Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:101/19.1BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:12/19/2023
Relator:PEDRO NUNO FIGUEIREDO
Descritores:LEI DA AMNISTIA; REINCIDÊNCIA
REGULAMENTO DISCIPLINAR
AUDIÊNCIA PRÉVIA DO ARGUIDO
PRINCÍPIOS DA CULPA, DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA, DO CONTRADITÓRIO E DO PROCESSO EQUITATIVO
VALOR DA CAUSA
Sumário:I. No caso de comprovada reincidência na prática de infração disciplinar, a recorrente não beneficia da amnistia prevista na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, atento o disposto no respetivo artigo 7.º, n.º 1, al. l), A,
II. A omissão de pronúncia verifica-se perante ausência de decisão expressa do tribunal sobre as matérias que os sujeitos processuais interessados submeteram à apreciação do tribunal em sede de pedido, causa de pedir e exceções, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, bem como sobre as que sejam de conhecimento oficioso, mas não perante a ausência de resposta concreta aos argumentos convocados pelas partes em defesa dos seus pontos de vista.
III. A nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, apenas se verifica perante a falta absoluta ou total ininteligibilidade dos fundamentos de facto e de direito ali vertidos e não perante a fundamentação meramente deficiente.
IV. Decorre do disposto nos artigos 32.º, n.º 10, e 269.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que no âmbito de processo disciplinar não pode ser aplicada sanção ao arguido, sem que previamente lhe seja assegurada a possibilidade de apresentar a sua defesa.
V. Prevendo o Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP), no respetivo artigo 214.º, que no procedimento disciplinar sumário é excluída a audiência prévia do arguido antes de ser proferida a decisão punitiva, esta disposição regulamentar contende com aqueles normativos constitucionais e como tal padece de inconstitucionalidade material, cabendo ao Tribunal recusar a sua aplicação.
VI. Ao não permitir ao arguido contraditar a presunção de veracidade dos elementos reportados pela equipa de arbitragem e delegados da Liga prevista no artigo 13.º, al. f), do RDLPFP, que assim se torna inilidível, esta disposição regulamentar é materialmente inconstitucional quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário, por contender com os princípios da culpa, da presunção da inocência, do contraditório e do processo equitativo, consagrados nos artigos 32.º, n.º 2, e 20.º, n.º 4 da CRP, cabendo também aqui ao Tribunal recusar a sua aplicação.
VII. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 77.º, n.º 1, da LTAD, e 33.º, al. b), do CPTA, quando esteja em causa a aplicação de sanções de conteúdo pecuniário nos processos do TAD, o valor da causa é determinado pelo montante da sanção aplicada.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais: Subsecção SOCIAL
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul
I. RELATÓRIO
Futebol Clube do Porto, SAD, recorre da decisão do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) de 13/06/2019 do TAD, que confirmou a sua condenação pela prática das infrações disciplinares p. e p. pelos artigos 127.º, n.º 1, e 187.º, n.º 1, al. b) do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional de 2017, com aplicação de sanção de multa no valor total de € 8.606 (oito mil, seiscentos e seis euros).
Termina as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem:
“I
i. O presente recurso tem por objecto o acórdão de 13.06.2019 do TAD, que confirmou a condenação da recorrente pela prática de duas infrações disciplinares (127.°-1 e 187.°-1, b) do RD), por referência a factos ocorridos no jogo realizado em 10.11.2018 (entre a aqui recorrente e o Sporting Clube de Braga), punindo-a em multas que totalizam o valor de € 8.606,00, e fixando as custas no total de € 6.125,40.
-II-
ii. No seu pedido de arbitragem necessária a Demandante, ora recorrente, invocara como um dos fundamentos para a revogação da condenação a circunstância de adoptar medidas junto dos seus adeptos, dando cumprimento ao dever de zelar e incentivar o espirito ético e desportivo a que está obrigada por força dos ditames disciplinares (como decorre da pretensão da demandante transcrita a fls. 5 e ss do acórdão recorrido).
iii. Porém, o Tribunal a quo na decisão recorrida não contém qualquer referência, mínima que seja, a esta matéria, não tomando posição sobre a questão submetida à sua apreciação.
iv. Releva, a este propósito, que a factualidade alegada e provada pela recorrente é essencial para a boa decisão da causa, tanto que tem sido um dos argumentos que vem colhendo na jurisprudência (cf. acórdão do STA de 21-02- 2019, proferido no âmbito do processo n.° 33/18.0BCLSB) e que conduz necessariamente à revogação da decisão condenatória.
v. Ao deixar de pronunciar-se sobre questão suscitada pela parte que se impunha fosse apreciada e decidida em sentença, o acórdão recorrido padece de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos da aplicação conjugada dos arts. 61.° LTAD, l.° e 95.M CPTA e 615.°-1. d) e n." 4 do CPC.
Mas mais:
vi. A recorrente impugna a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, por a considerar incorrectamente julgados, os seguintes pontos da matéria de facto dada como provada: “ “g) A Recorrente não impediu que os seus adeptos entrassem com objetos não autorizados, designadamente artefactos pirotécnicos, deflagrassem 24 (vinte e quatro) desses artefactos e permanecessem no recinto desportivo (Estádio do Dragão), durante o jogo.
h) A FC Porto, SAD não adotou as medidas preventivas adequadas e necessárias a impedir os acontecimentos protagonizados pelos seus adeptos, descritos nos facto provados em e), f) e g).
i) A FC Porto, SAD agiu de forma livre, consciente e voluntária bem sabendo que ao não evitar a ocorrência dos referidos factos perpetrados pelos seus adeptos e simpatizantes, incumpriu deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam, enquanto clube participante no dito jogo de futebol. ” (cf fls. 14 e 15 do acórdão recorrido)
vii. pretendendo que o Tribunal ad quem decida no sentido de julgar esta matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo como não provada, com as legais consequências.
viii. Ainda que se admita que na formação da convicção judicial, intervenham provas e presunções, não pode o juízo valorativo do tribunal que assenta em prova indiciária da qual se infere o facto probando ser indiferente aos demais requisitos relativos à inferência, designadamente: às regras da experiência, à fiabilidade do raciocínio (um nexo directo, preciso e conciso) e, para o que aqui releva, a inexistência de contra-indícios.
ix. Sempre se impunha ao Tribunal a quo cumprir os requisitos formais e requisitos materiais no que respeita à prova indiciária / inferências que conduzem à convicção e sentido da decisão (vd. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09-09-2015).
x. Em termos de requisitos materiais, a inexistência de contra- indicios é indicada como um dos requisitos da prova indiciária, pois, a sua verificação “cria uma situação de desarmonia que faz perder a clareza e poder de convicção ao quadro global da prova indiciária” (vd. acórdão STJ de 09-02-2012, processo n.° 233/08.1PBGDM.P3).
xi. Não podia o Tribunal a quo deixar de considerar e devidamente valorar a prova documental junta aos autos pela recorrente.
xii. Pelo que foram aportados aos autos contra-indicios que se mostram sérios, credíveis e de acordo com as regras da experiência suficientes para abalar a “harmonia*’ da prova indiciária em que se sutenta o Tribunal a quo.
