destaques nossos), conforme o exposto no acórdão de 07/06/2023, proferido no processo sob o n.º 166/23.1BEALM, entendimento que voltou a ser reiterado pelo acórdão deste mesmo TCAS, de 13/07/2023, já precedentemente citado, e prolatado no processo sob o n.º 489/23.0BELSB, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
Prosseguindo, como bem decidiu a sentença recorrida, de igual modo, não se vê como é que da circunstância dos Recorrentes terem que manter o investimento realizado em imobiliário por mais tempo do que inicialmente esperado, pode, sem quaisquer outros factos devidamente explicados ou densificados, provir uma situação de especial urgência ou premência que importe obstar, pois que, sem ulterior alegação, nada de ofensivo se vislumbra para direitos, liberdades e garantias do prolongamento daquele investimento, designadamente, ao nível do centro da vida pessoal ou/e familiar dos Recorrentes e de eventuais perigos para tais aspectos, que não foram alegados.
De igual modo, bem julgou o Tribunal a quo ao afirmar que, no que toca à “a segurança, tranquilidade, liberdade de circulação e saúde […] não só este Tribunal não logra alcançar em que medida é que tais bens jurídicos se encontram concretamente ameaçados como, bem assim, há que ter presente que, ao não residirem em Portugal (cf. facto 1. firmado supra), o princípio da equiparação consignado no artigo 15.º, n.º 1, da Lei Fundamental não lhes é aplicável (neste sentido, vide o acordado pelo SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO, no aresto prolatado em 10.09.2020, no âmbito do processo n.º 01798/18.5BELSB)”.
Neste conspecto, cumpre efectivamente confirmar o julgamento feito pelo Tribunal a quo, pois que, não residindo os Recorrentes em Portugal, não lhes é aplicável o princípio da equiparação plasmado no artigo 15.º, n.º 1, da Lei Fundamental.
Quer isto dizer, então, que os Recorrentes não acoplaram quaisquer factos concretos e realmente demonstrativos de estarmos perante uma situação de especial urgência que seja indispensável acautelar ou impedir de modo imediato e de forma definitiva pela utilização do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.
Não é por demais relembrar que é sempre a partir do caso concreto que se perscruta a existência de fundamentos factuais que justificam a indispensabilidade do recurso ao processo de intimação. É o próprio requerente do meio processual de intimação que tem o ónus de alegar e provar os factos integradores/demonstrativos da requerida indispensabilidade do meio processual.
Acontece que, como já aflorámos, inexiste no caso vertente, por falta de alegação, qualquer situação realmente urgente ou premente que importe prevenir por intermédio do processo de intimação, ou seja, os Recorrentes não associaram ao requerimento inicial, nem agora, às conclusões recursivas, quaisquer factos suficientemente densificados que demonstrem tal urgência ou premência ou dos quais seja possível extrair um atropelo grave e irreversível aos direitos invocados.
Dito de outra maneira, não transparece dos factos derramados no requerimento inicial, nem das conclusões de recurso, qualquer lesão séria ou ameaça de lesão dos direitos invocados pelos Recorrentes que, a não ser travada pelo processo de intimação, já não será possível ou suficiente para impedir a ocorrência dessa lesão o decretamento de uma providência cautelar, ainda que provisoriamente, nos termos conjugados dos artigos 110.º-A, n.º 2, e 131.º do CPTA.
Aqui chegados, cumpre afirmar que seguimos aqui a orientação de vasta e recente jurisprudência deste TCAS proclamada a propósito da concreta pretensão material de emissão da autorização de residência, com plena aplicação no caso vertente (no que especificamente diz respeito ao aludido requisito da indispensabilidade), da qual destacamos, entre outros, o recente acórdão de 11/01/2024, tirado no processo sob o n.º 1777/23.0BELSB, consultável no SITAF, enfatizando-se a seguinte passagem: É também vasta a jurisprudência que sustenta, em casos em tudo idênticos ao aqui em apreço, que invocando-se o direito à concessão da autorização de residência, a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias é um meio processual inidóneo (cfr., neste sentido, a título de exemplo, os recentes acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 7 de junho de 2023, Processo n.º 166/23.1BEALM, de 13 de julho de 2023, Processo n.º 489/23.0BELSB, de 13 de julho de 2023, Processo n.º 1151/23.9BELSB, de 26 de julho de 2023, Processo n.º 458/23.0BELSB, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt). – (destaque nosso).
