Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:01270/05
Secção:Contencioso Administrativo - 2º Juízo
Data do Acordão:01/26/2006
Relator:Rogério Martins
Descritores:COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
ACTO DE DE CANCELAMENTO DE UMA LICENÇA DESPORTIVA
ACTO DE SUSPENSÃO PREVENTIVA DE UM DESPORTISTA
ACTO ADMINISTRATIVO
Sumário:I - Saber se o acto sub judice é administrativo ou, ao invés, tem natureza jurídico-privada, reconduz-se a apreciar a competência material dos Tribunais Administrativos, e não a impugnabilidade do acto.
II - O acto de cancelamento de uma licença desportiva e o acto de suspensão preventiva de um desportista, são materialmente administrativos, praticados ao abrigo de normas de direito público administrativo, pelo que a apreciação da respectiva validade cabe no âmbito da jurisdição administrativa.
III - Só as infracções disciplinares cometidas no decurso da competição, envolvendo questões de facto e de direito emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respectivas provas, ou seja, as questões estritamente desportivas - desde que não integradas na previsão do n.º 3 do art.º 47º da Lei de Bases do Desporto -, estão sujeitas ao controlo privativo das instâncias competentes na ordem desportiva.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes do Tribunal Central Administrativo Sul:

Diamantino ....interpôs o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, de 6.9.2005, pela qual foi julgada improcedente a providência cautelar de suspensão da eficácia por si interposta, em representação do seu filho João ..., relativamente aos actos da Federação Portuguesa de ...., de cancelamento da licença desportiva condutor FPAK-EU-C com o n.º 895/2005 e de suspensão preventiva do licenciado João Filipe pelo Conselho Disciplinar.

Formulou as seguintes conclusões:

A. Tal como o Tribunal a quo o delimitou, o cerne do litígio está em apurar a natureza dos actos de emissão, suspensão preventiva e cancelamento da licença desportiva de que o JOÃO FILIPE é titular.
B. Para tal, o que importa é qualificar juridicamente tais actos, tendo presente quer a natureza dos interesses que a FPAK prossegue, quer a natureza dos poderes que esta federação desportiva detém para os satisfazer.
C. Sucede que, ao invés do que fez Tribunal a quo, tal qualificação jurídica não deve assentar na base jurídica a que a FPAK recorreu para adoptar tais actos, mas sim na natureza material e subjectiva dos próprios actos.
D. Ora seguindo a melhor doutrina, a FPAK está legal e estatutariamente habilitada a praticar actos de "passagem de licenças" - logo, também, de suspensão ou cancelamento de licenças - em aplicação, designadamente, de legislação desportiva nacional e, entre outros, do Código Desportivo Internacional, assumindo esses actos, material e subjectivamente, a natureza de actos administrativos.
E. É esse também o sentido da jurisprudência, designadamente do Supremo Tribunal Administrativo (doravante, "STA"), o qual desde 1990 vem dando como adquirida a natureza pública da competência regulamentar e disciplinar das federações desportivas, a qual radica desde logo do facto de, pelo estatuto de utilidade pública desportiva, o Estado delegar nas federações desportivas poderes e dinheiros públicos em matéria desportiva, no quadro do artigo 79º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
F. Para tal sedimentação jurisprudencial, contribuiu inevitavelmente a entrada em vigor, inicialmente, da Lei de Bases do Sistema Desportivo, cujo artigo 25. °, n.º 2 consagrou a inimpugnabilidade fora das instâncias desportivas das "questões estritamente desportivas", e actualmente, da Lei de Bases do Desporto (cfr. artigo 47. °).
G. Ao contrário do que defende o Tribunal a quo, a delimitação das "questões estritamente desportivas" não resulta pura e simplesmente de uma leitura "a contrario sensu" do n.º 3 do artigo 47° da Lei de Bases do Desporto, até porque tal interpretação ignora em absoluto o regime do n.º 2 do mesmo preceito.
H. Concatenando o n.º 2 e o n.º 3 do referido artigo 47°, concluir-se-á que existe um conjunto de decisões e deliberações que o Tribunal a quo pura e simplesmente ignorou, a saber: (i) aquelas que não sejam relativas a infracções disciplinares cometidas no decurso da competição e (ii) aquelas que não digam respeito a infracções à ética desportiva, no âmbito da dopagem, da violência e da corrupção.
I. Esse conjunto de decisões e deliberações não são sobre "questões estritamente desportivas", pelo que são sindicáveis fora das instâncias competentes na ordem desportiva, designadamente junto dos tribunais administrativos.
J. Nesse conjunto de decisões e deliberações sindicáveis em sede de tribunais administrativos estão os actos de cancelamento e de suspensão de licenças desportivas, já que (i) não têm por fundamento infracções disciplinares cometidas no decurso da competição automobilística (ii) nem são relativas a infracções à ética desportiva, uma vez que,
K. o seu único fundamento foi a idade do praticante, enquanto um dos requisitos de titularidade da licença.
L. E se dúvidas houvesse quanto a este entendimento, é o próprio Tribunal a quo quem as dissipa, ao reconhecer expressamente, no caso concreto do acto de suspensão preventiva da licença, que este nada tem que ver com a prática ou decorrência da competição e respectiva aplicação das "leis do jogo", antes pretendendo evitar o acesso à prática desportiva e a violação das regras do jogo.
M. Basta atentar na vasta e especializada doutrina nacional e estrangeira, assim como em jurisprudência assente, para constatar que as "questões estritamente desportivas" são precisamente as questões opostas à que o Tribunal a quo se reporta.
N. Com efeito, as "questões estritamente desportivas" são aquelas que regem a prática desportiva que ocorre dentro do terreno de jogo, isto é, aquelas situações que surgem durante ou no desenrolar da competição, no desenvolvimento dos acontecimentos circunscritos ao recinto de jogo. E nunca num momento prévio ao início ou ao desenvolvimento da competição.
O. Cumpre então concluir que quer o acto de cancelamento da licença quer o acto de suspensão preventiva da licença, não são actos sobre "questões estritamente desportivas", já que não se prendem com qualquer situação ocorrida numa pista durante o directo e efectivo decurso de uma prova de automobilismo desportivo, pelo que, obedecendo ao comando do n.º 2 do artigo 47.° da LBD, os referidos actos são administrativos, e consequentemente sindicáveis fora das instâncias desportivas, designadamente junto dos tribunais administrativos.
P. Por outro lado, também se deve concluir que a atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso é causadora de danos ao João Filipe.
Q. Que os danos do João Filipe decorrentes da atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso são superiores àqueles que poderiam resultar da sua não atribuição.
R. Que em matéria de interesse público e, em especial, para o Desporto Automóvel, não se vislumbram danos que possam ofender quaisquer normas desportivas decorrentes da não atribuição de efeito suspensivo ao recurso.
S. Que não se vislumbra que a adopção de outras medidas cautelares consiga minorar estes danos, designadamente a nível de formação, a nível de carreira, e ainda a nível psicológico, que para o João Filipe podem resultar se não for recusado o efeito meramente devolutivo ao recurso.


A Recorrida contra-alegou, pela forma que consta da peça de fls. 474 e seguintes que aqui se dá por reproduzida, pugnando pelo acerto da decisão da 1ª Instância e pela manutenção do efeito meramente devolutivo fixado para o presente recurso jurisdicional.

*
Cumpre decidir.
*

I – O efeito fixado ao recurso jurisdicional.

O recorrente invoca a este propósito que a atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso é causadora de danos ao João ... e que estes são superiores àqueles que poderiam resultar da sua não atribuição.

Determina o art.º 143º, n.2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos o seguinte:

“Os recursos interpostos de intimações para protecção de direitos, liberdades e garantias e de decisões respeitantes à adopção de providências cautelares têm efeito meramente devolutivo.”

Este preceito, conforme tem vindo a ser entendido pela doutrina e pela jurisprudência, tanto se aplica às decisões cautelares de provimento como de recusa.

