Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1208/16.2BELRA
Secção:CA
Data do Acordão:05/23/2024
Relator:LUÍS FERNANDO BORGES FREITAS
Descritores:FUNDO DE GARANTIA SALARIAL
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
REPOSIÇÃO DE DINHEIROS PÚBLICOS
Sumário:I - O pagamento ao trabalhador, no âmbito do processo de insolvência, da totalidade dos seus créditos laborais, torna sem causa o pagamento inicialmente efetuado pelo Fundo de Garantia Salarial.
II - O enriquecimento sem causa será a fonte da obrigação de restituir a quantia paga pelo Fundo de Garantia Salarial.
III - Por via de uma relação de especialidade normativa aplica-se o prazo de prescrição de cinco anos previsto no Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de julho, o qual se reporta à reposição de dinheiros públicos que devam reentrar nos cofres do Estado - latamente considerado -, independentemente da causa.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção SOCIAL
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul:


I
M… intentou, em 19.10.2016, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, ação administrativa contra o FUNDO DE GARANTIA SALARIAL, pedindo a declaração de nulidade ou a anulação do ato de 20.7.2016 do Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial através do qual determinou a restituição da quantia de € 7.914,39 que lhe havia sido paga a título de crédito emergente de contrato de trabalho com sociedade que veio a ser declarada insolvente.

Por sentença proferida em 20.1.2019 o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria julgou a ação totalmente improcedente.

Inconformada, a Autora interpôs recurso daquela sentença, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

A) A ora Recorrente acionou o Fundo de Garantia Salarial em 24 de julho de 2012;
B) O Fundo de Garantia Salarial deferiu parcialmente, em 1 novembro de 2013, o pagamento dos créditos laborais, limitado ao valor máximo assegurado, que no caso em apreço foi a quantia de € 7.914,39, que a ora Recorrente recebeu;
C) O Fundo de Garantia Salarial não se sub-rogou legalmente nos créditos da ora Recorrente, por factos que esta desconhece, tendo-se apenas sub-rogado em quatro trabalhadores/credores da Insolvente sociedade;
D) O Fundo de Garantia teve conhecimento da Sentença de Reconhecimento e Graduação de Créditos, com data de conclusão a 4 de abril de 2014 e notificada à ora Recorrida a 11 de abril de 2014;
E) Da Sentença ficaram demonstrados os créditos reconhecidos, sua graduação e qual o valor que se encontrava sub-rogado;
F) Na referida Sentença todos os credores, nomeadamente os trabalhadores, se encontram identificados individualmente, pelo nome, tipo de credor, valor dos créditos, situação dos mesmos, se há ou não sub-rogação;
G) Ficou claro e evidente que nesta data, de 11 de abril de 2014 o Fundo de Garantia Salarial tomou conhecimento da situação dos créditos laborais dos trabalhadores, nomeadamente da situação da ora Reclamante, não tendo nesta data notificado a Massa Insolvente, facto que o podia e devia ter feito até à liquidação;
H) Em 9 de maio de 2016 o Fundo de Garantia Salarial pratica um ato de revogação do praticado em novembro de 2013, que revoga o deferimento de pagamento;
I) Tal revogação é extemporânea, nos termos do disposto no n.º 4, do art.º 167.º do CPA, no sentido que a ora Recorrida teve conhecimento a 11 de Abril de 2014 e apenas praticou o ato a 9 de maio de 2016, mais de dois anos depois;
J) Caso o Tribunal a quo tivesse avaliado os pressupostos da Revogação do Ato Administrativo, o mesmo seria nulo;
K) A ora Recorrida deveria ter cumprido o seu próprio regime, utilizando o mecanismo aí previsto de sub-rogação legal e não utilizar o subterfúgio com a prática de um novo ato administrativo de revogação, com o fundamento de pagamento indevido, facto que não é verdadeiro;
L) A haver algum responsável pela devolução, o responsável seria sempre, por força da lei, a Massa Insolvente e nunca a aqui Recorrente;
M) A Sentença do Tribunal a quo dever-se-ia ter pronunciado quanto ao ato de revogação, tal como foi praticado e demonstrado pela prova documental junta pela Recorrida;


