Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1276/23.0BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:06/19/2024
Relator:MARGARIDA REIS
Descritores:AÇÃO ADMINISTRATIVA
INCAPACIDADE
REAVALIAÇÃO
PRINCÍPIO DA AVALIAÇÃO MAIS FAVORÁVEL
LEI INTERPRETATIVA
Sumário:I - Decorre da natureza interpretativa da Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro o facto de incidir sobre questão que no regime aplicável tinha um sentido controvertido – atenta a interpretação que do mesmo vinha sendo preconizada pela Administração fiscal, através do Ofício Circulado n.º 20215 2019-12-03, que materializou decisão emanada por Despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, a que se alude nos respetivos trabalhos preparatórios - consagrando uma solução que os tribunais poderiam ter adotado.
II - A lei interpretativa integra-se na lei interpretada.
III - Por força da norma interpretativa constante no art. 4.º-A do Decreto-Lei n.º 202/96, aditado pela Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro, tem direito ao tratamento mais favorável o sujeito passivo portador de deficiência cuja incapacidade for reavaliada numa percentagem inferior à legalmente exigida para a obtenção de benefício fiscal, independente de essa reavaliação se dever a uma alteração de critérios técnicos introduzidos na tabela de incapacidades.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
I. Relatório

A Autoridade Tributária Aduaneira, inconformada com o saneador-sentença proferido em 2024-01-31 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, que julgou procedente a ação administrativa interposta por T…, tendo por objeto o despacho proferido em 3 de agosto de 2023, que indeferiu o recurso hierárquico do despacho proferido em 10 de março de 2023 pelo Chefe de Finanças de Ourém que indeferiu o pedido de averbamento do atestado médico de incapacidade multiusos emitido em 20 de janeiro de 2020 em sede de revisão/reavaliação de grau de incapacidade, vem dela interpor o presente recurso.

A Recorrente encerra as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:

CONCLUSÕES

a) Andou mal a decisão recorrida ao ter determinado a anulação do despacho impugnado.

b) A decisão recorrida padece de erro de julgamento, por erro manifesto sobre os pressupostos de direito e de facto, por notória interpretação deficiente do disposto nos números 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, e no artigo 4.º-A do mesmo diploma, introduzido pela Lei n.º 80/2021.

c) A decisão recorrida igualmente viola o disposto nos artigos 13.º e 103.º da CRP, por evidente violação dos princípios da igualdade, em todas as suas vertentes, e do princípio da legalidade tributária, em particular no que respeita à excecionalidade dos benefícios fiscais, mas também o princípio da unicidade do ordenamento jurídico.

d) O Tribunal a quo escudou-se unicamente na norma interpretativa que aditou os n.ºs 7 e 8 ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, e nas exposições de motivos que tiveram na base da aprovação da Lei n.º 80/2021, descurando, sem qualquer justificação, o seu elemento histórico e, o próprio preceituado, daquele mesmo diploma.

e) Igualmente a jurisprudência invocada na decisão recorrida não se aplica à situação dos autos, considerando que naquele Acórdão estava em causa uma avaliação e uma reavaliação feitas com base em tabelas diferentes, logo, com critérios técnicos distintos que justificam a conclusão ali alcançada.

f) Como decorre do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 291/2009, e igualmente dos seus trabalhos preparatórios, o aditamento dos n.ºs 7 e 8 ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, visou, tão só, salvaguardar a situação dos portadores de incapacidade que, estando sujeitas à realização de uma nova junta médica, com base na aplicação da nova Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-lei n°352/2007, vissem diminuído o seu grau de incapacidade em consequência de diferentes critérios técnicos.

g) Ou seja, pretendeu-se adequar os procedimentos previstos no Decreto-Lei n.º 202/96 às instruções previstas na nova Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, dado que o Decreto-Lei n.º 202/96 remetia para a revogada Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 341/93, de 30/09.

h) Na situação objeto dos autos, quer a avaliação em 2014, quer a reavaliação em 2020, foram feitas com base nos mesmos critérios técnicos consignados na atual Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, o que, desde logo, afasta a aplicabilidade do estatuído nos n.ºs 7 e 8 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96.

i) O artigo 4.º-A aditado pela Lei n.º 80/2021 é uma norma interpretativa, que visou assegurar que situações similares à espelhada no Acórdão invocados pelo Tribunal a quo não se repetissem.