xiii. Vem sendo entendimento do Supremo Tribunal Administrativo, mais precisamente no acórdão de 21-02- 2019 no processo n.° 33/18.0BCLSB, e em que o Tribunal a quo sustenta a sua decisão, que nestes casos não estamos perante uma responsabilidade objectiva, não podendo ser assacada responsabilidade ao clube quando aporte aos autos
"prova demonstradora, designadamente, de um razoável esforço no cumprimento dos deveres de formação dos adeptos ou da montagem de um sistema de segurança que, ainda que não sendo imune a falhas
Face ao exposto, resulta prejudicada a seguinte matéria julgada como provada:
"g) A Recorrente não impediu que os seus adeptos entrassem com objetos não autorizados, designadamente artefactos pirotécnicos, deflagrassem 24 (vinte e quatro) desses artefactos e permanecessem no recinto desportivo (Estádio do Dragão), durante o jogo.
h) A FC Porto, SAD não adotou as medidas preventivas adequadas e necessárias a impedir os acontecimentos protagonizados pelos seus adeptos, descritos nos facto provados em e), f) e g).
i) A FC Porto, SAD agiu de forma livre, consciente e voluntária bem sabendo que ao não evitar a ocorrência dos referidos factos perpetrados pelos seus adeptos e simpatizantes, incumpriu deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam, enquanto clube participante no dito jogo de futebol. ” (cf. fls. 14 e 15 do acórdão recorrido) devendo a mesma ser julgada como não provada e consequentemente, decidir-se pela revogação da decisão de condenação pelas infracções p. e p. pelos arts. 127.°-1 e 187.M, b) do RD.
Impunha-se ainda ao Tribunal a quo cumprir com os requisitos formais, de maior exigência de fundamentação, respeitantes à prova indiciária / inferências que conduzem à convicção e sentido da decisão, devendo explicitar o raciocínio através do qual, partindo dos factos-base, se chegou à convicção da verificação do facto punível e que o acusado o praticou ou nele participou, explicitação que é fundamental para avaliar a racionalidade da inferência, (cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09-09-2015).
xvi. Compulsado o acórdão recorrido não está nele plasmado o raciocínio inferencial efectuado pelo tribunal a quo que permitiu julgar como provado que a recorrente "incumpriu deveres legais e regulamentares que sobre si impendiam."
xvii. Pelo que, padece o acórdão recorrido de nulidade por falta de fundamentação, designadamente, a falta de explicitação das razões que subjazem à inferência, nos termos e para os efeitos da aplicação conjugada dos arts. 61.° LTAD, l.°e l.° do CPTA e 615 °-l, b) do CPC.
-III-
xviii. Face às normas e princípios que conformam o processo sancionatório, admitir a tese acolhida pelo Tribunal a quo equivaleria a uma violação das regras do ónus probatório e do princípio da presunção de inocência, o que deverá inevitavelmente conduzir ao repúdio de tal tese.
xix. Além do mais, não se pode aqui abrir a porta, a uma "prova por presunção" sobre a autoria dos factos e sobre a violação de deveres constitutiva da ilicitude típica.
xx. Com isto não se quer significar que não se possa, no domínio disciplinar desportivo, recorrer a presunções judiciais no acto decisório de valoração probatória, mas o seu funcionamento não pode ser arbitrário e contrariar exigências epistemológicas mínimas: o princípio da livre apreciação da prova não consente que se possa presumir, sem mais, que pelo facto de adeptos adoptarem comportamentos incorrectos houve, necessariamente, a montante, uma violação, pelo seu clube, dos deveres de vigilância e controlo idóneos a prevenir e evitar tais comportamentos.
xxi. A prova em sede disciplinar, designadamente aquela assente em presunções judiciais, tem de ter robustez suficiente, tem de ir para além do início da prova, para permitir, com um grau sustentado de probabilidade, imputar ao agente a prática de determinada conduta, tendo sempre presente um dos princípios estruturantes do processo sancionatório que é o da presunção da inocência, designadamente: '"todo o acusado tenha o direito de exigir prova da sua culpabilidade no seu caso particular" (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, Verbo, 2008, p. 82).
xxii. Tal critério consubstancia uma clamorosa violação ao princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a recorrente é titular.
xxiii. De todo o modo, é inconstitucional, por violação do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.° da CRP) e do princípio da presunção de inocência, presunção de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (art. 32.°-2 e -10 da CRP), a interpretação dos arts. 13.° f), 127.°-!; e 187.°-1, b) do RDLPFP e 127° do Código de Processo Penal no sentido de que a indiciação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que desde já se argui.
xxiv. Mais, deverá igualmente considerar-se inconstitucional, a interpretação do art. 13.°, ai f), do RDLPFP no sentido de que factos não constantes dos relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga podem ser dados como provados, sem mais, por presunção, se a sua verificação não for infirmada pelo arguido, por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (art. 32.°-2 e -10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20.°-4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2.° da CRP).
xxv. Se, por mera hipótese de raciocínio, assim nao se entenda, reputa-se como inconstitucional - por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente no seu direito de defesa (art. 32.°, n.os 2 e 10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20.°-4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2.° da CRP)-a interpretação dos artigos 127.M; 187.°-l,èj, 222.°-2 e 250.°-1 do RDLPFP segundo a qual a comprovação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar está sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido, podendo ser dado como provado se, resultando simplesmente indiciado através de uma prova de primeira aparência, o arguido não demonstrar a sua não verificação.
-IV-
xxvi. Pese embora estivesse em discussão nos autos a condenação da recorrente em multas no valor total de € 8.606.00. o Tribunal a quo fixou o valor do processo em € 30.000,01. viabilizando uma elevação das custas processuais (cf. Portaria n.° 301/2015: art. 2.", n.os 1 e 5, e Anexo I).
xxvii. A modificação do valor da causa promovida pelo Tribunal a quo foi feita, porém, em violação do previsto no art. 33.°, b). do CPTA, pelo que se impõe repor a legalidade, fixando-se o valor da acção no montante de € 8.606,00, e daí extraindo-se as devidas consequências.
Acresce que,
xxviii. No presente caso, a demandante recorreu de uma condenação pecuniária no valor de € 8.606,00 e, não tendo esse recurso obtido provimento, confronta-se com uma fixação de custas, decidida pelo Tribunal a quo, no valor de € 4.890,00, sobre o qual ainda acresce IVA (23%): o que perfaz um total de € 6.125,40.
xxix. Este valor de custas finais compromete o princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.°-1 e 268.°-4 da CRP).
xxx. Com efeito, o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (consagrado no art. 20.°-1. da CRP) consubstancia, cm si mesmo, um direito fundamental constituindo uma garantia imprescindível da protecção de direitos fundamentais, entre os quais o direito de acesso aos Tribunais.
xxxi. Importa não esquecer que a arbitragem necessária que antecedeu esta fase do processo é, como o próprio nome indica, uma inevitabilidade para quem pretenda reagir contra decisões Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que lhe são desfavoráveis.
