Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:922/24.3BELRA
Secção:CA
Data do Acordão:01/09/2025
Relator:JOANA COSTA E NORA
Descritores:EFEITO DEVOLUTIVO DO RECURSO
PRAZO DE IMPUGNAÇÃO DO ACTO
NULIDADE DO ACTO
ALEGAÇÃO DE VÍCIOS
CONHECIMENTO OFICIOSO
Sumário:I - O n.º 4 do artigo 143.º do CPTA não é aplicável às situações em que o efeito meramente devolutivo do recurso é fixado nos termos da lei, como as previstas no n.º 2 do mesmo artigo.
II - A aferição do decurso do prazo de impugnação do acto suspendendo ou a constatação da não sujeição da impugnação do acto a prazo dependem do tipo de causas de invalidade arguidas pelo requerente contra o acto, e não da prova dos factos alegados para consubstanciar os vícios invocados.
III - Não resultando da lei que os vícios arguidos são geradores do desvalor da nulidade, os mesmos apenas se mostram aptos a determinar a anulação do acto suspendendo, em conformidade com o disposto nos artigos 161.º, n.º 1, e 163.º, n.º 1, do CPA.
IV - A alegação de vício gerador de nulidade do acto suspendendo feita após o requerimento cautelar mostra-se extemporânea, pois que é no requerimento cautelar que o requerente deve especificar os fundamentos do pedido (cfr. artigo 114.º, n.º 3, alínea g), do CPTA).
V - Resultando do n.º 3 do artigo 95.º do CPTA que são de conhecimento oficioso todos os vícios do acto administrativo, se o juiz não conhecer um vício não suscitado, ainda que de conhecimento oficioso, não deixa, por isso, de resolver as questões que as partes submeteram à sua apreciação, nos termos do n.º 2 do artigo 608.º do CPC.
VI - A circunstância de funcionários do município transmitirem ao recorrente que não seria necessário instaurar acção definitiva para que o município considerasse que as intervenções em causa estariam isentas de licenciamento, bastando a apresentação do projecto de legalização, não corresponde a uma situação de indução do interessado em erro, nos termos e para os efeitos do artigo 58.º, n.ºs 1 e 3, alínea b), do CPTA, não só porque é manifesto para qualquer cidadão normalmente diligente que a mera apresentação de um projecto de legalização não equivale à legalização – que, logicamente, pressupõe uma apreciação daquele projecto - e, muito menos, à isenção de licenciamento, mas também porque a transmissão de tal informação ao recorrente não ficou demonstrada nos autos.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, os juízes da subsecção comum da secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – RELATÓRIO

