Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:219/24.9BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:11/28/2024
Relator:LUÍS BORGES FREITAS
Descritores:JUSTIÇA DESPORTIVA
PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM
PRESUNÇÕES
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA CULPA
AGRESSÃO
Sumário:I - Não ocorre a violação do princípio ne bis in idem no caso em que a Recorrente foi condenada em processo sumário pelo arremesso de objetos e pela entoação de cânticos, comportamentos não expressamente previstos nos artigos 173.º a 186.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal, mas integrantes da cláusula geral constante do seu artigo 187.º, vindo posteriormente a ser condenada no processo disciplinar por agressão, causadora de lesão não classificada de especial gravidade, a uma pessoa presente dentro dos limites do recinto desportivo, p.p. pelo artigo 182.º/2 do referido Regulamento Disciplinar.
II - No âmbito do direito sancionatório importa observar o princípio constitucional da culpa.
III - Os tipos legais das infrações praticadas pelos adeptos integram a violação, pelo clube, dos deveres que lhe são impostos e que sejam aptos a evitar aquelas infrações.
IV - Apenas se poderá presumir a violação do respetivo dever in vigilando se a agressão for cometida com um objeto cuja entrada no estádio não seja permitida.
V - Não é aceitável presumir esse incumprimento quando não se identificou a natureza do objeto através do qual foi praticada a agressão.
VI - O cometimento de uma agressão, pelo adepto da equipa visitada, ao analista da equipa visitante faz presumir que o clube visitado não cumpriu os seus deveres in formando, ainda que se reconheça que certos axiomas sociológicos poderão estar a ceder ao peso da necessidade de combate à violência nos espetáculos desportivos.
VII - Aquela presunção poderá ser posta em causa mediante mera contraprova, ou seja, criando dúvidas ao julgador na formulação do facto presumido.
VIII - Através do artigo 182.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal é punida a agressão, tout court, sobre as pessoas ali identificadas, sendo a distribuição pelos n.ºs 1 e 2 feita em função da natureza da lesão: no primeiro se causar lesão de especial gravidade, no segundo no caso contrário.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção SOCIAL
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul:


I
S… - FUTEBOL, SAD, apresentou, junto do Tribunal Arbitral do Desporto, contra a FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL, recurso do acórdão de 24.1.2024 do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que, no âmbito do Processo Disciplinar n.° 39-23/24, a condenou pela prática da infração disciplinar p. e p. pelo artigo 182.º/2 do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal, por referência aos deveres ínsitos nos artigos 35.º/1/a), b), c), f) e o) e 49.°/1, ambos do Regulamento das Competições Organizadas pela Liga Portugal, e nos artigos 4.°, 6.°/b), c), d), g) e p) e 10.°/1/a), b), i) e o) do Regulamento de Prevenção da Violência, na sanção de multa no montante de € 6.120.

Por acórdão de 1.7.2024 o Tribunal Arbitral do Desporto julgou improcedente a ação arbitral e, em consequência, manteve a decisão recorrida.

Inconformada, a S… - Futebol, SAD, interpôs recurso dessa decisão para este Tribunal Central Administrativo, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:

A. O presente recurso tem por objecto o Acórdão proferido pelo Colégio Arbitral constituído junto do TAD que julgou totalmente improcedente, por não provado, o recurso apresentado pela Recorrente S… SAD, no âmbito do Processo n.º 08/2024, que correu termos no TAD, tendo como objecto o pedido de revogação do Acórdão proferido a 24 de Janeiro de 2024, no âmbito do Processo Disciplinar n.º 39-23/24, do Conselho de Disciplina da FPF, que condenou a S… SAD pela prática de uma infracção disciplinar de "Agressões graves a espectadores e outros intervenientes", p. e p. pelo artigo 182.º, n.º 2 do RD LPFP, por referência aos deveres ínsitos nos artigos 35º, nº l, alíneas a), b), c), f) e o), e 49.º, n.º 1, ambos do RC LPFP, artigos 4.º, 6,º, alíneas b), c), d), g) e p) e 10.º, n.º 1, alíneas a), b), i) e o), do Regulamento de Prevenção de Violência, constante do Anexo VI do citado RC LPFP, na sanção de multa no montante de € 6.120,00 (seis mil cento e vinte euros).
B. Não obstante a reprovação e perseguição que todos e quaisquer comportamentos antidesportivos devem merecer por parte de todas as entidades, clubes e agentes desportivos, não pode a Recorrente conformar-se nem com os fundamentos, nem com o sentido da decisão.
C. Nos autos do processo disciplinar que deu origem ao presente processo estava em discussão a eventual responsabilidade disciplinar da Recorrente pelo alegado arremesso de um objecto, não concretamente apurado, por parte de um adepto situado na bancada atrás da baliza do topo norte do Estádio do S…; arremesso esse que terá atingido C… no olho esquerdo, após o final do jogo disputado entre a S… SAD e a F… SAD, a 29/09/2023, a contar para a Liga Portugal Betclic.
D. No entanto, a S… SAD já foi julgada e punida pelo comportamento incorrecto dos seus adeptos, consubstanciado no arremesso de moedas e isqueiros para o relvado durante e após o mencionado jogo, nomeadamente, aos 30 e aos 75 minutos de jogo, bem como no final da partida, tendo o Conselho de Disciplina, no âmbito de processo sumário, condenado a S… SAD pela prática da infracção p. e p. pelo artigo 187.º, n.º 1, al. a), do RD LPFP e aplicado sanção de multa no valor de 1.020 EUR (cf. Mapa de Castigos junto aos autos de Processo Disciplinar).
E. Pese embora o Conselho de Disciplina tenha valorado diferentemente os factos, condenando a Recorrente pela prática de infracções disciplinares distintas, o pedaço de vida sub judicio é o mesmo. E assim, ao julgar e sancionar a Recorrente pelo arremesso sub judicio, o Conselho de Disciplina violou o princípio da proibição do duplo julgamento.
F. O princípio ne bis in idem ou da proibição do duplo julgamento expressa a garantia fundamental de que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo facto, razão pela qual se encontra consagrado no artigo 29º, n.º 5, da CRP e regulamentarmente previsto no artigo 12º, do RD LPFP, que estabelece que "[n]inguém pode ser sancionado, na ordem jurídica desportiva, mais que uma vez pela prática da mesma infração".
G. Pelo sobredito, tendo o comportamento disciplinarmente relevante do público já sido apreciado e julgado na sua globalidade pela Recorrente, não é possível agora julgá-lo novamente, ainda que com qualquer outra nuance factual, mesmo à luz de norma disciplinar distinta, uma vez que o poder disciplinar já se encontra esgotado/consumido com a aplicação da sanção à essencialidade dos factos, porque estes integram um único pedaço de vida.
H. Nestes termos, constituindo a conduta imputada à Recorrente um único comportamento para efeitos de julgamento e condenação, com o devido respeito, andou mal o Tribunal a quo ao julgar não existir qualquer violação do princípio ne bis in idem, pelo que se requer ao Tribunal ad quem se digne a revogar a decisão recorrida.
I. Se assim não se entender, o que só por mero dever de patrocínio se concede, sempre se terá de entender que não foi produzida prova suficiente nos autos que permita concluir, com um grau de certeza razoável, que o adepto infractor é adepto da S… SAD, pelo que, também por essa razão, a Recorrente não pode ser sancionada por tais factos.
J. Não tendo sido possível identificar o concreto autor do arremesso através da sua identificação civil; nem sendo possível, por via de qualquer presunção legal, presumir a qualidade de adepto do S… pelo simples facto de estar em determinada bancada, por não existir qualquer presunção legal nesse sentido; nem sendo possível, em concreto, operar qualquer presunção judicial que permita inferir que a autoria do arremesso proveio de adepto da Recorrente, mas apenas de determinada bancada.
K. Estamos, pois, perante uma situação de dúvida para além do razoável que não permite concluir pela condenação da Recorrente, devendo dar-se cumprimento ao princípio do in dubio pro reo, pelo que se requer que esse Insigne Tribunal ad quem julgue procedente o presente recurso, revogando o Acórdão recorrido.
Ademais:
L. Ao contrário do afirmado pelo Tribunal a quo, a Recorrente cumpriu os deveres in vigilando e in formando que sobre si impendiam. Não pode, contudo (por muito que queira e tente), evitar todo e qualquer acto incorrecto dos seus alegados adeptos.
M. Não se conforma, por isso, a Recorrente com a afirmação do Tribunal a quo de que "nada em concreto tem sido feito, em particular acções sancionatórias directas sobre os seus associados, ou uma mudança nas eventuais acções de formação que alegadamente têm sido efectuadas", atenta a prova junta aos autos.
N. In casu, não dispunha a S… SAD de poder para, de facto, prever e evitar o comportamento sub judicio, por não lhe ser humana e praticamente possível garantir, apesar de todos os esforços e medidas tomadas, que todos os adeptos adoptem uma conduta adequada durante o espectáculo desportivo.
O. Não obstante o carácter incorrecto da conduta de arremessar objecto para o relvado, tal comportamento, praticado a partir da bancada, não foi, como é evidente, activamente praticado pela Recorrente, nem por ela poderia, de algum modo, ter sido impedido.
P. Sobretudo quando, no caso em apreço, o objecto arremessado poderá ter sido uma moeda ou um isqueiro, objectos cuja entrada e permanência no recinto desportivo é permitida, pelo que não competia à Recorrente impedir os seus alegados adeptos de acederem ao recinto com tais objectos.
Ademais:
Q. O Tribunal a quo desconsidera as regras de prova em matéria sancionatória e inverte o ónus da prova, afirmando que é à Recorrente que compete provar quais as medidas concretas que realizou no referido jogo para evitar os comportamentos dos adeptos sub judicio. É, porém, ao Conselho de Disciplina que compete a identificação e a prova de que existiam medidas concretas adicionais que a S… SAD poderia e deveria ter realizado, e não o fez, e que tais medidas adicionais, tendo sido executadas seriam adequadas a evitar o comportamento dos adeptos, o que não logrou fazer.
R. Não tendo sido produzida a mencionada prova, a conclusão de que a Recorrente violou tais deveres só seria possível se aceitássemos a tese da responsabilidade objectiva dos clubes/sociedades desportivas por condutas dos seus sócios/simpatizantes.
S. Como sabido, a responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas pelo comportamento dos seus adeptos é subjectiva, pelo que não prescinde de culpa.
T. Reprovando-se e condenando-se, mais uma vez, todos e quaisquer comportamentos antidesportivos, é inelutável concluir in casu que nenhum juízo de censurabilidade pode ser dirigido à conduta da S… SAD, seja por acção ou omissão, por manifesta falta de ilicitude e culpa quanto ao arremesso que lhe é imputado nos presentes autos.
U. A Recorrente foi condenada pela prática de uma infracção disciplinar p. e p. pelo artigo 182º n.º 2, do RD LPFP, por violação dos deveres ínsitos nos artigos 35.º, n.º1, alíneas a), b), c), f) e o) e 49.º, n.º 1, ambos do RC LPFP, artigos 4.º, 6.º, alíneas b), c), d), g), e p), e 10.º, n.º1, alíneas a), b), i) e o), do Regulamento de Prevenção da Violência, constante do Anexo VI do citado RC LPFP.
V. No âmbito da referida norma, cabem apenas os comportamentos qualificados como agressões graves; as agressões simples com reflexo no jogo inserem-se no âmbito de aplicação do artigo 181º, do RD LPFP; e as agressões simples sem reflexo no jogo, no artigo 187º, n.º 1, do RD LPFP [Comportamento incorreto do público].
W. O conceito de "agressão grave" é um conceito jurídico, pelo que a determinação de um concreto comportamento como agressão grave deve ser feita por referência a critérios jurídico-legais e não meras considerações de senso comum.
X. O artigo 182º, n.º 1, do RD LPFP prevê e pune as ofensas à integridade físicas graves que resultam numa lesão de especial gravidade.
Y. Por sua vez, o artigo 182º, n.º 2, do RD LPFP prevê e pune as agressões graves; porém, não agravadas pelo resultado.
Z. Considerando o texto da norma e a sua inserção sistemática, o referido número 2 remete para os casos em que a agressão, ainda que idónea a provocar lesão de especial gravidade, de facto, não provocou lesão qualificada como de especial gravidade.
AA. Se o objecto arremessado (cuja natureza não foi apurada) não é idóneo a causar lesão de especial gravidade, não podemos conformar-nos com a decisão do tribunal recorrido ao considerar preenchidos os elementos do tipo da infracção disciplinar p. e p. pelo artigo 182º, n.º 2, do RD LPFP.
BB. Nos termos regulamentares, se a agressão causar lesão de especial gravidade, deve, efectivamente, ser qualificada como agressão grave nos termos do artigo 182º, n.º 1, do RD LPFP. Diferentemente, se a agressão não causar lesão de especial gravidade, mas se verificar uma especial censurabilidade e perversidade na prática do ilícito, por exemplo, em virtude do meio utilizado ser idóneo a causar lesão de especial gravidade, então neste caso, a agressão deve ser (também) qualificada como grave, mas punida nos termos do número 2.
CC. No caso, a conduta consubstancia-se no arremesso de objecto que não preenche o aludido critério de especial censurabilidade e perversidade. No limite, provada a intenção de agredir, o que não sucede in casu, integraria o conceito de agressão simples, incluído por opção do “legislador” desportivo no artigo 187º, n.º1, do RD LPFP e subsumido à infracção de "comportamento incorrecto".
DD. Por conseguinte, mesmo que porventura se entenda que foi praticada infracção disciplinar, sempre deverá ser alterada a qualificação jurídica dos factos e, em virtude disso, absolver-se a Recorrente da prática da infracção p. e p. pelo artigo 182º, n.º 2, do RD LPFP e, em sua substituição, enquadrar-se a factualidade à luz do artigo 187º, n.º 1, al. a), do mesmo RD LPFP.
Nestes termos e nos mais de Direito, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente, nos termos e pelos funda mentos expostos, e, em consequência, revogado o Acórdão Arbitral com consequente revogação da sanção de multa no montante de 6.120,00 (seis mil cento e vinte euros), aplicada por alegada prática de uma infracção disciplinar p. e p. pelo artigo 182.º, n.º2, do RD LPFP, assim se fazendo a habitual
JUSTIÇA.