xxxii. Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (artigos 20.° e 268.°-4 da Constituição) soluções normativas de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD.
xxxiii. E manifesto que este regime de custas é fortemente dissuasor do recurso à tutela jurisdicional que a lei (aparentemente) quis assegurar.
xxxiv. Uma vez que as normas conjugadamente aplicadas pelo Tribunal a quo para fixar o valor das custas finais (art. 2.°, n.os 1 e 5, conjugado com a tabela constante do Anexo I (27 linha), da Portaria n.° 301/2015, articulado ainda com o previsto nos artigos 76.71/2/3 e 77.74/5/6 da Lei do TAD) são inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade (art. 2.° da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.°-1 e 268.ü-4 da CRP), devem essas normas ser desaplicadas (art. 204.° da CRP), o que desde já se requer. Termos em que se requer a V. Exas. seja o presente recurso julgado procedente, decidindo pela absolvição da recorrente por falta de verificação dos pressupostos típicos da infracção pela qual foi condenada.
Sem prescindir requer-se seja o presente recurso julgado procedente, revogando-se a decisão arbitral recorrida e assim também a condenação da recorrente pela infracção disicplinar p. e p. pelos artigos 127.º, - 1 e 187.º, n.° 1, b), do RDLPFP, anulando-se o correspondente acto administrativo do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol.
Sem prescindir, requer-se seja reconhecida a nulidade por falta de fundamentação, nos termos e para os efeitos dos arts. arts. 61.° LTAD, l.° e l.° do CPTA e 615.°-l, b) do CPC, com as devidas e legais consequências.
Sem prescindir e sempre subsidiariamente, requer- se a V. Exas. se dignem julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação do disposto art. 2.°, n.os 1 e 5 (e respectiva tabela constante do Anexo I, 2.a linha, da Portaria n.° 301/2015, com o previsto nos artigos 76.71/2/3 e 77.74/5/6 da Lei do TAD, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.°-l e 268.°-4 da CRP) e da proporcionalidade (art. 2." da CRP), com as legais consequências”.
A recorrida FPF apresentou contra-alegações, terminando as mesmas com a formulação das conclusões que de seguida se transcrevem:
“1. 0 presente Recurso de Apelação foi interposto pela Recorrente do Acórdão do Tribunal Arbitrai do Desporto que confirmou a decisão, do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, de sancionar a ora Recorrente pela prática das infrações disciplinares p. e p. pelos artigos 127.9 e 187.9, n.9 1, al. b) do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional.
2. Em causa nos presentes autos está o comportamento incorreto dos adeptos da FCP em jogo disputado no Estádio do Dragão, contra a equipa do SC Braga, os seus adeptos terem levado a cabo comportamentos incorretos tais como deflagração de engenhos pirotécnicos bem como os adeptos do Braga terem entrado com tais engenhos.
3. A Recorrente não coloca em causa que estes factos aconteceram, coloca em causa, sim, que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas.
4. O processo sumário é um processo propositadamente célere, em que a sanção, dentro dos limites regulamentares definidos, é aplicada no prazo-regra de apenas 5 dias (cfr. artigo 259.9 do RD da LPFP) somente por análise do relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais e dos delegados da LPFP. Com efeito, quer os relatórios da equipa de arbitragem, quer os relatórios dos delegados da LPFP, têm, como se sabe, presunção de veracidade dos respetivos conteúdos (cfr. Artigo 13.9, al. f) do RD da LPFP).
5. Recorde-se, aliás, que esta forma de processo consta do Regulamento Disciplinar da LPFP, aprovado pelas próprias SAD's que disputam as competições profissionais em Portugal, entre elas a ora Recorrente.
6. Entende a Recorrente que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta do Relatório elaborado pela equipa de arbitragem, do Relatório dos Delegados da LPFP e do Relatório de Policiamento Desportivo da PSP) que a Recorrente violou deveres de formação, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como se sabe, não é possível.
7. Assim, os Relatório elaborados pela equipa de arbitragem e pelos dos Delegados da LPFP, atento o seu conteúdo, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição da Recorrente nos casos concretos. Ademais, há que ter em conta que existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento (artigo 13.al. f) do RD da LPFP).
8. Isto não significa que os Relatório dos Delegados da LPFP contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo do Relatório, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrente incumpriu os seus deveres.
9. Para abalar essa convicção, cabia ao clube apresentar contraprova, colocando em causa aquela veracidade. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.º do Código Civil.
10. Ao contrário do que afirma a Recorrente, em sede sancionatória o "arguido" não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.
11. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido do Relatório elaborado pela equipa de arbitragem, dos Relatórios dos Delegados da LPFP, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não da Recorrente. Isto mesmo entendeu, e bem, o Tribunal a quo.
12. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrente demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitrai. Mas a Recorrente nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede.
13. Decorre de forma claríssima da Regulamentação aplicável que os clubes e sociedades desportivas podem (e devem) impedir tais comportamentos, através do cumprimento dos deveres informando e in vigilando dos seus adeptos, em especial, do cumprimento dos deveres estatuídos no art9 35.5, n.9 l, ais. a), b), c) e o) do Regulamento das Competições da LPFP.
14. Ainda que se entenda - o que não se concede - que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir a Recorrente, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido - a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrente e a violação dos respetivos deveres - foi retirado de outros factos conhecidos.
15. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, ao contrário do que refere a Recorrente, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.
16. Há ainda que notar que o próprio Tribunal Arbitral do Desporto, por várias outras ocasiões, já se pronunciou em sentido diverso ao entendimento sufragado pela Recorrente, assim como o STA por oito vezes em sede de recurso de revista e o TCA Sul uma vez em sede de recurso de apelação.
17. Carece de fundamento a alegação de que as normas dos artigos 222.º, n.º 2, 250. n.º 1, 13.º, al. f) 183.º, n.ºs 2, 186.º, n.º 2 e 187.º, n.º 1, alíneas a) e b) do RD da LPFP é inconstitucional, porquanto o próprio Tribunal Constitucional já se pronunciou em matéria em tudo idêntica, defendendo a responsabilidade subjetiva neste âmbito, o que se revela conforme à CRP.
18. Também não merece qualquer censura o valor atribuído à causa porquanto a Recorrente tem um interesse que vai muito para além da mera revogação da decisão disciplinar, tanto que invoca a inconstitucionalidade das normas aplicadas.
19. O TAD apenas poderia alterar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira - limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF.
20. Assim, não existindo nenhum vício que possa ser imputado ao acórdão do Conselho de Disciplina que levasse à aplicação da sanção da anulabilidade por parte deste Tribunal Arbitrai, andou bem o Colégio de Árbitros ao decidir manter a condenação da Recorrente pela infração p. p. pelo artigo 127.º e 187.º, n.º 1, al. b) do RD da LPFP”.

