Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:144/22.8 BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:10/26/2023
Relator:RUI PEREIRA
Descritores:LEI DA AMNISTIA
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
EFEITO “EX TUNC”
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
Sumário:I- O artigo 6º da Lei da Amnistia é aplicável a infracções disciplinares e infracções disciplinares militares, não tendo o legislador procurado fazer uma distinção entre amnistia própria e imprópria, ou seja, aplica-se tanto à infracção que ocorre antes da condenação,, como àquela que ocorre depois da condenação.
II- In casu, significa que tanto faz extinguir o procedimento disciplinar, como obvia ao cumprimento da sanção disciplinar, porque o acto punitivo também deixa de existir.
III- Optando o legislador por não proceder à distinção entre os dois tipos de amnistia, retira-se do efeito útil da norma que a infracção disciplinar é “apagada”, ou seja, estamos perante uma abolição retroactiva da infracção disciplinar.
IV- A amnistia opera “ex tunc”, incidindo não apenas sobre a própria sanção aplicada, como também sobre o facto típico disciplinar passado, o que, na prática, cifra-se como se não tivesse sido praticado e, consequentemente, eliminado de qualquer registo.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais: Subsecção SOCIAL
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL – SUBSECÇÃO SOCIAL


I. RELATÓRIO
1. A S..., SAD, inconformado com o acórdão de 14 de Dezembro de 2021, proferido pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, no âmbito do processo disciplinar nº .....-....../2021 e respectivos apensos, que lhe aplicou a sanção disciplinar de multa, fixada no valor de 320 UC (€ 32.640,00), pela prática, em cúmulo material, de 2 (duas) infracções disciplinares, p. e p. pelo artigo 112º, nºs 1, 3 e 4 do Regulamento Disciplinar da LPFP (RDLPFP20), impugnou tal decisão junto do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD).
2. O TAD, por acórdão datado de 9-8-2022, decidiu por maioria julgar improcedente o recurso interposto pela S..., SAD e, em consequência, manteve o acórdão de 14 do Dezembro de 2021 proferido peta Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, que aplicou àquela a sanção disciplinar de multa fixada no valor de 320 UC (€ 32.640,00), pela prática, em cúmulo material, de 2 (duas) infracções disciplinares, p, e p. pelo artigo 112º, nºs 1, 3 e 4 do Regulamento Disciplinar da LPFP (RDLPFP20).
3. Inconformada, a S..., SAD, interpôs recurso de apelação para este TCA Sul, no qual formulou as seguintes conclusões:
1. A decisão recorrida dá cobertura a um acto de censura do pensamento, conforme melhor se demonstrou em sede de alegações.
2. Não obstante enunciar correctamente os princípios atinentes à liberdade de expressão, o tribunal a quo, na maioria que votou o acórdão impugnado, efectuou uma análise enviesada da factualidade subjacente aos presentes autos e desconsiderou importantes elementos probatórios dos mesmos constantes, nomeadamente, o relatório de observação e formação do árbitro da partida, que atesta os graves erros por este cometidos e que motivou a atribuição de uma classificação de insuficiente.
3. Os graves erros de arbitragem, de que se deu conta em sede de alegações, foram, igualmente, reconhecidos pela totalidade – repita-se – totalidade, da crítica desportiva especializada que analisa questões de arbitragem.