A Recorrida (Federação Portuguesa de Futebol) apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões, que igualmente se transcrevem:

1. O presente recurso, interposto pela Recorrente, tem por objeto o Acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto, que confirmou a decisão proferida pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol - Secção Profissional, através do qual foi confirmada a decisão de aplicação à ora Recorrente da sanção de multa fixada em € 6.120,00, pela prática de uma infração disciplinar p. e p. pelo artigo 182.º, n.º2 do RD da LPFP.
2. A Recorrente foi sancionada, pelo Conselho de Disciplina, porquanto por ocasião do jogo oficialmente identificado sob o n.º 10701, disputado entre a Recorrente (S…) e a F… - Futebol, SAD, a contar para a 9.ª jornada da Liga Portugal Betclic, realizado em 29.09.2023, no momento em que os jogadores e restante staff da F…, SAD, estavam a agradecer o apoio dos seus adeptos, o analista da F… - Futebol, SAD, C…, foi atingido, no olho esquerdo, por um objeto, não concretamente apurado, arremessado por um adepto da S… que se encontrava atrás da baliza do topo norte do Estádio, verificando-se que a Recorrente não adotou as medidas preventivas e repressivas adequadas e necessárias a impedir os comportamentos supra referidos, incumprindo deveres legais e regulamentares de segurança e de prevenção da violência que sobre si impendiam, enquanto clube participante no dito jogo de futebol.
3. Tudo conforme relatório do Delegado da Liga - a fls 9 a 11, que é congruente com o teor das declarações do participante, dos elementos escritos juntos pelo mesmo (incluindo os relatórios médicos - a fls 42, 43, 85, 86 e ss), e bem assim com todos os elementos jornalísticos publicados - cfr. nomeadamente e apenas exemplificativamente o vertido a fls. 41 a 43, 60, 64 e 70 do PD, e bem assim pelas imagens juntas aos autos e demais elementos juntos ao processo disciplinar junto aos autos.
4. Entendeu o Tribunal Arbitral do Desporto, e bem, manter a sanção aplicada à Recorrente, decisão que deve ser mantida.
5. Entende a Recorrente que o acórdão recorrido merece censura, porquanto se verifica uma violação do princípio ne bis in idem, por não resultar dos autos que os factos em crise tenham sido praticados por adeptos da Recorrente e por entender que cumpre com todos os deveres que lhe são impostos legal e regulamentarmente e ainda por não existir prova nos autos do respetivo incumprimento e ainda que admitindo a infração, por entender que se verifica erro na qualificação jurídica quanto à prática da infração p. e p. pelo artigo 182.º, n.º 2 do RDLPFP;
Sem razão, senão vejamos,
6. No que respeita à alegada violação do princípio ne bis in idem, a condenação no âmbito de processo sumário e a condenação no âmbito do Acórdão do CD da Recorrida, têm por base pedaços de vida muito distintos, quer temporal, quer material, ontológica e axiologicamente valorados do constante do objeto dos presentes autos;
7. Não pode comparar-se arremesso de moedas, ou mesmo de isqueiros sem ser na direção de alguém e sem que tenham atingido ninguém com o arremesso de um objeto (não concretamente apurado) na direção de pessoas da equipa adversária que atingiu no olho de um agente desportivo adversário;
8. De igual modo, normativamente são pedaços de vida valoráveis de modo diverso: um como comportamento incorreto do público (o conjunto de ações sancionadas em sede de processos sumários) de agressões graves a espetadores e a outros intervenientes, correspondendo a ilícitos disciplinares distintos;
Prosseguindo,
9. De acordo com o artigo 13.º, al. f) do RD da LPFP, um dos princípios fundamentais do procedimento disciplinar é o da "f) presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa".
10. Ora, o valor probatório qualificado a que o RD da LPFP alude constitui um mecanismo regulamentar compreendido e justificado pelo cometimento de funções particularmente importantes aos árbitros e delegados da LPFP, a quem compete representar a instituição no âmbito dos jogos oficiais, cumprindo e zelando pelo cumprimento dos regulamentos, nomeadamente em matéria disciplinar (ainda que isso possa não corresponder aos interesses egoísticos dos clubes).
11. De acordo com o artigo 10.º, n.º 1, al. f) do Regulamento de Arbitragem das competições organizadas pela LPFP compete à equipa de arbitragem "Elaborar o boletim de jogo, mencionando todos os incidentes ocorridos, antes, durante ou após o jogo, bem como os comportamentos imputados aos jogadores, treinadores, médicos, massagistas, dirigentes e demais agentes desportivos que constituam fundamento de sanções disciplinares, bem como eventuais alterações ao plano de viagem e sua justificação".
12. Por sua vez, de acordo com o artigo 65.º do Regulamento de Competições da LPFP, concretamente o seu n.º 2, al. i) compete aos Delegados indicados pela LPFP para cada jogo "elaborar e remeter à Liga um relatório circunstanciado de todas as ocorrências relativas ao normal decurso do jogo, incluindo quaisquer comportamentos dos agentes desportivos findo o jogo, na flash interview".
13. Ou seja, a equipa de arbitragem e os Delegados da LPFP são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos adeptos que possam originar responsabilidade para o respetivo clube.
14. Assim, quando a equipa de arbitragem ou os Delegados da LPFP colocam nos respetivos relatórios que os comportamentos perpetrados por adeptos de determinada equipa levaram ao retardamento do reinício do jogo, tal afirmação é necessariamente feita com base em factos reais, diretamente visionados pelos mesmos no local.
15. No caso concreto, também as forças policiais corroboram os factos em crise. Com efeito, não se deve ignorar que os relatórios das forças policiais, por serem exarados por "autoridade pública" ou "oficial público", no exercício público das "respetivas funções" (para as quais é competente em razão da matéria e do lugar), constituem documento autêntico (cf. artigo 363º, n.º 2, do Código Civil), cuja força probatória se encontra vertida nos artigos 369.º e seguinte do mesmo Código.
16. Nesse particular, tal relatório faz "prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora" (cf. artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil).
17. Tal valor probatório apenas pode ser afastado com base na sua falsidade (cf. artigo 372.º, n.º 1, do Código Civil), sendo que, no contexto processual penal e nos termos do artigo 169.º do Código de Processo Penal, se consideram "provados os factos materiais constantes de documento autêntico ou autenticado enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa".
18. Também o julgador disciplinar desportivo se encontra, na apreciação da prova, vinculado à especial força probatória que, nos termos já apresentados, legalmente é reconhecido ao documento autêntico - em cujo conceito se integra o Relatório de Policiamento Desportivo, elaborado, no caso concreto, pela PSP e respetivos esclarecimentos.
19. Tudo o acima exposto, não significa que os Relatórios do Árbitro e dos Delegados da LPFP contenham uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo do Relatório, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrente incumpriu os seus deveres.
20. Quer isto dizer que, não se está perante uma verdade incontestável dos factos descritos nos relatórios da equipa de arbitragem, dos delegados da LPFP e das forças policiais, podendo aquela veracidade ser colocada em causa sendo, para tal, necessário carrear meios de prova que fundadamente, é dizer, fundamentadamente, com motivo sério, com razão, coloquem em crise aquela factualidade.
21. Demonstrado que esteja que o arremesso do objeto contra um agente desportivo da equipa adversária, e atendendo à restante factualidade considerada provada, encontra-se igualmente preenchido o tipo disciplinar "Agressões graves a espectadores e outros intervenientes", p. e p. pelo artigo 182.º, n.º2 do RD da LPFP.
22. Conforme é desde logo estipulado no artigo 172.º, n.º1 do RD da LPFP: "1. Os clubes são responsáveis pelas alterações da ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial".
23. Mas tais deveres - de assegurar a ordem e disciplina - não estão apenas previstos em normas regulamentares criadas pela Federação ou pela LPFP, estão desde logo previstos na Constituição e na Lei.
