Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:3524/22.5 BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:06/07/2023
Relator:CATARINA VASCONCELOS
Descritores:PROCESSO CAUTELAR
LEGITIMIDADE ATIVA
Sumário:Para aferir da legitimidade ativa em sede impugnatória tem de concluir-se que o Autor é titular de um interesse direto e pessoal.
Votação:Unanimidade
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – Relatório:

A FNKDA - Federação de Desportos de Combate intentou, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, o presente processo cautelar contra a Presidência do Conselho de Ministros e, na qualidade de contrainteressada, contra a Federação Portuguesa de Kickboxing e Muaythai (FPKMT), pedindo: a) que fosse suspensa a eficácia do Despacho n.º 11596-A/2021, de 23 de novembro de 2021, do Secretário de Estado da Juventude e do Desporto, J... ; b) que fosse suspensa a eficácia do Despacho n.º 12600/2022, de 21 de outubro de 2022, do Senhor Secretário de Estado da Juventude e do Desporto, J... ; c) que fosse o Governo, provisoriamente, condenado a cancelar o estatuto de utilidade pública desportiva que renovou e alargou à FPKMT através dos dois despachos referidos em a) e b).

Por sentença de 5 de janeiro de 2023 foi julgada procedente a exceção de ilegitimidade ativa e a Entidade Requerida, absolvida da instância.

Inconformada, a Requerente recorre de tal decisão formulando as seguintes conclusões:
A. O presente recurso apresentado por FNKDA – Federação de Desportos de Combate vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, que julgou procedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa da aqui Recorrente e, em consequência, absolveu o Recorrido da instância;
B. Não se conforma a Recorrente com tal decisão, pelo que peticiona, em sede de apelação, que a sentença recorrida seja revogada, sendo consequentemente julgado procedente o processo cautelar;
C. Foi proferido, a 23 de novembro de 2021, pelo Senhor Secretário de Estado da Juventude do Desporto, o Despacho n.º 11596-A/2021, que renovou parcialmente o estatuto de utilidade pública desportiva à Contrainteressada;
D. Posteriormente, a 28 de outubro de 2022, foi proferido, também pelo Senhor Secretário de Estado da Juventude e do Desporto, o Despacho n.º 12600/2022, que alargou o âmbito do estatuto de utilidade pública desportiva concedido à Contrainteressada a outras modalidades;
E. A Recorrente pertence, desde 2 de novembro de 2022, à WAKO – World Association of Kickboxing Organizations, reconhecida pelo Comité Olímpico Internacional como a federação internacional que regula a modalidade;
F. Por seu turno, e por deliberação da Assembleia Geral daquela entidade, a Contrainteressada foi expulsa da mesma, não sendo, à data, membro;
G. Quando numa determinada modalidade a entidade reguladora a nível mundial for uma federação desportiva internacional, a lei exige a filiação nessa mesma federação;
H. a partir do momento em que a Contrainteressada deixou de pertencer à WAKO – World Association of Kickboxing Organizations perdeu as qualificações necessárias à manutenção do estatuto de utilidade pública desportiva e, consequentemente, a natureza de federação desportiva em Portugal;
I. É por essa razão que o Despacho do Senhor Secretário de Estado da Juventude e do Desporto padece de ilegalidade, na medida em que não podia renovar o estatuto de utilidade pública desportiva à FPKMT - FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE KICKBOXING E MUAYTHAI, entidade que (já) não apresenta os requisitos legais para conservar o referido estatuto;
J. Tem a Recorrente legitimidade processual ativa para requerer a providência cautelar requerida, uma vez também a tem para impugnar os atos administrativos em apreço.
K. Dado o princípio da unicidade federativa, a Recorrente só poderá obter o estatuto de utilidade pública desportiva e o reconhecimento da qualidade de federação desportiva se a Contrainteressada perder tal estatuto e tal qualidade.
L. Não reunindo a Contrainteressada os pressupostos necessários à atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva, e sendo a Recorrente a única entidade que os reúne em Portugal, pode concluir-se que será ela a federação da modalidade de kickboxing, uma vez removido o obstáculo constituído pela ilegal titularidade do estatuto de utilidade pública desportiva na titularidade da Contrainteressada