Isto “a fim de evitar a suspensão dos seus efeitos positivos por exemplo, para evitar o prolongamento abusivo da proibição de execução do acto administrativo cf. o art. 128º.” (cfr. J. Carlos Vieira de Andrade, in “A Justiça Administrativa”, 6ª. ed., pag. 417, nota 922).

Mário Aroso de Almeida (in “O Novo Regime do Processo Nos Tribunais Administrativos”, 3ª ed., pags. 328 e 329), também justifica a solução adoptada em virtude de, por um lado, o juiz, ao atribuir ou recusar providências cautelares, já proceder à ponderação de que o nº 5 do art. 143º faz depender a decisão de atribuir efeito meramente devolutivo ao recurso e, por outro lado, porque “a atribuição de efeito suspensivo ao recurso jurisdicional teria o efeito pernicioso de favorecer a utilização abusiva do recurso contra decisões que recusassem a suspensão de eficácia de actos administrativos com o propósito de aproveitar o efeito suspensivo automático que resultaria da simples interposição do recurso jurisdicional durante toda a pendência do mesmo, para o efeito de prolongar a situação de proibição de executar o acto administrativo que resulta do art. 128º”.

Veja-se o acórdão deste Tribunal Central Administrativo Sul de 14-04-2005, no recurso 00618/05.

Finalmente cabe dizer que, como bem se defende no despacho de fls. 436, citando Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, no Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, p. 649-650, “ao contrário do que acontece a respeito da regra do n.º 1, o art.º 143º não prevê, para os casos previstos no seu n.º 2, a possibilidade de se requerer ao tribunal para o qual se recorre que seja atribuído efeito suspensivo ao recurso. Esta solução dissuade o interessado de interpor recurso da decisão desfavorável, apenas no intuito de continuar a beneficiar da proibição de executar o acto administrativo durante a pendência do recurso jurisdicional.

Termos em que se impõe manter o efeito meramente devolutivo fixado ao recurso jurisdicional.

II - Factos com relevo.

A sentença recorrida deu por assentes, sem que as partes tenham feito qualquer reparo à decisão nesse particular, os seguintes factos:

. Em Fevereiro de 2005 foi enviado aos associados o Anuário desportivo, em suporte digital, com o teor constante dos autos e aqui dados por reproduzidos.

. Em 11.2.2005, a Federação Portuguesa de .... emitiu a licença desportiva de condutor FPAK-EU-C n.º 895 em nome de João....

. O João Filipe inscreveu-se no Campeonato Francês para a época de 2005 (este inscrito no calendário do Comité Internacional de Karting da Federação Internacional de Automobilismo de provas NEAFP).

. A referida inscrição foi aceite e confirmada em 28.2.005 e pago o respectivo valor de 620, 00 euros.

. Em 16.3.2005, a FPAK colocou no canto superior direito a menção actualização e acrescentou uma nota adicional no final do art.º 28 do Regulamento de Emissão de Licenças.

. Em 24.3.2005 a FPAK enviou a José Loureiro o fax a solicitar a devolução da licença emitida ao João Filipe, por inválida, nos termos e com os fundamentos explicitados a fls. 173 dos autos, aqui dados por reproduzidos na íntegra.

. Por carta datada de 24.3.2005, e recebida em 1.4.2005, a FPAK informou o Requerente que a referida licença se encontrava cancelada não podendo ser utilizada em nenhuma competição, devendo ser entregue para substituição por licença nacional da mesma categoria.

. A primeira prova do Campeonato Francês do Circuit Internacional de Laval Beausolei realizou-se a 26 e 27 de Março de 2005.

. O João Filipe participou nesta prova.

. O João Filipe completou 13 anos de idade em 13.5.2005.

. Em 16.5.2005, o Requerente foi notificado do Despacho PD n.º 05/2005 do Conselho Disciplinar da FDAK que decreta a suspensão preventiva do João Filipe e o intima a entregar a respectiva licença.

