Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:155/24.9BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:05/23/2024
Relator:JOANA MATOS LOPES COSTA E NORA
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS
PRESSUPOSTOS
Sumário:I - Cabe a quem se pretenda valer da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, a demonstração da verificação dos pressupostos previstos no artigo 109.º, n.º 1, do CPTA, a qual deve assentar em factos cuja alegação se lhe impõe.
II - Os direitos à livre deslocação no território nacional, à segurança e à saúde, constitucionalmente garantidos a todos os cidadãos portugueses, só assistem aos estrangeiros e apátridas que se encontrem ou residam em Portugal, em conformidade com o princípio da equiparação, consagrado no n.º 1 do artigo 15.º da Constituição da República Portuguesa.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, os juízes da subsecção comum da secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul:


I – RELATÓRIO

A…, R… e A…, de nacionalidade indiana, residentes na Índia, intentaram intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, contra o Ministério da Administração Interna e a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P.. Pedem a condenação das entidades demandadas, no prazo máximo de 15 dias, a proferir decisão do seu pedido de autorização de residência e reagrupamento familiar bem como a emitir-lhes os títulos de residência correspondentes. Alegam, para tanto e em síntese, que: (i) Em 13.12.2021, o primeiro requerente submeteu a sua candidatura a autorização de residência para actividade de investimento e, em 17.12.2021, submeteu as candidaturas dos demais requerentes, mulher e filho, com vista ao reagrupamento familiar, as quais foram aceites; (ii) Em 21.07.2023, foram recolhidos os dados biométricos dos requerentes e, decorridos mais de 2 anos desde a submissão da candidatura online, e mais de 5 meses da recolha dos dados biométricos, nada mais sucedeu, o que perturba a vida dos requerentes, que pretendem estabelecer-se em Portugal e aqui construir o seu novo lar, proporcionando a segurança de que tanto necessitam para as suas vidas; (iii) Estão reunidos os requisitos para a concessão das autorizações de residência, e a falta de decisão do seu pedido consubstancia uma situação violadora dos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da boa-fé, da razoabilidade e da proporcionalidade, e da decisão, estando em causa os direitos à vida, à liberdade e segurança, à deslocação, à boa administração, à saúde, educação e desenvolvimento familiar.
Pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa foi proferida sentença a rejeitar liminarmente a petição por não terem sido alegados “quaisquer factos que permitam concluir que o recurso ao processo de intimação é indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de qualquer Direito, Liberdade ou Garantia”.
Os autores interpuseram o presente recurso de apelação, cujas alegações contêm as seguintes conclusões:
“(…)
1. O presente recurso jurisdicional interposto pelos Recorrentes, requerentes nos autos da intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias, tem por objecto a sentença proferida nos autos, que indeferiu liminarmente a petição inicial.
2. Entendeu o Meritíssimo Juízo a quo não ter se verificado os pressupostos de recurso processo de intimação, nem para aplicar o disposto no nº 1 do artigo 110.º - A do CPTA.
3. Destaca-se que só serão devidas custas, referentes à fase de recurso, ao final do processo e se a respetiva pretensão do Recorrente for totalmente vencida, nos termos do RCP.
4. No que se refere a questão preliminar levantada, relativamente as provas, o douto juiz apesar de ter confirmado a junção dos 11 documentos e das procurações “Juntaram 11 documentos e Procuração Forense”, sem qualquer justificação, deixou de considerar comprovado o facto de que no dia 21/07/2023 os requerentes compareceram ao SEF entregaram os documentos aptos à instrução do processo bem como tiveram coletados os dados biométricos na mesa ocasião.
5. Não foram considerados e apreciados pela r. sentença os seguintes documentos juntos à PI (documentos 09, 10 e 11, citados no articulado 40.º da PI), com o seguinte ID no processo: 09407266; 009407265, 009407264
6. Impõem-se assim anular a decisão proferida devendo o d. Juízo se manifestar acerca de todas as provas junta aos autos, e, a final, seja a mesma apreciada fundamentadamente.
7. No que se refere a questão de facto e de direito, em relação idoneidade do meio processual utilizado, o que se pretende é uma tutela urgente, visto que os Recorrentes necessitam que a autoridade, ora Recorrida, seja compelida a proferir uma decisão definitiva que ao final colocará termo a essa situação de expressa violação dos direitos liberdades e garantias do Recorrente, direitos esses que estão a ser violados pela omissão da administração.
8. Conforme restou demonstrado nos autos o primeiro requerente, ora recorrente, fez um investimento, apresentou um requerimento de autorização de residência para si e para seu agregado familiar (segundo e terceiro recorrentes/requerentes) com fundamento, nos artigos 90.º-A e 98.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho.