O Recorrido apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

A) A recorrente acionou o FGS em 24/07/2012, peticionando o pagamento de créditos salariais no valor de €18.184,52.
B) Foi proferida decisão de deferimento parcial, notificada à interessada, ora recorrente, em 01/11/2013, tendo-lhe sido processada e paga a quantia de €7.914,39.
C) No âmbito do processo de insolvência da respetiva Entidade Empregadora, “E… – M… Escritório Lda.”, recebeu ainda a ora Recorrente o montante de €18.416,80, ou seja, a totalidade dos créditos laborais que peticionava.
D) Assim, a mesma arrecadou um total de €26.331,19, montante superior ao dos créditos laborais cujo direito invocava.
E) O FGS apresentou sub-rogação relativamente a 4 trabalhadores da insolvente, não abrangendo a ora recorrente.
F) Alguns trabalhadores daquela mesma entidade empregadora dirigiram-se ao FGS solicitando informação no sentido de saber como deveriam proceder para repor valores recebidos em duplicado.
G) Só nessa altura tomou o FGS conhecimento da existência de eventuais pagamentos em duplicado – ou seja, em data posterior ao reconhecimento dos seus créditos, bem como da proposta de rateio apresentada em 11/09/2014 pelo Senhor Administrador da Insolvência.
H) O Tribunal a quo não deu por provado, conforme pretende a recorrente, que o FGS tivesse tomado conhecimento dos pagamentos em duplicado aquando das notificações supramencionadas, não comprovando estas, por si só, o efetivo pagamento dos créditos nelas previstos.
I) Não se aceita, por isso, que a Recorrente presuma que o FGS teve conhecimento dos pagamentos em duplicado com a notificação da sentença de reconhecimento de créditos ou com a proposta do mapa de rateio apresentada.
J) Concludentemente, não pode proceder o argumento de que se encontra ultrapassado o prazo de caducidade de um ano previsto pelo invocado artigo 167.º do CPA.
K) Há que não perder de vista que o processo judicial é distinto do procedimento administrativo pelo que, o acompanhamento do processo de insolvência não é efetuado por quem tem competência para apreciar os requerimentos destinados ao pagamento de créditos laborais.
L) Ademais, uma vez que a sub-rogação em apreço foi efetuada apenas relativamente a 4 trabalhadores, onde não se inclui a ora recorrente, o processo judicial foi apreciado apenas tomando em consideração aqueles trabalhadores relativamente aos quais foi apresentada sub-rogação.
M) Na verdade, ainda que constem do processo de insolvência outros trabalhadores, tal não significa que os mesmos tenham recorrido ao FGS ou, tendo apresentado o respetivo requerimento, a sua pretensão tenha sido deferida.
N) Ademais, sempre se dirá que o FGS apenas tomou conhecimento do pagamento de créditos laborais em duplicado à ora Recorrente, no momento em que alguns dos trabalhadores da insolvente, em circunstâncias idênticas, solicitaram informação junto do FGS com vista à reposição dos valores indevidamente recebidos.
O) Facto que a decisão ora em crise não ignorou.
P) Assim, não pode a recorrente concluir, como faz, pela caducidade do direito de revogação de ato, ao invocar que o mesmo se encontra ultrapassado nos termos do disposto no artigo 167.º do CPA.
Q) Não colhe igualmente o arrazoado da A. dado que, conforme estatui o n. º2 do artigo 60.º da Lei de Bases da Segurança Social, aprovada pela Lei n. º4/2007, de 16 de janeiro, “As prestações pagas aos beneficiários que a elas não tinham direito devem ser restituídas nos termos previstos na lei”.
R) Obrigação essa que apenas prescreve no prazo de 5 anos de acordo com o n.3 do mesmo normativo legal, nos termos do qual o recebimento de prestações indevidas no âmbito dos regimes da segurança social dá lugar à obrigação de restituir o respetivo valor;
S) Prazo que não foi, in casu, ultrapassado.
T) No mesmo sentido vai o n. º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n. º133/88, de 20 de abril, de acordo com o qual o recebimento de prestações indevidas dá sempre lugar à obrigação de restituir o respetivo valor;
U) Determinando ainda o n. º 1 do artigo 5.º do mesmo diploma, que a instituição pagadora deverá fazer cessar de imediato os pagamentos efetuados, aferir da identidade de quem os recebeu e procedeu à sua interpelação para proceder à restituição devida.