4. Com os fundamentos melhor descritos em sede de alegações deverá ser aditada à matéria de facto provada a seguinte factualidade:
a) “Aos 80 minutos de jogo, ‘P...', jogador da F..., SAD, pisou o jogador SS......, da S..., SAD, à entrada da área de grande penalidade da F..., SAD";
b) "Na sequência da falta assinalada, os jogadores da S..., SAD, seguiram rapidamente o lance, introduzindo B...... na baliza do seu adversário, tendo o árbitro invalidado tal lance”;
c) “Aos 83 minutos de jogo, o árbitro exibiu, correctamente, cartão amarelo a SS...... pelo facto de o jogador da S…., SAD, ter pisado o pé do jogador U......, da F..., SAD, usando assim de critério disciplinar diferente para duas situações idênticas;
d) “No jornal “B......”, edição de 7-5-2021, o ex-árbitro D...... escreveu que “A...... e respectivos assistentes não tiveram noite à imagem deles", apontando “falha na uniformidade de critério" na avaliação da falta de P..., ao pisar SS......, aos 80 minutos, que não foi punida com segundo amarelo, e na avaliação da falta de SS......, ao pisar U......, aos 83 minutos, dessa feita sancionada com cartão amarelo”;
e) “No jornal “B......”, edição de 7-5-2021, em comentário jornalístico à arbitragem, foi escrito que o árbitro “precisou do VAR para rever três erros (dois dos auxiliares, em foras de jogo centimétricos – 19 e 30 cm), que teriam dado dois penaltis e um golo ao S.... Perdoou segundo amarelo a P... (80’)”;
f) “No jornal “R.....”, edição de 7-5-2021, o ex-árbitro J..... escreveu: “P... chegou atrasado à disputa de bola, pisando SS...... em acção negligente. Segundo amarelo por exibir. Não tendo havido cartão poderia ter deixado executar o livre rapidamente”;
g) “No jornal “R.....”, edição de 7-5-2021, o ex-árbitro M....., em relação ao mesmo lance, afirmou: “P... aborda tarde B...... e pisa o adversário de forma negligente. Livre directo bem assinalado e amarelo e consequente vermelho por exibir”;
h) “No jornal “JJ...", edição de 7-5-2021, na capa, escreveu-se “Tribunal unânime: segundo amarelo perdoado a P... aos 80’”;
i) No jornal “JJ...”, edição de 7-5-2021, os ex-árbitros JJJ..., JJJJ... e FF......... consideraram, de forma unânime, que ao minuto 80 do jogo, deveria ter sido exibido cartão amarelo ao jogador P..., que levaria à expulsão do jogador por acumulação de cartões amarelos”;
j) “No jornal “JJ...”, edição de 7-5-2021, numa apreciação global da exibição da equipa de arbitragem, JJJJ... afirma que: “critério disciplinar não foi uniforme para ambas as equipas e errou tecnicamente”;
k) “Já FF........., ainda no jornal “JJ...”, escreveu que se tratou de: “arbitragem à portuguesa de A...... (fraca a nível técnico e disciplinar). Valeu o VAR”;
l) “Em comentário feito na T......, o ex-árbitro P........., apontou a existência de dualidade de critérios por parte da equipa de arbitragem ao não exibir segundo cartão amarelo a P..., aos 80 minutos, e ao exibir esse mesmo cartão a SS......, aos 83 minutos, por idêntico comportamento de pisar adversário”;
m) “Do relatório de observação e formação profissional referente ao árbitro da partida consta que o mesmo teve classificação de “Insuficiente”;
n) “Do relatório de observação e formação profissional referente ao árbitro da partida consta a seguinte apreciação '79,35' – Decisão incorrecta. O jogador 3B (com CA anteriormente exibido aos 63,45, com a sola da bota, tem uma entrada negligente sobre o jogador adversário 14A. Claro CA por exibir (seria o 2º). Não há gestão da situação, neste tipo de casos”;
o) Mais, no campo A2, epigrafado “A2 – Controlo disciplinar, gestão de jogadores e representantes das equipas", consta que “Min 79 – Jogada de ataque do S... bola a ser endossada para o jogador nº 14 desta equipa aparecendo o nº 3 do FCP que na tentativa de disputar B......, pisa de forma negligente o seu adversário. Bem colocado assinala a infracção, mas não exibe o cartão amarelo ao infractor como se impunha, que neste caso seria o 2º cartão amarelo. Como comparação com este lance refiro um outro ocorrido aos 82 min, em que bem advertiu o nº 14 do S...”.
5. Por seu turno, com os fundamentos melhor descritos em sede de alegações, o artigo 3º da matéria de facto provada deverá passar a ter a seguinte redacção: "No dia 7-5-2021, foi publicada a edição nº … da News S..., no sítio de internet ………..) e em página da rede social Facebook, de que constam, nomeadamente, as suas seguintes declarações:
(…)
6. Igualmente com os fundamentos melhor descritos em sede de alegações, o artigo 4º da matéria de facto provada deverá ser dado como não provado e remetido à matéria de facto não provada.
7. Não foram carreados para os autos, conforme melhor descrito em sede de alegações, quaisquer factos que suportem a imputação subjectiva e objectiva do ilícito à recorrente.