9. Tendo-lhes sido atribuído o número de processo, na plataforma online, e após aceite das candidaturas houve o comparecimento ao agendamento, sendo então atribuídos entregue os documentos originais, cumpridas as notificações e coletados os dados biométricos.
10. Ocorre que passados mais de 90 dias da apresentação do pedido, até a presente data a Autoridade competente, ora Recorrido, não proferiu a decisão que por lei estava obrigada a proferir, nos termos do n.º 1 do artigo 82.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, bem como não emitiu os títulos de residência aos Recorrentes.
11. Destaca-se que a presente intimação foi proposta em Juízo logo que ocorreu o decurso do prazo que a Administração tinha para manifestar-se acerca do pedido de autorização de residência dos requerentes.
12. A ausência de uma decisão da Administração, conforme demonstrado nos presentes autos viola diretamente os seguintes direitos dos Recorrentes: a) dignidade da pessoa humana, art.º 1.º da CRP, uma vez que estão atualmente a viver num país com alta insegurança social, o que lhes causa mais do que mero desconforto; b) livre deslocação no território nacional e à segurança, art.ºs. 27.º e 44.º da CRP, os recorrentes não podem permanecer mais do que 90 dias no território nacional e se permanecerem sem lhes terem sido emitido os respetivos títulos de residência, passam a ser considerados ilegais, sujeitos a multa e deportação; c) à saúde art.º 64.º da CRP, sem possuir o Título de residência os Recorrentes não podem gozar do direito que lhe seria devido em matéria de igualdade de tratamento no acesso à saúde quando estão em Portugal.
13. A autoridade competente pela análise do processo encontra-se totalmente omissiva, não tendo proferido a decisão que lhe cabia no prazo legal.
14. Face a ausência de uma decisão em tempo hábil, não podem os Recorrentes aguardar em território nacional pela conclusão dos respetivos processo, sob pena de se tornarem residentes ilegais e lhes serem aplicadas multas caso necessitem viajar para outros países do espaço schengen.
15. Os Recorrentes estão impossibilitados de estabelecerem-se de forma definitiva em Portugal, sob pena de se tornarem ilegais e estarem a agir contrariamente ao que preconiza a lei, a despeito de terem agido corretamente e conforme manda a lei, estão agora a ser prejudicados pela ausência de uma decisão que viabilize o desejo de viver em Portugal e aqui se estabelecer legalmente e em segurança, já que o país onde estão a viver atualmente encontra-se em situação de conflito armado declarado com a Ucrânia.
16. Deste modo, a presente intimação visa obter uma decisão urgente por parte da autoridade recorrida, para colocar fim a essa situação de violação a direitos, liberdades e garantias dos Recorrentes.
17. Mais uma vez, reforça-se que é urgente a necessidade de colocar um fim na restrição do direito de deslocação dos Recorrentes, facto esse que está a acontecer neste momento, de forma deliberada e continuada conforme todo o alegado nos presentes autos, pois caso os Recorrentes permaneçam em Portugal a aguardar a decisão, estes se tornarão residentes ilegais, à margem da sociedade, sujeitos a possível deportação e sanções pecuniárias.
18. São inúmeras as decisões já proferidas por esse TCAS neste mesmo sentido, conforme Acórdão TCAS nº 661/22.0BELSB, de 29/11/2022, Acórdão TCAS nº726/22.8BELAM, de 13/04/2023, Acórdão TCAS nº 647/23.7BELSB, de 08/09/2023, todos reconhecendo a idoneidade da intimação como meio processual adequado em casos praticamente idênticos ao do ora recorrente.
19. Por todo o exposto, verifica-se que no caso destes autos estão presentes os requisitos e é sobre eles que deverá ser feito um juízo de valor: i) tanto pelo reconhecimento da sua natureza urgente, o que exige uma manifestação jurisdicional inadiável; ii) como por sua natureza definitiva, cuja manifestação jurisdicional provisória poderia tornar desnecessária a decisão no processo principal.
20. Razão pela qual deve ser anulada a sentença proferida pelo douto juízo a quo.
21. Ademais, a r. sentença merece ainda ser reformada no que se refere a contradição de sua fundamentação.
22. A R. sentença ora afasta a intimação por supostamente não estar presente o pressuposto da subsidiariedade da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, entendo que caberia aos Recorrentes utilizar outro dos meios processuais cabíveis para atendimento do pedido. E ao mesmo tempo a r. Sentença entende pela inaplicabilidade do n.º 1 do art.º 110.º - A do CPTA.
23. Devendo neste ponto, ser sanada a contradição da R. Sentença.
(…)”
As entidades recorridas não responderam à alegação dos recorrentes.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, pugnou pela improcedência do recurso, considerando que (i) a sentença não padece da invocada nulidade por omissão de pronúncia, uma vez que não se impunha dar como provado o facto de que, no dia 21 de Julho de 2023, os autores compareceram perante o SEF, tendo aí entregado os documentos aptos à instrução do processo e efectuado a recolha dos dados biométricos; (ii) no caso, é suficiente a tutela cautelar; (iii) não se impunha o convite a substituir a p.i. porque não foi alegada uma situação de urgência.
Sem vistos dos juízes-adjuntos, por se tratar de processo urgente (cfr. n.º 2 do artigo 36.º do CPTA), cumpre apreciar e decidir.