V) Ora, foi exatamente o que fez o FGS, identificando todos os trabalhadores que receberam pagamento em duplicado por parte do FGS e Massa insolvente, em especial, identificando a ora recorrente, praticando ato que fizesse cessar os pagamentos efetuados e interpelando-a para a devida restituição.
W) Ainda a propósito da obrigatoriedade da reposição de quantias recebidas indevidamente, há que remeter para o Decreto-Lei n.º 155/92 de 28 de julho, o qual estabelece as normas legais do desenvolvimento do regime de administração Financeira do Estado, em especial, o disposto nos artigos 36.º e seguintes.
X) Assim, se é verdade que, nos termos dos artigos 317.º a 326º do Regulamento do Código do Trabalho aprovado pela Lei 35/2004, de 29 de julho, aplicáveis àquela data por força do artigo 12.º, n.º 6 alínea o) da Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, o FGS ao proceder ao pagamento de créditos salariais à trabalhadora ora recorrente ficou com o direito a sub-rogar-se nos direitos de crédito e respetivas garantias, na medida dos pagamentos efetuados;
Y) Não é verdade que, ao não exercer o seu direito de sub-rogação precluda o direito de exigir a restituição dos montantes indevidamente pagos ou incorra no incumprimento de qualquer normativo legal.
Z) Nem se compreende sequer, a razão pela qual a Recorrente afirma que sempre teve a garantia de que o direito do seu crédito ficou sub-rogado no montante adiantado pelo Fundo de Garantia Salarial;
AA) É que, para que fique realmente sub-rogado nos direitos da recorrente, o FGS teria de apresentar aos autos de insolvência o respetivo requerimento de sub-rogação, nos termos do artigo 322.º do Regulamento do Código do Trabalho já supramencionado (à data em vigor) - o que não fez.
BB) Caso o tivesse feito, sempre a Recorrente, e demais credores, seriam notificados para se pronunciar.
CC) Por outro lado, a apresentação de tal Requerimento não constitui uma obrigação, mas sim um direito ou faculdade, sem que impenda sobre o FGS qualquer obrigação de comunicar aos autos de insolvência os pagamentos que efetua.
DD) Destarte, releva apenas o facto do FGS ter pago créditos laborais à ora Recorrente com base no pressuposto de que os mesmos constituíam um adiantamento dos valores que deixou de receber da sua entidade empregadora, independentemente de vir ou não a exercer o seu direito de sub-rogação;
EE) Na realidade, e conforme bem refere a recorrente, o FGS procede ao pagamento dos créditos laborais no intuito de se substituir à entidade empregadora!
FF) Ora, recebendo a trabalhadora os créditos laborais que lhe eram devidos por parte da Entidade Empregadora, a intervenção do FGS carece de fundamento legal, sendo o pagamento efetuado injustificado!
GG) Por outro lado, seria expectável que a recorrente manifestasse vontade de repor as quantias recebidas em excesso, por duplicação de pagamentos, agindo como um “bonus pater familiae”, face à situação em apreço, conforme fizeram outros trabalhadores da Insolvente.
HH) Em jeito de conclusão, verificando-se que os créditos pagos à ora Recorrente são indevidos, ao FGS não restava senão, determinar a respetiva reposição, pela via administrativa– sem que para tanto fosse necessário recorrer à via cível.
II) IA Recorrente não agiu, salvo melhor entendimento, em respeito pelo Princípio da boa fé que deve nortear a atuação dos particulares para com a Administração, enriquecendo sem causa justificativa à custa do erário público – lesando-o.
JJ) Não se vislumbrando motivo atendível para que o FGS não possa solicitar a reposição dos valores indevidamente pagos, permitindo que a Recorrente se aproprie de quantias a que não tem direito.
KK) O procedimento é, por todo o exposto, plenamente válido, por legal, devendo manter-se vigente na ordem jurídica para todos os efeitos – nada havendo a apontar a sentença recorrida no que concerne à apreciação dos requisitos legal inerentes ao ato praticado.
LL) Pelo exposto, acompanhando a douta fundamentação aduzida na decisão em crise, somos de concluir que bem andou o tribunal a quo ao decidir como decidiu, não padecendo a sentença em crise de qualquer falta de fundamentação ou contradição, devendo manter-se na integra.

