Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:748/24.4BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:01/09/2025
Relator:MARCELO DA SILVA MENDONÇA
Descritores:PROCESSO CAUTELAR
FALTA DE INDICAÇÃO DE TODOS OS CONTRAINTERESSADOS QUE EMERGEM DA CONCRETA RELAÇÃO MATERIAL CONTROVERTIDA
DESPACHO-CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO/PODER-DEVER DO JUIZ
APÓS DESPACHO LIMINAR/ART.º 116.º DO CPTA
Sumário:I - No caso dos processos cautelares, perante a falta de indicação dos contrainteressados a quem a adopção da providência cautelar possa directamente prejudicar, impõe o artigo 114.º, n.º 3, alínea d), em conjugação com o n.º 5, do CPTA, a notificação do interessado para suprir a falta no prazo de cinco dias.
II - A omissão do despacho de aperfeiçoamento, quando se justifica a sua emissão, enquanto poder-dever do juiz, implica a falta de formalidade essencial que acarreta a nulidade dos actos processuais subsequentes (cf. artigo 195.º, n.º 1, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 1.º do CPTA).
III - E ainda que se encontre ultrapassada a fase liminar prevista no artigo 116.º do CPTA, no caso de total omissão de indicação de contrainteressados ou de falta de indicação de todos os contrainteressados que emerjam da concreta relação material controvertida, cabe ao juiz convidar a parte para aperfeiçoar o seu requerimento inicial.
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: I - Relatório.
Q..., S.A., doravante Recorrente, que deduziu no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TAC de Lisboa) processo cautelar contra o B..., S.A., doravante Recorrido, identificando como objecto processual a adopção da providência de suspensão da eficácia da decisão proferida pelo ora Recorrido, na sua qualidade de Autoridade Administrativa responsável pelo Programa Venture Capital e entidade gestora do Fundo de Capitalização e Resiliência, de exclusão da candidatura da ora Recorrente, devendo ser admitida a concurso de modo a ser graduada com as candidaturas já admitidas e seleccionadas, bem como, da providência de admissão provisória da ora Recorrente ao concurso Programa Venture Capital, acedendo, deste modo, ao investimento posto a concurso, inconformada que se mostra com a sentença do TAC de Lisboa, de 07/05/2024, que decidiu julgar procedente a excepção de ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário passivo, decorrente da falta de indicação dos contrainteressados e, em consequência, absolver o ora Recorrido da instância, contra a mesma veio interpor recurso ordinário de apelação, apresentando alegações, nas quais formula as seguintes conclusões (transposição feita a partir da peça de recurso inserta no SITAF):
1. Decidiu incorrectamente o Tribunal de 1.ª Instância, ao decidir verificar-se a excepção de preterição de litisconsórcio necessário passivo.
2. O conceito de contrainteressado, no âmbito da lide cautelar, nos termos do disposto na alínea d) do nº 3 do artº 114º do CPTA, tem por referência unicamente o prejuízo direto que a adoção da providência possa causar.
3. A determinação da existência de contrainteressados dever ser aferida em função da concreta relação material controvertida configurada na instância cautelar, assente no pedido e da causa de pedir.
4. Ora, o Tribunal de 1.ª Instância não cuidou de equacionar a alegação concreta da Recorrente quanto a identificação do contra interessado, nem extraiu a consequência de o contrainteressado indicado pela Requerente, ter desistido da sua candidatura.
5. Resulta do Processo Administrativo que a S..., indicada no Requerimento Inicial, como contrainteressada, desistiu da sua candidatura.
6. Esta desistência tem um impacto directo sobre a existência / qualificação de contrainteressados nesta providência, o qual não foi ponderado pelo Tribunal.
7. Este facto determina que os capitais públicos investidos não se esgotarão, ou seja, a concessão à Requerente da sua pretensão admissão provisória a concurso - não prejudica qualquer outro dos concorrentes que foram admitidos ao concurso, e permite a atribuição à Recorrente de parte deste fundo, de acordo com a sua candidatura.