j) Não tem, nem pode ter, atenta a sua natureza meramente interpretativa, o alcance pretendido pela Recorrida e acolhido pelo Tribunal a quo, de prorrogar ad eternum, e sem que estejam preenchidos os respetivos pressupostos, os diretos adquiridos.

k) O que não invalida que o princípio do tratamento mais favorável não afaste a aplicação, por exemplo, do disposto no n.º 8 do artigo 8.º do CIRS e o estabelecido no artigo 12.º da LGT, e permita que um contribuinte que, a meio do ano, veja a sua incapacidade revista, para percentagem inferior à fiscalmente relevante, possa usufruir, até ao final desse mesmo ano económico, dos benefícios inerentes à incapacidade fiscalmente relevante anteriormente concedida.

l) A manutenção de um grau de deficiência anterior, igual ou superior a 60%, em detrimento do fixado a posteriori, inferior a 60%, só é justificável se a tabela de avaliação nos dois casos for distinta, sujeita a critérios de quantificação diferentes para a mesma patologia, o que não se verifica nos presentes autos, a Recorrida foi avaliada e reavaliada com base na nova TNI.

m) Entendimento diverso consubstancia uma situação socialmente inaceitável, de se considerarem totalmente irrelevantes as alterações no estado clínico de uma pessoa que se traduzissem numa melhoria da sua situação física, discriminando, de forma totalmente injustificável, todos aqueles que, em sede da nova tabela de incapacidades, vejam ser-lhes reconhecida uma incapacidade de percentagem inferior a 60%, mas, por exemplo similar (25%), e até superior, à da aqui Recorrida.

n) Subjugando o próprio propósito do Decreto-Lei n.º 202/96 e dos benefícios fiscais que lhe estão subjacentes.

o) A manutenção da decisão recorrida na ordem jurídica irá provocar desigualdades injustificáveis entre os contribuintes, com alguns deles, já recuperados, a deixar de contribuir, para todo o sempre, para a satisfação das necessidades financeiras do Estado o que, naturalmente, terá repercussões na justa repartição dos rendimentos e da riqueza, conforme determina o artigo 103.º da CRP.

p) O benefício fiscal em causa, e no que ao IRS diz respeito, tem por fim “compensar” a eventual perda de capacidade para obtenção de rendimentos. Capacidade essa que, após uma reavaliação em que os médicos consideram ser inferior à inicialmente diagnosticada, será reabilitada. Se a capacidade é retomada, também a regra de tributação o deve ser.

q) A solução preconizada na sentença recorrida não enquadrou devidamente a situação em discussão no ordenamento jurídico vigente e aplicável aos factos, antes fez uma interpretação deficiente, por não ter olhado ao todo, e por se ter centrado na norma interpretativa introduzida pela Lei n.º 80/2021, sem considerar, como se impunha, ao diploma que aditou os n.ºs 7 e 8 ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96.

r) Nem o despacho objeto dos autos, nem a atuação da Recorrida, merecem qualquer censura, estão em plena sintonia com o enquadramento jurídico vigente e aplicável à questão sobre a que versa.

s) Juízo de não censurabilidade que não pode ser feito no que à decisão recorrida concerne, antes sendo evidentes os erros em que a mesma labora por deficiente interpretação das normas em causa.

t) Face a todo o exposto, a decisão recorrida padece de erro de julgamento por erro manifesto sobre os pressupostos de direito e de facto, e como tal não se pode manter na ordem jurídica.

Termina pedindo:

Termos em que deve o presente recurso proceder e o saneador-sentença proferido pelo Tribunal a quo ser revogado, com as legais consequências


***

A Recorrida não apresentou contra-alegações.

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O Digno Magistrado do M.º Público junto deste Tribunal foi oportunamente notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 146.º, n.º 1 do CPTA, nada tendo vindo requerer ou promover.

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Questões a decidir no recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, tal como decorre do disposto nos arts. 635.º nºs 4 e 5 e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), disposições aplicáveis ex vi art. 281.º do CPPT.

Assim sendo, no caso em apreço, atentos os termos em que foram enunciadas as conclusões de recurso, há que apurar se a decisão recorrida padece de erro de julgamento de direito, por incorreta interpretação e aplicação ao caso do disposto nos n.ºs 7 e 8 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, no art. 4.º-A do mesmo diploma, aditado pela Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro, e nos arts. 13.º e 103.º da CRP.

