Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 92/24.7BCLSB |
![]() | ![]() |
Secção: | CA |
![]() | ![]() |
![]() | ![]() |
Data do Acordão: | 11/28/2024 |
![]() | ![]() |
Relator: | MARIA HELENA FILIPE |
![]() | ![]() |
Descritores: | A LEI DA AMNISTIA NÃO SE APLICA A INFRACÇÃO DISCIPLINAR PRATICADA APÓS 19 DE JUNHO DE 2023 TRIBUNAL ARBITRAL DO DESPORTO LEI Nº 27/2007, DE 30 DE JULHO RDLPFP DECLARAÇÃO DIFUNDIDA NUMA TRANSMISSÃO EM DIRECTO DE FUTEBOL, NUM CANAL TELEVISIVO: ANÁLISE NAS PERSPECTIVAS DO DIREITO PENAL E DO DIREITO DISCIPLINAR COMPORTAMENTOS CENSURÁVEIS EXPANDIDOS POR CANAIS TELEVISIVOS PERTENCENTES A CLUBES E SOCIEDADES DESPORTIVAS |
![]() | ![]() |
Sumário: | I - A questão da aplicação ou não de uma amnistia aos factos imputados em processo disciplinar/ sancionatório é de conhecimento oficioso, pelo que é nula, por omissão de pronúncia, a decisão judicial que não a conhecer. Isto porque, a nulidade por omissão de pronúncia representa a sanção legal para a violação do estatuído no nº 2 do artº 608º e no nº 1, alínea d) do artº 615º, ambos do CPC. II - Estamos perante a aplicação de sanção disciplinar de multa, logo não superior a suspensão, que praticada em data posterior a 19 de Junho de 2023, não se encontra abrangida no âmbito temporal da Lei da Amnistia – cfr nº 1 do artº 2º. III - Consta do nº 4 do artº 112º do RD LPFP , sob a epígrafe ‘Lesão da honra e da reputação dos órgãos da estrutura desportiva e dos seus membros’ que “Sem prejuízo do disposto nas leis que regulam a imprensa, a rádio e a televisão, o clube” [aqui entendido também como se referindo indistintamente ao Clube e às Sociedades Desportivas, nos termos da alínea a) do nº 1 do artº 4º do mesmo Regulamento] - é considerado responsável pelos comportamentos que venham a ser divulgados pela sua imprensa privada e pelos sítios na Internet que sejam explorados pelo clube, pela sociedade desportiva ou pelo clube fundador da sociedade desportiva, diretamente ou por interposta pessoa”. |
![]() | ![]() |
![]() | ![]() |
Votação: | UNANIMIDADE |
![]() | ![]() |
![]() | ![]() |
Indicações Eventuais: | Subsecção SOCIAL |
![]() | ![]() |
![]() | ![]() |
Aditamento: | ![]() |
1 | ![]() |
Decisão Texto Integral: | I. Relatório S…….. – FUTEBOL, SAD, recorre da decisão proferida no Tribunal Arbitral do Desporto que confirmou a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina de improceder a impugnação do aqui Recorrente, decidindo: Inconformado, o demandante interpôs recurso desta decisão, terminando as alegações com a formulação das conclusões que seguidamente se transcrevem: A FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL apresentou contra-alegações, nas quais formulou as conclusões seguintes: (imagem, original nos autos) Por despacho de 14 de Junho de 2024 foi determinada a subida dos autos a esta Instância. Notificado o Ministério Público neste Tribunal, vem dar o seu parecer, nestes termos: “Por nada mais termos a acrescentar, acompanhamos a douta decisão do TAD recorrida, bem como as contra-alegações da FPF, as quais damos por reproduzidas. Consequentemente, deverá ser declarado improcedente o presente recurso da recorrente S........ – SAD”. *** II. Objecto do recurso i) Em face das conclusões enunciadas, cumpre verificar e decidir, nomeadamente, se como invocado, o “Acórdão recorrido erra ao analisar a questão sub judice sob a perspetiva do direito penal e não da perspetiva do direito disciplinar, pelo que se impõe que o Tribunal Central Administrativo do Sul proceda a uma correta aplicação do direito ao caso”, sendo que o objecto do recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respectivas alegações, de acordo com o artº 5º, o nº 2 do artº 608º e os nºs 3 e 4 do artº 635º, todos do CPC, ex vi do artº 140º do CPTA. ii) Delimitação do objecto do recurso – questões a apreciar ex ante à formulada em i). Cumpre, igualmente, em momento prévio à apreciação e decisão da questão decidenda colocada pelo Recorrente, tomando em consideração que por deliberação de 10 de Outubro de 2023 da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Demandada, emitida no âmbito do procedimento disciplinar nº 17-23/24, foi aplicada à Demandante sanção de multa no montante de 15.300,00€ (quinze mil e trezentos euros), aferir da aplicação ao caso dos autos da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, tendo em conta jurisprudência firmada por este Tribunal, de que citamos a título ilustrativo, o Acórdão proferido no Processo nº 80/23.0 BCLSB, em 23 de Novembro de 2023, in www.dgsi.pt. *** III. Fundamentação No acórdão recorrido, relativamente à fixação da matéria de facto, consta o seguinte: A) No dia 06.09.2023, foi transmitido, em direto, pela S… TV, o programa “S… Grande Jornal", em que interveio o ex-futebolista, C….., tendo proferido, por relação a um lance do jogo realizado no dia 03.09.2023, entre o F….