Por requerimento datado de 11/05/2021, a recorrente veio suscitar a inconstitucionalidade da norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar no âmbito do processo sumário sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.º do RDLPFP, por violação do direito de audiência e defesa plasmado no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Notificada deste requerimento, a recorrida nada veio dizer.
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Perante as conclusões das alegações do recorrente, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, as questões a decidir consistem em aferir:
- da aplicação ao caso dos autos da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto;
- da nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia;
- da nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação;
- da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 214.º do RDLPFP, por violação do direito de audiência e defesa;
- do erro de julgamento da decisão da matéria de facto;
- da violação dos princípios da presunção de inocência, do direito a um processo equitativo e do Estado de direito;
- do erro na modificação do valor da causa;
- do erro quanto à fixação das custas, por inconstitucionalidade do artigo 2.º, n.os 1, 4 e 5, da Portaria n.º 301/2015, que viola os princípios da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efetiva.

Dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTOS
II.1 DECISÃO DE FACTO
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
a) No dia 10 de novembro de 2018, no Estádio do Dragão-Porto Estádio, no Porto, realizou-se 0 jogo n.° 11005 (203.01.086), disputado entre a Futebol Clube do Porto - Futebol, SAD” e a “Sporting Clube de Braga - Futebol SAD” a contar para a 10a jornada da “Liga NOS”.
b) Os espetadores pertencentes ao grupo organizado de adeptos (GOA) Super Dragões ficam nos setores 9 e 10 da bancada sul, com entrada exclusiva pela porta 8 com parametrização dos bilhetes para esta porta.
c) Os espetadores pertencentes ao Grupo Organizado de Adeptos (GOA) Coletivo Ultra 95 ficam no setor 28 da Bancada Norte, com entrada exclusiva pela porta 23 com parametrização dos bilhetes para esta porta-
d) Tais adeptos por estarem localizados em bancadas exclusivamente a eles afetos, bem assim, por serem portadores de sinais inequívocos da sua ligação ao clube tais como bandeiras, cachecóis e camisolas são apoiantes e simpatizantes da Recorrente.
e) Adeptos localizados na bancada reservada ao GOA Super Dragões, setor 10, Bancada Topo Sul, exibiram (22:28) uma taija com a seguinte frase “ORGULHOSAMENTE ARGUIDOS POR DIFAMAÇÃO NO COMBATEÀ CORRUPÇÃO
f) No decorrer do jogo, os supra identificados adeptos da Recorrente, deflagraram 24 (vinte e quatro) artefactos pirotécnicos: 12 (doze) potes de fumo cor azul nos setores 9 e 10 (entre as 20:29 e as 20:32), 6 (seis) potes de fumo cor azul, 2 (dois) petardos e 3 (três) flash light no setor 9 (entre as 22:16 e as 22:21), setores afetos exclusivamente aos GOA Super Dragões e um (1) pote de fumo no setor 28 afeto ao GOA Colectivo Ultra 95 (22:22);
g) A Recorrente não impediu que os seus adeptos entrassem com objetos não autorizados, designadamente artefactos pirotécnicos, deflagrassem 24 (vinte e quatro) desses artefactos e permanecessem no recinto desportivo (Estádio do Dragão), durante o jogo.
h) A FC Porto, SAD não adotou as medidas preventivas adequadas e necessárias a impedir os acontecimentos protagonizados pelos seus adeptos, descritos nos facto provados em e), f) e g).
i) A FC Porto, SAD agiu de forma livre, consciente e voluntária bem sabendo que ao não evitar a ocorrência dos referidos factos perpetrados pelos seus adeptos e simpatizantes, incumpriu deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam, enquanto clube participante no dito jogo de futebol
j) À data dos factos e na presente época desportiva, a Recorrente FC Porto, SAD já havia sido sancionada, por decisão definitiva na ordem jurídica desportiva, pelo cometimento de diversas infrações disciplinares.
*