M. Como resulta da jurisprudência e doutrina correntes, a Contrainteressada é parte legítima de acordo com o critério do interesse direto e pessoal na anulação dos atos impugnados, assim como o é de acordo com o critério da lesão do interesse legalmente protegido (art. 55.º, n.º 1, al. a), do CPTA).
N. Não pode, assim, ter-se como certeiro o entendimento do Tribunal a quo de que a Recorrente carece de legitimidade processual ativa porque “não é possível estabelecer uma ligação direta entre as ilegalidades imputadas ao(s) ato(s) suspendendo e uma lesão da posição jurídica subjetiva da Requerente”.
O. Conforme demonstrou a Recorrente em primeira instância, os pressupostos do fumus boni iuris, do periculum in mora e da verificação de que o prejuízo resultante do decretamento da providência para o requerido não excede consideravelmente o valor do dano que com a mesma se pretende evitar encontram-se preenchidos;
P. Assim, por se encontrarem reunidos os pressupostos de decretamento da providência cautelar e por ter a Recorrente legitimidade processual ativa, deve ser decretada a providência cautelar de suspensão de eficácia do Despacho n.º 11596-A/2021, de 23 de novembro, e do Despacho n.º 12600/2022, de 28 de outubro, ambos proferidos pelo Senhor Secretário de Estado da Juventude e do Desporto – ou outra providência que seja considerada mais adequada às circunstâncias do caso.

A Contrainteressada PPKMT, apresentou contra-alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
A. A recorrente, com os autos cautelares, verdadeiramente deseja criar um cenário de caos nas modalidades do kickboxing e do muaythai (uma vez que a perda do estatuto de UPD por parte da FPKMT, nunca significaria a sua atribuição à recorrente), ao pretender que ambas as modalidades fiquem sem qualquer direcção regulatória, o que abriria a porta à realização de combates ilegais em Portugal, nomeadamente os organizados pela recorrente, a WAKO e a WAKO PRO, justificando, desta forma, a actividade ilegal da recorrente em território nacional e que está a ser alvo de averiguação por parte do Ministério Público.