. De acordo com o Despacho PD n.º 5/2005, o João Filipe é acusado de desrespeito por ordens e instruções emanadas dos órgãos competentes no exercício das suas funções, a saber, desrespeito reiterado de entrega das licenças desportivas e participação em provas para que o licenciado não preenchia os requisitos determinados pela FPAK nos termos das normas internacionais definidas pela FIA.

. No dia 1.7.2005, realizou-se uma prova organizada pela Federação Portuguesa destinada a promover a disciplina do Karting e de demonstração dos melhores pilotos às marcas concorrentes na Fórmula 1, para a qual o João Filipe foi o único português convidado a participar.

. O João Filipe está impedido de participar nas demais provas do Campeonato Francês para as quais se inscreveu e pagou na íntegra a inscrição, e noutras provas nacionais, até à prolação da decisão no processo disciplinar em curso.

. O interregno competitivo nesta idade traduz-se num atraso na formação do corredor.

. Em Portugal podem correr pilotos nacionais e estrangeiros com menos de 13 anos.


. O Despacho do Conselho disciplinar da FPAK foi tomado sem ouvir previamente o Requerente acerca da intenção de decretar a suspensão preventiva.


III- O Direito aplicável.

1. A suscitada questão da inimpugnabilidade dos actos.

A questão essencial foi configurada pelas partes e pelo Tribunal a quo como a da (in) impugnabilidade dos actos a suspender.

Salvo melhor entendimento, porém, impõe-se outra qualificação.

Como diz o recorrente o cerne da questão está em apurar a natureza dos actos de emissão, suspensão preventiva e cancelamento da licença desportiva de que o João Filipe é titular.

Para o recorrente são actos administrativos, material e subjectivamente.

Para a recorrida e o Tribunal a quo trata-se de actos de natureza jurídico-privada, praticados no exercício de um poder privado de auto regulação.

Ora saber se o acto sub judice é administrativo ou, ao invés, tem natureza jurídico-privada reconduz-se a apreciar a competência material dos Tribunais Administrativos.

Na verdade, a estes só cabe apreciar, como regra, as acções e os recursos destinados a dirimir litígios emergentes de relações jurídico-administrativas e, no que diz respeito em concreto à fiscalização da legalidade de actos, a jurisdição administrativa apenas abrange os actos subjectiva e materialmente administrativos ou praticados no exercício de poderes administrativos (art.º 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e art.º 212º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa).

E nada impede, antes impõe, que a questão seja apreciada estritamente como excepção de incompetência, em razão da matéria:

Em primeiro lugar porque o Tribunal não está adstrito à qualificação jurídica feita pelas partes – art.º 664º do Código de Processo Civil, ex vi do art.º 1º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Depois, porque a competência é de conhecimento oficioso e precede o de qualquer outra matéria – art.º 13º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Em particular, definir se um acto é ou não impugnável, pressupõe que esteja resolvida a questão de saber se esse acto é materialmente administrativo, ou seja, a questão da competência do Tribunal em razão da matéria – art.ºs 5º, n.2, al. d), e 51º, ambos do Código de Processo nos Tribunais Administrativos).

Dito isto, vejamos.

A recorrida, como federação desportiva, é uma pessoa colectiva de direito privado – art.º 20º da Lei de Bases do Desporto (Lei 30/2004, de 21.7) – à qual foi reconhecida utilidade pública desportiva.

A questão da sua natureza, porém, não é decisiva para a resolução da questão aqui em causa, uma vez que as entidades privadas também podem praticar actos materialmente administrativos, sujeitos, por isso, à jurisdição dos tribunais administrativos – art.ºs 4º, n.1, al. d), 10º, n.º 7, e 51º, n.o2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

O que importa analisar é se os actos em causa, de cancelamento de uma licença desportiva e de suspensão preventiva de um desportista, são materialmente administrativos, praticados ao abrigo de normas de direito público administrativo, ou não.

Quanto ao acto de cancelamento da licença não é materialmente distinto do acto de concessão: são os mesmos os poderes que permitem conceder ou cancelar uma licença desportiva e são da mesma natureza as normas que regulam ambos os actos.