24. A prevenção e combate à violência associada ao desporto, a denominada violência exógena - para além da inerente à prática desportiva presente em algumas modalidades é algo que, em particular, a partir da década oitenta do século passado, tem convocado a atenção dos Estados e das organizações desportivas.
25. No plano internacional: a Convenção Europeia sobre a Violência e os Excessos dos Espectadores por Ocasião das Manifestações Desportivas e nomeadamente em Jogos de Futebol (Tratado n.º 120, do Conselho da Europa, de 19 de agosto de 1985); a Carta Europeia do Desporto; o Código da Ética Desportiva (Comité de Ministros do Conselho da Europa, 1992 com revisões em 2001); e a Convenção Europeia sobre uma Abordagem Integrada de Safety, Security, e Service em Jogos de Futebol e Outros Desportos (Tratado n.º218, do Conselho da Europa, Saint-Denis, 3 de julho de 2016);
26. No plano da legislação desportiva nacional, valem hoje em dia as normas constantes da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho (na sua atual redação), que estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança.
27. A responsabilidade dos clubes pelas ações dos seus adeptos ou simpatizantes está prevista desde logo no artigo 46.º de tal regime jurídico, pelo que nem sequer é uma inovação ou uma invenção dos regulamentos disciplinares federativos ou da liga.
28. Como já há muito foi realçado, nesta dupla função - prevenção e combate - encontram-se presentes diversos operadores. A ação desses diversos operadores revela-se essencial para a prossecução das finalidades da lei e, ademais, assenta num previsto e determinante princípio da colaboração, com raízes constitucionais.
29. É um dever fundamental do Estado mas também desses outros operadores, previsto desde logo no artigo 79.º, n.º 2 da Constituição.
30. Assim, o Conselho de Disciplina agiu no estrito cumprimento das normas regulamentares e legais aplicáveis, não lhe sendo sequer exigível que tomasse outra decisão, nem quanto ao seu conteúdo nem quanto à forma de processo, face ao que se encontra estabelecido no RD da LPFP, aprovado, relembre-se, uma vez mais, pelos próprios clubes que integram as ligas profissionais de futebol, onde alinha também a Recorrente.
31. No caso concreto, a Recorrente foi sancionada por violação dos deveres previstos no artigo 35.º do RCLPFP.
32. Ademais, para que se possa aplicar o tipo disciplinar previsto pelo n.º 2 do artigo 182.º do RDLPFP, é necessário que, voluntariamente e ainda que de forma meramente culposa, um (i) sócio ou simpatizante de clube; (ii) agrida fisicamente; (iii) espectador ou elemento da comunicação social ou pessoa presente; (iii) dentro dos limites do recinto desportivo; (iv) antes, durante ou depois da realização do jogo; (v) sem que aquela agressão cause lesão de especial gravidade.
33. Todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido do relatório de Delegado da Liga - a fls 9 a 11, que é congruente com o teor das declarações do participante, dos elementos escritos juntos pelo mesmo (incluindo os relatórios médicos - a fls 42, 43, 85, 86 e ss), e bem assim com todos os elementos jornalísticos publicados - cfr. nomeadamente e apenas exemplificativamente o vertido a fls. 41 a 43, 60, 64 e 70 do PD, e bem assim pelas imagens juntas aos autos e demais elementos juntos ao processo disciplinar junto aos autos, pelo que, dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não da Recorrente.
34. Assim, de modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo do Relatório, cabia à Recorrente demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de defesa no âmbito do processo disciplinar ou quanto muito em sede de ação arbitral ou, ainda, quanto muito, criar na mente do julgador uma dúvida tal que levasse a, por obediência ao princípio in dubio pro reu, a decidir pelo arquivamento dos autos.
35. E não se diga que tal prova era difícil ou impossível: bastava a prova, título de exemplo, de que aplicou qualquer medida sancionatória aos seus associados ou de que tomou providências, in loco, através dos delegados indicados por si para cada jogo, seja em "casa" seja "fora" - como consta do Regulamento de Competições da LPFP - para identificar e expulsar os responsáveis pelos comportamentos incorretos; etc., etc., etc.
36. Mas a Recorrente não logrou demonstrar, cabal e factualmente, nada, limitando-se a afirmar que leva a cabo ações de formação dos adeptos. Como é evidente, alegações vagas de que fez tudo para evitar os comportamentos descritos não são suficientes para contrariar a evidência de que se tudo tivesse feito os comportamentos não teriam ocorrido!
37. Ora, as medidas in formando e in vigilando dos adeptos aptas para prevenir o mau comportamento dos mesmos são aquelas que, in casu, são aptas a produzir o resultado. Por exemplo, ficou por demonstrar a punição pela Recorrente dos seus associados infratores, ou o incentivo do espírito ético e desportivo junto dos seus adeptos.
38. Tendo em consideração a jurisprudência citada nas presentes alegações, bem como os demais elementos de prova juntos aos autos serem perentórios a referir que os comportamentos descritos foram perpetrados por adeptos da equipa visitada (aqui Recorrente), e que aqueles relatórios têm uma força probatória fortíssima em sede de procedimento disciplinar, cabia à Recorrente fazer prova que contrariasse aquela que consta dos autos e que leva à conclusão de que as condutas ilícitas foram feitas por espetadores seus adeptos ou simpatizantes e que foram violados os deveres que sobre si impendiam, o que não fez, e por isso o TAD andou bem.
39. Não há aqui, portanto, presunções, nem provas indiretas, nem factos desconhecidos que ficaram conhecidos por aplicação de regras de experiência. São factos que constam de documentos probatórios com valor reforçado. Factos e não presunções. Prova direta, não prova indireta.
40. Ainda que se entenda - o que não se concede - que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova diretos para punir a Recorrente, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido - a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrente e a violação dos respetivos deveres - foi retirado de outros factos conhecidos. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, conforme foi já por diversas vezes afirmado pelo Supremo Tribunal Administrativo.
41. É ainda importante frisar que a tese sufragada pela Recorrente, a vingar, é um passo largo para fomentar situações de violência e insegurança no futebol e em concreto durante os espetáculos desportivos, porquanto diminuir-se-á acentuadamente o número de casos em que serão efetivamente aplicadas sanções, criando-se uma sensação de impunidade em que pretende praticar factos semelhantes aos casos em apreço e ao invés, mais preocupante, afastando dos eventos desportivos, quem não o pretende fazer, em virtude do receio da ocorrência de episódios de violência.
42. É de lamentar, aliás, que este tipo de episódios, como os que deram origem ao processo disciplinar em causa nos autos, sejam cada vez mais frequentes nos nossos estádios de futebol o que apenas demonstra que os clubes falham, sistematicamente, com os seus deveres em sede de prevenção da violência, em particular a Recorrente.
43. Não se verifica qualquer erro na qualificação jurídica quanto à prática da infração disciplinar p. e p. pelo artigo 182º, n.º 2, do RD LPFP, porquanto não pode fazer-se equivaler um comportamento incorreto do público com agressões suscetíveis de criarem lesões de especial gravidade, sob pena de tal implicar até um défice (inadmissível) de proteção de bem jurídico;
44. Ademais, tal corresponderia também ao esvaziamento de conteúdo normativo do n.º 2 do artigo 182.º do RD nos casos, tal como o dos autos, em que exista a prática de uma agressão por parte de um adepto a outro ou a um interveniente (como no presente caso), suscetível de provocar lesão grave de especial gravidade (arremesso de um objeto na direção de um analista de jogo da equipa adversária atingindo-o no olho), pese embora não tenha provocado lesão de especial gravidade (a dor intensa e sequelas, apesar de graves, foram temporárias).
45. Em conclusão, andou bem o Tribunal a quo ao decidir manter a sanção ao Recorrente, não merecendo o Acórdão recorrido, nenhuma censura.
Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deve ser negado provimento ao Recurso Jurisdicional e, consequentemente, ser mantido o Acórdão Arbitral recorrido,
ASSIM SE FAZENDO O QUE É DE LEI E DE JUSTIÇA.