B. A decisão a quo não padece de qualquer vício e não violou qualquer disposição legal, pelo que deve ser mantida na íntegra, encontrando-se devidamente fundamentada e não apontando a recorrente qualquer fundamento válido que a possa abalar.
C. O processo de formação da convicção do tribunal recorrido e a sua fundamentação são irrepreensíveis.
D. O prazo de 3 meses para a impugnação dos dois despachos em apreço (art.º 58.º n.º 1 alínea b) do CPTA) encontra-se esgotado, sem que a recorrente tenha dado entrada de qualquer acção principal.
E. Tal prazo tem cariz substantivo, não processual, sujeito a caducidade e cujo decurso implica a extinção do respectivo direito, não se aplicando, actualmente, as regras referentes às férias judiciais.
F. As providências cautelares dependem sempre de uma acção principal a que visam dar utilidade, ou seja têm natureza instrumental relativamente à causa de que depende, pelo que a caducidade do direito da acção principal fundamenta a extinção do processo cautelar, por inutilidade superveniente da lide, por falta de utilidade da providência (art.º 123º, nº 1, al a) do CPTA).
G. Verifica-se, assim, a inutilidade absoluta do presente recurso pois é absolutamente inútil no seu reflexo sobre os autos cautelares que se extinguem por ter operado a caducidade do direito de propor a acção principal.
H. O art.º 2.º alínea a)-iii do RJFD define que é considerada federação desportiva a pessoa colectiva que, entre outros requisitos, se proponha “Representar a sua modalidade desportiva, ou conjunto de modalidades afins ou associadas, junto das organizações desportivas internacionais, bem como assegurar a participação competitiva das selecções nacionais”, norma similar à do art.º 14.º da LBSD.
I. A FPKMT é titular do estatuto de UPD há 26 anos e no passado esteve filiada noutras organizações desportivas internacionais que não a WAKO (ex. IFMA - International Federation of Muahthay amateur, também na WKF - World Kickboxing Federation).
J. À data dos despachos em crise (situação que actualmente se mantém), a FPKMT estava filiada numa organização desportiva internacional que também regula a modalidade do Kickboxing, denominada “ISKA – International Sport Kickboxing Association” (ISKA).
K. A ISKA está presente em todos os continentes e organiza títulos europeus, mundiais ou intercontinentais, pelo que cumpre o requisito de representação internacional da modalidade.
L. O Comité Olímpico de Portugal (membro do Comité Olímpico Internacional) expressamente reconhece a FPKMT como federação desportiva nacional dotada de estatuto de UPD e a sua filiação na ISKA.
M. O facto de recentemente a recorrente (mesmo não sendo reconhecida pelo Estado Português e pelo Comité Olímpico Português como uma federação nacional) se ter filiado na denominada WAKO (aliás, em total contradição com os estatutos desta que apenas permitem a filiação como membros de federações nacionais reconhecidas pelos Estados nacionais e respectivos Comités Olímpicos) é de todo irrelevante e inócuo para a boa decisão da causa.
N. A legitimidade para a acção principal é aferida pelo referido no artigo 55.º, n.º1 alínea a) do CPTA.
O. À data dos despachos de 2021 (publicado em 23.11.2021) e de 2022 (publicado em 28.10.2022) a FNKDA não estava filiada em qualquer organização internacional da modalidade do Kickboxing (ao que confessa, está filiada na WAKO apenas desde 02.11.2022), pelo que não poderia ter-se candidatado à atribuição do estatuto de UPD – pois, confessadamente, não cumpria com pelo menos o requisito de filiação internacional.
P. Não se vislumbra qualquer interesse directo e pessoal da recorrente na suspensão da eficácia dos actos impugnados (art.º 112.º n.º 1 e 55.º n.º 1-a CPTA), porquanto o decretamento da providência cautelar não implicaria qualquer vantagem automática para a sua esfera jurídica: a recorrente continuaria a ser uma associação de direito privado, destituída de UPD, sem poderes para regulamentar a modalidade e gerir as selecções nacionais, ou para outorgar contratos-programa de financiamento com o Estado Português.

Q. Não se verificam nenhum dos requisitos necessários ao decretamento da providência cautelar: fumus boni iuris, periculum in mora e proporcionalidade/adequação da providência cautelar.
R. É pacífico na jurisprudência dos tribunais administrativos superiores que as alegações que assentam em cenários hipotéticos, simples conjecturas alarmistas e adivinhatórias, não podem preencher o requisito do periculum in mora.
S. Não seriam os autos cautelares em análise que iriam alterar a actual situação da recorrente de não ser titular de estatuto de UPD (nunca o foi, aliás!), pelo que mesmo com o seu deferimento a sua situação jurídica se manteria inalterável, não decorrendo daí qualquer prejuízo causado pelos despachos em apreço.
T. A FPKMT, que detém estatuto de UPD há 26 anos e que, desde então, consolidou toda uma regulação e organização da actividade do Kickboxing em território nacional, tem, na presente época desportiva, inscritos, nas mais diversas provas oficiais (campeonatos nacionais, campeonatos regionais, taças de Portugal e galas nacionais) e nas várias categorias / escalões 3065 atletas, 230 treinadores, 61 árbitros e 161 clubes, espalhados por Portugal continental, Madeira e Açores.
U. O decretamento do peticionado nos autos cautelares implicaria a imediata paralisia de todas as actividades e competições organizadas pela FPKMT em território nacional, originando-se um caos desportivo com ausência de federação desportiva que regule a modalidade de Kickboxing e a de Muaythai.