8. No que respeita às declarações de JJJJJ..................... através da BBB..............., o aresto recorrido, para além de não efectuar qualquer imputação subjectiva do ilícito – limitando-se a considerar que a BBB............... se subsume no conceito de Imprensa Privada regulamentarmente consagrado e imputando o ilícito de forma objectiva – desconsidera o tipo objectivo do ilícito.
9. Dispõe o nº 4 do artigo 112º do RDFPFP que “sem prejuízo do disposto nas leis que regulam a imprensa, a rádio e a televisão, o clube é considerado responsável pelos comportamentos que venham a ser divulgados pela sua imprensa privada e pelos sítios na Internet que sejam explorados pelo clube, pela sociedade desportiva ou pelo clube fundador da sociedade desportiva, directamente ou por interposta pessoa".
10. Conforme melhor se referiu em sede de alegações, o segmento inicial do preceito “sem prejuízo do disposto nas leis que regulam a imprensa, a rádio e a televisão" deve ser interpretado no sentido da responsabilização disciplinar dever ser feita nos mesmos moldes preconizados nos diplomas legais.
11. Sendo, concretamente, aplicável ao caso concreto o disposto no nº 4 do artigo 71º da Lei da Televisão, conforme analisado em sede de alegações.
12. Conforme melhor se detalhou em sede de alegações, o S... agiu ao abrigo e dentro das margens do exercício da liberdade de expressão, tal como definidas pela Jurisprudência Nacional e pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
13. A interpretação normativa consagrada nos autos encontra-se datada no tempo e completamente ultrapassada nomeadamente em face da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tendo motivado mais de duzentas e cinquenta condenações do Estado Português.
14. A recorrida pretende criar um estado de polícia, em que controla tudo e todos e apenas se admitem opiniões concordantes, nomeadamente, sobre as suas próprias condutas.
15. Os árbitros e a própria recorrida não são imunes ao erro, sendo legítimo aos agentes desportivos opinar sobre esses erros, criticando-os e evidenciando-os para que não se repitam.
16. De acordo com o entendimento jurisprudencial dominante, desde o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, ao Supremo Tribunal de Justiça (no caso Português), pelo facto de os visados serem figuras públicas e exercerem funções públicas, devem possuir uma maior margem de tolerância face à crítica dessas mesmas funções públicas.
17. Sendo, inclusive, admitida a crítica contundente, violenta, irónica, etc.
18. A exploração do site www.s………..pt é efectuada pelo S... e não pela recorrente, não obstante, conforme resultou provado nos presentes autos, o mesmo conter um separador destinado à aqui recorrente.
19. As publicações em causa, conforme consta dos URL’s contantes da matéria de facto provada, não foram efectuadas no sobredito separador.
20. Por outro lado, as declarações transmitidas pela BBB............... foram proferidas por um comentador e vinculam-no nos termos da Lei, a qual impede que o operador televisivo – e o titular do seu capital social – sejam responsabilizados pelas mesmas.
21. Inexistem quaisquer factos que permitam a imputação objectiva do ilícito em causa à ora recorrente.
22. A solução dada ao caso concreto implicou a omissão da matéria de facto provada de um conjunto de factos, essenciais para a boa decisão da causa, os quais se encontram suportados na documentação aos mesmos junta.
23. Os Tribunais administrativos, ao conhecerem em sede recursória, de decisões proferidas pelo Tribunal Arbitral do Desporto – tribunal de jurisdição plena – têm competência para conhecer dos factos integrantes da defesa apresentada pelos arguidos em processo disciplinar.
24. Não se peticiona a este tribunal que conheça da bondade das decisões de arbitragem invocadas, mas apenas que reconheçam a sua existência factual e da análise que sobre as mesmas recaiu, enquanto motivadoras das declarações proferidas pelo S... – com referência textual nas mesmas em alguns casos.
25. O não conhecimento da factualidade invocada comporta em si mesmo um acto de denegação de justiça, não admitido pela Constituição, sendo violador do disposto no nº 4 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
26. Conforme decorre da matéria invocada em sede de alegações, a recorrida (será antes recorrente?) agiu dentro dos limites da liberdade de expressão, nos termos em que tal direito é configurado pela Jurisprudência Nacional e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.