II. Fundamentação

II.1. Fundamentação de facto

Na sentença prolatada em primeira instância consta a seguinte decisão da matéria de facto, que aqui se reproduz:

4.1. FACTOS PROVADOS

Com interesse para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

1) Em 19 de setembro de 2014, foi atestado, pelo Presidente da Junta Médica do Agrupamento de Centros de Saúde do Médio Tejo, ser a aqui Autora portadora de deficiência de acordo com a alínea 3) do n.º IV do Capítulo XVI e com a Classe II do n.º 1.2. do Capítulo VI do Anexo I da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-lei n.º 352/2007, de 23 de outubro, que lhe confere um grau de incapacidade permanente global de 66%, “suscetível de variação futura, devendo ser reavaliado no ano de 2019” (cf. visado atestado médico junto como documento n.º 2 à petição inicial sob a referência 005723669 do suporte eletrónico do processo);

2) Em 20 de janeiro de 2020, foi atestado, pelo Presidente da Junta Médica do Agrupamento de Centros de Saúde do Médio Tejo, ser a aqui Autora portadora de deficiência de acordo com a alínea 2) do n.º IV do Capítulo XVI do Anexo I da Tabela Nacional de Incapacidades, aprovada pelo Decreto-lei n.º 352/2007, de 23 de outubro, que lhe confere um grau de incapacidade permanente global de 25%, sem sujeição a nova reavaliação, declarando ainda, para efeitos do n.º 7 do artigo 4.º do Decreto-lei n.º 202/96, com a redação do Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12 de outubro, que a mesma “é portador de deficiência que de acordo com os documentos arquivados neste Serviço lhe conferiram em 19-09-2014 pela TNI aprovada pelo Decreto-lei n.º 352/2007, de 23 de outubro o grau de incapacidade de 66% (sessenta e seis por cento)” (cf. visado atestado médico junto como documento n.º 3 à petição inicial sob a referência 005723669 do suporte eletrónico do processo e ainda junto como documento n.º 1 do PAT sob a referência 005733449 do suporte eletrónico do processo);

3) No seguimento da solicitação da aqui Autora do averbamento da Incapacidade do seu Atestado Multiusos com base no artigo 4º-A da Lei n.º 80/2021 de 29 de novembro, apesar da reavaliação da incapacidade que consta do Atestado Multiusos apresentado ter resultado na atribuição de um grau inferior a 60%, e tendo a mesma alegado que “de acordo com os números 1 e 2 do artigo 4º-A da Lei n.º 80/2021 de 29/11, tratando-se de uma reavaliação referente à mesma patologia do Atestado Multiusos anterior, tem direito a que lhe seja averbado em Cadastro o grau de Incapacidade mais favorável como determina o n.º 1 da referida disposição legal, pois de acordo com o n.º 2 desse articulado se, da reavaliação resultar a perda de direitos ou benefícios por força da atribuição de um grau de incapacidade inferior ao anteriormente atribuído, mantém-se em vigor o grau de incapacidade que resultou da avaliação anterior”, foi tal pedido remetido pelo Chefe de Finanças Adjunto de Ourém à Direção de Serviços de Registo de Contribuinte (cf. comunicação interna n.º 21272021C434674 junta como documento n.º 1 do PAT sob a referência 005733449 do suporte eletrónico do processo);

4) Por ofício de 24 de outubro de 2022, do Chefe de Finanças de Ourém, intitulado “informação sobre grau de incapacidade fiscalmente relevante”, foi a ora Autora informada que “o seu pedido de averbamento do grau de incapacidade, resultante da reavaliação de 1/20/2020, na qual foi emitido Atestado Multiusos grau de incapacidade inferior a 60%, mas que menciona a existência de uma incapacidade anterior com grau igual ou superior a 60%, em sede de cadastro de contribuinte, efetuado por V. Exa. com a invocação do disposto no artigo 4º-A da Lei n.º 80/2021 de 29/11, ao qual foi dada a entrada N.º 2021E002797965 de 12/9/2021, se mantém nesta data PENDENTE na Direção de Serviços de Registo de Contribuintes para onde foi remetido por este Serviço de Finanças” (cf. ofício n.º 1618-D junto como documento n.º 1 do PAT sob a referência 005733449 do suporte eletrónico do processo);

5) Por mensagem de correio eletrónico de 10 de novembro de 2022, a Direção de Serviços de Registo de Contribuintes informou o Serviço de Finanças de Ourém que “a contribuinte perdeu o grau de deficiência ao ser reavaliada com 25% ao abrigo do mesmo decreto lei da TNI, conforme ofício circulado 20244 de 29.08.2022” (cf. visado email junto como documento n.º 1 do PAT sob a referência 005733449 do suporte eletrónico do processo);