II – QUESTÕES A DECIDIR

As questões que ao Tribunal cumpre solucionar são as de saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento:
a) De facto, por não ter considerado provado o facto de que, em 21.07.2023, os requerentes compareceram no SEF e entregaram os documentos aptos à instrução do processo bem como foram recolhidos os seus dados biométricos;
b) De direito, por:
a. Ter considerado não verificados os pressupostos de que depende o recurso à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias;
b. Contradição na sua fundamentação.


III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida fixou os seguintes factos, que considerou provados:
“A) Os Requerentes são cidadãos de nacionalidade indiana (cfr. confissão);
B) Os Requerentes residem em A…, Flat no 1…, T… – 5, H…, Pune, India (cfr. confissão);
C) Em 13/12/2021, o 1º Requerente apresentou candidatura para efeitos de concessão de Autorização de Residência para Atividade de Investimento, (cfr. Doc. junto com o R. I., que ora se dá por integralmente reproduzido);
D) Em 17/12/2021 o 1.º Requerente efectuou pedido de reagrupamento familiar para a sua esposa e filho (cfr. Doc. junto com o R. I., ibidem);
E) Até à presente data a Entidade Requerida ainda não proferiu decisão sobre os pedidos formulados em C) e D) (cfr. facto alegado)”
*
Os recorrentes impugnam a decisão sobre a matéria de facto, alegando que – com base nos documentos 9, 10 e 11, juntos com a p.i. - deveria ter sido considerado provado o facto de que, em 21.07.2023, os requerentes compareceram no SEF e entregaram os documentos aptos à instrução do processo bem como foram recolhidos os seus dados biométricos.
Vejamos.
É certo que, no artigo 40 da p.i., os recorrentes alegam que a entrega da documentação e recolha dos dados biométricos dos requerentes ocorreu em Julho de 2023. Acontece que dos documentos 9, 10 e 11 - que juntam e para os quais remetem a prova daquele facto -, apenas decorre que os recorrentes deduziram, em 21.07.2023, junto do SEF, pedidos de autorização de residência para investimento e reagrupamento familiar, nada se retirando dos mesmos quanto à entrega de documentação e recolha de dados biométricos.
Deste modo, não padece a sentença do erro de julgamento de facto que os recorrentes lhe imputam, pelo que improcede a impugnação da matéria de facto.


IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A sentença recorrida rejeitou liminarmente a petição com a seguinte fundamentação:
“(…)
In casu, os Requerentes não consubstanciam quaisquer factos que permitam concluir que o recurso ao processo de intimação é indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de qualquer Direito, Liberdade ou Garantia, isto é, qualquer situação de urgência, para lá dos normais incómodos associados à incerteza de estarem a aguardar uma decisão da Administração há cerca de 2 anos, relativamente à decisão do seu pedido de autorização de residência.
Sendo certo que o presente meio processual não pode servir para obstar à mera delonga dos procedimentos administrativos, na medida em que estes têm prazos de decisão pré-estabelecidos, para cujo incumprimento existem meios de reação jurisdicional próprios.
(…)
Ora, ainda que os Requerentes invoquem um feixe de Direitos, Liberdades e Garantias que consideram estarem em causa na sua situação, em rigor, não alegam quaisquer factos concretos que permitam concluir que o facto de ainda não ter sido decidido o seu pedido de autorização de residência para investimento e reagrupamento familiar é susceptível de contender com um direito, liberdade e garantia, sendo certo que o direito dos estrangeiros a residir em Portugal não tem a natureza de um direito, liberdade e garantia.
Havendo ainda que ter presente que, ao não residirem em Portugal (cf. al. B) do probatório), o princípio da equiparação consignado no artigo 15.º, n.º 1, da Lei Fundamental não lhe é aplicável (neste sentido, vide o acordado pelo SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO, no aresto prolatado em 10.09.2020, no âmbito do processo n.º 01798/18.5BELSB).
Com efeito, uma vez que os Requerentes ainda não possuem autorização de residência em Portugal e residem na Índia, necessário será concluir que os mesmos não possuem os direitos fundamentais de que se arrogam.
E se é de admitir que os mesmos apenas não residem em Portugal devido à inércia da Entidade Requerida, tal não permite reconhecer-lhe a titularidade de direitos que, nos termos da Constituição, apenas são reconhecidos a quem se encontre ou resida em Portugal.
Assim, não residindo os Requerentes em Portugal, nem identificando, por qualquer modo, a necessidade de o virem a fazer a breve trecho, não se vislumbra a necessidade de uma decisão urgente sobre a sua pretensão (cfr. doutamente decidido por este Tribunal no âmbito dos autos registados sob o n.º 1245/23.0 BELSB).
Com efeito, as alegações genéricas, abstratas e considerandos não comprovam a indispensabilidade do meio processual utilizado, a urgência da tutela requerida.
(…)
E não sendo demonstrada a urgência na presente ação, não se encontra verificado também o pressuposto específico da subsidiariedade da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias. Pelo que, no presente caso, não se mostra válido o uso da Intimação para Proteção de Direitos, Liberdades e Garantias. Acresce que no caso vertente também não se justifica fazer o convite a que se refere o artigo 110.º-A, n.º 1, do CPTA, uma vez que, este só deve ser aplicado quando, no requerimento inicial, tenham sido alegados factos indiciadores de que a situação sub judice carece de tutela provisória ou cautelar, nos termos dos artigos 112.º e seguintes do CPTA. O que não sucede, in casu. Pelo que, deste modo, mostra-se inútil convidar os Requerentes, ao abrigo do artigo 110º-A do C.P.T.A. a substituir a petição, para o efeito de requererem a adoção de providência cautelar, cfr artigo 130º do CPC aplicável ex vi artigo 1º do CPTA.
(…).”

Ou seja, o Tribunal a quo decidiu rejeitar liminarmente a p.i. por não terem sido alegados “quaisquer factos que permitam concluir que o recurso ao processo de intimação é indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de qualquer Direito, Liberdade ou Garantia”, tendo apenas sido alegados, de forma genérica e abstracta, “normais incómodos associados à incerteza de estarem a aguardar uma decisão da Administração há cerca de 2 anos, relativamente à decisão do seu pedido de autorização de residência.” Mais se entendeu que “o direito dos estrangeiros a residir em Portugal não tem a natureza de um direito, liberdade e garantia” e que, não residindo os recorrentes em Portugal, não lhes é aplicável o princípio da equiparação, consagrado no artigo 15.º, n.º 1, da Constituição, pelo que não lhes assistem os direitos fundamentais que invocam. Por fim, considerando não haver uma situação de urgência, a sentença concluiu que não se justificaria a convolação dos presentes autos em acção cautelar, a qual também pressupõe uma situação urgente.

Insurgem-se os recorrentes contra o assim decidido, alegando que se impõe uma tutela urgente visto que necessitam que a entidade requerida seja compelida a proferir decisão do seu pedido, estando a omissão de tal decisão a violar os seguintes direitos que lhes assistem: a) dignidade da pessoa humana, uma vez que vivem num país com alta insegurança social, o que lhes causa mais do que mero desconforto; b) livre deslocação no território nacional e segurança, pois não podem permanecer legalmente mais do que 90 dias no território nacional sem títulos de residência, sob pena de serem sujeitos a multa e deportação; c) à saúde pois, sem título de residência, não têm acesso à saúde em condições de igualdade. Alegam ainda os recorrentes que a fundamentação da sentença recorrida é contraditória, na medida em que na mesma se considera inadequada a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, e, bem assim, não preenchido o pressuposto da subsidiariedade, considerando inaplicável a norma do artigo 110.º-A do CPTA.