*

Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o Ministério Público não emitiu parecer.
*

Com dispensa de vistos, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos Juízes Desembargadores adjuntos, vem o processo à conferência para julgamento.


II
Sabendo-se que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do apelante, as questões que se encontram submetidas à apreciação deste tribunal de apelação consistem em determinar:

a) Se existe erro de julgamento por se ter considerado não ter existido violação do disposto no artigo 167.º/4 do Código do Procedimento Administrativo;
b) Se existe erro de julgamento por se ter considerado não haver obrigação ou ónus de exercício do direito no qual o Recorrido ficou legalmente sub-rogado.

III
A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:


1) A Autora foi trabalhadora da sociedade E… – M… Escritório Lda.;
2) No dia 20 de junho de 2012 a sociedade E…– M… Escritório Lda. foi declarada insolvente;
3) No âmbito do processo melhor descrito em 2 a Autora reclamou créditos laborais no montante de €18.416,80;
4) No dia 24 de julho de 2012 a Autora requereu junto da Entidade Demandada o pedido de pagamento de créditos laborais no montante total de €18.184,52;
5) No dia 18 de outubro de 2013 e 1 de novembro de 2013 foi elaborado um ofício dirigido à Autora, pela Diretora de Segurança Social, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, abreviadamente com o seguinte teor: “Pelo presente ofício e nos termos do despacho de 17 de outubro de 2013, do Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial, fica notificado de que o requerimento apresentado por V. Ex.ª será deferido parcialmente, efetuando-se o pagamento das retenções abaixo discriminados. (…)
Valor Ilíquido Dedução TSU Retenção IRS Valor Líquido
Retribuições 4.317,35 463,09 352,52 3.501,74
Indemnização 4.412,65 0,00 4.412,65
Outras Prestações 0,00 0,00
Total 8.730,00 463,09 352,52 7.914,39
6) A Autora recebeu da Entidade Demandada a quantia de €7.914,39;
7) No dia 4 de abril de 2014 foi proferido despacho no âmbito do processo n.º 2176/12.5TBLRA-B, no âmbito do qual se declarou que o Fundo de Garantia Salarial ficaria sub-rogado nos créditos dos seguintes trabalhadores da E… – M… de Escritório, Lda.: R…, P…, J… e J… no montante de €30.639,31;
8) No dia 4 de abril de 2014 foi proferida sentença no âmbito do processo n.º 2176/12.5TBLRA-B que ordenou, designadamente, o pagamento dos créditos laborais reclamados no montante de €18.416,80 à Autora;
9) A Autora recebeu no âmbito do processo n.º 2176/12.5TBLRA-B a quantia de €18.416,80;
10) No dia 4 de maio de 2016 foi elaborada informação, pelos serviços da Entidade Demandada, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, abreviadamente com o seguinte teor: “(…) 1. O Fundo de Garantia Salarial procedeu à análise dos requerimentos apresentados pelos trabalhadores da entidade empregadora E…, Lda., e procedeu ao pagamento dos valores apurados no SIGFGS; 2. Dos valores pagos, subrogou-se apenas, no montante de 30639, relativamente a quatro trabalhadores; 3. Veio agora, a constatar-se que dos 27 trabalhadores beneficiados pelo Fundo, todos eles haviam também recebido da massa insolvente, 23 deles receberam a totalidade dos créditos reclamados e reconhecidos e 4 deles receberam o remanescente que o Fundo não pagou. 4. Encontra-se assim o Fundo de Garantia Salarial lesado por motivos que lhe são alheios, nos valores respetivos valores liquidados aos 23 trabalhadores da E…, dado que relativamente aos restantes 4, o Fundo, subrogou-se e, foi já ressarcido pela massa insolvente. 5. Alguns destes trabalhadores solicitaram informação de como proceder para repor os valores recebidos em duplicado. 6. Por forma, a regularizar a situação e refletir no histórico de cada trabalhador a situação e também no sentido de facilitar o controlo das respetivas reposições, foram os processos colocados no circuito de reapreciação; 7. Em resultado dessa reapreciação surge o presente grupo, para cujos requerimentos se propõe agora o indeferimento e, consequentemente, a revogação da anterior decisão de deferimento parcial, atento o facto de se verificar o duplo recebimento dos créditos reclamados pelos trabalhadores”;
11) No dia 9 de maio de 2016 foi aposto despacho de concordância na informação melhor descrita em 4 pelo Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial;