6) Por despacho de 10 de março de 2023, do Chefe de Finanças de Ourém, exarado na informação do mesmo dia, daquele Serviço de Finanças, com a qual declarou concordar, e “atento ao determinado pela DSRC pelo email remetido a este Serviço de Finanças em 11/10/2022”, foi indeferido o pedido de averbamento de incapacidade formulado pela aqui Autora e melhor identificado no ponto 3) deste Probatório, destacando-se ainda do teor de tal informação o seguinte (cf. despacho e informação juntos como documento n.º 1 do PAT sob a referência 005733449 do suporte eletrónico do processo):

“(…). 1. O SP era possuidor de Atestado Médico de Incapacidade Multiuso, válido até 12/31/2019, em que, de acordo com a TNI (Tabela Nacional de Incapacidades) – Anexo I, aprovada pelo DL 352/2007, de 23 de outubro, lhe conferia uma incapacidade permanente global de 60%;

2. A incapacidade em causa era suscetível de variação futura, devendo ser reavaliada no ano de 2019;

3. Em 1/20/2020 é emitido ao SP novo Atestado (reavaliação), com grau de incapacidade de 60%, atribuído também de acordo com a TNI (Tabela Nacional de Incapacidades) – Anexo I, aprovada pelo DL 352/2007, de 23 de outubro, incapacidade essa válida desde 1/1/2019 até/ou vitalício;

4. Em 12/9/2021 , o SP supra identificado solicitou, mediante a apresentação do novo do Atestado (reavaliação) ao balcão do Serviço de Finanças de Ourém, o averbamento da Incapacidade do seu Atestado Multiusos com base no Art.º 4º-A do Decreto-Lei 202/96, aditado pela Lei 80/2021, de 29/Novembro, alegando que de acordo com os números 1 e 2 da referida disposição legal, tratando-se de uma reavaliação referente à mesma patologia do Atestado Multiusos anterior, tem direito a que lhe seja averbado em Cadastro o grau de Incapacidade mais favorável como determina o n.º 1, pois de acordo com o n.º 2 desse articulado se, da reavaliação resultar a perda de direitos ou benefícios por força da atribuição de um grau de incapacidade inferior ao anteriormente atribuído, mantém-se em vigor o grau de incapacidade que resultou da avaliação anterior, que no caso em análise seria de 60%;

5. Tendo em conta:

- O disposto no Art.º 4º-A do Decreto-Lei 202/96, aditado pela Lei 80/2021, de 29/novembro;

- O entendimento divulgado pelo Ofício-Circulado 20215, de 03-12-2019, não tendo o mesmo sido revogado à data do pedido;

- O disposto no Art.º 68º-A da Lei Geral Tributária;

Foi dada entrada a GPS 2021E002797965 ao Atestado Multiusos (da reavaliação) tendo o mesmo sido remetido à Direção de Serviços de Registo de Contribuintes (DSRC) com o pedido do SP através da Comunicação 21272021C434674 em 12/9/2021;

6. Através de resposta remetida por e-mail ao Serviço de Finanças de Ourém em 11/10/2022, a DSRC informou o seguinte:

«...informa-se que a contribuinte perdeu o grau de deficiência ao ser reavaliada com 25% ao abrigo do mesmo decreto lei da TNI, conforme Oficio Circulado 20244 de 29.08.2022

Ficou registado o grau de 60% até 12/31/2019».

7. A informação constante do Atestado mencionado nos pontos anteriores encontra-se inscrita no cadastro no número fiscal de contribuinte (consulta via SGRC), tendo o grau de incapacidade em causa a validade até 12/31/2019;

Em face determinado pela DSRC, julga-se que não poderá ser mantido o grau de 60%, conforme tinha sido solicitado pelo Sujeito Passivo, mantendo-se o grau de 60% até 12/31/2019, podendo o SP usufruir dos benefícios fiscais associados à sua incapacidade nos termos definidos pelo Oficio Circulado 20244 de 29.08.2022 emitido pelo Gabinete da Subdiretora-Geral do IR e das Relações Internacionais e pela Instrução de Serviço N.º 40091 – Série I de 2022-09-30 emitida pelo Gabinete da Subdiretora-Geral da Área dos Impostos sobre o Património, até ao ano da emissão do seu novo Atestado Multiusos (reavaliação), no caso em análise 2020. (…)”.