A Requerida Presidência do Conselho de Ministros apresentou contra-alegações, concluindo o seguinte:
A. A Recorrente confunde o seu papel com o do Ministério Público: advoga a defesa da legalidade objetiva e não evidencia o interesse direto e pessoal na demanda.
B. Não se alcança qualquer conexão entre as invocadas ilegalidades dos atos suspendendos e uma lesão da sua posição jurídica subjetiva.
C. Está provado que à data em que foi renovado o estatuto de utilidade pública desportiva à contrainteressada não podia a Recorrente beneficiar desse mesmo estatuto, por incumprimento dos elementares requisitos legais para o efeito.
D. A Recorrente não demonstra assim qualquer interesse direto e pessoal na suspensão da eficácia dos atos suspendendos, i.e. não tem a Recorrente legitimidade processual.
E. Pelo que bem decidiu o tribunal a quo “sem necessidade de mais amplas considerações, pela verificação da exceção de ilegitimidade ativa da Recorrente, na medida em que não é titular de um interesse direto – cfr. artigo 89.º, n.º 1, 2 e 4, alínea e) do CPTA, artigo 278.º, n.º 1, alíneas d) e e) 576.º, n.º 1 e2 e 577.º, n.º e) do CPC, ex vi do artigo 1.º do CPTA.” (cfr. p. 11 da sentença recorrida).
F. A Recorrente aponta ainda a anulabilidade dos despachos n.º 11596-A/2021, de 23 de novembro e n.º 12600/2022, de 21 de outubro, com fundamento em suposta violação de regras legais ou regulamentares.
G. Sucede, porém, que o prazo de impugnação de atos anuláveis é de três meses, nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º 58.º do CPTA,
H. O qual já decorreu há muito: o Despacho n.º 11596-A/2021 foi publicado em Diário da República em 23 de novembro de 2021 e o Despacho n.º 12600/2022 em 21 de outubro de 2022, sem que haja notícia da sua impugnação.
I. Pelo que, caducou o direito de ação, nos termos da al. a) do n.º 1 do art.º 123.º ex vi al. b) do n.º 1 do art.º 58.º ambos do CPTA, exceção dilatória nominada que determina a absolvição da instância, de acordo com a leitura conjugada do n.º 1, n.º 2 e al. k) do n.º 4 do art.º 89.º do CPTA.
J. Para além do mais, os processos cautelares extinguem-se se o Recorrente não fizer uso, no respetivo prazo, do meio contencioso adequado à tutela dos interesses a que o pedido de adoção de providência cautelar se destinou (al. a) do n.º 1 do art.º 123.º do CPTA).
K. A Recorrida não foi até à data citada da ação principal, pelo que se encontra verificada uma causa de extinção do presente processo cautelar, nos termos e para os efeitos do art.º 123.º do CPTA.
L. Caso haja a Recorrente intentado tempestivamente a ação principal, aguardando-se apenas a respetiva citação, sempre se dirá que tal ação só poderia eventualmente ser tempestiva quanto ao despacho de 2022 (despacho n.º 12600/2022, de 21 de outubro) e já não quanto ao despacho originário de 2021 (despacho nº 11596-A/2021, de 23 de novembro).

M. E se assim é, não se descortina o efeito útil para as suas pretensões, na medida em que se trata de um despacho que apenas amplia o estatuto de utilidade pública desportiva da Federação Portuguesa de Kickboxing e Muaythai, já reconhecido pelo (inimpugnável) Despacho n.º 11596-A/2021.
N. Por outras palavras, trata-se de um despacho instrumental daqueloutro que a Recorrente não impugnou tempestivamente, que a ser impugnado autonomamente não obstaculiza ao reconhecimento do estatuto de utilidade pública desportiva da Federação Portuguesa de Kickboxing e Muaythai,
O. Assim ficando definitivamente inviabilizada a pretensão de a Recorrente obter tal estatuto, face à impossibilidade legal de coexistência de 2 federações com o mesmo objeto estatutário (art.º 15.º do Regime Jurídico das Federações Desportivas – Decreto-Lei n.º 2458-B/2008, de 31 de dezembro.
P. Ou seja, torna-se verdadeiramente impercetível a utilidade da lide perante a caducidade do direito de ação manifesto quanto ao Despacho n.º 11596-A/2021, de 23 de novembro, pelo que igualmente se verifica uma causa de extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide (cfr. al. e) do n.º 1 do art.º 27.º do CPTA).
Q. A Recorrente não demonstrou também a verificação dos pressupostos legais para o decretamento de uma providência cautelar.
R. Primeiro, a Recorrente não demonstrou a verificação de uma situação de facto consumado, isto é, de uma situação de impossibilidade da reintegração da sua esfera jurídica, no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente.
S. O que estará em causa no processo principal será determinar se os atos praticados pelo Secretário de Estado da Juventude e do Desporto são inválidos.
T. Sucede que a ser declarada a sua invalidade, tal poderia significar, hipoteticamente e em última análise, (i) a prática de novo ato sem as apontadas invalidades, (ii) a alteração dos termos do reconhecimento de utilidade pública da Federação Portuguesa de Kickboxing e Muaytai ou até (iii) a ausência de reconhecimento de qualquer entidade como idónea para obter o estatuto de utilidade pública desportiva.