L… instaurou processo cautelar contra o MUNICÍPIO DE CALDAS DA RAINHA, pedindo a suspensão de eficácia do despacho proferido pelo Presidente da Câmara Municipal em 08.04.2024, que determinou o embargo das obras de construção, ampliação e alteração de edificação.
Pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria foi proferida sentença a julgar extinto o processo cautelar, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 123.º do CPTA, por não ter sido tempestivamente proposta a acção principal.
O requerente interpôs o presente recurso de apelação, cujas alegações contêm as seguintes conclusões:
“A) O embargo decretado pelo R. ofende de forma grave o núcleo essencial dos direitos constitucionais do A. à sua integridade moral, ao desenvolvimento da sua personalidade, à sua propriedade privada e à sua habitação, que devido a esse ato não pode ser concluída e ocupada, até por ter sido ordenado o corte de luz e água que permitiria a sua habitabilidade.
B) Para além disso, sustenta-se em factos inverídicos e inexistentes, designadamente nos elencados nos antecedentes artº 44 a 47, cujas consequências impunham que o Tribunal recorrido os sujeitasse à produção de prova antes de decidir se o ato impugnado é nulo ou anulável, assim enquadrando o prazo para a interposição da ação definitiva num ou noutro vicio.
C) Ainda assim, a análise e o enquadramento jurídico das ilegalidades alegadamente praticadas pelo R. só em sede de ação definitiva poderiam ser apreciadas, por se tratar de questões substantivas e de mérito da ação que jamais poderão ser invocadas para justificar a procedência de uma exceção de caducidade da providência.
D) A nulidade de um ato administrativo é um vicio de conhecimento oficioso e mesmo que a parte configure esse vicio como originando a mera anulabilidade, e desde que sejam alegados factos que o justifiquem, o Tribunal não fica vinculado às considerações de direito que são feitas nos articulados, podendo enquadrar as violações ou ilegalidades cometidas noutras disposições legais ordinárias ou constitucionais e decretar essa nulidade por sua iniciativa.
E) O A. alegou que o R., através de funcionários qualificados em razão da matéria, o induziu em erro em agosto de 2024, criando-lhe a expetativa séria, fundada, convicta e legitima de que resolveria as coisas sem necessidade de instauração da ação definitiva, pois bastaria a apresentação do projeto de legalização do anexo e do muro – que foi apresentado em 8/10/2024 - para que o município concedesse e aderisse à interpretação de que as intervenções na casa estavam isentas de licenciamento, o que configura a situação prevista no art. 58, nº. 3 al, b) do CPA, que obsta, só por si, à declaração de extinção deste processo por incumprimento do prazo de instauração dessa ação determinada pela sentença recorrida.
F) Como a fixação de efeito meramente devolutivo a este recurso é suscetível de causar danos consideráveis para o A., que terá até à sua decisão definitiva de suportar os custos significativos do arrendamento de uma habitação alternativa similar a esta, e que não são inferiores a 1000€ por mês, justifica-se que seja determinada a adoção de providências adequadas a evitar ou mitigar os danos em causa, nos termos do artigo 143.º, n.º 4 do CPTA.
G) A sentença recorrida violou ou interpretou incorretamente essa disposição legal e ainda os art.10 e 161, 2, al j) do CPA, 9 do Código Civil, 5, 3 e 664 do CPC, 123 nº. 1 e 2 do CPTA e 25, 26, 27, 68 e 65, nº. 1 e 2 al. c) da Constituição da República Portuguesa, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos com a necessária produção da prova arrolada.”
Notificado das alegações apresentadas, o requerido, ora recorrido, não apresentou contra-alegações.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, pugnou pela improcedência do recurso.
Sem vistos dos juízes-adjuntos, por se tratar de processo urgente (cfr. n.º 2 do artigo 36.º do CPTA), importa apreciar e decidir.


II – QUESTÕES A DECIDIR

Face às conclusões das alegações de recurso – que delimitam o respectivo objecto, nos termos do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC -, as questões que ao Tribunal cumpre solucionar são as de saber:
a) Se se impõe a adopção das providências a que se reporta o n.º 4 do artigo 143.º do CPTA;
b) Se a sentença recorrida padece de erro de julgamento de direito.


III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida fixou os seguintes factos, que considerou indiciariamente provados:
“1. O Requerente é dono e legítimo possuidor do prédio urbano sito em N…, na Rua E…, Caldas da Rainha, inscrito na matriz predial sob o artigo 2… e descrito na conservatória do Registo Predial de Caldas da Rainha sob o n.º 3… - (Cfr. caderneta predial e certidão permanente, juntas ao requerimento inicial, sob documentos n.ºs 1 e 2);
2. O Requerente adquiriu o imóvel referido no ponto anterior, através de contrato de compra e venda celebrado em 12 de janeiro de 2023 – (cfr. escritura, junta ao requerimento inicial, sob documento n.º 3);
3. Através de despacho datado de 8 de abril de 2024, o Presidente da Câmara Municipal de Caldas da Rainha ordenou o embargo do imóvel referido em 1 – (cfr. documento n.º 6, junto ao requerimento inicial);
4. Em 10 de abril de 2024 foi dado conhecimento ao requerente de que havia sido determinado o embargo do imóvel referido em 1 – (cfr. auto de embargo assinado, junto ao requerimento inicial, sob documento n.º 4 e artigo 3.º do requerimento inicial); 5. Através de mensagem de correio eletrónico, datada de 20 de maio de 2024, o Ilustre Mandatário do Requerente solicitou junto da Entidade Requerida cópia do despacho que determinou o embargo do imóvel referido em 1 – (cfr. mensagem de correio eletrónico, junta ao requerimento inicial, sob documento n.º 5);
6. A presente ação foi remetida a este Tribunal via Sitaf no dia 5 de julho de 2024 – (Cfr. comprovativo de entrega de peça, a fls. 1 do Sitaf);
7. Até à presente data, o Requerente não apresentou junto deste Tribunal ação administrativa de impugnação do ato suspendendo – (cfr. assumido pelo próprio Requerente e consulta do SITAF).”


IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

a) Da aplicação do n.º 4 do artigo 143.º do CPTA

O Tribunal recorrido admitiu o recurso e fixou-lhe o efeito meramente devolutivo, invocando o disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 143.º do CPTA.
O recorrente alega que a fixação de efeito meramente devolutivo a este recurso é susceptível de lhe causar danos consideráveis por implicar que, até à sua decisão definitiva, tenha de suportar os custos significativos do arrendamento de uma habitação alternativa similar à que está em causa, e que não são inferiores a 1000€ por mês, em violação do artigo 65.º, n.ºs 1 e 2, alínea c), da Constituição, concluindo que se justifica a adopção de providências adequadas a evitar ou mitigar os danos em causa, nos termos do artigo 143.º, n.º 4 do CPTA.
Dispõe tal norma que “Quando a atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso possa ser causadora de danos, o tribunal pode determinar a adoção de providências adequadas a evitar ou minorar esses danos e impor a prestação, pelo interessado, de garantia destinada a responder pelos mesmos.” Assim, pressuposto da sua aplicação é que estejamos perante situação em que é o Tribunal que, ao abrigo do disposto no n.º 3, atribui, a requerimento do interessado, efeito meramente devolutivo ao recurso, por reconhecer que a suspensão dos efeitos da sentença é passível de originar situações de facto consumado ou a produção de prejuízos de difícil reparação para a parte vencedora ou para os interesses por ela prosseguidos.
Ora, a decisão recorrida foi proferida no âmbito de um processo cautelar, e os recursos interpostos de decisões respeitantes a processos cautelares são meramente devolutivos – cfr. artigo 143.º, n.º 2, alínea b), do CPTA.
Não sendo o n.º 4 do artigo 143.º do CPTA aplicável às situações em que o efeito meramente devolutivo do recurso é fixado nos termos da lei, e dado que, no caso em apreço, o efeito meramente devolutivo do recurso resulta da alínea b) do n.º 2 do mesmo artigo, indefere-se o requerido, mantendo-se o efeito meramente devolutivo, nos termos desta norma legal.