7) Em 10 de março de 2023, foi emitido, pelo Chefe de Finanças de Ourém, ofício dirigido à ora Autora, por carta registada com aviso de receção, tendente à notificação do despacho de indeferimento melhor identificado no ponto precedente deste Probatório, tendo o mesmo sido rececionado em 16 de março de 2023 (cf. ofício n.º 744-D, talão de aceitação de correio registado dos CTT e aviso de receção juntos como documento n.º 1 do PAT sob a referência 005733449 do suporte eletrónico do processo);

8) Por requerimento remetido, por correio registado, em 13 de abril de 2023, ao Serviço de Finanças de Ourém, apresentou a ora Autora recurso hierárquico da decisão de indeferimento, melhor identificada no ponto 6) deste Probatório, que recaiu sobre o pedido de averbamento de incapacidade, alegando ser o mesmo ilegal “face ao teor do artigo 4.º-A do DL 202/96 de 23 de outubro na redação que lhe foi dada pela L 80/2021 de 29 de novembro”, peticionando, a final, a sua anulação “e consequentemente ordenado o averbamento da sua incapacidade de 60% com efeitos a 1 de janeiro de 2020” (cf. requerimento de recurso hierárquico e vinheta de registo dos CTT aposta em envelope juntos como documento n.º 2 do PAT sob a referência 005733450 do suporte eletrónico do processo);

9) Por despacho de 3 de agosto de 2023, do Diretor de Finanças Adjunto de Santarém, exarado na informação datada do mesmo dia, da Divisão de Justiça Tributária daquela Direção de Finanças, com a qual declarou concordar, foi indeferido o recurso hierárquico apresentado pela aqui Autora, destacando-se do teor dos fundamentos invocados para tal decisão o seguinte (cf. visados despacho e informação juntos como documento n.º 1 à petição inicial sob a referência 005723669 do suporte eletrónico do processo e ainda juntos como documento n.º 6 do PAT sob a referência 005733454 do suporte eletrónico do processo):

“(…) A ora recorrente solicitou ao balção do Serviço de Finanças Ourém o averbamento da Incapacidade do seu Atestado Multiusos (reavaliação) com base no artigo 4º-A da Lei n.º 80/2021 de 29/11, emitido pela ARS Lisboa e Vale do Tejo com o grau de deficiência de 25% , alegando que de «acordo com os números 1 e 2 da referida disposição legal, tratando-se de uma reavaliação referente à mesma patologia do Atestado Multiusos anterior, tem direito a que lhe seja averbado em Cadastro o grau de Incapacidade mais favorável como determina o n.º 1, pois de acordo com o n.º 2 desse articulado se, da reavaliação resultar a perda de direitos ou benefícios por força da atribuição de um grau de incapacidade inferior ao anteriormente atribuído, mantém-se em vigor o grau de incapacidade que resultou da avaliação anterior, que no caso em análise seria de 60%.»

Solicitou o SF de Ourém à Direção de Serviços de Registo de Contribuinte para que aqueles serviços efetuassem o averbamento do Atestado Multiusos apresentado pelo contribuinte com incapacidade de 60% de acordo com o Atestado Anterior.

Respondeu aquela Direção de Serviços «que o contribuinte perdeu o grau de deficiência ao ser reavaliado com 25% ao abrigo da mesma Tabela Nacional de Incapacidades, conforme Ofício Circulado 20244 de 29.08.2022.»

De acordo com as alíneas c) e d) do nº 16 do citado Ofício Circulado 20244 de 29.08.2022:

c) Caso, no ano em que decorra o processo de revisão/reavaliação, resulte a emissão de um novo atestado médico de incapacidade multiusos emitido ao abrigo do DL n.º 202/96, de 23 de outubro, que certifique uma incapacidade para um grau inferior a 60%, aplica-se a norma de salvaguarda da avaliação mais favorável, tendo o sujeito passivo em IRS o direito de beneficiar durante todo esse ano civil do regime fiscal aplicável às pessoas com deficiência fiscalmente relevante, conforme artigo 4.º-A do DL n.º 202/96, aditado pela Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro, e n.ºs 7 e 8 do artigo 4º do DL nº 202/96, aditados pelo DL n.º 291/2009;

d) Nos anos seguintes àquele em que se verifica o processo de revisão/reavaliação, em que resulte desse processo a atribuição de um grau de incapacidade inferior a 60%, o mesmo já não é fiscalmente relevante porquanto os contribuintes não reúnem os pressupostos previstos na lei, nos termos do n.º 5 do artigo 87.º do Código do IRS, em qualquer momento do respetivo período de tributação, pelo que não lhes assiste o direito à aquisição do regime fiscal das pessoas com deficiência;