U. Na esfera jurídica da Recorrente, não se identificam quaisquer efeitos, i.e não se verifica qualquer “situação de facto consumado” que se consolida na ordem jurídica por força dos atos suspendendos e que levará à perda do efeito útil da sentença no processo principal.
V. Afigura-se também evidente que, ao invés do que defende a Recorrente, a existirem “prejuízos de difícil reparação” (cfr. n.º 1 do art.º 120.º do CPTA) estes não resultam da produção de efeitos dos atos suspendendos,
W. Os prejuízos que se identificam afetam a esfera pública e resultam de sucessivas diligências registais infrutíferas da Recorrente, agravadas pela usurpação de um estatuto jurídico de que não é titular, sabendo que a Federação Portuguesa de Kickboxing e Muaythai é a federação portuguesa destas modalidades, tutelando as modalidades de Kickboxing e Muaythai em todas as suas disciplinas.
X. Isto é, promove e regulamenta e organiza as suas 2 modalidades, representa o Kickboxing e o Muaythai junto das entidades nacionais e internacionais, assim como organiza e assegura a participação competitiva das Seleções Nacionais.
Y. Por tudo quanto se expôs, dos atos em crise não se extraem, como parece defender a Recorrente, “prejuízos de difícil reparação”
Z. E a existirem prejuízos da Recorrente, que esta teria de demonstrar, estes sempre seriam suscetíveis de adequada compensação, nos termos gerais da responsabilidade civil.
AA. No âmbito do processo principal, a questão que cumprirá dirimir respeita à validade ou invalidade dos atos suspendendos, não estando demonstrado qualquer vício que acarrete a respetiva invalidade.
BB. Por um lado, a Recorrente não consegue identificar, para depois demonstrar, qual ou quais as concretas invalidades dos atos do Secretário de Estado da Juventude e do Desporto.
CC. Por outro lado, a interpretação que faz das regras legais aplicáveis constitui um erro de interpretação, confundindo modalidades olímpicas e modalidades não olímpicas (como as que estão em causa) para efeitos de obtenção de estatuto de utilidade pública desportiva.