b) Do erro de julgamento de direito

A sentença recorrida julgou extinto o processo cautelar, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 123.º do CPTA, por não ter sido tempestivamente proposta a acção principal, nos seguintes termos:
“Pois bem, em primeiro lugar, resulta que, a título principal, o Requerente pretende impugnar em sede de ação principal do despacho do Vice-Presidente da Câmara Municipal de Caldas da Rainha, datado de 8 de abril de 2024, através do qual foi determinado o embargo das obras levadas a cabo pelo Autor no imóvel referido no ponto 1 do probatório.
Resulta, ademais, do pedido por si formulado que sustenta a sua pretensão na anulabilidade de tal deliberação por se verificar o vício de preterição de audiência prévia, bem como o vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito e por violação do princípio da proporcionalidade.
Nesta medida, atendendo ao objeto da presente lide, delineado pela causa de pedir e pelos pedidos formulado pelo Requerente, encontramo-nos, a título principal perante uma ação administrativa dirigida à impugnação de atos administrativos, nos termos do artigo 37.º, n.º 1, alínea a) e 50.º, ambos do CPTA.
Por conseguinte, é aplicável ao caso dos autos o vertido no artigo 58.º do CPTA, nos termos do qual “salvo disposição legal em contrário, a impugnação de atos nulos não está sujeita a prazo e a de atos anuláveis tem lugar no prazo de: a) um ano, se promovida pelo Ministério Público; b) três meses, nos restantes casos”, obedecendo o regime de contagem destes prazos ao n.º 2 do mesmo preceito, o qual, por sua vez, remete para o disposto no artigo 279.º do Código Civil, em claro contraste com o regime que vigorava antes da redação que foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro que remetia, antes, para o regime processual civil de contagem de prazos.
Desta feita, atualmente o prazo de impugnação contenciosa caracteriza-se por ser um prazo substantivo ao qual se aplicam as seguintes regras: “À fixação do termo são aplicáveis, em caso de dúvida, as seguintes regras: a) Se o termo se referir ao princípio, meio ou fim do mês, entende-se como tal, respectivamente, o primeiro dia, o dia 15 e o último dia do mês; se for fixado no princípio, meio ou fim do ano, entende-se, respectivamente, o primeiro dia do ano, o dia 30 de Junho e o dia 31 de Dezembro; b) Na contagem de qualquer prazo não se inclui o dia, nem a hora, se o prazo for de horas, em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr; c) O prazo fixado em semanas, meses ou anos, a contar de certa data, termina às 24 horas do dia que corresponda, dentro da última semana, mês ou ano, a essa data; mas, se no último mês não existir dia correspondente, o prazo finda no último dia desse mês; d) É havido, respectivamente, como prazo de uma ou duas semanas o designado por oito ou quinze dias, sendo havido como prazo de um ou dois dias o designado por 24 ou 48 horas; e) O prazo que termine em domingo ou dia feriado transfere-se para o primeiro dia útil; aos domingos e dias feriados são equiparadas as férias judiciais, se o acto sujeito a prazo tiver de ser praticado em juízo.” – (Cfr. artigo 279.º do Código Civil).
Como é bom de ver, o prazo de impugnação contenciosa varia consoante se trate da impugnação de atos com fundamentos em vícios suscetíveis de gerar nulidade ou anulabilidade, pelo que a este passo cumpre apreciar o desvalor gerado pelos vícios assacados pelo Requerente ao ato impugnado, a saber o vício de preterição de audiência prévia, bem como o vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito e por violação do princípio da proporcionalidade.
Ora, em primeiro lugar, importa referir que, naturalmente, se mostra irrelevante o facto de em sede de resposta ao despacho que suscitou a extinção do presente processo cautelar, o Requerente alegar que pretende invocar na ação principal vícios que geram a nulidade do ato, porquanto a fazê-lo deveria tê-lo feito, desde logo, no requerimento inicial.