Consultado o sistema informático da AT, nomeadamente o Sistema de Gestão e Registo de Contribuinte verificámos que se encontra associada ao recorrente, uma deficiência de 66% com inicio a 01-01-2019 até 31-12-2019, pelo que a partir desta data, e de acordo com a al d) do nº 16 do oficio circulado 20244 de 29-08-2022, o mesmo deixa de reunir “os pressupostos previstos na lei, nos termos do n.º 5 do artigo 87.º do Código do IRS pelo que não lhe assiste o direito à aquisição do regime fiscal das pessoas com deficiência». (…).

IV – PARECER/CONCLUSÃO

Face ao exposto, somos de opinião não assistir razão á recorrente, não se vislumbrando qualquer ilegalidade relativamente à liquidação ora recorrida, porquanto a mesma não enferma de qualquer vício, tendo agido a AT em conformidade com o quadro legal existente.

Pelo que não se verificando qualquer preterição de formalidades legais no procedimento que possam ferir a anulabilidade ou nulidade do ato tributário, parece-nos de manter o indeferimento do pedido de averbamento de incapacidade, bem como da informação e despacho dela constante, devendo ser negado provimento nos termos do disposto no n.º 4 do art.º 66.º do CPPT, e julgar-se improcedente o presente Recurso, mantendo-se o que foi decidido pelo órgão a quo. (…)”.

10) Em 4 de agosto de 2023, o Diretor de Finanças de Santarém emitiu ofício dirigido ao mandatário da aqui Autora, remetido por carta registada, tendente à notificação do despacho aludido no ponto anterior (cf. ofício n.º 598-A junto como documento n.º 1 à petição inicial sob a referência 005723669 do suporte eletrónico do processo e ainda junto como documento n.º 7 do PAT sob a referência 005733455 do suporte eletrónico do processo);

11) Em 9 de novembro de 2023, foi remetida a este Tribunal, por via eletrónica, a petição inicial que deu origem aos presentes autos (cf. comprovativo de entrega de peça processual via SITAF junto ao suporte eletrónico do processo sob a referência 005723672 e visada petição inicial junta ao mesmo suporte sob a referência 005723668).


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4.2. FACTOS NÃO PROVADOS

Não existem factos alegados a dar como não provados e a considerar com interesse para a decisão.


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4.3. MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

A convicção do Tribunal assentou na prova documental junta aos autos e no processo administrativo tributário, bem como na posição assumida pelas Partes, mediante o recorte dos factos pertinentes para o julgamento da presente causa em função da sua relevância jurídica e atentando às várias soluções plausíveis de direito, conforme indicado em cada um dos factos do Probatório.


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II.2. Fundamentação de Direito

Importa apreciar se o saneador sentença objeto do presente recurso padece de erro de julgamento de direito, por incorreta interpretação e aplicação ao caso do disposto nos n.ºs 7 e 8 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 291/2009, no art. 4.º-A do mesmo diploma, introduzido pela Lei n.º 80/2021, e nos arts. 13.º e 103.º da CRP.

De facto, e embora nas conclusões das alegações de recurso se invoque a existência de um “erro manifesto sobre os pressupostos (…) de facto (cf. alíneas b e t, das conclusões), o mesmo não é especificado pela Recorrente, resultando da interpretação do que ali é afirmado que o que se pretende é invocar uma incorreta aplicação do direito à factualidade que demarca o caso em apreço, o que, como é sabido, configura um erro de julgamento de direito, na sua categoria de erro de estatuição, interpretação, ou de aplicação stricto sensu (cf. PINTO, Rui – Manual do Recurso Civil. Volume I. Lisboa, AAFDL editora, 2020, pág. 27).

Vejamos então.