27. Por seu turno, conforme melhor se detalhou em sede de alegações, a interpretação efectuada pela recorrente (será antes recorrida?) dos nºs 1 e 4 do artigo 112º do RDLPFP viola os artigos 8º, 37º e 38º da Constituição da República Portuguesa, por se afigurar como uma compressão inadmissível da liberdade de expressão e de imprensa e, bem assim, por violação do artigo 10º da CEDH, que faz parte integrante do ordenamento jurídico português por via do artigo 8º da CRP.
28. Devendo tal inconstitucionalidade ser declarada”.
4. A Federação Portuguesa de Futebol apresentou contra-alegação, tendo para tanto formulado as seguintes conclusões:
1. O recurso interposto pela recorrente tem por objecto a decisão arbitral proferida no âmbito do processo nº 63/2021, que confirmou a aplicação de sanção de multa pela prática de duas infracções disciplinares previstas e punidas pelos nºs 1, 3 e 4 do artigo 112º do RDLPFP20, na sanção, em cúmulo material, de multa no montante de € 32.640 € (trinta e dois mil seiscentos e quarenta euros).
2. Em concreto, a recorrente foi condenada por produzir difundir declarações na sua newsletter oficial "News S...", como é pública e notoriamente reconhecida, Edição nº 560, reproduzidas no dia 7 de Maio de 2021, e na sua página da rede social Facebook, cujo teor consubstancia comportamento desrespeitoso e lesivo da honra e consideração dos elementos das equipas de arbitragem visados, colocando em causa o núcleo essencial da função da arbitragem, materializado na isenção e imparcialidade que a deve caracterizar, afectando a credibilidade e o bom funcionamento da competição desportiva.
3. A decisão recorrida, confirmando a decisão do CD, considerou que o teor da referida entrevista consubstancia também comportamento desrespeitoso e lesivo da honra e consideração dos elementos das equipas de arbitragem visados, colocando em causa o núcleo essencial da função da arbitragem, materializado na isenção e imparcialidade que a deve caracterizar, afectando a credibilidade e o bom funcionamento da competição desportiva.
4. A recorrente refere diversas vezes no seu recurso que não praticou os factos objecto dos presentes autos, pelo que andou mal o TAD ao confirmar o Acórdão do CD.
5. Nesse sentido, numa alegação que tem tanto de recorrente como de infundada, refere a recorrente que os referidos factos terão sido praticados pelo S..., que não a recorrente. Porém, as declarações em crise – as relativas à newsletter – são da autoria da recorrente.
6. Trata-se, sem margem para dúvidas, de um site que pertence às comunicações privadas da recorrente, sendo um instrumento que aquela usa, com especial impacto e difusão, o mesmo valendo para a estação televisiva BBB................
7. Mesmo que existam passagens da matéria dada como provada que se possam considerar conclusivas – o que se admite por dever de patrocínio –, sempre se dirá que mesmo com o expurgo desses segmentos a decisão não se considerará prejudicada.
8. Como é evidente, mesmo sem a parte conclusiva, a matéria de facto dada como provada nos autos sustenta, igualmente, a punição da recorrente no âmbito do processo disciplinar, pelo que a decisão não sai minimamente prejudicada.
9. O acima exposto vale, de resto, para os conceitos jurídicos alegadamente constantes daqueles factos provados.
10. Por outro lado, andou bem o Conselho de Disciplina e o TAD, ao não dar como provados os factos mencionados na petição da recorrente, bem como ao entender que não existem factos não provados relevantes para a boa decisão da causa.
11. Desde logo porque aquela factualidade, que a recorrente, sublinhe-se, pretende que seja considerada provada, extravasa, largamente, o objecto, quer do processo administrativo, quer do presente processo arbitral.
12. Com efeito, não se percebe em que medida, dar como provados eventuais erros de arbitragem em jogos em que a recorrente competiu pode ser relevante para os presentes autos.
13. Não estamos perante factos que, sequer, se possam ou devam considerar provados ou não provados, porquanto consubstanciam, tão-só e apenas, factos irrelevantes para o processo disciplinar e para o presente processo arbitral.
14. Até porque, uma coisa são os alegados e eventuais erros, outra é a forma como a recorrente se refere de forma desrespeitosa relativamente a agentes de arbitragem. Isto é, o facto de eventualmente haver erros de arbitragem não legitima as considerações desrespeitosas sobre os árbitros visados.