O estatuto de utilidade pública concedido às federações desportivas, como é o caso da recorrida, confere a competência para o exercício de poderes públicos – art.º 22º, n.º 1, da Lei de Bases do Desporto.

E temos por bom o entendimento de que traduzem o exercício de poderes públicos os actos unilaterais que se impõe autoritariamente a terceiros, praticados no âmbito da missão pública que foi confiada à federação desportiva, ao abrigo de normas públicas – ver o acórdão deste Tribunal Central Administrativo, de 6.10.2005, no recurso 01039/05, e do Supremo Tribunal Administrativo de 15.12.2004, recurso 074/02.

No caso da concessão ou cancelamento de uma licença desportiva não estamos perante uma matéria que tenha a ver, por exemplo, com a liberdade de associação, mas antes com a possibilidade de alguém praticar uma determinada modalidade desportiva.

Possibilidade que é definida unilateralmente pela federação desportiva perante o particular, de forma autoritária.

E que tem a ver com o objectivo público, constitucionalmente consagrado, de promover a prática desportiva: não há prática desportiva se não houver pessoas habilitadas e autorizadas a praticar as várias modalidades desportivas.

Este objectivo é perseguido pelo Estado em colaboração, entre outras entidades, com as associações desportivas – art.º 79º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

Sendo essa possibilidade definida unilateralmente perante o particular, de forma autoritária, no âmbito de um dos objectivos gerais estabelecidos para uma federação desportiva no âmbito da sua colaboração com o Estado, a saber, a promoção de uma determinada modalidade desportiva, e ao abrigo de normas públicas – art.ºs 20º, al. a), e 22º, n.1, da Lei de Bases do Desporto –, estamos perante um acto materialmente administrativo.

Como refere Mário Esteves de Oliveira, in Direito Administrativo, Volume I, Almedina, 1980, p. 385, “Esses actos [inscrição e passagem de licenças a atletas nacionais e estrangeiros] assumem, materialmente falando, a natureza de actos administrativos traduzindo-se em decisões unilaterais e executivas perante os respectivos destinatários”.

O mesmo se diga em relação ao acto de suspensão da actividade desportiva, praticado em sede disciplinar.

Os poderes disciplinares exercidos, dentro do respectivo âmbito, pelas federações desportivas com o estatuto de utilidade pública desportiva são, por regra, poderes de natureza pública.

Esta regra resulta desde logo do próprio teor literal do art.º 22º, n.1, da Lei de Bases do Desporto, onde se mencionam os poderes disciplinares a par de “outros” de natureza pública.

E também do disposto no art.º 46º deste mesmo diploma, onde se determina que “as decisões e deliberações definitivas das entidades que integram o associativismo desportivo são impugnáveis, nos termos gerais de direito”.

Por outro lado, o disposto no n.º 3 do art.º 47º da Lei de Bases do Desporto, não constitui, quanto a nós, a definição de quais são os poderes disciplinares das associações desportivas com natureza de poderes públicos.

Na verdade não são apenas as infracções à ética desportiva no âmbito da dopagem, da violência e da corrupção que justificam o exercício de poderes públicos.

Estas são as infracções em que o exercício de poderes públicos e a interferência de normas de direito público mais se justificam mas não são as únicas.

Como acima vimos, a própria admissão (ou impedimento) ao exercício de uma determinada actividade desportiva traduz o exercício de um poder público.

Acresce que a colocação sistemática nos leva a concluir que o referido n.º 3 do art.º 47º, da Lei de Bases do Desporto, estabelece não uma regra mas a excepção a uma excepção.

Se se pretendesse dizer que apenas as decisões e deliberações disciplinares no âmbito da dopagem, da violência e da corrupção podiam ser objecto de recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva, então faria mais sentido a sua colocação como n.º 1 ou n.º 2 do referido art.º 47º e não como n.3, por referência ao n.º 2.