8. É manifesto que o decretamento da presente providência cautelar não afecta os demais concorrentes, os quais não serão impedidos de beneficiar do investimento público do Programa Venture Capital, uma vez que existe capital suficiente para acomodar a candidatura da Requerente.
9. Perante o domínio mais restrito do conceito de contrainteressado no âmbito da lide cautelar, constatamos que de acordo com a ponderação da relação material controvertida, deveria o Tribunal a quo ter concluído inexistir terceiros prejudicados pelo decretamento desta providência.
10. constatamos que de acordo com a ponderação da relação material controvertida, deveria o Tribunal a quo ter concluído inexistir terceiros prejudicados pelo decretamento desta providência.
Da Omissão de convite ao aperfeiçoamento
11. Numa outra dimensão, o entendimento jurisprudencial que limita o despacho de convite ao requerente de uma providência cautelar para suprir as irregularidades na indicação dos requisitos previstos no n.º 3 do artigo 114.º do CPTA, à fase que precede o despacho liminar, não é o que melhor se coaduna à ideia de uma boa administração da justiça, particularmente, sob o prisma da tutela jurisdicional efetiva.
12. a prolação de despacho liminar sem prévio despacho de convite ao requerente da providência para suprir irregularidade, vício ou falta relativamente aos requisitos externos que esse requerimento apresente, por não terem sido detetadas pelo juiz nessa fase prévia ao despacho liminar, é de molde a comprometer de forma irremediável a sorte da providência cautelar, gerando consequências hostis, tal como a de levar ao indeferimento da providência.
13. A prolação do convite do tribunal ao suprimento constitui, por isso, uma formalidade essencial cuja inobservância pode acarretar, nos termos gerais do artigo 195.º do CPC, a nulidade dos atos processuais subsequentes».( sublinhado nosso).
14. a omissão do despacho de aperfeiçoamento gera uma nulidade processual, visto que se trata, dado o seu caráter de vinculatividade, da omissão de uma formalidade que a lei prescreve e cuja omissão pode influir no exame e na decisão da causa.
15. Ora, in casu é a obrigação do juiz convidar as partes a suprir as deficiências dos seus articulados é um poder- dever, isto é, um poder vinculado que o juiz não pode deixar de cumprir sob pena de incorrer numa nulidade processual por a omissão por ele cometida ser suscetível de influir no exame e na decisão da causa.
16. No caso dos autos, é inequívoco que impendia sobre o Tribunal a quo o poder-dever de convidar a Requerente a dar cumprimento ao disposto no n.º 5 do artigo 114.º do CPTA na fase prévia ao despacho liminar, mas não o tendo feito, o mesmo incorreu numa nulidade processual, devendo, por isso, ser anulada a sentença proferida nestes autos.
O Recorrido apresentou contra-alegações, expressando as seguintes conclusões (transposição feita a partir da peça de contra-alegações inclusa no SITAF):
I. Nos termos do artigo 143.º, n.º 2, alínea b), do CPTA, o recurso das decisões respeitantes a processos cautelares tem efeito meramente devolutivo.
II. A invocação de nulidade no momento do recurso é extemporânea, face ao disposto no artigo 199.º, n.º 1, do CPC no artigo 29.º, n.º 1, do CPTA, o que obsta ao conhecimento do pedido subsidiário deduzido.
III. Conforme alegado no requerimento inicial, “os últimos classificados do Programa Venture Capital serão afectados pelo decretamento da presente providência cautelar” (cfr. artigo 218.º do requerimento inicial; cfr., igualmente, os respetivos artigos 9.º, 23.º, 215.º e 217.º).
IV. Efetivamente, a atribuir-se à ora Recorrente €30.000.000,00, como decorre do primeiro pedido formulado no requerimento inicial, ter-se-ia de retirar verbas nesse montante às entidades que ficaram graduadas em último lugar, i.e. àquelas que foram as últimas a ser escolhidas para receber verbas do Programa Venture Capital.