Vejamos.
A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias “(…) pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.” - cfr. artigo 109.º, n.º 1, do CPTA. Trata-se de um meio processual sumário e principal, pois que visa a prolação de uma decisão urgente e definitiva. E tem carácter excepcional porque só pode ser utilizado quando “a célere emissão de uma decisão de mérito (…) se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar”, sendo a regra a da utilização da acção não urgente, sempre que esta, ainda que conjugada com o processo cautelar, seja apta a garantir aquela tutela.
Nestes termos, o recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, pressupõe a sua indispensabilidade, a qual ocorrerá quando for necessária uma tutela urgente para assegurar o exercício de um direito, liberdade e garantia, e quando a tutela cautelar não for possível ou suficiente para o efeito. No que concerne à impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar, “A impossibilidade poderá resultar do facto de o juiz, para se pronunciar, ter necessariamente de ir ao fundo da questão, o que, como é sabido, lhe está vedado no âmbito dos procedimentos cautelares. Por sua vez, a insuficiência respeita à incapacidade de uma decisão provisória satisfazer as necessidades de tutela do particular, posto que estas apenas lograrão obter satisfação com uma tutela definitiva, sobre o fundo da questão. Estamos a referir-nos àquelas situações sujeitas a um período de tempo curto, ou que digam respeito a direitos que devam ser exercitados num prazo ou em datas demarcadas, maxime, questões relacionadas com eleições, actos ou comportamentos que devam ser realizados numa data fixa próxima ou num período de tempo determinado (como exames escolares ou uma frequência do ano lectivo), situações de carência pessoal ou familiar em que esteja em causa a própria sobrevivência pessoal de alguém, ou, ainda, casos relativos à situação civil ou profissional de uma pessoa.” – cfr. CATARINA SANTOS BOTELHO, “A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias: quid novum?”, O Direito, n.º 143, I, 2011, pp. 31-53.

Assim, cabe a quem pretenda valer-se deste meio processual alegar factos concretos idóneos ao preenchimento dos referidos pressupostos, a saber: (i) “a existência de uma situação jurídica individualizada que caracterize um direito, liberdade e garantia, cujo conteúdo normativo se encontre suficientemente concretizado na CRP ou na lei para ser jurisdicionalmente exigível por esta via processual”, não bastando invocar, genericamente, um direito, liberdade e garantia; e (ii) “a ocorrência de uma situação, no caso concreto, de ameaça do direito, liberdade e garantia em causa, que só possa ser evitada através do processo urgente de intimação” – cfr. Carlos Alberto Fernandes Cadilha e Mário Aroso de Almeida, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 4.ª edição, Almedina, 2017, p. 883.

Considerando o descrito enquadramento jurídico, e face à alegação dos recorrentes, no caso em apreço, não estão verificados os pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias.