Como é sabido, os pressupostos tanto da providência cautelar, como da ação principal verificam-se com fundamento na alegação das partes plasmada nos seus articulados iniciais, não podendo agora o Requerente, na tentativa de afastar as consequências da não propositura da ação principal, referir genericamente que pretende invocar vícios suscetíveis de gerar a nulidade do ato, tentando, assim, afastar o prazo de que a mesma depende.
De todo o modo, sempre se diga que o referido pelo Requerente no requerimento a fls. 290 do Sitaf, não consubstancia causa de nulidade do ato suspendendo, traduzindo-se tais alegações na invocação do vício de violação de lei, nada sendo alegado que configure a ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, para efeitos da alínea d) do n.º 2 do artigo 161.º do CPA.
Assim, sendo com base no alegado no requerimento inicial que têm de ser apreciados os pressupostos da presente providência cautelar resulta que nenhum dos vícios assacados pelo Requerente ao ato suspendendo configura um vício suscetível de gerar a respetiva nulidade.
Por conseguinte, os presentes autos encontram-se sujeitos ao regime previsto no artigo 58.º, n.º 1, alínea b) do CPTA o que obrigaria o Requerente a propor a respetiva ação principal no prazo de três meses. Vejamos, então, se tal prazo foi observado.
Ora, sendo o Requerente destinatário do ato ora impugnado é aplicável o disposto no artigo 59.º, n.º 2 do CPTA, nos termos do qual “o prazo para a impugnação pelos destinatários a quem o ato administrativo deva ser notificado só corre a partir da data da notificação ao interessado ou ao seu mandatário, quando este tenha sido como tal constituído no procedimento, ou da data da notificação efetuada em último lugar caso ambos tenham sido notificados, ainda que o ato tenha sido objeto de publicação, mesmo que obrigatória”.
Decorre, assim, dos autos, que o Requerente teve conhecimento do auto de embargo e do teor do despacho suspendendo através do auto datado de 10 de abril de 2024 (cfr. ponto 4 do probatório), sendo que apenas após o seu mandatário ter remetido mensagem de correio eletrónico à Requerida, em 20 de maio de 2024, obteve o teor do despacho a que o auto se refere (cfr. ponto 5 do probatório).
Pois bem, ainda que se considera que o Requerente apenas foi notificado do despacho suspendendo em finais de maio de 2024, certo é que, não tendo ainda sido proposta a correspondente ação principal, e tendo já decorrido o prazo legal para o efeito, não se mostra já possível fazê-lo.
Para mais, não se vislumbra que ocorra a situação prevista no artigo 58.º, n.º 3, alínea b) do CPTA, nos termos do qual a impugnação é admitida, para além do prazo previsto na alínea b) do n.º 1 no prazo de três meses, contado da data da cessação do erro, quando se demonstre, com respeito pelo contraditório, que, no caso concreto, a tempestiva apresentação da petição não era exigível a um cidadão normalmente diligente, em virtude de a conduta da Administração ter induzido o interessado em erro.
A este propósito, refere o Requerente que a Entidade Requerida terá prometido expressamente que iria estudar uma forma célere de levantar o embargo da edificação sem necessidade de instauração de ação administrativa, expectativa que lhe foi criada em junho de 2024. Mais refere que tal Entidade referiu que se o Requerente apresentasse o projeto do anexo e do muro embargado, o embargo da edificação principal seria levantado por estar isento de licenciamento e só o das restantes construções seria mantido até aprovação final do projeto.
Ora, pese embora tal argumentação, a verdade é que não se pode olvidar que o previsto no artigo 58.º, n.º 3 do CPTA tem um caráter excecional, pelo que deve ser aplicado com rigor e parcimónia apenas em casos devidamente fundamentos nos quais seja evidente que perante as concretas condutas adotadas pela Administração não seria exigível a um cidadão normalmente diligente a apresentação tempestiva da petição inicial.
Não é o que ocorre no presente caso, contudo.