12) No dia 9 de maio de 2016 foi elaborado um ofício dirigido à Autora, pela Diretora de Segurança Social, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, abreviadamente com o seguinte teor: “Pelo presente ofício e nos termos do despacho de 9 de maio de 2016 do Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial, fica notificado de que o requerimento apresentado por V. ª Ex.ª será indeferido. Nos termos do art.º 122.º do Código do Procedimento Administrativo, E.ª Ex.ª tem direito a pronunciar-se, antes de ser tomada a decisão final, dispondo de 10 dias úteis, a partir da presente notificação, para apresentar resposta por escrito, da qual constem os elementos que possam obstar ao indeferimento, juntando os meios de prova adequados.(…) O(s) fundamento(s) para o indeferimento é (são) o(s) seguinte(s): - Não obstante o facto de num primeiro momento o requerimento apresentado ao Fundo de Garantia Salarial ter sido objeto de deferimento parcial, veio a constatar-se a duplicação do pagamento dos créditos reclamados em resultado do rateio operado no âmbito do processo de insolvência n.º 2176/12.5BELRA. – No período a que se referem todos os créditos requeridos encontram-se registados no histórico do(a) trabalhador(a) como remunerações, pelo que, salvo prova em contrário, não podem ser abrangidos pelo Fundo de Garantia Salarial, sob pena de duplicação do pagamento. – Na decorrência do que se refere, será emitida a nota de reposição pela globalidade do valor assegurado pelo Fundo de Garantia Salarial, por indevido (…)”;
13) Em data não concretamente apurada a Autora pronunciou-se em sede de audiência prévia, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido;
14) No dia 19 de julho de 2016 foi elaborada informação, pelos serviços da Entidade Demandada, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, abreviadamente com o seguinte teor: “(…) nos termos do artigo 589.º do Código Civil «O credor que recebe a prestação de terceiro pode sub-rogá-lo nos seus direitos, desde que o faça expressamente até ao momento do cumprimento da obrigação», ora, trata-se de uma faculdade e não de uma obrigação, tal como resulta da lei. O Fundo não está a reclamar valores sujeitos a rateio, uma vez que não usou da faculdade de se subrogar, naqueles montantes. O Fundo apenas pretende a reposição dos valores adiantados/pagos indevidamente aos trabalhadores. A verdade é que se trata de um duplo recebimento dos créditos reclamados pelos trabalhadores. Os trabalhadores receberam do Fundo de Garantia Salarial, os valores reclamados de acordo com os plafonds previstos na lei, tendo posteriormente recebido no âmbito da insolvência os créditos nela reconhecidos e reclamados, liquidando-se novamente os valores já adiantados pelo Fundo de Garantia Salarial. 4.1. Nos termos, do artigo 60.º n.º 2, da Lei de bases da segurança social «As prestações pagas aos beneficiários quando a elas não tinha direito devem ser restituídas nos termos previstos na lei», sendo que por força do n.º 3 do artigo 18.º da Lei n.º 64/2012, de 20 de dezembro, que altera ao Decreto Lei n.º 42/2001, de 9 de Fevereiro, o processo de execução de dívidas à segurança social aplica-se às situações de incumprimento relativas a reposições e restituições pagas pelo Fundo de Garantia Salarial (…) 5. Da análise efetuada por este Núcleo da factualidade vertida na informação do Centro Distrital e dos elementos constantes do Sistema Informático da Segurança Social (SISS), conclui-se que efetivamente não procede o alegado pelos requerentes, pelo que fazemos nossos os argumentos constantes da Informação do Centro Distrital, acima expressamente referenciados, os quais acompanhamos na íntegra. Em complemento da mesma, 5.1 Devemos referir que a sub-rogação do FGS decorre da lei, nos termos do artigo 592.º do Código Civil. 5.2 Sublinhamos ainda que houve um duplo recebimento pelos trabalhadores dos créditos laborais, os quais foram assegurados pelo FGS e pela massa insolvente. Tal recebimento é indevido, podendo consubstanciar-se em enriquecimento sem causa, nos termos dos artigos 44.º e 473.º do Código Civil. Os valores recebidos em duplicado deverão ser restituídos. Nesta medida, os trabalhadores ao não devolverem voluntariamente as quantias que lhes foram asseguradas pelo FGS, estão a locupletar-se indevidamente das mesmas, devendo aquele assegurar-se da sua devolução pelos meios legalmente admissíveis (…)”;
15) No dia 20 de julho de 2016 foi aposto despacho de concordância na informação melhor descrita em 14;
16) No dia 20 de julho de 2016 foi elaborado um ofício dirigido à Autora, pela Diretora de Segurança Social, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, abreviadamente com o seguinte teor: “No período a que se referem todos os créditos requeridos encontram-se registados no histórico do trabalhador como remunerações, pelo que salvo prova em contrário, não podem ser abrangidos pelo fundo de Garantia Salarial, sob pena de duplicação de pagamento. Deverão ser devolvidas as quantias auferidas por via do fundo de Garantia Salarial, uma vez que as mesmas foram satisfeitas pela massa insolvente, sob pena de cobrança coerciva, nos termos legais. (…) Nos termos do artigo 589º do Código Civil «O credor que recebe a prestação de terceiro pode subrogá-lo nos seus direitos, desde que o faça expressamente até ao momento do cumprimento da obrigação», ora trata-se de uma faculdade e não uma obrigação (…) O Fundo apenas pretende a reposição dos valores adiantados/pagos indevidamente aos trabalhadores. (…)”.