Com efeito, os recorrentes apenas alegam que a demora na decisão do seu pedido de autorização de residência viola os seus direitos à dignidade da pessoa humana (porque têm de viver num país com “alta insegurança social” e que se encontra em situação de conflito armado declarado com a Ucrânia, o que não corresponde à realidade), à livre deslocação no território nacional e à segurança (pois não podem permanecer mais do que 90 dias no território nacional e, se permanecerem sem lhes terem sido emitido os respetivos títulos de residência, passam a ser considerados ilegais, sujeitos a multa e deportação), à saúde (pois, sem possuir o título de residência, os recorrentes não podem gozar do direito que lhe seria devido em matéria de igualdade de tratamento no acesso à saúde quando estão em Portugal), sem explicarem em que termos concretos isso acontece, ou seja, sem alegarem factualidade apta a concluir no sentido que pretendem. Ou seja, nem sequer se trata de uma alegação insuficiente; é mesmo uma falta de alegação de factos. E para se poder concluir pela indispensabilidade de uma tutela de mérito urgente no caso concreto, impunha-se-lhes que alegassem factualidade concreta demonstrativa de que a falta de decisão do pedido de autorização de residência os impedia de desenvolver uma vida normal (privada, familiar, profissional, etc), designadamente que tinham em Portugal o centro da sua vida, o que, manifestamente, não fizeram.
Assim, a alegação dos recorrentes reconduz-se a uma pressa na obtenção da autorização de residência, e a uma expectativa - legítima, aliás – de ver decidido o seu pedido no prazo legal, o que não se confunde com uma situação de urgência, não tendo sido alegada qualquer factualidade consubstanciadora de uma situação de urgência na tutela de um direito fundamental. Os autores recorrentes não descrevem uma situação factual de urgência e lesão dos direitos que invocam – necessária ao preenchimento dos pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias -, limitando-se a afirmar uma mera lesão dos mesmos, não sendo possível extrair da sua alegação qualquer urgência para os recorrentes na concessão de autorização de residência. É que não basta estar em causa um direito, liberdade e garantia, sendo ainda necessário demonstrar que é urgente a sua tutela, o que os recorrentes, nos termos expostos, não fizeram.
Acresce que – como bem se refere na sentença recorrida - não assistem aos recorrentes os direitos que invocam, à livre deslocação no território nacional, à segurança e à saúde. É verdade que os artigos 44.º, 27.º e 64.º da Constituição da República Portuguesa garantem tais direitos a todos os cidadãos, e que o artigo 15.º estende o gozo dos direitos do cidadão português aos estrangeiros e apátridas que se encontrem ou residam em Portugal. Sucede que os recorrentes nem se encontram nem residem em Portugal, pelo que, não beneficiando de tal extensão, não lhes assistem aqueles direitos. Já quanto à dignidade da pessoa humana, consubstancia a mesma um princípio, um valor constitucional objectivo que se projecta em vários direitos constitucionalmente consagrados, também não lograram os recorrentes concretizar a sua violação.
Assim, não só pela falta de alegação de factos consubstanciadores da indispensabilidade de uma decisão urgente, mas também por não assistirem aos autores recorrentes os direitos que invocam, não se mostram verificados os pressupostos de recurso à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.

Ademais, não se verifica a invocada contradição na fundamentação da sentença; pelo contrário, mostra-se a mesma coerente, atento o facto de a urgência ser um pressuposto de ambos os tipos de acções.
Sem embargo, sempre se dirá que, não se revelando indispensável uma decisão para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade e garantia, não se impunha que o juiz, ao abrigo do disposto no artigo 110.º-A do CPTA, convidasse os autores a substituírem a petição para o efeito de requererem a adopção de providência cautelar.
Com efeito, nos termos do n.º 1 do artigo 110.º-A do CPTA, “Quando verifique que as circunstâncias do caso não são de molde a justificar o decretamento de uma intimação, por se bastarem com a adoção de uma providência cautelar, o juiz, no despacho liminar, fixa prazo para o autor substituir a petição, para o efeito de requerer a adoção de providência cautelar, seguindo-se, se a petição for substituída, os termos do processo cautelar.” Como notam Carlos Alberto Fernandes Cadilha e Mário Aroso de Almeida, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 4.ª edição, Almedina, 2017, p. 903, prevendo o n.º 1 do artigo 110.º a rejeição liminar da petição por falta de verificação dos pressupostos de recurso à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, não se impõe a convolação quando não esteja preenchido o primeiro dos pressupostos previstos no n.º 1 do artigo 109.º, o da indispensabilidade de uma célere decisão para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia. Quer dizer, a convolação apenas deve operar se, estando preenchido tal pressuposto – ou seja, revelando-se indispensável uma célere decisão para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia -, se concluir que é possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar. No mesmo sentido, decidiu já o Supremo Tribunal Administrativo, por Acórdão de 07.04.2022, proferido no processo n.º 036/22.0BALSB (in www.dgsi.pt), no qual se conclui que, quando o uso da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias não se revele indispensável, o artigo 110.º-A do CPTA não impõe a convolação do processo numa providência cautelar.

Termos em que se impõe julgar improcedentes os fundamentos de recurso invocados.
*
Sem custas, nos termos do artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do Regulamento das Custas Processuais.


V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da Subsecção comum da Secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Sem custas.

Lisboa, 23 de Maio de 2024

Joana Costa e Nora (Relatora)
Ilda Côco
Marta Cavaleira