V. A Recorrente identificou no requerimento inicial a S... como contrainteressada, como se esta tivesse sido a última classificada (cfr. artigos 9.º, 23.º, 24.º, 25.º, 215.º a 217.º do requerimento inicial).
VI. A S... foi classificada em primeiro lugar no procedimento (cfr. DOC. 0 e 0-A da oposição), pelo que nunca seria contrainteressada.
VII. Em 19/01/2024 aS... desistiu do processo e em 24/01/2023 a Comissão Executiva aprovou proposta de realocação a outras entidades dos fundos inicialmente atribuídos à S..., conforme se deu conta na oposição.
VIII. Existem entidades (que não a S...) que são diretamente prejudicadas pela procedência da providência cautelar (ser-lhes-ão retiradas verbas que lhes foram atribuídas) e que, nessa medida, têm direito e interesse em contradizer os pedidos formulados pela ora Recorrente no requerimento inicial, ou seja, subsumem-se no conceito de contrainteressadas, para efeitos do disposto no artigo 114.º, n.º 3, alínea d), do CPTA.
IX. Contudo, a ora Recorrente, não as identificou como contrainteressadas; nem no requerimento inicial, nem após ser convidada a pronunciar-se sobre as exceções invocadas em oposição; e também não lançou mão do disposto no artigo 115.º do CPTA.
X. Pelo que a sentença recorrida não incorre em erro de julgamento.
XI. O artigo 114.º, n.º 5, do CPTA assenta num juízo de primeira aparência, conduzindo ao convite ao suprimento de faltas que sejam evidentes, manifestas, detetáveis nesse juízo de primeira aparência.
XII. No caso dos autos o juízo de primeira aparência não permite detetar a exceção de preterição de contrainteressados, visto que a ora Recorrente foi clara em referir a categoria dos sujeitos que seria prejudicada pela procedência da providência cautelar (os últimos classificados) e em identificar um sujeito que, putativamente, seria prejudicado (levando a presumir que esse sujeito seria o último classificado), ou seja, a questão que se coloca não é de falta de identificação de um contrainteressado (artigo 114.º, n.º 3, alínea d), e n.º 5, do CPTA), mas de erro da Recorrente na identificação dos corretos contrainteressados.
XIII. Para que o Tribunal a quo verificasse a ilegitimidade passiva por falta de identificação dos verdadeiros contrainteressados teria/teve (i) de apreciar a prova produzida com o requerimento inicial e (ii) de apreciar o conteúdo da oposição, tarefas que não têm lugar ou são exigíveis na fase liminar do processo cautelar.
XIV. Deste modo inexiste formalidade que a lei prescrevesse e que tivesse sido omitida, dado que era inexigível que na fase liminar o Tribunal a quo tivesse detetado o erro incorrido pela ora Recorrente.
XV. Após o despacho liminar não está prevista nenhuma fase processual destinada a suprir deficiências do requerimento inicial, pelo que a prática de um tal ato sempre redundaria em nulidade, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC.
XVI. O Tribunal está impedido de apreciar oficiosamente uma putativa nulidade por omissão de convite ao aperfeiçoamento a que se refere o artigo 114.º, n.º 5, do CPTA (cfr. artigo 196.º do CPC) e certo é que a ora Recorrente não invocou qualquer nulidade antes da sentença proferida, não obstante a invocação, na oposição, da exceção dilatória de ilegitimidade passiva por falta de identificação dos corretos contrainteressados.
XVII. As exceções dilatórias apenas sejam detetáveis em momento posterior ao despacho liminar — como é o caso dos autos — só podem ser decididas em sede de sentença.
O Ministério Público (MP) junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
O parecer do MP foi notificado às partes.
Sem vistos das Exmas. Juízas-Adjuntas, por se tratar de processo urgente (cf. artigo 36.º, n.º 2, do CPTA), mas com apresentação prévia do projecto de acórdão, o processo vem à conferência da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS para o competente julgamento.