Como já aqui se deixou referido, em causa está a decisão do TAF de Leiria que julgou procedente a ação interposta pela aqui Recorrida tendo por objeto o despacho proferido em 3 de agosto de 2023 pelo Diretor de Finanças Adjunto de Santarém, que indeferiu o recurso hierárquico da decisão de 10 de março de 2023 do Chefe de Finanças de Ourém, que indeferiu o pedido de averbamento do atestado médico de incapacidade multiusos emitido em 20 de janeiro de 2020 em sede de revisão/reavaliação do grau de incapacidade da aqui Recorrida, por ali se ter entendido, e em síntese, que à reavaliação da incapacidade efetuada em 2020 apenas se aplicaria o disposto nos n.ºs 7 e 8 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 202/96, mantendo-se em consequência o grau de incapacidade de 66% determinado na avaliação efetuada em 2014, se as duas avaliações tivessem sido feitas de acordo com critérios técnicos distintos (cf. pontos 6 e 9 da fundamentação de facto), ou, dito de outra forma, que o citado regime – que consagra o princípio da avaliação mais favorável - apenas se aplicaria se a revisão ou reavaliação da incapacidade que determinou a atribuição de um grau de incapacidade diferente do anteriormente certificado, tivesse resultado da alteração de critérios técnicos introduzidos na tabela de incapacidades em consequência da alteração produzida no Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de outubro por força do Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12 de outubro.

Ora, desde já se adianta que nada há que censurar à decisão do Tribunal a quo, que ao contrário do alegado pela Recorrente, faz uma correta interpretação e aplicação ao caso do direito.

De facto, resultando provado que em 2014 foi reconhecida à Recorrida uma incapacidade de 66% (cf. ponto 1, da fundamentação de facto), tendo a mesma, por força dessa incapacidade, usufruído de vários benefícios, nomeadamente em sede tributária, e que essa incapacidade foi reavaliada em 2020 em 25%, tendo origem na mesma patologia e constando do atestado médico de incapacidade multiuso, no campo referente ao n.º 7 do artigo 4.º do Decreto-lei n.º 202/96, com a redação do Decreto-Lei n.º 291/2009, de 12 de outubro, que “é portador de deficiência que de acordo com os documentos arquivados neste Serviço lhe conferiram em 19-09-2014 pela TNI aprovada pelo Decreto-lei n.º 352/2007, de 23 de outubro o grau de incapacidade de 66% (sessenta e seis por cento)” (cf. ponto 2, da fundamentação de facto) não resta senão concluir que se encontram preenchidos os requisitos previstos na lei para que o mesmo beneficie da avaliação mais favorável.

Com efeito, é o que expressamente decorre do disposto no n.º 7 do art. 4.º, do DL 202/96, de 23 de outubro, em conjugação com o n.º 8 da mesma disposição legal, sendo inquestionavelmente esse o sentido que o legislador pretendeu conferir ao regime, como resulta do disposto na norma interpretativa constante no art. 4.º-A, aditado ao citado diploma pela Lei 80/2021, de 29 de novembro.

Efetivamente, dispõe-se no art. 4.º-A o seguinte:


Artigo 4.º-A
Norma interpretativa
1 - À avaliação de incapacidade prevista no artigo anterior aplica-se o princípio da avaliação mais favorável ao avaliado, nos termos dos n.ºs 7 e 8 do artigo anterior.

2 - Sempre que do processo de revisão ou reavaliação de incapacidade resulte a atribuição de grau de incapacidade inferior ao anteriormente atribuído, e consequentemente a perda de direitos ou de benefícios já reconhecidos, mantém-se em vigor o resultado da avaliação anterior, mais favorável ao avaliado, desde que seja relativo à mesma patologia clínica que determinou a atribuição da incapacidade e que de tal não resulte prejuízo para o avaliado.

A este propósito não será de mais recordar que decorre da natureza interpretativa da Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro o facto de, precisamente, incidir sobre questão que no regime aplicável tinha um sentido controvertido – atenta a interpretação que do mesmo vinha sendo preconizada pela Administração fiscal, através do Ofício Circulado n.º 20215 2019-12-03, que materializou decisão emanada por Despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, a que se alude nos respetivos trabalhos preparatórios - consagrando uma solução que os tribunais poderiam ter adotado.

Importará também recordar que a lei interpretativa se integra na lei interpretada, tal como decorre do disposto no n.º 1 do art. 13.º do Código Civil.

Quanto à argumentação despendida pela Recorrente, sempre se dirá, por um lado, que sendo a Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro, por força da qual foi aditado o art. 4.º-A ao DL 202/96, de 23 de outubro, posterior ao Decreto-Lei n.º 291/2009, não pode o legislador ter deixado de ter considerado o mesmo na interpretação que veio a consolidar do regime aqui em causa.