- Futebol, SAD, e a Futebol Clube de A….. - Futebol, SDUQ, Lda., no quadro da Liga Portugal Betclic, as seguintes declarações: “O VAR está lá para ajudar. O árbitro aqui só tinha de ter coragem, para não dizer outra coisa, e dar dois amarelos ao muçulmano, que quando veio para Portuga! não sabia nadar e agora já sabe mergulhar. É impressionante.” B) A S…. TV é indiretamente explorada pela S…. Clube de Portugal e pela S….. - Futebol, SAD. *** A factualidade dada como provada em A) conhece suporte probatório (cf., desde logo, o ficheiro 107226512_lmp4, junto em sede de contestação, e, ainda, múltiplo teor documental do processo administrativo) e não constitui matéria controvertida entre as partes em contenda. Relativamente à factualidade dada como provada em B), releva a prova documental constante de fls. 56, 74 e 77 do processo administrativo. Em particular quanto ao documento de fls. 56, ou seja, quanto ao “RELATÓRIO E CONTAS | ÉPOCA 2022/2023” da Demandante (cf., nesse mesmo documento, as fls. 22, 100, 142, 153, 154), demonstra o mesmo, à saciedade, que a S…. TV não é alheia à Demandante. A factualidade dada como provada em B) assenta, pois, em prova documental, mas sempre resultaria, se não fosse o caso, de presunção judicial”. *** Sumariou-se no Acórdão Arbitral recorrido: “a) O Tribunal vê, nas declarações em causa, uma conduta censurável à luz do disposto no artigo 12º, nº 1, do RDLPFP, que releva, naturalmente, no quadro do nº 4, do mesmo Regulamento. Ao ter sido convocado, sem qualquer necessidade, o termo “muçulmano", o teor das declarações em apreço revela (elevada) sensibilidade e, no panorama normativo em apreço, censurabilidade. Bem andou, pois, o órgão disciplinar da Demandada ao ter decidido administrativamente o que decidiu, fundado, desde logo, no seguinte: “Desde logo é medianamente evidente que tais declarações são, não apenas lesivas da honra, reputação e consideração do jogador, iraniano M……., que integra uma equipa adversária, como também são lesivas da sua dignidade e liberdade religiosa e traduz um (grave) preconceito (discriminação) relativamente à religião procurando desse modo incentivar tal juízo aversão, asco, repulsa (ódio) explorando a diferente religião do adversário” (cf. o ponto 59). Insiste-se num ponto: a completa desnecessidade, no panorama das declarações (de comentário desportivo) em apreço, do emprego do termo “muçulmano”, circunstância que torna particularmente claro o fito discriminatório das mesmas e o mencionado incitamento, para mais num contexto particularmente sensível como é o futebol. b) A conduta não deixa de ser imputável à Demandante pelo facto de o programa ter sido transmitido em direto: o artigo 112º, nº 4, do RDLPFP, não abarca apenas divulgações em diferido, como o revela, desde logo, o elemento literal do preceito, que não distingue divulgações em direto ou em diferido. Diz a Demandante: tendo o programa sido transmitido em direto, a Demandante encontrava-se impossibilitada de agir. Como se pode ler no ato impugnado, desde logo a propósito do pressuposto da culpa, não é assim:”por ser sempre exigível comportamento diverso, nomeadamente a eventual fixação de códigos de conduta e sanções para a sua violação no estrito respeito da liberdade de informação e de imprensa e posterior, in casu, aplicação de medidas eficazes e sancionatórias o que não se evidenciou de todo para além do ,,distanciamento”, (cf. o ponto 78). O que acaba de ser dito, vale, igualmente, para a alegada falta de uma conduta censurável, por parte da Demandante, improcedendo, também neste ponto, a perspetiva da Demandante”. Assim, decidiu-se arbitralmente julgar improcedente a acção arbitral. *** IV. Direito Em 31 de Julho de 2024 foi proferida Decisão Sumária neste Tribunal, desde logo, atento o disposto no artº 656º do CPC: “Quando o relator entender que a questão a decidir é simples, designadamente por ter já sido jurisdicionalmente apreciada, de modo uniforme e reiterado, ou que o recurso é manifestamente infundado, profere decisão sumária, que pode consistir em simples remissão para as precedentes decisões, de que se juntará cópia”. Sucede que o S……….