*

Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o Ministério Público não emitiu parecer.
*

Com dispensa de vistos, atenta a natureza urgente do processo, vêm os autos à conferência para julgamento.


II
Sabendo-se que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do apelante, as questões que se encontram submetidas à apreciação deste tribunal de apelação consistem em determinar se existe erro de julgamento:

a) Na apreciação da matéria de facto;
b) Na apreciação da alegada violação do princípio ne bis in idem;
c) Na apreciação da alegada inexistência de qualquer omissão no cumprimento dos deveres a cargo da Recorrente;
d) Na apreciação do alegado erro na qualificação jurídica da infração.


III
A matéria de facto constante da decisão arbitral recorrida é a seguinte:

1. No dia 29.09.2023 realizou-se, a contar para a 7.ª jornada da Liga Portugal Betclic, no Estádio S… o jogo oficialmente identificado sob o n.° 10701, entre a S… - Futebol, SAD e a F…, SAD.
2. No final do referido jogo, no momento em que os jogadores e restante staff da F…, SAD, estavam a agradecer o apoio dos seus adeptos, o analista da F… - Futebol, SAD, C…, foi atingido, no olho esquerdo, por um objeto, não concretamente apurado, arremessado por um adepto da S… que se encontrava atrás da baliza do topo norte do Estádio.
3. O relatório do delegado do jogo refere, inter alia:

"O delegado do F… L… veio informar que o agente desportivo C…, observador da equipa no final do jogo junto da baliza do topo norte, onde estão alocados adeptos do S…, foi agredido no olho direito com moedas tendo o mesmo ficado com a visão turva e tendo o olho ficado inchado."

4. A referência supra citada é congruente com as declarações do participante, dos elementos escritos pelo mesmo (incluindo os relatórios médicos a folhas 42, 43, 85, 86 e ss. do Processo Disciplinar), bem como com as imagens juntas aos autos.
5. O adepto que arremessou o objecto que atingiu o olho esquerdo do agente desportivo C… encontrava-se em local exclusivamente afecto aos adeptos do Demandante, nomeadamente atrás da baliza do topo norte do Estádio.
6. A Demandante, à data dos factos, tinha os antecedentes disciplinares constantes de fls. 217-246 do Processo Disciplinar.


IV
Do alegado erro de julgamento da matéria de facto

1. No acórdão arbitral deu-se como provado que o objeto em causa foi arremessado por um adepto da Recorrente (vd. facto 2). Insurge-se esta, na medida em que, e segundo alegou, «nenhuma prova foi produzida quanto à identificação do concreto autor do alegado arremesso, pelo que não pode dar-se como provado, para além de qualquer dúvida razoável, que o autor do arremesso tenha sido um adepto do S…». Isto porque «apurou-se apenas que, no final do jogo, quando jogadores, técnicos e staff da F… SAD foram agradecer aos seus adeptos, situados por trás da baliza do topo norte do Estádio do S…, foi arremessado objecto, não concretamente apurado, por adeptos que se encontravam nessa zona». Ou seja, e ainda de acordo com a Recorrente, «[o] simples facto de o objecto ter sido arremessado de uma zona do estádio em que estavam, sobretudo, adeptos da Recorrente não pode fazer presumir, para efeitos sancionatórios, a autoria dos arremessos e, consequentemente, a responsabilidade disciplinar da S… SAD».

2. Julga-se não assistir razão à Recorrente na crítica que aponta ao acórdão arbitral. Na verdade, sabe-se que o indivíduo que arremessou o objeto utilizado na agressão encontrava-se em local afeto aos adeptos da Recorrente. Evidentemente que, não obstante essa afetação, não se poderá excluir que ali se pudesse encontrar um ou outro indivíduo que não fosse adepto da Recorrente. Mas daí à conclusão de que a agressão poderia ter sido praticada por um deles vai um passo que a lógica não poderá sustentar.

3. Vejamos. Como bem diz a Recorrente, «nenhuma prova foi produzida quanto à identificação do concreto autor do alegado arremesso». Mas desse facto o tribunal nada retira, nesta sede, de relevante, pois não se vê «em que medida a identidade civil do indivíduo permite estabelecer a sua ligação ao clube, nomeadamente se estivermos perante meros simpatizantes, adeptos ou espectadores, dos quais não há, em princípio, registos nominativos de ligação ao clube» (decisão sumária n.º 246/2020, de 23.4.2020, do Tribunal Constitucional, lembrada, aliás, no acórdão de 5.11.2020 do Supremo Tribunal Administrativo, processo n.º 043/19.0BCLSB).

4. Relevante, sim, é o facto de ter sido arremessado, de uma zona afeta a adeptos da Recorrente, um objeto com o qual se agrediu um elemento da equipa visitante. Qualquer cidadão comum, minimamente conhecedor das especiais tensões do mundo futebolístico, ainda que alheio às normas jurídicas que penalizam o comportamento dos espetadores, não necessitará de grande reflexão para concluir, no contexto conhecido, que o ato só poderia ter sido praticado por um adepto da equipa visitada. A menos, claro, que se situe no lado oposto ao da racionalidade ou que evidencie um assinalável grau de ingenuidade.

5. Como se dava conta no acórdão n.º 730/95 do Tribunal Constitucional, «o núcleo essencial da violência associada ao desporto radica (…), e como realçam os sociólogos, nos espectadores, mas estes (…) são normalmente os sócios, adeptos ou simpatizantes dos clubes em presença (as chamadas claques desportivas, que se identificam com o respectivo clube desportivo)».