IV
1. Cumpre, antes de mais, evidenciar o que está em causa no presente litígio: uma cidadã, aqui Recorrente, detinha um crédito laboral no valor de € 18.416,80, relativamente a uma sociedade para a qual trabalhou e que veio a ser declarada insolvente. O Estado, globalmente considerado, e através do Fundo de Garantia Salarial, cumpriu a sua função de proteção social, pagando-lhe, àquele título, € 7.914,39 (tendo em conta os limites legais aplicáveis). Entretanto, e no âmbito do processo de insolvência, a mesma cidadã vem a receber a totalidade do crédito laboral, ou seja, os já referidos € 18.416,80. Recebeu, assim, e no total, € 26.331,19. Portanto, era detentora de um crédito de € 18.416,80, recebeu € 26.331,19 e veio a juízo defender que nada tem a devolver. Naturalmente que a sentença recorrida considerou que no deve e haver o saldo não seria zero.

2. E um dos argumentos que a Recorrente avança em reação à sentença recorrida traduz-se no facto de o Fundo de Garantia Salarial/Recorrido não ter exercido os seus direitos no processo de insolvência, em função da sub-rogação legal que lhe é conferida.

3. Temos, pois, e por aqui, que a Recorrida não identifica nenhum problema decorrente do facto de ter recebido € 7.914,39 para além do valor do crédito laboral que detinha. Para a mesma o problema resolver-se-ia pelo pagamento ao Fundo de Garantia Salarial através dos bens da massa insolvente. O que nem se vê como, na medida em que essa foi a via de pagamento à Recorrente do valor de € 18.416,80. Em suma, e de acordo com o raciocínio da Recorrente, tudo sem prejuízo de a mesma continuar a locupletar-se com o valor de € 7.914,39. A este problema voltaremos adiante.