15. Ademais, ainda que se entendesse que estamos perante factualidade com relevância para os presentes autos, o que não se concebe e alega por mero dever de patrocínio, a recorrente limita-se a invocar tal factualidade e pretender que ela deve ser considerada provada, sem juntar qualquer prova concreta do que pretende ver provado.
16. Em suma, andou bem o Conselho de Disciplina ao, por um lado, não considerar tal factualidade provada e, por outro lado, ao entender que inexistem factos não provados com relevância para os presentes autos, tendo andado igualmente bem o Tribunal Arbitral do Desporto.
17. A recorrente alega que, nas declarações e expressões pelas quais foi sancionada, não se formula qualquer imputação ou juízo desonroso, pois, tão-só e apenas, estava a exercer a sua liberdade de expressão.
18. O que se verificou foi que, sem qualquer base factual concreta e real, a recorrente ao produzir e publicar as declarações em crise e ao transmitir a referida entrevista, formulou juízos de valor lesivos da honra e reputação dos agentes de arbitragem em questão – os que foram intervenientes nos jogos em crise nos autos –, perfeitamente identificáveis no teor das declarações, colocando em causa o interesse público e privado da preservação das competições reconhecidas como profissionais.
19. Quando a recorrente afirma que «o que ficou explícito em campo foi uma dualidade de critérios em matéria disciplinar» ou referindo-se ao árbitro A...... «se não consegue ser imparcial e se sente condicionado a apitar jogos do S... diante do F..., à imagem do que aconteceu ontem e no passado, iniba-se desse encargo», está a levantar suspeição sobre a actuação dos referidos elementos de arbitragem.
20. O mesmo se verificando quando transmite e divulga a referida entrevista, onde se afirma que «Esses erros foram de forma a penalizar o S... e de forma grave no decorrer do jogo», ou que responde à questão sobre se houve dualidade critérios afirmando «Eu acho que sim», ou ainda quando se afirma «Com a categoria do A......, tem de se estar sempre preparado para um jogo desta natureza. (...) Nos jogos S...-F..., no geral, tem sempre uma grande infelicidade nas actuações que faz, e em prejuízo do S...».
21. É por demais evidente que as expressões da recorrente vão muito além da crítica objectiva, remetendo para uma actuação errática das equipas de arbitragem, para de forma propositada, influenciar os resultados e a tabela classificativa beneficiando ou favorecendo outros competidores.
22. Com a agravante de que tais declarações e expressões nem sequer foram divulgadas e proferidas no «calor do jogo», mas sim em momento posterior ao mesmo, tendo a recorrente ponderado as mesmas e tendo dito e divulgado o que queria e como queria, com determinada intenção que ora se explana.
23. Lançar suspeitas, manifestamente infundadas, de que a actuação de determinado agente de arbitragem não é pautada ao abrigo dos valores da imparcialidade e da isenção, não podem deixar de ser atentatórias da honra e bom nome do respectivo elemento de arbitragem, consubstanciando um comportamento que não pode ser tolerado e que não está justificado pelo exercício lícito da sua liberdade de expressão.
24. As declarações divulgadas ultrapassaram, claramente, uma mera crítica às decisões de arbitragem e não podem deixar de ser interpretadas com o alcance de ter havido uma intenção dos árbitros visados, mediante erros, prejudicar a S... – Futebol, SAD.
25. Até porque os visados pelas declarações e expressões são perfeitamente alcançáveis, porquanto o jogo em crise é identificado pelo recorrente nas mesmas.
26. Em qualquer caso, ao contrário do que alega o recorrente, as declarações e expressões proferidas e divulgadas não têm qualquer base factual, sendo, pelo contrário, a imputação de um juízo pejorativo do desempenho dos agentes de arbitragem intervenientes nos jogos em crise nos autos e na referida publicação.
27. Outro argumento que não colhe é a afirmação de que as declarações e as críticas à equipa de arbitragem foram alegadamente partilhadas por órgãos de comunicação social, designadamente «especialistas» e nesse conspecto, são legítimas, não tendo relevância disciplinar.
28. Por fim, cumpre referir que a alegação referente a um alegado impedimento dos membros do Conselho de Disciplina para decidirem o processo disciplinar não pode ser conhecido por este TCA Sul.