6. Portanto, consubstancia uma presunção natural aquela que nos conduz, com o grau de segurança exigível, à conclusão de que a agressão em causa foi cometida por um adepto da Recorrente. É que, e como afirmado no acórdão de 21.10.2010 do Supremo Tribunal Administrativo, processo n.º 0607/10, «[a] condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta, férrea ou apodíctica da sua responsabilidade, bastando que os elementos probatórios coligidos a demonstrem segundo as normais circunstâncias práticas da vida e para além de uma dúvida razoável». E como igualmente ali se recordava, «[o uso] de presunções naturais na realização dos julgamentos de facto [é] um exercício quotidiano nos tribunais, permitido pelo art. 351º do Código Civil».

7. Deste modo, tem-se como acertada a prova de que o objeto em causa foi arremessado por um adepto da Recorrente.


Da alegada violação do princípio ne bis in idem

8. De acordo com o disposto no artigo 29.º/5 da Constituição da República Portuguesa, «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime». Trata-se de um direito subjetivo fundamental que visa evitar o julgamento plural do mesmo facto de forma simultânea ou sucessiva.

9. Tal direito mostra-se igualmente refletido no artigo 12.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal (doravante, apenas Regulamento Disciplinar), nos termos do qual «[n]inguém pode ser sancionado, na ordem jurídica desportiva, mais que uma vez pela prática da mesma infração».

10. Para a Recorrente «o comportamento incorrecto dos seus adeptos, consubstanciado no arremesso de moedas e isqueiros para o relvado durante e após o mencionado jogo, nomeadamente, aos 30 e aos 75 minutos de jogo, bem como no final da partida, já foi julgad[o] e punid[o] pelo Conselho de Disciplina, que, com base em tal comportamento globalmente considerado, condenou a S… SAD pela prática [da] infracção p. e p. pelo artigo 187.º, n.º 1, al. a), do RD LPFP e aplicou sanção de multa no valor de 1.020 EUR (cf. Mapa de Castigos junto aos autos de Processo Disciplinar).

11. «Nesse sentido, tendo a Recorren[te] sido julgada e sancionada, no âmbito de processo sumário, pelo arremesso de moedas e isqueiros durante e após o jogo sub judicio, o Conselho de Disciplina esgotou as possibilidades de reavaliar qualquer um desses arremessos, ainda que de forma mais detalhada, sob outro ângulo ou com outro nomen iuris, pelo que [r]epetindo a apreciação e sancionamento deste concreto arremesso sub judicio, ainda que com outra qualificação jurídica, o Conselho de Disciplina violou o princípio da proibição do duplo julgamento».

12. Julga-se que não lhe assiste razão, tal como decidido no acórdão arbitral recorrido. É verdade que, em ambos os casos, estamos perante infrações dos espetadores, tal como refere a epígrafe da secção VI do capítulo IV do título II do Regulamento Disciplinar.

13. No entanto, e nesse âmbito, o Regulamento Disciplinar prevê diversas condutas passíveis de consubstanciarem infrações disciplinares (agressões a elementos da equipa de arbitragem, invasão do terreno de jogo com o propósito de agredir um jogador, arremesso de objetos para dentro do tereno de jogo, entre muitas outras). Depois de efetuar tal elenco (cf.. os artigos 173.º a 186.º), o Regulamento Disciplinar pune, através do disposto no artigo 187.º, o comportamento incorreto do público que não integre a factualidade prevista nos artigos anteriores.

14. Ora, relativamente ao processo sumário invocado pela Recorrente, os factos que deram origem à respetiva punição enquadram-se na tipificação residual dos comportamentos dos adeptos que correspondem a infração disciplinar e que o Regulamento Disciplinar classifica genericamente de comportamento incorreto do público. No caso esses factos foram os seguintes:


«- Comportamento incorreto do público - "Aproximadamente aos 30 minutos da primeira parte foi arremessado por adeptos da equipa A, localizados atrás dos bancos de suplentes e claramente identificados com adereços da sua equipa, na direção do banco da equipa B um isqueiro não tendo atingido nenhum elemento nem causado qualquer ferimento. Aproximadamente aos 75 minutos de jogo foi arremessado por adeptos da equipa A, localizados atrás dos bancos de suplentes e claramente identificados com adereços da sua equipa, na direção do banco da equipa B, várias moedas não tendo atingido nenhum elemento nem causado qualquer ferimento. Após o final do jogo e na saída da equipa B do relvado em direção ao túnel foi arremessado por adeptos da equipa A, localizados junto ao túnel e claramente identificados com adereços da sua equipa, na direção dos jogadores da equipa B, várias moedas não tendo atingido nenhum elemento nem causado qualquer ferimento. Foram entoados os seguintes cânticos pelos adeptos afetos ao S…, alocados nas seguintes bancadas: 1 -"Filho da Puta" aquando da execução do pontapé de baliza por parte do guarda-redes do F… ao minuto 24 e ao minuto 33 e ao minuto 57 (adeptos alocados na bancada norte) Verificámos serem adeptos do S… pelos cachecóis, camisolas e cânticos de apoio à equipa visitada» - Conforme o descrito no Relatório do Árbitro e do Delegado da LPFP)».

15. Já no caso que motivou a punição discutida nos presentes autos a factualidade é a seguinte:


«No final do jogo, no momento em que os jogadores e restante staff da F…, SAD, estavam a agradecer o apoio dos seus adeptos, o analista da F… - Futebol, SAD, C…, foi atingido, no olho esquerdo, por um objeto, não concretamente apurado, arremessado por um adepto da S… que se encontrava atrás da baliza do topo norte do Estádio.
O referido analista ficou com a visão turva e o olho inchado».

16. Temos, portanto, factualidade diversa, correspondente a infrações distintas:

a) As primeiras, arremesso de objetos e entoação de cânticos, comportamentos não expressamente previstos nos artigos 173.º a 186.º do Regulamento Disciplinar, mas integrantes da cláusula geral constante do seu artigo 187.º;
b) A segunda, uma agressão, causadora de lesão não classificada de especial gravidade, a uma pessoa presente dentro dos limites do recinto desportivo, p.p. pelo artigo 182.º/2 do Regulamento Disciplinar.

17. Por aqui se vê, pois, que não ocorre a invocada violação do princípio ne bis in idem.

18. É certo que a Recorrente ainda opõe a ideia de que «é essencial ter presente que o que está a ser disciplinarmente apreciado e valorado não é a concreta conduta de cada um dos adeptos e a responsabilidade contra-ordenacional ou porventura penal que possa incidir sobre cada um dos concretos indivíduos que praticaram cada um dos factos putativamente ilícitos (no caso, arremessos de objectos para o relvado). Sob julgamento está, sim, a alegada conduta omissiva da Recorrida, por pretensamente desvaliosa e permissiva do comportamento incorrecto dos seus espectadores, prevendo o Regulamento Disciplinar que a conduta dos adeptos, globalmente considerada, possa ser disciplinarmente imputada aos clubes se verificados os pressupostos de que depende o cometimento de uma dada infracção disciplinar».

19. Não será assim. Através do disposto no artigo 182.º/2 ou no artigo 187.º/1 não são punidas omissões. São punidas, sim, ações (dos adeptos), ainda que fundadas em omissões (dos clubes).