Com efeito, ainda que tenha sido referida ao Requerente a possibilidade de resolução extrajudicial da questão, certo é que tal facto por si só não tem o condão de afastar a diligência que lhe é exigível, especialmente, considerando que aquele tem mandatário constituído e que, aliás, interveio no próprio procedimento exigindo cópia do ato que ora pretende ver suspenso e, bem assim, que as alegadas expectativas terão sido criadas por dois funcionários da Câmara Municipal sem poderes e competência para determinar o levantamento do embargo (facto que não poderia ser desconhecido do seu mandatário).
Tanto assim é que, não obstante tais expectativas que alega, o Requerente não deixou de propor o presente processo cautelar com fundamento, justamente, no facto de o imóvel objeto de embargo se destinar à sua habitação, pelo que caso o Requerente tivesse sido efetivamente induzido em erro não o teria feito, convencido da bondade da solução extrajudicial avançada pelos funcionários do Município.
Para mais, compulsado o teor da sua alegação, não resulta a existência de atos concretos ou condutas que fundamentem as expectativas que o Requerente alega de não ser necessária a propositura da ação principal, pois no requerimento inicial este refere inclusivamente que será previsível que as obras apenas possam vir a ser retomadas dentro de muitos meses ou anos, considerando as exigências exigidas pela Entidade Requerida, em clara contradição com o que vem alegar para efeitos da extensão do prazo prevista no artigo 58.º, n.º 3, alínea b) do CPTA (e, note-se, em data na qual alegadamente já teria a alegada expectativa de resolução extrajudicial).
De todo o modo, acrescente-se que, sabendo o Requerente o momento em que o prazo para a propositura da ação terminaria deveria ter atuado com a diligência que lhe seria exigida a si a qualquer cidadão diligente e propor a ação principal, tal como fez com a presente providência cautelar.
Aliás, a presente providência cautelar deu entrada em juízo no dia 5 de julho de 2024, data em que como alega o Requerente, estaria convencido de que o litígio se resolveria extrajudicialmente, o que demonstra que, de facto, assim não era, bastando para tanto atentar na sua alegação.
Por conseguinte, não tendo sido proposta tempestivamente a ação principal de que dependeria o presente processo cautelar, encontra-se verificada a hipótese prevista no artigo 123.º, n.º 1, alínea a) do CPTA.
Por conseguinte, é forçoso concluir pela extinção do presente processo cautelar, o que, desde já, se declara.”
Ou seja, entendeu o Tribunal recorrido que, estando em causa a impugnação de acto administrativo, ao qual o recorrente apenas assaca vícios geradores de anulabilidade, deveria a acção principal ter sido instaurada no prazo de três meses, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 58.º do CPTA, a contar de finais de Maio de 2024, altura em que terá sido notificado do acto, sendo certo que, à data da sentença (21.10.2024), a acção ainda não havia sido proposta, tendo já decorrido tal prazo. Mais se considerou que não é aplicável ao caso a norma do artigo 58.º, n.º 3, alínea b), do CPTA, atento o seu carácter excepcional, pois que, ainda que tenha sido referida ao requerente a possibilidade de resolução extrajudicial da questão, o foi por dois funcionários da Câmara Municipal sem poderes nem competência para determinar o levantamento do embargo (facto que não poderia ser desconhecido do seu mandatário), não tendo o requerente deixado, por isso, de instaurar o presente processo cautelar, nem resultando da alegação do requerente a existência de concretos actos ou de concretas condutas que sustentem as invocadas expectativas, referindo-se o r.i. à previsibilidade de retoma das obras após muitos meses ou anos, atentas as exigências da entidade requerida. Ademais, sabendo o requerente do termo do prazo para instaurar acção de impugnação, deveria o mesmo ter actuado diligentemente, tal como fez ao instaurar o processo cautelar, altura em que já havia alegado as circunstâncias que o levam agora a sustentar a expectativa que invoca. Não tendo sido proposta tempestivamente a acção principal de que dependeria o presente processo cautelar, tem lugar a extinção do processo cautelar, nos termos do artigo 123.º, n.º 1, alínea a) do CPTA.