– Futebol, SAD, em 5 de Agosto de 2024 veio reclamar da referida Decisão para a Conferência, concluindo que “deverá a decisão singular ser revogada, determinando-se, a final, a procedência do recurso com todas as consequências legais, designadamente a revogação da decisão recorrida e a absolvição do recorrente da prática de qualquer infracção disciplinar”. Analisando. Antes de mais, na Decisão Sumária reclamada discorreu-se que “A questão da aplicação ou não de uma amnistia aos factos imputados em processo disciplinar/ sancionatório é de conhecimento oficioso, pelo que é nula, por omissão de pronúncia, a decisão judicial que não a conhecer. Na verdade, a nulidade por omissão de pronúncia representa a sanção legal para a violação do estatuído no n.º 2, do artigo 608.º e n.º 1, alínea d) do artigo 615.º, ambos do CPC, e apenas se verifica quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre as questões pelas partes submetidas ao seu escrutínio, ou de que devesse conhecer oficiosamente. A infração disciplinar em causa foi praticada no dia 6 de setembro de 2023, (facto provado A.) data em que foi transmitido, em direto, na S…. TV, o programa “S……….Jornal”, onde interveio o ex-futebolista C…….., que em relação ao lance do jogo realizado no dia 2 de setembro de 2023, entre o F…. e o FC A…., no âmbito da Liga Betclic, afirmou que “… o VAR está lá para ajudar. O árbitro aqui só tinha de ter a coragem para não dizer outra coisa e dar dois amarelos ao muçulmano que quando veio para Portugal não sabia nadar e agora já sabe mergulhar…”. Pois bem, imputa-se a estas afirmações a injúria, a difamação difundida por órgão de comunicação pertencente ao clube. Este é o ilícito imputado. Pois bem, recorda-se que a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, cf. o respetivo artigo 1.º. De acordo com o disposto no artigo 2.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, consideram-se abrangidas pelo previsto neste diploma as “...sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º...”. E nos termos do artigo 6.º deste diploma legal determina-se que “...[s]ão amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar...”. No caso vertente, está em causa a aplicação de sanções disciplinares não superiores a suspensão. A infração em causa não constitui simultaneamente ilícito penal não amnistiado pela sobredita lei, contudo, a infração disciplinar foi praticada em data posterior a 19/06/2023, pelo que não se encontra abrangida pelo âmbito temporal da Lei da Amnistia, conforme dispõe o seu artigo 2.º, n.º 1, razão pela qual o Tribunal ad quem a apreciará”. Acompanhamos este entendimento, ou seja, que in casu a Lei da Amnistia não é aplicável. Debruçamo-nos, agora, sobre a quaestio respeitante ao invocado erro do acórdão recorrido que analisou a expressão difundida pelo ex-futebolista C......, numa transmissão em directo, na S........ TV, no programa “S........ Grande Jornal”, sob a perspectiva do direito penal e não da perspectiva do direito disciplinar. Salientamos que as palavras de C........incidiram sobre o lance do jogo que teve lugar no dia 2 de Setembro de 2023, entre o F........ e o FC A....., no âmbito da Liga Betclic, e foram concretamente, as seguintes: “(…) o VAR está lá para ajudar. O árbitro aqui só tinha de ter a coragem para não dizer outra coisa e dar dois amarelos ao muçulmano que quando veio para Portugal não sabia nadar e agora já sabe mergulhar (…)”. Neste enquadramento, o Reclamante foi condenado por estas declarações dirigidas ao jogador, de nacionalidade iraniana M......... Analisando. Determina o artº 19º do RD da LPFP, sob a epígrafe ‘Deveres e obrigações gerais’, no que ora importa, o que segue: “1. As pessoas e entidades sujeitas à observância das normas previstas neste Regulamento devem manter conduta conforme aos princípios desportivos de lealdade, probidade, verdade e retidão em tudo o que diga respeito às relações de natureza desportiva, económica ou social. 