Com efeito, não se vê qual seria o sentido útil da interpretação preconizada no art. 4.º-A, caso a mesma nada acrescentasse ao que decorre do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 291/2009, no extrato citado pela Recorrente, assim se esclarecendo que o princípio da avaliação mais favorável extravasa as situações em que a divergência na avaliação da incapacidade se deve apenas à aplicação de critérios técnicos diferentes.

Por outro lado, também não procede o argumento de que deste modo é violado o princípio da igualdade, consagrado no art. 13.º da CRP.

Com efeito, é manifesto que não está na mesma situação o cidadão portador de deficiência que por ser de 60% lhe permite aceder a um conjunto de benefícios, sendo posteriormente avaliada numa percentagem inferior, e o cidadão portador de deficiência ao qual, pela primeira vez é reconhecida uma incapacidade inferior a 60%, que não lhe permite usufruir desses benefícios.

Esta questão não deixou, aliás, de ser endereçada nos trabalhos preparatórios da Lei n.º 80/2021, quando nos mesmos se refere que “O facto de em determinado momento existir uma evolução positiva da doença não quer dizer que deixe de existir doença ou que os impactos sociais e económicos da mesma tenham desaparecido. (…) Alguém que está a recuperar de uma doença grave e incapacitante continua a ter despesas acrescidas na área da saúde e em muitos casos mantém dificuldades para o trabalho e na reintegração no mercado de trabalho.” (cf. projeto de lei n.º 871/XIV citado na decisão recorrida, disponível para consulta em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheDiplomaAprovado.aspx?BID=2333).

O mesmo se diga relativamente ao argumento que adianta quanto à concessão alegada concessão ad aeternum do benefício fiscal.

De facto, e como igualmente se refere nos trabalhos preparatórios da lei interpretativa que originou o aditamento do art. 4.º-A ao DL 202/96, de 23 de outubro, “O que está em causa não é um benefício perpétuo, mas sim a manutenção do benefício se a avaliação imediatamente anterior reconhecia esse direito” (cf. projeto de lei n.º 871/XIV citado na decisão recorrida, disponível para consulta em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheDiplomaAprovado.aspx?BID=2333).

Por fim, nem a Recorrente esclarece, nem aqui se vislumbra em que é que é que a interpretação preconizada pelo Tribunal recorrido contende com o disposto no art. 103.º da CRP, tanto mais que ficou por provar nos autos que a atribuição de um grau de incapacidade diferente do anteriormente certificado tenha, como afirma, tido uma qualquer repercussão direta na capacidade contributiva da Recorrida.

De referir, por fim, que sobre situações similares à aqui em discussão se pronunciou já, no mesmo sentido, o Tribunal Central Administrativo Norte, nos Acórdãos proferidos em 2023-10-26, no proc. 00375/22.0BEVIS, em 2023-11-23, no proc. 171/22.5BEVIS, e em 2023-11-23, no proc. 450/22.1BEVIS (o primeiro disponível para consulta em www.dgsi.pt, o segundo e o terceiro, ainda não publicados).

Em suma, não tem a Recorrente razão, nada havendo a censurar à decisão recorrida.

Assim sendo, e em face do exposto, deve o presente recurso ser julgado improcedente.


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No que diz respeito à responsabilidade pelas custas do presente Recurso, a mesma cabe à Recorrente, atendendo ao seu decaimento [cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi art. 1.º, do CPTA].

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Conclusão:

Preparando a decisão, formulamos a seguinte síntese conclusiva:

I. Decorre da natureza interpretativa da Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro o facto de incidir sobre questão que no regime aplicável tinha um sentido controvertido – atenta a interpretação que do mesmo vinha sendo preconizada pela Administração fiscal, através do Ofício Circulado n.º 20215 2019-12-03, que materializou decisão emanada por Despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, a que se alude nos respetivos trabalhos preparatórios - consagrando uma solução que os tribunais poderiam ter adotado.

II. A lei interpretativa integra-se na lei interpretada.

III. Por força da norma interpretativa constante no art. 4.º-A do Decreto-Lei n.º 202/96, aditado pela Lei n.º 80/2021, de 29 de novembro, tem direito ao tratamento mais favorável o sujeito passivo portador de deficiência cuja incapacidade for reavaliada numa percentagem inferior à legalmente exigida para a obtenção de benefício fiscal, independente de essa reavaliação se dever a uma alteração de critérios técnicos introduzidos na tabela de incapacidades.

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao presente recurso, e em consequência, manter a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 19 de junho de 2024 - Margarida Reis (relatora) – Teresa Costa Alemão – Patrícia Manuel Pires.