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II - Questões prévias.
a) Em sede de contra-alegações, o Recorrido pugna pelo efeito meramente devolutivo do recurso, pois a Recorrente, no seu requerimento de interposição de recurso, havia indicado o efeito suspensivo.
Mostra-se tal questão ultrapassada, porquanto, por um lado, o despacho da 1.ª instância que admitiu o recurso fixou-lhe o efeito devolutivo, e, por outro lado, ainda que tal decisão não vincule o tribunal superior (cf. artigo 641.º, n.º 5, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA), é correcto o efeito atribuído ao recurso pelo Tribunal a quo, face ao disposto no artigo 143.º, n.º 2, alínea b), do CPTA.
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b) Diz ainda o Recorrido nas suas contra-alegações que “A invocação de nulidade no momento do recurso é extemporânea, face ao disposto no artigo 199.º, n.º 1, do CPC no artigo 29.º, n.º 1, do CPTA, o que obsta ao conhecimento do pedido subsidiário deduzido”.
Se bem compreendemos a tese do Recorrido, pugna o mesmo que a alegada nulidade decorrente do Tribunal a quo não ter proferido um despacho-convite ao suprimento da falta de indicação de todos os contrainteressados devia ter sido arguida em reclamação autónoma, no prazo previsto no artigo 199.º do CPC, em conjugação com o artigo 29.º, n.º 1, do CPTA, e não no âmbito do presente recurso jurisdicional.
Mas não tem razão.
É que a alegada nulidade processual (in casu, por omissão) está coberta ou foi sancionada pela decisão da 1.ª instância, precisamente, aquela que ora constitui o objecto do presente recurso, constituindo o meio próprio para a arguir o recurso e não a singela reclamação.
Neste sentido, num caso semelhante ao ora em análise, veja-se o acórdão do TCAN, de 10/02/2023, proferido no processo sob o n.º 01670/22.4BEBRG, consultável em www.dgsi.pt, do mesmo se destacando o seguinte excerto: “Note-se que quanto ao meio próprio para arguir essa nulidade, a jurisprudência dos tribunais comuns tem considerado que «se a nulidade está coberta por decisão judicial (despacho) que ordenou, autorizou ou sancionou o respetivo ato ou omissão, em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo» - cfr. Ac. do TRL, de 15/05/2014, processo n.º 26903/13. No mesmo sentido, cfr. Acs do TRG, de 23/06/2016, processo n.º 713/14 e do TRP, de 12/12/2019, processo n.º 2929/15.
Por conseguinte, não se mostra a questão prévia ora tratada impeditiva do conhecimento da arguida nulidade.
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III - Delimitação do objecto do recurso.
Considerando que são as conclusões de recurso a delimitar o seu objecto, nos termos conjugados dos artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, cumpre apreciar e decidir, resumidamente, se, no caso concreto, é de admitir a existência de outros contrainteressados para além da única contrainteressada que foi indicada no requerimento inicial, e, nessa medida, se se impunha ao Tribunal a quo a prolação de despacho-convite dirigido à ora Recorrente no sentido de aperfeiçoar o seu requerimento inicial, indicando os demais contrainteressados que da relação material controvertida emergissem.
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IV - Matéria de facto.
A decisão recorrida não fixou qualquer factualidade.
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V - Fundamentação de Direito.
Na parte que aqui nos importa perscrutar, vejamos a fundamentação de direito aposta na sentença recorrida, transcrevendo-se os seguintes trechos, por serem aqueles que, de modo mais relevante, interessam à decisão do presente recurso:
(…) Da ilegitimidade passiva
Em sede de oposição, veio a Entidade Requerida suscitar a exceção dilatória de ilegitimidade passiva por falta de indicação, por parte da Requerente, dos contrainteressados, ao abrigo dos arts. 10.º n.º 11, 57.º n.º 2 e 114.º n.º 3, al. d), do CPTA.