29. A recorrente invoca matéria que não foi alegada na petição inicial apresentada junto do Tribunal Arbitral do Desporto e de que, por isso, aquele Colégio Arbitral não se ocupou, designadamente, a questão da existência de uma situação de impedimento dos membros do CD.
30. Vigora o princípio, acolhido dominantemente pela jurisprudência, de que os recursos são meios de obter a reforma das decisões dos tribunais inferiores pelo que o seu objecto tem de cingir-se em regra à parte dispositiva destas encontrando-se, portanto, objectivamente delimitado pelas questões postas ao tribunal recorrido.
31. É sobre o recorrente que impende o ónus de alegar e concluir, não podendo suscitar questões novas, não enunciadas na petição inicial apresentada previamente, sendo que, notoriamente, não foram arguidas nulidades de conhecimento oficioso nem existem questões supervenientes à tomada de decisão por parte do Tribunal Arbitral que poderiam legitimar um reexame, ou exame ex novo, por parte deste Tribunal Central Administrativo.
32. O recurso jurisdicional visa a apreciação da legalidade da sentença com fundamento na imputação de erros de julgamento sobre a matéria de direito e não a apreciação em primeiro grau de jurisdição de questões novas que não tenham sido submetidas ao veredicto do Tribunal de primeira instância, neste caso, o Tribunal Arbitral do Desporto.
33. Significa isto que nos recursos jurisdicionais não é possível fazer a apreciação de quaisquer questões que sejam novas, isto é, que não tenham sido colocadas à apreciação do Tribunal «a quo», salvo quando o seu conhecimento seja imposto por lei.
34. No caso vertente, o recorrente alegar matéria nova, que já podia ter sido alegada em sede de processo arbitral, suscitando assim uma questão nova apenas perante o Tribunal ad quem, já que não foi invocada perante o Tribunal a quo.
35. Assim, a recorrente pretende a emissão de pronúncia sobre questões novas, pelo que tais questões suscitadas nas conclusões excedem o objecto do recurso, implicando a sua apreciação a preterição de um grau de jurisdição, pelo que, salvo melhor entendimento, não podem ser conhecidas por este Douto Tribunal Superior.
36. Em suma, deve ser negado provimento ao recurso, demonstrando-se o acerto da decisão arbitral recorrida”.
5. Remetidos os autos a este TCA Sul, foi dado cumprimento ao disposto no artigo 146º do CPTA, mas o Digno Procurador-Geral Adjunto junto deste tribunal não emitiu parecer.
6. Sem vistos aos Exmºs Juízes Adjuntos, atenta a natureza urgente do processo, vêm os autos à conferência para julgamento.

II. OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A DECIDIR
7. Antes da apreciação e decisão das questões colocadas pela recorrente, há que determinar se os efeitos jurídicos da Lei nº 38-A/2023, de 2/8 (Lei da Amnistia), mais concretamente do seu artigo 6º, são susceptíveis de se projectar no presente processo e, na afirmativa, em que termos.
8. E, só após esta análise, é que se impõe apreciar no presente recurso se o acórdão arbitral recorrida incorreu nos erros de julgamento que o recorrente lhe imputa.


III. FUNDAMENTAÇÃO
A – DE FACTO
9. Considerando a matéria de facto dada como assente pelo acórdão arbitral do TAD, e não se vislumbrando necessária a respectiva alteração, ao abrigo do disposto no artigo 663º, nº 6 do CPCivil, dá-se por integralmente reproduzida a matéria de facto daquele constante.

B – DE DIREITO
10. Como decorre dos autos, a recorrente “S..., SAD” impugnou junto do Tribunal Arbitral do Desporto o acórdão proferido em 14-12-2021 pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, o qual, no âmbito do processo disciplinar nº .....-....../2021 e respectivos apensos, lhe aplicou a sanção disciplinar de multa, fixada no valor de 320 UC (€ 32.640,00), pela prática, em cúmulo material, de duas infracções disciplinares, p. e p. pelo artigo 112º, nºs 1, 3 e 4 do Regulamento Disciplinar da LPFP (RDLPFP20).