Da alegada inexistência de qualquer omissão no cumprimento dos respetivos deveres

20. Como resulta do acórdão de 24.1.2024 da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, a Recorrente foi punida «pela prática de uma infração disciplinar p. p. pelo artigo 182.º, n.º 2 [Agressões graves a espectadores e outros intervenientes], do RDLPFP, por referência aos deveres ínsitos nos artigos 35.º, n.º 1, alíneas a), b), c), f) e o) e 49.º, n.º 1, ambos do RCLPFP, artigos 4.º, 6.º, alíneas b), c), d), g), e p), e 10.º, n.º 1, alíneas a), b), i) e o), do Regulamento de Prevenção da Violência, constante do Anexo VI do citado RCLPFP, na sanção de multa de 60 (sessenta) UC, correspondendo ao valor de €6 120,00 (seis mil cento e vinte euros), considerando o fator de ponderação aplicável - de 1 (um) - nos termos do artigo 36.º, n.º 3 do RD».

21. É o seguinte o teor do referido artigo:

«Artigo 182.º
Agressões graves a espectadores e outros intervenientes

1. O clube cujo sócio ou simpatizante, designadamente sob a forma coletiva ou organizada, agrida fisicamente espectador ou elemento da comunicação social ou pessoa presente dentro dos limites do recinto desportivo, antes, durante ou depois da realização do jogo, de forma a causar lesão de especial gravidade, quer pela sua natureza, quer pelo tempo de incapacidade é punido com a sanção de realização de jogos à porta fechada a fixar entre o mínimo de um e o máximo de dois jogos e, acessoriamente, na sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 25 UC e o máximo de 100 UC.
2. Se a agressão prevista no número anterior não causar lesão de especial gravidade, o clube é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 25 UC e o máximo de 100 UC».


22. Sendo aquela a infração cometida, diz-nos ainda o acórdão punitivo que é «por referência aos deveres ínsitos» nos artigos ali indicados, a saber:
REGULAMENTO DAS COMPETIÇÕES
Artigo 35.º
Medidas preventivas para evitar manifestações de violência
e incentivo ao fair-play
1. Em matéria de prevenção de violência e promoção do fair-play, são deveres dos clubes:

a) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança;
b) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados;
c) aplicar medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública, impedindo o acesso aos recintos desportivos nos termos e condições do respetivo regulamento ou promovendo a sua expulsão do recinto;
(…)
f) garantir que são cumpridas todas as regras e condições de acesso e de permanência de espetadores no recinto desportivo;
(…)
o) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei;
(…)»
Artigo 49.º
Deveres genéricos dos clubes
1. Compete aos clubes, na condição de visitados ou considerados como tal, assegurar a manutenção da ordem e disciplina dentro dos seus recintos desportivos e no anel ou perímetro de segurança, antes, durante e após os jogos neles realizados, mediante policiamento e vigilância adequados, tendo em conta que os jogos deverão decorrer de acordo com ambiente de correção e lealdade exigível de qualquer manifestação desportiva.
(…)»

REGULAMENTO DE PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA
Artigo 4.º
Promoção da ética desportiva
Compete à Liga e aos seus associados, incentivar o respeito pelos princípios éticos inerentes ao desporto e implementar procedimentos e medidas destinados a prevenir e reprimir fenómenos de violência, racismo, xenofobia e intolerância nas competições e nos jogos que lhes compete organizar.
Artigo 6.º
Deveres do promotor do espetáculo desportivo
O promotor do espetáculo desportivo tem os seguintes deveres:
(…)
b) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança;
c) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados;
d) aplicar medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública, impedindo o acesso aos recintos desportivos nos termos e condições do respetivo regulamento ou promovendo a sua expulsão do recinto;
(…)
g) garantir que são cumpridas todas as regras e condições de acesso e de permanência de espetadores no recinto desportivo;
(…)
p) desenvolver ações de prevenção socioeducativa, nos termos da lei;
(…)
Artigo 10 º
Permanência dos espetadores no recinto desportivo
1. São condições de permanência dos espetadores no recinto desportivo:

a) cumprir o presente regulamento, o regulamento interno de segurança e de utilização dos espaços públicos do recinto desportivo;
b) manter o cumprimento das condições de acesso e segurança, previstas no artigo anterior;
(…)
i) não arremessar quaisquer objetos ou líquidos para o interior do recinto desportivo;
(…)
o) não praticar atos violentos, ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou entoar cânticos, de caráter racistas ou xenófobo, ou que, de qualquer modo, incitem à violência, ao racismo ou à xenofobia, à intolerância ou a qualquer forma de discriminação ou que traduzam manifestações de ideologia política.
(…)».


23. Como se sabe, a indicação de tais deveres pelo acórdão punitivo resulta do seguinte: o artigo 172.º/1 do Regulamento Disciplinar estabelece que «[o] clube é responsável pelas alterações da ordem e da disciplina provocadas pelos seus sócios ou simpatizantes nos complexos, recintos desportivos e áreas de competição, por ocasião de qualquer jogo oficial». A letra da norma aponta, claramente, para uma responsabilidade objetiva dos clubes.

24. No entanto, é indiscutível que, no âmbito do direito sancionatório, importa observar o princípio constitucional da culpa. Não poderá, por isso, e à luz da nossa lei constitucional, ser admitida uma qualquer punição prescindindo-se de um juízo de censura sobre o autor da infração.

25. Ciente desse pressuposto, o Supremo Tribunal Administrativo tem afirmado, de forma reiterada, a conformidade constitucional da solução regulamentar relativa à responsabilidade dos clubes, na medida em que considera que a sua punição pelas infrações cometidas pelos seus adeptos, e ali tipificadas, têm por fundamento as omissões daqueles. Mais concretamente, o incumprimento de deveres in vigilando e/ou in formando.

26. Portanto, uma coisa é certa: não poderá existir condenação disciplinar de um clube por uma infração praticada pelos seus adeptos sem que, concomitantemente, exista, por parte desse clube, o incumprimento de um dever. Ou seja, os tipos legais das infrações praticadas pelos adeptos integram a violação, pelo clube, dos deveres que lhe são impostos e que sejam aptos a evitar aquelas infrações.

27. E tal incumprimento, como já anteriormente se disse, poderá reportar-se quer a deveres in vigilando quer a deveres in formando. No caso dos autos o acórdão punitivo invocou ambos, como mostram os §§ 20 a 22 do presente acórdão.

28. Quanto aos primeiros (deveres in vigilando), não é aceitável, no presente caso, que assim possa ser. Na verdade, não se identificou a natureza do objeto através do qual foi praticada a agressão, não obstante – note-se - tudo indique que tenha sido com uma moeda (o relatório do delegado do jogo refere que «[o] delegado do F…, L… veio informar que o agente desportivo C…, observador da equipa no final do jogo junto da baliza do topo norte, onde estão alocados adeptos do S…, foi agredido no olho direito com moedas (…)»).

29. Mas, e é isso que processualmente releva, não foi apurada a natureza do objeto arremessado, e com o qual se concretizou a agressão. Não o sendo, não poderá presumir-se que não foram cumpridos os respetivos deveres in vigilando, pois, e como sabemos, nem todos os objetos são proibidos.