Com esta colocação sistemática, o que o legislador quis deixar claro é que as deliberações disciplinares, ainda que tenham por objecto infracções cometidas no decurso da competição e por fundamento leis do jogo, regulamentos ou regras de organização das provas – previsão do citado n.º 2 – estão, excepcionalmente, sujeitas a recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva, desde que digam respeito a infracções à ética desportiva, no âmbito da dopagem, da violência e da corrupção.

Ou seja:

No art.º 46º da Lei de Bases do Desporto estabelece-se a regra de que as decisões e deliberações definitivas das associações desportivas (e respectivos órgãos) são impugnáveis; nos n.ºs 1 e 2, do art.º 47º, consagra-se a excepção relativa a questões estritamente desportivas, as quais, por princípio, não são susceptíveis de recurso fora das instâncias desportivas; por fim, no n.º 3 deste mesmo preceito, e atendendo à excepcional importâncias destas matérias, consagra-se uma excepção à excepção referida no número anterior, determinando que as decisões disciplinares relativas a infracções à ética desportiva, no âmbito da dopagem, da violência e da corrupção, estão sujeitas a controlo por via da impugnação, fora das instâncias desportivas.

Só, portanto, as infracções disciplinares cometidas no decurso da competição, envolvendo questões de facto e de direito emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respectivas provas, ou seja, as questões estritamente desportivas – desde que não integradas na previsão do n.º 3 -, estão sujeitas ao controlo privativo das instâncias competentes na ordem desportiva.

Ver a este propósito os recentes acórdãos do Tribunal Constitucional, n.º 391/2005 (processo n.º 473/2005) e n.º 597/2005 (processo n.º 474/05).

Tratando-se, no caso concreto, de uma decisão disciplinar não se pode concluir, sem mais, que estamos perante uma decisão insusceptível de recurso fora das instâncias desportivas.

Impõe-se apurar, para se chegar a tal conclusão, que se trata de uma infracção disciplinar cometida no decurso de uma competição e traduzindo o desrespeito pelas leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização as respectivas provas.

Ora, no caso concreto a infracção em causa assenta no “desrespeito por ordens e instruções emanadas dos órgãos competentes no exercício das suas funções, a saber, desrespeito reiterado de entrega das licenças desportivas e participação em provas para que o licenciado não preenchia os requisitos determinados pela FPAK nos termos das normas internacionais definidas pela FIA”.

Esta infracção verifica-se, em parte, em momento anterior à própria competição e nessa parte, naturalmente, está dissociada das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respectivas provas. Em concreto, o desrespeito pelas ordens de entrega da licença desportiva que lhe foi emitida em nome do João....

O que bastaria para concluir que não se trata de uma questão “estritamente” desportiva.

Noutra parte poder-se-ia ver a decisão disciplinar como uma questão estritamente desportiva, se olhássemos apenas para uma das suas dimensões: a participação numa prova para a qual se exigia (segundo a Recorrida) a idade mínima de treze anos.

De facto a participação numa prova para a qual se exige o mínimo de 13 anos por um desportista com apenas 12 anos constitui a violação de uma norma regulamentar relativa à realização da prova.

Mas constitui, ao mesmo tempo, um requisito para a concessão de licença desportiva em causa.

O que, também por esta banda, lhe retira a natureza de questão “estritamente” desportiva, nos termos acima expedidos em relação ao primeiro acto, de cancelamento da licença.

Termos em que se conclui estarmos perante actos materialmente administrativos e, por isso, da competência dos tribunais administrativos.

Resolvida a questão da competência, fica resolvida a questão da (in) impugnabilidade dos actos.

Isto porque os actos em apreço são indiscutivelmente dotados de eficácia externa, tendo a virtualidade de produzir efeitos na esfera jurídica do Recorrente, como produziram, desde a prolação da decisão em Primeira Instância – art.º 51º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

2. O mérito do pedido.

Dado não existir qualquer outra excepção ou questão prévia que obste ao conhecimento de mérito do pedido de suspensão da eficácia dos actos em apreço, impõe-se conhecer de mérito este pedido, uma vez que o Tribunal dispõe de todos os elementos necessários e suficientes para o efeito – art.º 715º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

Não é evidente, desde logo, que a pretensão do processo principal seja procedente, pelo que não se verifica a situação prevista na alínea a) do n.1, do artigo 120º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Por outro lado trata-se aqui de uma providência conservatória, a suspensão de dois actos lesivos dos interesses defendidos pelo Requerente.