DD. E parecendo ignorar que desde 2004 que o legislador deixou de prever a filiação em federação desportiva internacional como critério para a atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva.
EE. A Federação Portuguesa de Kickboxing e Muaythai é detentora do Estatuto de Utilidade Pública Desportiva para as modalidades de Muaythai e Kickboxing, que lhe foi conferido pelo Despacho n.º 11596-A/2021, de 23 de novembro de 2021, publicado na 2.ª Série do DR de 23 de novembro de 2021.
FF. No entanto, relativamente à modalidade de Kickboxing, este Despacho estabeleceu que apenas seria atribuído o estatuto de utilidade pública desportiva para as disciplinas de ringue: oriental rules, full contact, low kick e K1, ficando de fora as disciplinas de tatami: semi- contact (point fghting), light contact, light rules e as formas musicais.
GG. Por impulso da Federação, foi ao conhecimento do Secretário de Estado e do IPDJ o regulamento competitivo das provas da ISKA (entidade internacional na qual a FPKMT se encontra filiada), aprovado em janeiro de 2022 e publicado na página oficial da ISKA, onde são identificadas as provas de tatami, nomeadamente de semicontact (point fghting), light contact, light rules e as formas musicais.
HH. A referida Federação remeteu também uma declaração da ISKA que reitera a inclusão das provas de tatami nos seus regulamentos, dando nota que organiza provas de kickboxing nas suas diversas disciplinas, incluindo as provas de tatami.
II. Assim, e considerando que (i) é a FPKMT que, ao longo do tempo, vem promovendo as modalidades de Muaythai e Kickboxing e suas disciplinas; (ii) que foi renovado o estatuto de utilidade pública desportiva; e que, por fim, (iii) fez prova da representação internacional das disciplinas de tatami na modalidade de Kickboxing, condicionadas pelo Despacho n.º 11596- A/2021, de 23.11.2021,
JJ. Entendeu – e bem – o Secretário de Estado que se encontravam reunidas as condições para estender o estatuto de utilidade pública desportiva da Federação a estas disciplinas, o que fez por despacho de 21 de outubro de 2022, publicado na 2.ª Série do DR de 28 de outubro de 2022.
KK. A FPKMT apresentou os regulamentos da ISKA e comprovou-se que estes regulamentam o kickboxing nas disciplinas de ringue (num primeiro momento) e de tatami (num segundo momento), pelo que ao abrigo do direito interno o Estado Português só teria de deferir os pedidos de renovação do estatuto.
LL. Está evidenciada a diminuta probabilidade de êxito da Recorrente no processo declarativo considerando-se não verificado o requisito previsto no n.º 1, do art.º 120.º do CPTA, para efeitos de hipotético decretamento da providência requerida.
MM. Ad absurdum se se entendesse que estão verificados os requisitos fixados no n.º 1 do artigo 120.º do CPTA, seria ainda de aplicar ao caso o disposto no n.º 2 do mesmo preceito.
NN. Ora conforme demonstrado, a concessão da providência em nada favorece os alegados interesses da Recorrente, nem tão-pouco os interesses que, segundo alega, se sobrepõem ao interesse público.
OO. É que a tutela do interesse público impõe que o estatuto de utilidade pública desportiva seja reconhecido a entidades idóneas e impõe igualmente que seja respeito o princípio da unicidade federativa.
PP. Mais impõe que uma federação regularmente constituída – que não é o caso da associação da Recorrente – assegure o cumprimento dos deveres e obrigações próprios da atividade federativa.
QQ. Ora, a proceder a providência cautelar da Recorrente, com o argumento da tutela de interesses privados difusos e pouco concretizados a tutela do interesse público ficaria fortemente afetada
RR. Podendo resultar verdadeiramente resultar um vazio, traduzido na ausência de exercício de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública ínsitos ao estatuto de utilidade pública desportiva (cfr. art.º 10.º do RJFD).
SS. Assim sendo, nenhum dos “interesses privados” que a Recorrente alega sobreporem-se ao interesse público está demonstrado, pelo que inevitavelmente não se encontra preenchido o n.º 2 do art.º 120.º do CPTA.
TT. Isto é, inexistem “interesses privados superiores ao interesse público” que permitam a concessão da providência.
UU. Em suma, impõe-se a recusa da providência, porquanto a Recorrente não logrou demonstrar ou provar a existência de danos que se sobreponham ao interesse público em presença.

O Ministério Público junto deste Tribunal não se pronunciou.


II – Objeto do recurso:
Em face das conclusões formuladas, cumpre decidir se o Tribunal a quo incorreu em erro ao julgar a Requerente parte ilegítima violando assim os art.ºs 112º, n.º 1 e 55º, n.º 1, al. a) do CPTA.


III - Fundamentação De Facto:

São os seguintes os factos indiariamente provados, com relevância para a decisão:
1. Por despacho do Secretário de Estado da Juventude e do Desporto de 23 de novembro de 2021 (publicado nesse mesmo dia no Dário da República, 1.º supl., II série, parte C) foi renovado o estatuto de utilidade pública desportiva da Federação Portuguesa de Kickboxing e Muaythai sendo que, relativamente à modalidade de Kickboxing, tal renovação apenas abrangeu as disciplinas de oriental rules, full contact, low kick e K1.