É contra o assim decidido que se insurge o recorrente, alegando que a sentença recorrida, ao considerar ter decorrido o prazo de impugnação do acto suspendendo sem que a acção de impugnação do mesmo tenha sido instaurada, violou o disposto no artigo 123.º, n.ºs 1 e 2, do CPTA. Considera que, assentando o embargo decretado pelo acto suspendendo em factos inverídicos e inexistentes, nos termos da alínea j) do n.º 2 do artigo 161.º do CPA, e sendo a nulidade um vício de conhecimento oficioso, deveria o Tribunal recorrido ter sujeitado tais factos a prova previamente, de modo a decidir se o acto era nulo ou anulável, questão que, do seu ponto de vista, só poderia ser apreciada no âmbito de acção principal. Aduz ainda que é aplicável o disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 58.º do CPTA, considerando que funcionários do município o induziram em erro, em Agosto de 2024, criando-lhe a expectativa séria, fundada, convicta e legítima de que não seria necessário instaurar acção definitiva para que o município considerasse que as intervenções em causa estariam isentas de licenciamento, bastando a apresentação do projecto de legalização do anexo e do muro, que foi apresentado em 08.10.2024.

Vejamos.

Como resulta do n.º 1 do artigo 112.º do CPTA, o processo cautelar caracteriza-se pela sua adequação – de modo a evitar o periculum in mora -, utilidade – a fim de prevenir a inutilidade da sentença a proferir no processo principal, por infrutuosidade ou retardamento -, instrumentalidade - na medida em que depende da existência de uma acção principal, a propor ou já proposta -, pela provisoriedade da decisão - uma vez que esta não se destina a resolver definitivamente o litígio -, e pela sumariedade - porque implica uma summaria cognitio da situação através de um processo simplificado e célere.
A instrumentalidade do processo cautelar encontra-se concretizada na norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 123.º do CPTA, nos termos da qual os processos cautelares se extinguem e, quando decretadas, as providências cautelares caducam se o requerente não fizer uso, no respectivo prazo, do meio contencioso adequado à tutela dos interesses a que o pedido de adopção de providência cautelar se destinou, e quando a tutela dos interesses a que a providência cautelar se destina seja assegurada por via contenciosa não sujeita a prazo, o requerente deve, para o efeito, usar essa via no prazo de 90 dias, contado desde o trânsito em julgado da decisão – cfr artigo 123.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do CPTA.
A impugnação de actos nulos não está sujeita a prazo e a de actos anuláveis tem lugar no prazo de um ano, se promovida pelo Ministério Público, ou três meses, nos restantes casos, sendo a impugnação admitida para além deste prazo, no prazo de três meses, contado da data da cessação do erro, quando se demonstre que, no caso concreto, a tempestiva apresentação da petição não era exigível a um cidadão normalmente diligente, em virtude de a conduta da Administração ter induzido o interessado em erro – cfr. artigo 58.º, n.ºs 1 e 3, alínea b), do CPTA.
Apenas são nulos os actos para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade, sendo anuláveis os actos praticados com ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas aplicáveis, para cuja violação se não preveja outra sanção – cfr. artigos 161.º, n.º 1, e 163.º, n.º 1, do CPA. Os actos certificativos de factos inverídicos ou inexistentes são nulos – cfr. artigo 161.º, n.º 2, alínea j), do CPA -, sendo a nulidade invocável a todo o tempo por qualquer interessado e conhecida por qualquer autoridade e declarada pelos tribunais administrativos ou pelos órgãos administrativos competentes para a anulação – cfr. artigo 162.º, n.º 2, do CPA.