No mesmo sentido, convoca-se o acórdão deste TCAS, de 13/07/2023, emitido no processo sob o n.º 489/23.0BELSB, “in” www.dgsi.pt, em cujo sumário consta o seguinte entendimento:
I Do art. 109º n.º 1, do CPTA, resulta que a utilização da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias depende dos seguintes pressupostos:
1) - a necessidade de emissão urgente de uma decisão de mérito seja indispensável para protecção de um direito, liberdade ou garantia [indispensabilidade de uma decisão de mérito];
2) - não seja possível ou suficiente o decretamento de uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa normal [impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa, isto é, o requisito da subsidiariedade (…)
Ainda mais recente é o acórdão do STA, de 04/04/2024, tirado no processo sob o n.º 015/24.3BALSB, consultável em www.dgsi.pt, destacando-se os pontos I e II do seu sumário, como segue:
I-A adequação do meio processual da intimação judicial para proteção de direitos, liberdades e garantias, não se afere apenas em função de estar em causa um direito, liberdade ou garantia ou direito fundamental análogo, pois é necessário que esse direito se encontre ameaçado ou carente de tutela urgente de mérito.
II-Nos termos previstos no n.º 1, do artigo 109.º do CPTA, o uso deste meio processual pressupõe a necessidade de uma tutela de mérito urgente, que não possa ser satisfeita através do recurso aos meios normais, urgentes e não urgentes, isto é, processo cautelar e ação administrativa.
Tudo visto, acordamos em negar provimento ao presente recurso jurisdicional, sendo de confirmar a sentença recorrida.
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Sem custas, atenta a isenção prevista no artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do RCP.
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Em conclusão, é elaborado sumário, nos termos e para os efeitos do estipulado no artigo 663.º, n.º 7, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, nos seguintes moldes:
I - O recurso ao processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, ainda que intentado por cidadãos estrangeiros que tenham despoletado o procedimento administrativo com vista à emissão de autorização de residência em território nacional para actividade de investimento, depende da verificação, ante os factos concretos, do pressuposto da indispensabilidade desse meio processual, isto é, da sua necessidade para a emissão urgente de uma decisão de mérito imprescindível à protecção de um direito, liberdade e garantia, tendo em conta o estatuído pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
II - Tendo presente o pressuposto da indispensabilidade, impõe-se que do caso concreto transpareça uma evidente situação de urgência que não possa ou não seja suficientemente acautelada, em tempo útil, pelo normal decretamento de uma providência cautelar, em processo que é igualmente de natureza urgente, eventualmente complementada pelo reforço de garantias que dimana da possibilidade do decretamento provisório da medida cautelar, no que se caracteriza pelo requisito da subsidiariedade, cuja exigência resulta da conjugação entre os artigos 109.º, n.º 1, e 110.º-A, n.º 1, do CPTA.
III - Faltando a demonstração dos pressupostos supra descritos, resulta a ausência de idoneidade do meio processual, razão pela qual não é de admitir o articulado inicial, devendo o juiz, em consequência, rejeitar liminarmente a petição inicial, atento o disposto no artigo 110.º, n.º 1, do CPTA.
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V - Decisão.
Ante o exposto, acordam, em conferência, os Juízes-Desembargadores que compõem a Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso jurisdicional, e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Sem custas.
Registe e notifique.
Lisboa, 23 de Maio de 2024.
Marcelo Mendonça – (Relator)
Joana Costa e Nora – (1.ª Adjunta)
Ricardo Ferreira Leite – (2.º Adjunto)