II.2 APRECIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Conforme supra enunciado, as questões a decidir cingem-se a saber:
- da aplicação ao caso dos autos da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto;
- se ocorre nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia;
- se ocorre nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação;
- se ocorre inconstitucionalidade da norma contida no artigo 214.º do RDLPFP, por violação do direito de audiência e defesa;
- se ocorre erro de julgamento da decisão da matéria de facto;
- se ocorre violação dos princípios da presunção de inocência, do direito a um processo equitativo e do Estado de direito;
- se ocorre erro na modificação do valor da causa;
- se ocorre erro quanto à fixação das custas, por inconstitucionalidade do artigo 2.º, n.os 1, 4 e 5, da Portaria n.º 301/2015, que viola os princípios da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efetiva.


a) da aplicação ao caso dos autos da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto

A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, cf. o respetivo artigo 1.º.
De acordo com o disposto no artigo 2.º, n.º 2, al. b), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, consideram-se abrangidas pelo previsto neste diploma as “sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º”.
E nos termos do artigo 6.º deste diploma legal, “[s]ão amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar”.
Contudo, nos termos do artigo 7.º, n.º 1, al. l), não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei os reincidentes, conforme assinalou o Ministério Público no douto parecer que antecede.
Atento o ponto j) do probatório, não será então aplicável a Lei da Amnistia ao caso dos autos.