11. O TAD, por acórdão datado de 9-8-2022, decidiu por maioria julgar improcedente o recurso interposto pela S..., SAD e, em consequência, manteve o acórdão de 14 do Dezembro de 2021 proferido pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, que aplicou àquela a sanção disciplinar de multa fixada no valor de 320 UC (€ 32.640,00), pela prática, em cúmulo material, de 2 (duas) infracções disciplinares, p, e p. pelo artigo 112º, nºs 1, 3 e 4 do Regulamento Disciplinar da LPFP (RDLPFP20).
12. No dia 1 de Setembro de 2023 entrou em vigor a Lei nº 38-A/2023, de 2/8 (Lei da Amnistia), cujo artigo 6º tem o seguinte teor:
São amnistiadas as infracções disciplinares e as infracções disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar mais concretamente do seu artigo 6º”.
13. No caso dos autos, no processo disciplinar em que foi arguida a aqui recorrente, foi-lhe aplicada a sanção disciplinar de multa, fixada no valor de 320 UC (€ 32.640,00), pela prática, em cúmulo material, de 2 (duas) infracções disciplinares, p, e p. pelo artigo 112º, nºs 1, 3 e 4 do Regulamento Disciplinar da LPFP (RDLPFP20), por factos praticados em 7 de Maio de 2021, pelo que as infracções disciplinares em causa se encontram amnistiadas, por força do disposto no citado artigo 6º da Lei nº 38-A/2023, de 2/8.
14. Com efeito, a amnistia da infracção disciplinar em sentido próprio, é aquela que ocorre antes da condenação do trabalhador, refere-se à própria infracção e faz extinguir o procedimento disciplinar. Por sua vez, a amnistia em sentido impróprio, ou seja, a que ocorre depois da condenação, apenas impede ou limita o cumprimento da sanção disciplinar aplicada, fazendo cessar ou restringir a execução dessa sanção, bem como das sanções acessórias.
15. No caso presente, como o artigo 6º da Lei nº 38-A/2023, de 2/8, não distingue entre amnistia própria e amnistia imprópria, o efeito útil da norma é o de que a amnistia aí prevista constitui uma providência que “apaga” a infracção disciplinar, sendo por isso apropriado falar-se aqui numa abolição retroactiva da infracção disciplinar, porquanto esta (a amnistia), opera “ex tunc”, incidindo não apenas sobre a própria sanção aplicada, como também sobre o facto típico disciplinar passado, que cai em “esquecimento”, tudo se passando como se não tivesse sido praticado e, consequentemente, eliminado do registo disciplinar do clube visado.
16. Ora, constituindo o objecto do presente recurso o acórdão arbitral que, negando provimento à impugnação deduzida pela recorrente, confirmou o acórdão proferido pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, que havia aplicado àquela a sanção disciplinar de multa no valor de 320 UC (€ 32.640,00), pela prática, em cúmulo material, de 2 (duas) infracções disciplinares, p, e p. pelo artigo 112º, nºs 1, 3 e 4 do Regulamento Disciplinar da LPFP (RDLPFP20), com o “desaparecimento” da infracção disciplinar, “ex vi” artigo 6º da Lei nº 38-A/2023, cai também o acto punitivo que sancionou a recorrente, tornando impossível o prosseguimento da presente lide, por aquele acto punitivo ter deixado de ter existência jurídica.
17. E, sendo assim, torna-se desnecessário apreciar os vícios que a recorrente imputa ao acórdão arbitral do TAD e que constituíam o objecto inicial do presente recurso.


IV. DECISÃO
18. Nestes termos, e pelo exposto, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo – Subsecção Social deste Tribunal Central Administrativo Sul, em declarar amnistiada a infracção disciplinar sancionada pelo acórdão proferido pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, aplicou à recorrente a sanção disciplinar de multa no valor de 320 UC (€ 32.640,00), pela prática, em cúmulo material, de 2 (duas) infracções disciplinares, p, e p. pelo artigo 112º, nºs 1, 3 e 4 do Regulamento Disciplinar da LPFP (RDLPFP20) e, em consequência, julgar extinta a presente instância de recurso, por impossibilidade superveniente da lide.
19. Custas por recorrente e recorrido, em partes iguais (artigo 536º, nºs 1 e 2, alínea c) do CPCivil).

Lisboa, 26 de Outubro de 2023
(Rui Fernando Belfo Pereira – relator)
(Carlos Araújo – 1º adjunto)
(Frederico Macedo Branco – 2º adjunto)