2. Aos sujeitos referidos no número anterior é proibido exprimir publicamente juízos ou afirmações lesivos da reputação de pessoas singulares ou coletivas ou dos órgãos intervenientes nas competições organizadas pela Liga, bem como das demais estruturas desportivas, assim como fazer comunicados, conceder entrevistas ou fornecer a terceiros informações que digam respeito a factos que sejam objeto de investigação em processo disciplinar”. Por sua vez, o artº 112º do referido diploma, sob a epígrafe ‘Lesão da honra e da reputação dos órgãos da estrutura desportiva e dos seus membros’, nomeadamente, preceitua que “1. O clube que de expressões, desenhos, escritos ou gestos injuriosos, difamatórios ou grosseiros para com órgãos da Liga ou da FPF e respetivos membros, árbitros, dirigentes, clubes e demais agentes desportivos, nomeadamente em virtude do exercício das suas funções desportivas, assim como incite à prática de atos violentos, conflituosos ou de indisciplina, é punido com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 75 UC e o máximo de 350 UC. 2. (...) 3. Em caso de reincidência, os limites miìnimo e maìximo das multas previstas nos nuìmeros anteriores seraÞo elevados para o dobro. 4. Sem prejuízo do disposto nas leis que regulam a imprensa, a rádio e a televisão, o clube é considerado responsável pelos comportamentos que venham a ser divulgados pela sua imprensa privada e pelos sítios na Internet que sejam explorados pelo clube, pela sociedade desportiva ou pelo clube fundador da sociedade desportiva, diretamente ou por interposta pessoa”. Convocamos que em harmonia com o previsto na alínea a) do nº 1 do artº 4º sempre do mesmo diploma, “é considerado responsável pelos comportamentos que venham a ser divulgados pela sua imprensa privada e pelos sítios na Internet que sejam explorados pelo clube, pela sociedade desportiva ou pelo clube fundador da sociedade desportiva, diretamente ou por interposta pessoa”. Trazemos à colação que importa concatenar o supracitado nº 4 do artº artº 112º, com o nº 4 do artº 71º, da Lei nº 27/2007, de 30 de Julho (Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido) que dita que “Tratando-se de declarações correctamente reproduzidas ou de intervenções de opinião, prestadas por pessoas devidamente identificadas, só estas podem ser responsabilizadas, salvo quando o seu teor constitua incitamento ao ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo ou pela orientação sexual, ou à prática de um crime, e a sua transmissão não possa ser justificada por critérios jornalísticos”. Ora, as observações em causa, destinadas ao jogador iraniano M........, caracterizam-se como lesivas da sua dignidade e liberdade religiosa, dado que englobam um preconceito discriminatório no que concerne à religião, incentivando um juízo de aversão e repulsa por evocarem a religião do adversário, quando numa competição desportiva, como a que decorria, devem ser zelados os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva, da lealdade e da probidade, prevenindo-se desde logo, demonstrações de violência e de intolerância no desporto, o que vale por dizer, não estropiar o direito ao bom nome e reputação dos jogadores, tudo em ordem ao consignado no artº 180º e no artº 181º do Código Penal e garantido no nº 1 do artº 26º da CRP. Assim, não se admite o expendido na Reclamação, comungando este Tribunal Colectivo o entendimento adoptado pelo Tribunal Arbitral ao considerar que as declarações em causa não preenchem o tipo de ilícito disciplinar que foi imputado ao aqui Recorrido. *** V. Decisão Deste modo, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Sul, Subsecção Social, em indeferir a reclamação para a conferência, mantendo a Decisão Sumária da Relatora, negando provimento ao recurso. Custas pela Recorrente. Registe e Notifique. *** Lisboa, 28 de Novembro de 2024 Maria Helena Filipe (Relatora) (Frederico Macedo Branco – 1º Adjunto) (Teresa Caiado – 2ª Adjunta em substituição ex vi do nº 2 do artº 18º do ETAF) |