2. Por despacho do Secretário de Estado da Juventude e do Desporto de 21 de outubro de 2022 (publicado no dia 28.10.2022 no Dário da República, II série, parte C) foi alargado o âmbito do estatuto de utilidade pública desportiva concedido à Federação Portuguesa de Kickboxing e Muaythai, na modalidade

de kickboxing, às disciplinas de semi-contact (point-fighting), light-contact, K1-light (kick light) e formas musicais.

IV – Fundamentação De Direito:

A Recorrente sustenta que, ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo, tem legitimidade processual para intentar o presente processo cautelar porquanto também a tem para impugnar os atos administrativos em apreço.

Atentemos, antes de mais, aos termos em que a Requerente justifica a sua legitimidade processual no requerimento inicial e ao objeto da ação administrativa de que o presente processo será instrumental.
A Requerente alegou, no art.º 10º do requerimento inicial, que “a presente providência cautelar surge em reação a este segundo despacho” (o despacho o n.º 12600/2022 de 28.10.2022 do Secretário de Estado da Juventude e Desporto, J... , através do qual “alarga o âmbito do estatuto de utilidade pública desportiva concedido à FPKMT, na modalidade de kickboxing, às disciplinas de semi-contact (pointfighting), light-contact, K1-light (Kick light) e formas musicais).
No art.º 12º do requerimento inicial alegou que “na presente data, ao contrário do que se verificava então, a ora requerente é membro da WAKO e preenche as condições para requerer a obtenção do estatuto de utilidade pública desportiva de molde a promover, regular e dirigir a modalidade de Kickboxing em Portugal, exclusivo que é conferido à Contrainteressada FPKMT pelos despachos impugnados. Existe, portanto, um interesse direto e pessoal da requerente, nos termos e para os efeitos do artigo 112.º, n.º 1 do CPTA, conjugado com o artigo 55.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código”.
Concluiu que “a FNKDA está filiada na WAKO e preenche os requisitos para obter o estatuto de utilidade pública desportiva, mas só o poderá conseguir, em face do princípio da unicidade federativa, quando o Governo, de acordo com a lei, cancelar o estatuto de utilidade pública desportiva da FPKMT” (conclusão C vertida na parte final do requerimento inicial).
E pediu, como já se enunciou, a suspensão de eficácia dos dois despachos (o de 23.11.2021 que renovou o estatuto de utilidade pública desportiva à Contrainteressada e o de 28.10.2022 que, no que se refere à modalidade de Kickboxing, alargou tal estatuto a mais disciplinas) e bem assim a condenação do Governo a cancelar provisoriamente o estatuto de utilidade pública desportiva que renovou e alargou à FPKMT.