a) da nulidade da decisão por omissão de pronúncia

Sustenta a recorrente que o Tribunal a quo não apreciou questão de facto por si suscitada, incorrendo assim na nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.
De acordo com este preceito, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Posto que, conforme decorre do artigo 95.º, n.º 1, do CPTA, a sentença deve decidir todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação.
A invocada omissão de pronúncia verifica-se perante ausência de posição expressa ou de decisão expressa do tribunal sobre as matérias que os sujeitos processuais interessados submeteram à apreciação do tribunal em sede de pedido, causa de pedir e exceções, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, bem como sobre as que sejam de conhecimento oficioso, mas não perante a ausência de resposta concreta aos argumentos convocados pelas partes em defesa dos seus pontos de vista (cf. acórdãos do STA de 06/02/2019, proc. n.º 0249/09.0BEVIS 01161/16, e de 19/05/2016, proc. n.º 01657/12, e do TCAS de 10/01/2019, proc. n.º 113/18.2BCLSB, de 22/11/2018, proc. n.º 942/14.6BELLE, e de 16/12/2015, proc. n.º 04899/09, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Tal nulidade não procede.
É em função da definição do objeto do processo e das questões a resolver nos autos que deve ser apreciada a relevância da matéria fáctica alegada pelas partes.
Assim, nem toda a matéria fáctica que se possa considerar provada deve ser levada, sem mais, ao probatório.
Como tal, não procede a invocada nulidade.


b) da nulidade da decisão por falta de fundamentação

Defende a recorrente que a decisão recorrida é nula, por falta de especificação dos fundamentos que justificam a decisão, conforme decorre do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC.
O dever de fundamentar as decisões tem consagração expressa no artigo 154.º do CPC, no qual se estatui que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas, n.º 1, e que a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
Os casos de ocorrência da apontada nulidade são necessariamente raros, pois é consensual entre a doutrina e a jurisprudência que a nulidade da sentença por falta de fundamentação apenas se verifica perante a falta absoluta ou total ininteligibilidade dos fundamentos de facto e de direito ali vertidos e não perante a fundamentação meramente deficiente.
Nas palavras de Alberto dos Reis, “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto” (Código de Processo Civil Anotado, V Volume, 2012, p. 140).
Ou seja, “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito” (Antunes Varela, M. Bezerra e S. Nora, Manual de Processo Civil, 1985, p. 672).
Ora, como se pode de ver na motivação da decisão arbitral, não há falta absoluta de fundamentação, assentando a decisão na ponderação dos elementos de prova ali profusamente enunciados e na sua subsunção ao regime jurídico aplicável.
Como tal, apenas poderá estar em causa um eventual erro de julgamento e não a nulidade da decisão.
Não se verifica, pois, a nulidade da decisão prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. b), do CPC.