4. Vejamos, então, todo o enquadramento jurídico a partir da factualidade dada como assente na sentença recorrida. Por despacho de 17.10.2013, e mediante deferimento parcial do que havia sido requerido, o Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial autorizou o pagamento, à ora Recorrente, do valor de € 7.914,39, correspondente a parte do crédito laboral que a mesma detinha sobre a sociedade para a qual trabalhou, e que veio a ser declarada insolvente, crédito esse que ascendia a € 18.416,80. Nessa sequência o Fundo de Garantia Salarial/Recorrido pagou à Recorrente o referido valor de € 7.914,39 (6 do probatório).

5. Entretanto, mais concretamente em 4.4.2014, vem a ser proferida sentença no âmbito do processo de insolvência n.º 2176/12.5TBLRA-B ordenando, designadamente, o pagamento à Recorrente dos créditos laborais reclamados no montante de € 18.416,80, quantia esta que a Recorrente veio efetivamente a receber (9 do probatório).

6. Em função desse facto superveniente – o recebimento da totalidade dos créditos laborais no processo de insolvência -, por despacho de 20.7.2016 foi determinada a reposição do valor que havia sido pago pelo Fundo de Garantia Salarial/Recorrido (€ 7.914,39).

7. Ora, ao invés do que vem defendido pela Recorrente, o ato de 20.7.2016 não tem natureza revogatória do ato de 17.10.2013. A revogação – diz-nos o artigo 165.º/1 do Código do Procedimento Administrativo – «é o ato administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por razões de mérito, conveniência ou oportunidade». Ou seja, na revogação o ato secundário (o ato revogatório) aprecia o mérito, a conveniência ou a oportunidade do ato primário. E com base nesse juízo de mérito, conveniência ou oportunidade faz cessar os efeitos do ato primário (ato revogado).

8. Nada disso está em causa no presente litígio. Nenhum juízo foi feito sobre o ato de 17.10.2013, cujos efeitos, de resto, se haviam esgotado. Como já se fez notar, a revogação «apenas faz sentido em relação (…) a atos que tenham eficácia duradoura, ou que, possuindo eficácia instantânea, ainda não tenham sido executados» (Comentário à revisão do Código do Procedimento Administrativo, 2.ª ed., Almedina, p. 358). Exatamente nesse sentido se pronunciam igualmente Carla Amado Gomes, A "revogação" do acto administrativo: uma noção pequena, in Revista do Ministério Público 141, p. 75, e Filipa Calvão, Revogação dos actos administrativos no contexto da reforma do Código do Procedimento Administrativo, in Cadernos de Justiça Administrativa, pp. 33 e segs.

9. Como se disse, nenhum juízo incidiu sobre o ato de 17.10.2013. O que efetivamente sucedeu foi algo diverso: o pagamento à Recorrente, no âmbito do processo de insolvência n.º 2176/12.5TBLRA-B, da totalidade dos seus créditos laborais, no montante de € 18.416,80, tornou sem causa o pagamento inicialmente efetuado pelo Fundo de Garantia Salarial/Recorrido, no montante de € 7.914,39, correspondente, como se sabe, a parte do valor total daqueles créditos laborais. Na terminologia do n.º 2 do artigo 473.º do Código Civil, a causa do pagamento «deixou de existir».

10. E é, de facto, ao instituto do enriquecimento sem causa que devemos recorrer, ao qual, aliás, também se aludiu na sentença recorrida, ainda que em explanação alternativa e sempre no sentido de explicar que se fechavam todas as portas à pretensão da Autora, agora Recorrente.

11. Na verdade, a Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro (bases gerais do sistema de segurança social) prevê, no seu artigo 60.º/2, que «[a]s prestações pagas aos beneficiários que a elas não tinham direito devem ser restituídas nos termos previstos na lei». Faz, assim, uma remissão para o Decreto-Lei n.º 133/88, de 20 de abril, o qual, como anunciava o seu preâmbulo, procedeu «à definição das normas jurídicas referentes a situações de concessão indevida de prestações, tanto no que respeita à responsabilidade emergente do pagamento de prestações indevidas como no que se refere à revogação dos actos de atribuição das prestações», e que se reporta a prestações pagas no âmbito do sistema de segurança social (cf. o seu artigo 1.º/1).