Nos termos do art.º 112º, n.º 1 do CPTA “quem possua legitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administrativos pode solicitar a adopção da providência ou das providências cautelares antecipatórias ou conservatórias, que se mostrem adequadas a assegurar a utilidade da sentença a proferir nesse processo”, pelo que a legitimidade, em sede cautelar, aferir-se-á de acordo com as regras gerais do CPTA, in casu, de acordo com os art.ºs 9º e 55º do CPTA.
Nos termos deste último preceito legal tem legitimidade para impugnar um ato administrativo “quem alegue ser titular de um interesse direito e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo ato nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos” (alínea a) do n.º 1).
O princípio geral relativo à legitimidade previsto no art.º 9.º, n.º 1 do CPTA (de acordo com o qual só se poderá apresentar a litigar em juízo quem alegue ser titular da relação jurídica administrativa da qual emerge o conflito) “sofre adaptação quando está em causa a propositura de uma ação administrativa especial já que, neste caso, a legitimidade activa não depende da titularidade da referida relação visto a lei se limitar a exigir que o autor alegue “ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos” (art.º 55.º/1/a) do CPTA). O que alarga a possibilidade daquele que não é titular da relação material controvertida poder propor uma acção deste tipo, para tanto bastando alegar que é titular de um interesse directo e pessoal e de que este foi lesado, ainda que reflexamente, por aquela relação(cfr. v.g. os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 29.10.2009 e de 25.11.2015 proferidos no âmbito dos processos 01054/08 e 01131/15, ambos publicados em www.dgsi.pt).
O interesse pessoal a que se refere o art.º 55º, n.º 1, al. a) do CPTA traduz-se na “utilidade, beneficio ou vantagem, de natureza patrimonial ou meramente moral, que poderá advir da anulação do ato impugnado e que não tem de corresponder à titularidade de um direito subjetivo ou interesse legalmente protegido, mas também pode resultar da simples invocação de um mero interesse de facto(M. Aroso de Almeida e C. A. Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª edição, 2021, Almedina, pág. 396).
É verdade também, por outra banda, que o interesse direto “pressupõe que o demandante tem um interesse atual e efetivo na anulação ou declaração de nulidade do ato administrativo, permitindo excluir as situações em que o interesse invocado é reflexo, indireto, eventual ou meramemte hipotético(ibidem, pág. 397).
O caráter direto do interesse está, portanto, relacionado com “a questão de saber se existe um interesse atual e efetivo em pedir a anulação ou a declaração de nulidade do ato que é impugnado. Admitindo que o impugnante é efetivamente o titular do interesse, trata-se de saber se o impugnante se encontra numa situação efectiva de lesão que justifique a utilização do meio impugnatório. Neste sentido o Supremo Tribunal Administrativo tem sufragado o entendimento de que o interesse direto deve ser apreciado, por referência ao conteúdo da petição incial, em função das vantagens que o impugnante alega poderem-lhe advir-lhe da anulação do acto, sendo que “os efeitos decorrentes da anulação devem repercutir-se, de forma directa e imediata, na esfera jurídica do impugnante”. Tem assim, legitimidade para impugnar quem “espera obter da anulação do ato impugnado um certo beneficio e se encontra em condições de o poder receber” sendo o interesse directo desde que “de repercussão imediata na esfera do interessado” O interesse directo contrapõe-se, assim, a um interesse meramente longínquo, eventual ou hipotético, que não se dirija a uma utilidade que possa advir directamete da anulação do acto impugnado(Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2016, 2.ª edição, Almedina, pág. 221). (sublinhado nosso)
Como se afirma em acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 06.01.2017 (processo n.º 0133/16, publicado em www.dgsi.pt), “os efeitos e vantagens ou benefícios decorrentes dessa invalidação do ato para o demandante devem repercutir-se de forma direta e imediata na respetiva esfera jurídica, não sendo suficiente um benefício que se mostre meramente eventual ou hipotético ou de natureza teórica”.
Ora, os efeitos da impugnação dos atos suspendendos não se repercutem direta e imediatamente na esfera jurídica da Requerente. A anulação de tais atos importaria apenas a mera possibilidade da Requerente impulsionar o procedimento tendente à atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva, procedimento previsto nos art.ºs 16º e segs. do Decreto-lei 248-B/2008, de 31 de dezembro.
A atribuição de tal estatuto é, portanto, um efeito meramente hipotético ou eventual da procedência da ação impugnatória.
E, assim sendo, à luz das considerações que antecedem, julgamos, embora com fundamentação não integralmente coincidente, que bem andou o Tribunal a quo ao julgar a Requerente parte ilegítima, não se tendo violado os o art.ºs 112º, n.º 1 e 55º, n.º 1, al. a) do CPTA.
Sendo que, ainda que assim não se julgasse (e se nenhum outro obstáculo houvesse ao conhecimento do “mérito” da pretensão da Requerente), o caráter incerto ou meramente eventual da obtenção do estatuto de utilidade púbica desportiva ditaria a improcedência da tutela cautelar pretendida por inverificação do periculum in mora por nela (ou melhor dizendo nessa mera possibilidade) se fundarem os prejuízos (próprios) que se pretenderiam evitar.

O recurso não merece, portanto, provimento.

As custas serão suportadas pela Recorrente nos termos do art.º 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.


V – Decisão:

Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 7 de junho de 2023

Catarina Vasconcelos
Rui Belfo Pereira
Dora Lucas Neto