c) da inconstitucionalidade do artigo 214.º do RDLPFP

Nesta sede, veio sustentar a recorrente, já na pendência da fase recursiva, ser materialmente inconstitucional a norma contida no artigo 214.º do RDLPFP, por violação do direito de audiência e defesa plasmado no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Conforme se assinalou em acórdão do STA perante a suscitação superveniente de questão idêntica, aresto proferido em 23/09/2021 no proc. n.º 0145/19.3BCLSB (disponível em www.dgsi.pt), “a natureza oficiosa do conhecimento da inconstitucionalidade prevalece perante o argumento da ‘estabilidade da instância’, bem como perante o da limitação do objeto do recurso pelo teor das conclusões das alegações e contra alegações”.
Pelo que cumpre conhecer da mesma.
Decorre dos autos que o ato punitivo foi proferido no âmbito de procedimento disciplinar sumário.
Sendo-lhe, pois, aplicável o indicado normativo, o qual, com a epígrafe ‘obrigatoriedade de audição do arguido’ dispõe que “[s]alvo o disposto no presente Regulamento quanto ao processo sumário, a aplicação de qualquer sanção disciplinar é sempre precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido através da instauração do correspondente procedimento disciplinar”.
Confirma-se que, no caso dos autos, não foi dada oportunidade ao arguido de se pronunciar em momento prévio ao da aplicação da sanção disciplinar.
O Tribunal Constitucional já emitiu pronúncia sobre a questão em apreço, no acórdão n.º 594/2020, proferido em 10/11/2020 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt/), do qual consta o seguinte:
“A República Portuguesa, enquanto Estado Democrático de Direito, garante a existência de um processo disciplinar justo. Sendo um instrumento para apurar e punir infrações disciplinares, o processo disciplinar apresenta relações com o Direito Processual Penal, designadamente na medida em que se encontra também necessariamente subordinado a princípios e regras que assegurem os direitos de defesa.
A Constituição assume aquela relação, no artigo 32.º, sob a epígrafe “garantias do processo penal”, ao assegurar, no n.º 10, as garantias do direito de audiência e defesa nos processos contraordenacionais e em «quaisquer processos sancionatórios». Esta norma constitucional foi introduzida pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contraordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios.
De acordo com Germano Marques da Silva e Henrique Salinas «O n.º 10 garante aos arguidos em quaisquer processos de natureza sancionatória os direitos de audiência e defesa. Significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas. Neste sentido, entre outros, os Acs. n.ºs 659/06, 313/07, 45/08, e 135/09, esclarecendo-se ainda, no Ac. n.º 469/97, que esta exigência vale não apenas para a fase administrativa, mas também para a fase jurisdicional do processo» (cfr. Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda e Rui Medeiros (coord.), vol. I, Universidade Católica Editora, 2017, p. 537).
Pronunciando-se sobre o sentido da garantia prevista no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, o Tribunal Constitucional referiu no Acórdão n.º 135/2009, do Plenário, ponto 7:
«(…) [C]omo se sustentou nos Acórdãos n.ºs 659/2006 e 313/2007, com a introdução dessa norma constitucional (efetuada, pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contraordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios) o que se pretendeu foi assegurar, nesses tipos de processos, os direitos de audiência e de defesa do arguido, direitos estes que, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspondente ao atual artigo 269.º, n.º 3). Tal norma implica tãosó ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cf. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363). É esse o limitado alcance da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido rejeitada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios”, de “todas as garantias do processo criminal” (artigo 32.º-B do Projecto de Revisão Constitucional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da Assembleia da República, II Série-RC, n.º 20, de 12 de Setembro de 1996, pp. 541-544, e I Série, n.º 95, de 17 de Julho de 1997, pp. 3412 e 3466)».
No Acórdão n.º 338/2018, da 3.ª Secção, ponto 14, o Tribunal voltou a afirmar:
«No que diz respeito ao n.º 10 do artigo 32.º, referiu-se no Acórdão n.º 180/2014 que o mesmo releva “no plano adjetivo e significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção contraordenacional ou administrativa sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, pág. 363, e acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 160/2004 e 161/2004)».
Em suma, e como se reconhece no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, os direitos de audiência – de ser efetivamente ouvido antes do decretamento da sanção –, e defesa – de apresentar a sua versão dos factos, juntar meios de prova e requerer a realização de diligências – constituem uma dimensão essencial tanto do processo criminal como dos processos de contraordenação como, finalmente, também de todos os processos sancionatórios. No caso dos processos sancionatórios disciplinares no contexto da função pública, a essencialidade dos referidos direitos de audiência e de defesa é reforçada ainda pelo artigo 269.º, n.º 3, da Constituição. O sentido útil desta «explicitação constitucional do direito de audiência e de defesa é o de se dever considerar a falta de audiência do arguido ou a omissão de formalidades essenciais à defesa como implicando a ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa» (Cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, 2010, p. 841).
Exigindo o n.º 10 do artigo 32.º da Constituição que o arguido nos processos sancionatórios não penais ali referidos seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe sejam feitas, apresentando meios de prova, requerendo a realização de diligências com vista ao apuramento da verdade dos factos e alegando as suas razões, imperioso será concluir que uma norma que permita a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas se apresenta necessariamente como violadora da Constituição.
14. O processo sumário regulado no RD-LPF é um processo disciplinar. Visa punir o ilícito disciplinar com uma sanção disciplinar, tendo, portanto, natureza sancionatória. Nessa medida, encontra-se abrangido pelo âmbito de aplicação do n.º 10 do artigo 32º da Constituição. Sendo assim, inequívoco se afigura que a norma do referido Regulamento, que suprime o direito de audiência no âmbito do processo disciplinar sumário, contraria flagrantemente o disposto no artigo 32.º, n.º 10 da Constituição.
Em face do exposto, conclui-se pela inconstitucionalidade material da norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar no âmbito do processo sumário sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.º do RD-LPF, por violação do direito de audiência e defesa plasmado no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.”
Aí se decidindo a final julgar “inconstitucional a norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar, no âmbito do processo sumário, sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional”.
Decisões idênticas foram entretanto tomadas nos acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 742/2020, de 10/12/2020, e n.º 177/2021, de 06/04/2021 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt/)
Em conformidade com o exposto, verifica-se que a norma constante do artigo 214.º do RDLPFP é materialmente inconstitucional, na parte em que suprime a audiência do arguido em momento anterior ao da aplicação da sanção disciplinar no âmbito de procedimento disciplinar sumário, por violação dos direitos fundamentais de audiência e de defesa, previstos nos artigos 32.º, n.º 10, e 269.º, n.º 3, da CRP.
Como tal, é de recusar a aplicação da referida norma regulamentar, donde decorre a nulidade do ato punitivo.
Com a procedência da presente questão, queda prejudicado o conhecimento das demais questões invocadas quanto à invalidade do referido ato.