12. Ora, como resulta das normas, conjugadas, contidas nos artigos 14.º/2, 15.º/1, 19.º e 27.º/1 do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, e expressamente referido no seu preâmbulo, aquela entidade tem a natureza de «fundo autónomo que não integra o âmbito de proteção social garantido pelo sistema de segurança social, antes com este se relacionando, quer pela via de parte do seu financiamento, quer pela via da sua gestão entregue ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P.».

13. Deste modo, o pagamento efetuado à Recorrente pelo Fundo de Garantia Salarial/Recorrido não tem a natureza de prestação paga no âmbito do sistema de segurança social. E quando foi efetuado o pagamento não se mostrava indevido, como se viu. Estamos, portanto, fora do âmbito dos regimes anteriormente invocados.

14. Note-se, no entanto, que, em geral, a natureza indevida de uma prestação sempre resultará do diploma que estabelecer as respetivas condições de atribuição ou manutenção. O que não sucede no caso dos autos. O que ocorre, como se disse, é um enriquecimento, sem causa, do património da Recorrente à custa do património do Fundo de Garantia Salarial/Recorrido.

15. De acordo com o disposto no artigo 473.º/1 do Código Civil, «[a]quele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou». Por outro lado, diz-nos o n.º 2, «[a] obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou». Como anteriormente já se afirmou, sucedeu, precisamente, que a Recorrente beneficiou de um pagamento feito - pelo Fundo de Garantia Salarial/Recorrido – em virtude de uma causa que deixou de existir.

16. Sendo o enriquecimento sem causa a fonte da obrigação de restituir, coloca-se a questão de saber se o prazo de prescrição é o previsto no artigo 482.º do Código Civil – três anos – ou o que vem estabelecido no Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de julho – cinco anos.

17. Julga-se ser este último, por via de uma relação de especialidade normativa. Na verdade, o invocado Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de julho, reporta-se à reposição de dinheiros públicos que devam reentrar nos cofres do Estado - latamente considerado -, independentemente da causa (cf. o seu artigo 36.º/1). Portanto, aplica-se o prazo de cinco anos a que se refere o artigo 40.º/1 do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de julho.

18. Deste modo, tendo a Recorrente recebido do Fundo de Garantia Salarial/Recorrido a quantia de € 7.914,39 depois de 17.10.2013 (5 e 6 do probatório), a obrigação não se mostrava prescrita quando, em 20.7.2016, foi determinada a restituição dessa quantia. Como não estaria prescrita – esclareça-se – à luz do prazo de prescrição de três anos previsto no artigo 482.º do Código Civil, o qual se conta «da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do enriquecimento». Portanto, e por aqui, bem se decidiu na sentença recorrida.

19. O mesmo se diga quanto às consequências que a Recorrente pretende retirar do facto de o Fundo de Garantia Salarial/Recorrido não ter exercido o direito que lhe advinha por ter ficado sub-rogado no crédito da trabalhadora, ora Recorrida, na medida do pagamento que efetuou (€ 7.914,39). É um facto que não exerceu. Mas tratava-se de um direito, não de um dever ou ónus. E nem poderia ter exercido esse direito a partir do momento em que a Recorrente foi paga através dos bens da massa insolvente.

20. Opõe-se a Recorrente com a alegação de que, assim, fica prejudicado «um princípio de estabilidade e segurança, no sentido das garantias das relações creditícias», que marca o instituto da sub-rogação legal. Estranha forma de interpretar essa estabilidade, que no caso significaria apenas caucionar o recebimento em dobro da quantia que efetivamente lhe era devida.


V
Em face do exposto, acordam os Juízes da Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida, com a fundamentação precedente.

Custas pela Recorrente (artigo 527.º/1 e 2 do Código de Processo Civil).
*

Tenha-se presente o ofício do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (SITAF 004443420).


Lisboa, 23 de maio de 2024.

Luís Borges Freitas – relator
Maria Julieta França – 1.ª adjunta
Eliana de Almeida Pinto – 2.ª adjunta