30. Como evidenciam Tiago Bastos, José Gonçalves e Sérgio Castanheira, A responsabilidade dos clubes desportivos pelo comportamento dos seus adeptos. Uma análise jurisprudencial, E-Pública – Revista Eletrónica de Direito Público, vol. 8, n.º 1, abril de 2021, p. 96, «[a]lguns objectos – moedas, isqueiros, garrafas de água (sem tampa) e bolas de papel – não são considerados proibidos podendo ser trazidos para dentro do estádio, pelo que podem passar na revista realizada à entrada para acesso ao interior do estádio, não detendo o clube qualquer possibilidade de controlar ou prevenir o seu uso individual por parte do assistente do jogo». Portanto, apenas poderá presumir-se a violação do respetivo dever in vigilando se a agressão for cometida com um objeto cuja entrada no estádio não seja permitida. Se, como no caso dos autos, não foi determinada a natureza do objeto, não se vê qual teria sido o dever in vigilando presumivelmente incumprido.

31. O mesmo já não se poderá dizer quanto aos deveres in formando. O cometimento, pelo adepto, da infração em causa faz presumir que o respetivo clube – no caso, a Recorrente – não cumpriu os seus deveres in formando, ainda que se reconheça que certos axiomas sociológicos poderão estar a ceder ao peso da necessidade de combate à violência nos espetáculos desportivos.

32. Aquela presunção, no entanto, poderá ser posta em causa mediante mera contraprova, ou seja, criando dúvidas ao julgador na formulação do facto presumido. Sucede que, vista a factualidade constante do acórdão arbitral, inexiste uma única ação que seja indicada como tendo sido levada a cabo pela Recorrente. E a matéria de facto, nessa parte, não foi posta em causa. O que, necessariamente, terá de conduzir à conclusão de que a Recorrente não abalou os fundamentos da presunção de incumprimento dos seus deveres in formando.


Do alegado erro na qualificação jurídica da infração

33. A Recorrente, recorde-se, foi punida pela prática da infração disciplinar tipificada no artigo 182.º/2 do Regulamento Disciplinar. É o seguinte o teor do referido artigo:

«Artigo 182.º
Agressões graves a espectadores e outros intervenientes

1. O clube cujo sócio ou simpatizante, designadamente sob a forma coletiva ou organizada, agrida fisicamente espectador ou elemento da comunicação social ou pessoa presente dentro dos limites do recinto desportivo, antes, durante ou depois da realização do jogo, de forma a causar lesão de especial gravidade, quer pela sua natureza, quer pelo tempo de incapacidade é punido com a sanção de realização de jogos à porta fechada a fixar entre o mínimo de um e o máximo de dois jogos e, acessoriamente, na sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 25 UC e o máximo de 100 UC.
2. Se a agressão prevista no número anterior não causar lesão de especial gravidade, o clube é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 25 UC e o máximo de 100 UC».

34. De acordo com a Recorrente, o artigo 182.º pune as agressões graves. Já as agressões simples com reflexo no jogo inserem-se no âmbito de aplicação do artigo 181.º do Regulamento Disciplinar e as agressões simples sem reflexo no jogo integram a infração disciplinar p. e p. pelo artigo 187.º/1 do mesmo regulamento (comportamento incorreto do público). Entende, por isso, que a factualidade dos autos apenas poderia ser enquadrada à luz do artigo 187.º/1/a).

35. Julga-se que não lhe assiste razão, na medida em que se entende que resulta da conjugação das normas contidas nos artigos 173.º, 179.º, 181.º e 182.º que as agressões são sempre punidas de forma especial, inexistindo qualquer situação dessa natureza que não caiba num dos tipos ali identificados e que, por essa razão, caia na figura genérica do comportamento incorreto do público a que se reporta o artigo 187.º.

36. No caso específico do artigo 182.º, o facto ali previsto é a agressão, tout court, sobre as pessoas ali identificadas, sendo a distribuição pelos n.ºs 1 e 2 feita em função da natureza da lesão: no primeiro se causar lesão de especial gravidade, no segundo no caso contrário.

37. Independentemente do maior ou menor rigor da epígrafe, o texto da norma não vai no sentido do entendimento da Recorrente, nos termos do qual o artigo 182.º prevê e pune apenas as agressões graves.

38. O trecho de forma a causar lesão de especial gravidade não pode ser visto com essa compartimentação, mas sim na integralidade relevante, isto é, de forma a causar lesão de especial gravidade, quer pela sua natureza, quer pelo tempo de incapacidade.

39. Ora, a referência ao tempo e grau de incapacidade tem natureza concreta, conhecida após a concretização da agressão. Portanto, no n.º 1 punem-se as agressões que causem lesões de especial gravidade (às pessoas aí indicadas).

40. Já o n.º 2 reporta-se às agressões previstas no n.º 1 que não causem lesões de especial gravidade. E as agressões previstas no n.º 1 são as agressões a espectador ou elemento da comunicação social ou pessoa presente dentro dos limites do recinto desportivo (que não integrem alguma das normas precedentes). É, pois, o resultado da agressão que distingue os n.ºs 1 e 2.

41. A fórmula utilizada é, aliás, idêntica à do n.º 2 do artigo 173.º. O próprio n.º 1 deste artigo vai no mesmo sentido, ainda que o trecho relevante não seja exatamente o mesmo. Ali se diz (destaque nosso, evidentemente):


«O clube cujo sócio ou simpatizante agrida fisicamente elementos da equipa de arbitragem, agentes de autoridade em serviço, delegados e observadores da Liga Portugal, dirigentes, jogadores e treinadores, coordenador de segurança, assistentes de recinto desportivo e demais agentes desportivos ou qualquer pessoa autorizada por lei ou regulamento a permanecer no terreno de jogo, de forma a dar causa a que, justificadamente, o árbitro não dê início ou reinício ao jogo ou o dê por findo antes do termo regulamentar (…)».


42. Também aqui nenhumas dúvidas se colocarão quanto ao facto de não estar em causa a mera suscetibilidade de provocação de alterações aos tempos de jogo, mas sim a efetiva ocorrência dos factos ali referidos (que o árbitro, justificadamente, não dê início ou reinício ao jogo ou o dê por findo antes do termo regulamentar). Acresce que, não obstante a epígrafe do artigo (agressões graves em geral), é evidente que a agressão do n.º 1 não terá de ter a natureza da defendida pela Recorrente. Bastaria uma agressão idêntica à dos autos, na pessoa do árbitro, que levasse a que o jogo fosse dado por findo antes do termo regulamentar.

43. Concluindo: a punição que aqui se discute resulta de uma agressão a pessoa presente dentro dos limites do recinto desportivo, não causadora de lesão de especial gravidade, pelo que nenhuma razão existe para afastar a solução adotada pelo acórdão punitivo e pelo acórdão arbitral recorrido.


V
Em face do exposto, acordam os Juízes da Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente (artigo 527.º/1 e 2 do Código de Processo Civil).


Lisboa, 28 de novembro de 2024.

Luís Borges Freitas – relator
Frederico de Frias Macedo Branco – 1.º adjunto
Teresa Caiado – 2.ª adjunta