O recorrente alega que, assentando o embargo decretado pelo acto suspendendo em factos inverídicos e inexistentes, nos termos da referida norma legal, e sendo a nulidade um vício de conhecimento oficioso, deveria o Tribunal recorrido ter sujeitado tais factos a prova previamente, de modo a decidir se o acto era nulo ou anulável, questão que, do seu ponto de vista, só poderia ser apreciada no âmbito de acção principal.
Mas não lhe assiste razão neste ponto.
Em primeiro lugar, a aferição do decurso do prazo de impugnação do acto suspendendo ou a constatação da não sujeição da impugnação do acto a prazo dependem do tipo de causas de invalidade arguidas pelo requerente contra o acto, e não da prova dos factos alegados para consubstanciar os vícios invocados. Ora, o recorrente não arguiu no r.i. qualquer vício gerador de nulidade do acto suspendendo, limitando-se a invocar a ilegalidade do acto que determinou o embargo das obras por (i) tais obras não exigirem o controlo prévio que fundamentou o embargo (dado não estar em causa qualquer construção, ampliação ou demolição, nem o imóvel estar inserido em área protegida), (ii) não ter sido o requerente ouvido antes da prática do acto, e (iii) o embargo se mostrar desproporcional e desadequado, e sem qualquer fundamento. Tais vícios não são geradores do desvalor da nulidade pois que tal não resulta da lei, razão pela qual apenas se mostram aptos a determinar a anulação do acto suspendendo, em conformidade com o disposto nos artigos 161.º, n.º 1, e 163.º, n.º 1, do CPA.
Em segundo lugar, e por um lado, a alegação de que o acto suspendendo assenta em factos inverídicos e inexistentes – de modo a configurar a invocação de vício gerador de nulidade do acto (nos termos da alínea j) do n.º 2 do artigo 161.º do CPA) - apenas surge posteriormente ao r.i., mostrando-se, assim, extemporânea, pois que é no requerimento cautelar que o requerente deve especificar os fundamentos do pedido (cfr. artigo 114.º, n.º 3, alínea g), do CPTA). Por outro lado, resulta do n.º 3 do artigo 95.º do CPTA que são de conhecimento oficioso todos os vícios do acto administrativo, e não apenas os geradores de anulabilidade, mas se o juiz não conhecer um vício não suscitado, ainda que de conhecimento oficioso, não deixa, por isso, de resolver as questões que as partes submeteram à sua apreciação, nos termos do n.º 2 do artigo 608.º do CPC, “(…) apenas podendo entender-se que o juiz não detetou o vício ou que o considerou como não verificado e não encontrou, por isso, motivo para exercer a apreciação oficiosa.” – neste sentido, cfr. Carlos Alberto Fernandes Cadilha e Mário Aroso de Almeida, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 4.ª edição, Almedina, 2017, p. 767. Assim, não há qualquer erro de julgamento por o Tribunal a quo não ter considerado um vício do acto que não foi arguido.

Apreciemos agora a invocada aplicabilidade do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 58.º do CPTA. Alega o recorrente que funcionários do município o induziram em erro, em Agosto de 2024, criando-lhe a expectativa séria, fundada, convicta e legítima de que não seria necessário instaurar acção definitiva para que o município considerasse que as intervenções em causa estariam isentas de licenciamento, bastando a apresentação do projecto de legalização do anexo e do muro, que foi apresentado em 08.10.2024.
Porém, a circunstância de funcionários do município transmitirem ao recorrente que não seria necessário instaurar acção definitiva para que o município considerasse que as intervenções em causa estariam isentas de licenciamento, bastando a apresentação do projecto de legalização do anexo e do muro, que foi apresentado em 08.10.2024, não corresponde a uma situação de indução do interessado em erro, nos termos e para os efeitos do artigo 58.º, n.ºs 1 e 3, alínea b), do CPTA. Desde logo porque a mera apresentação de um projecto de legalização não equivale à legalização – que, logicamente, pressupõe uma apreciação daquele projecto - e, muito menos, à isenção de licenciamento, e isso é manifesto para qualquer cidadão normalmente diligente, pelo que não é aceitável que o recorrente assente um suposto erro na crença de uma informação que não se mostra credível. Além disso, não se percebe como é que legalização do anexo e do muro interferem com o licenciamento das obras na casa. Ademais, a transmissão de tal informação ao recorrente não ficou demonstrada nos autos, como impõe a norma que o recorrente invoca.
Não estando verificados os pressupostos de aplicação da norma do artigo 58.º, n.ºs 1 e 3, alínea b), do CPTA, não há que considerar a admissão da impugnação para além do prazo de três meses, como pretende o recorrente.

Termos em que improcede o recurso.
*
Vencido, é o recorrente responsável pelo pagamento das custas, nos termos dos artigos 527.º do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA.


V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da subsecção comum da secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 09 de Janeiro de 2025

Joana Costa e Nora (Relatora)
Carlos Araújo
Marta Cavaleira