Importa, por isso, verificar se estão preenchidos os requisitos e condicionalismos previstos na al. c), do n.1, e no n.º 2, do artigo 120º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Quanto ao fundado receio de receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o Requerente visa assegurar no processo principal (periculum in mora), entende-se que está preenchido.

O João..., cujos interesses são defendidos no processo principal, até ao trânsito em julgado da decisão judicial que se pronuncie sobre a validade dos actos em apreço ou até ser proferida decisão final no processo disciplinar, estará impedido de participar em provas, o que se traduz num atraso na sua formação, provavelmente irreversível em termos de progressão na modalidade desportiva aqui em apreço e na eventual evolução para outras modalidades de maior prestígio, como seja a Fórmula 1, dada a idade que tem.

Também não se afigura que seja manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular no processo principal.

No que diz respeito ao cancelamento da Licença Desportiva Condutor FPAK-UE-C a validade deste acto prende-se essencialmente com a interpretação a dar aos art.ºs 25º e 28º do Regulamento de Emissão de Licenças Desportivas 2005.

Ora não é manifesto que a interpretação defendida pelo ora Recorrente seja indefensável.

As dúvidas suscitadas pelo art.º 28º desse Regulamento levaram até a Recorrida a aditar-lhe uma nota de “esclarecimento”.

Também nada permite afirmar que será manifestamente improcedente o pedido de anulação do acto de suspensão preventiva do licenciado João Filipe.

Em primeiro lugar porque a validade do acto de suspensão preventiva está dependente da validade do acto de cancelamento da licença, por o primeiro ser um acto consequente do segundo.

Depois porque, numa análise sumária da situação, se mostra desde logo procedente o vício de forma por preterição da audiência do interessado, tendo em conta que se deu como provado que o Despacho do Conselho disciplinar da FPAK foi tomado sem ouvir previamente o Requerente acerca da intenção de decretar a suspensão preventiva.

Por outro lado, não é manifesta a existência de circunstâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito do pedido deduzido ou a deduzir na acção principal. Bem pelo contrário, tudo indica, face ao que acima ficou expedido, que não haverá nada a obsta ao conhecimento de mérito.

Finalmente, não se vislumbra que a suspensão dos actos aqui em causa possa causar danos, aos interesses públicos (ou particulares de outros concorrentes) que se superiorizem aos interesses do João Filipe.

Os actos produziram os seus efeitos no decurso do presente recurso jurisdicional.

O João Filipe perfez entretanto os 13 anos pelo que, objectivamente, não existe o obstáculo que foi invocado para o cancelamento da licença concedida. E não estará assim numa situação objectivamente diferente dos demais competidores.

Caso venha a posicionar-se em lugares cimeiros em detrimento de outros corredores, isto só se ficará a dever à maior perícia do João Filipe em relação aos demais, pelo que não resulta daqui qualquer tratamento privilegiado ou sem justificação objectiva.

Impõe-se, por tudo isto, deferir na totalidade a providência requerida.

*
* *

Pelo exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso jurisdicional, e, em consequência, decidem:

A) Manter o efeito meramente devolutivo ao presente recurso jurisdicional;

B) Revogar a sentença recorrida, deferindo o pedido de suspensão da eficácia dos actos

Custas, na Primeira Instância, pela Recorrida.

Custas, na Segunda Instância, na proporção de 1/3 para o Recorrente e 2/3 pela Recorrida.

Taxa de Justiça: 1ª Instância – 8 UC (oito unidades de conta)
2ª Instância - 18 UC (dezoito unidades de conta)

Procuradoria (em ambas as Instâncias) – ½.
*
Lisboa, 26.1.2006

(Rogério Martins)
(Coelho da Cunha)
(Cristina Santos)