d) do valor da causa

Nesta sede, sustenta a recorrente que a modificação do valor da causa promovida pelo Tribunal a quo para € 30.000,01, ao invés do total da multa por que foi condenada, foi feita cm violação do previsto no art. 33.°, b) do CPTA, pelo que se impõe repor a legalidade, fixando-se o valor da ação no montante de € 8.606,00.
Quanto a este ponto, é por demais evidente o erro do acórdão recorrido.
Estamos no âmbito de um processo disciplinar, no âmbito do qual se concluiu pela aplicação de multas à aqui recorrente.
Prevê o artigo 77.º, n.º 1, da Lei n.º 74/2013, de 6 de setembro (Lei do Tribunal Arbitral do Desporto - TAD), que “[o] valor da causa é determinado nos termos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.”
E de acordo com o invocado artigo 33.º, al. b), do CPTA, quando esteja em causa a aplicação de sanções de conteúdo pecuniário, como aqui à evidência ocorre, o valor da causa é determinado pelo montante da sanção aplicada.
Como tal, o valor da causa corresponde a € 8.606 (oito mil, seiscentos e seis euros).


e) das custas

Mais invoca a recorrente que as custas fixadas pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efetiva e não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça.
A Portaria n.º 301/2015, prevê no respetivo artigo 2.º o seguinte:
“1 - A taxa de arbitragem necessária corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada pelo presidente do Tribunal Arbitral do Desporto em função do valor da causa, nos termos do anexo I à presente portaria que dela faz parte integrante. (…)
4 - São encargos do processo arbitral todas as despesas resultantes da condução do mesmo, designadamente os honorários dos árbitros e as despesas incorridas com a produção da prova, bem como as demais despesas ordenadas pelos árbitros.
5 - A fixação do montante das custas finais do processo arbitral e a eventual repartição pelas partes é efetuada na decisão arbitral que vier a ser proferida pelo tribunal arbitral, em função do valor da causa, nos termos do anexo I.”
O Tribunal Constitucional já se pronunciou quanto à presente questão, no acórdão n.º 543/2019, proferido em 16/10/2019, decidindo não julgar inconstitucionais as normas aludidas da Portaria n.º 301/2015, de 22 de setembro.
Aí se entendeu que “não se deve ignorar a especificidade da justiça arbitral (necessária) face à justiça estadual, nem a especificidade do tipo de litígios integrados na competência necessária do TAD face à generalidade dos demais litígios carecidos de resolução jurisdicional, sendo necessariamente diferentes as variáveis de ponderação que o legislador deve atender na fixação do valor das custas de processos que genericamente envolvem federações desportivas, ligas profissionais e clubes desportivos, e são decididos por uma entidade que, tendo natureza jurisdicional, não é pública, nem financiada pelo Estado, e tem a seu cargo custos próprios permanentes que decorrem da sua específica estrutura arbitral de funcionamento.
Neste enquadramento, não se afigura constitucionalmente censurável a fixação de um valor mínimo de custas processuais que reflita a maior capacidade económica presumida dos potenciais litigantes e permita cobrir os custos específicos mais elevados do serviço de justiça prestado pelos tribunais arbitrais, como sucede com o valor concretamente fixado na primeira linha da tabela anexa à Portaria n.º 301/2015 (€ 3.325,00).
Os eventuais excessos que o sistema de custas processuais legalmente estabelecido possa comportar, por força da amplitude do primeiro escalão tributário, devem ser sinalizados caso a caso em função do concreto valor processual da causa e do concreto valor das custas processuais cobradas. Esta tem sido, aliás, a perspetiva de análise que o Tribunal Constitucional tem adotado no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade de normas que fixam o montante das custas processuais exclusivamente em função do valor da causa, sindicando à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, não o critério em si, mas o resultado tributário concreto a que a sua aplicação conduziu no processo que deu origem ao recurso de constitucionalidade.
Sem prejuízo da pronúncia no sentido da não violação dos princípios da proporcionalidade, do acesso à justiça e da tutela jurisdicional efetiva, tal decisão não fecha a porta à possibilidade das citadas regras, que fixam o montante das custas no âmbito nos processos do TAD, poderem dar azo a um valor de custas processuais muitíssimo superior ao valor da causa, de forma patentemente desproporcional e injusta.
No caso dos autos, o valor das custas processuais terá de ser recalculado e será, à luz do citado diploma legal, inferior ao valor do processo.
Sem reflexos, contudo, no segmento decisório, atenta a necessária reformulação do valor das custas no TAD, em função da modificação do valor da causa.

Em suma, será de conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e declarar a nulidade do ato punitivo através do qual se condenou a recorrente pela prática das infrações disciplinares p. e p. pelos artigos 127.º, n.º 1, e 187.º, n.º 1, al. b) do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional de 2017, com aplicação de sanção de multa no valor total de € 8.606 (oito mil, seiscentos e seis euros), por factos ocorridos no jogo disputado entre as sociedades desportivas Futebol Clube do Porto - Futebol SAD e Sporting Clube de Braga - Futebol SAD, em 10/11/2018.

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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores deste Tribunal Central Administrativo Sul em:
§ conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e declarar a nulidade do ato punitivo através do qual se condenou a recorrente pela prática das infrações disciplinares p. e p. pelos artigos 127.º, n.º 1, e 187.º, n.º 1, al. b) do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, com aplicação de sanção de multa no valor total de € 8.606 (oito mil, seiscentos e seis euros);
§ fixar o valor da causa no montante de € 8.606 (oito mil, seiscentos e seis euros).
Custas a cargo da recorrida.

Lisboa, 19 de dezembro de 2023

(Pedro Nuno Figueiredo)
(Frederico Branco)

(Rui Pereira)