Por sua vez, a Requerente afirma que com a desistência da contrainteressada indicada do requerimento inicial, ainda existem fundos a distribuir, pelo que, não existem prejuízos para qualquer um dos outros candidatos, pois não serão diretamente prejudicados pela procedência do pedido cautelar, não vislumbrando que tenham interesse legítimo na manutenção do ato impugnado.
Vejamos.
O art. 89.º n.º 4 e) do CPTA, configura como exceção dilatória, a “Ilegitimidade de alguma das partes, designadamente por falta de indicação de contrainteressados.”.
Por sua vez, no que concerne os processos cautelares, o art. 114.º n.º 3 al. d), impõe que, no requerimento inicial, devem vir indicados “a identidade e residência dos contrainteressados a quem a adoção da providência cautelar possa diretamente prejudicar.”.
Ora, para efeitos do previsto no CPTA, são contrainteressados “a quem o provimento do processo impugnatório possa directamente prejudicar ou que tenham legítimo interesse na manutenção do ato impugnado e que possam ser identificados em função da relação material em causa ou dos documentos contidos no processo administrativo.”, suscitando uma situação de litisconsórcio necessário passivo.
Posto isto, convém salientar, que os contrainteressados não fazem parte da relação material controvertida, porém, o legislador pretendeu, na estatuição das normas respeitantes aos contrainteressados, equipará-los, em termos processuais, à entidade demandada e vinculá-los ao caso julgado concedendo-lhes legitimidade em face da conceção do objeto do processo e tornando-os partes obrigatórias do mesmo.
Em consonância com a exigência de intervenção na ação de todos quantos vejam a sua situação diretamente afetada com a decisão final, o art. 155.º n.º 2 do CPTA, confere legitimidade para o pedido de revisão de sentença transitada em julgado, àqueles que, devendo ser obrigatoriamente citados no processo, não o tenham sido, e àqueles que, não tendo tido a oportunidade de participar no processo, tenha sofrido ou estejam em vias de sofrer a execução da decisão a rever.
Por este motivo, é patente no art. 116.º n.º 2 al. c), concretamente quanto aos processos cautelares, que é motivo de rejeição liminar do requerimento inicial, a “manifesta ilegitimidade da Entidade Requerida”.
No entanto, a relação de instrumentalidade estrutural entre o processo cautelar e a ação principal cujo efeito útil aquele visa acautelar, apesar de fazer com que as partes em juízo, em ambos os processos devam coincidir tendencialmente, esta coincidência pode não se verificar, e, nessa medida, questão de saber se num dado processo existem, ou não, contrainteressados que como tal devam ser identificados e citados no processo cautelar, nos termos do artigo 114.º nº 3 alínea d) do CPTA, tem que ser avaliada não em abstrato mas tomando como referência a concreta relação material controvertida nos termos configurados pelo Requerente.
Assim sendo, concluindo-se pela existência de pessoas (ou entidades) com interesses contrapostos aos do Requerente da providência cautelar pretendida, que possam vir com ela a ser diretamente prejudicados, a pretensão ser decidida sem que estes tenham a possibilidade de defender os seus interesses nos autos a que respeitam.
Como referem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, (in, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2017, 4ª Edição, pág. 393), “integram o conceito de contra-interessadosos, não só os destinatários do ato, quando este seja impugnado por um terceiro, como os demais titulares de interesse contraposto ao do impugnante que possam ser identificados por poderem extrair um benefício do ato e por isso ser para si vantajosa a sua manutenção na ordem jurídica”, evidenciando as situações em que o ato impugnado “tem um conteúdo ambivalente ou foi praticado no âmbito e uma relação triangular ou poligonal de modo que a anulação contenciosa possa afetar terceiros relativamente aos quais o ato produza um efeito jurídico favorável.”.
Descendo ao caso concreto, a Requerente visa a admissão provisória ao Programa Venture Capital e a suspensão da execução do contrato caso já tenha sido celebrado.
Logo, a relação material em causa na presente instância cautelar, atendendo à configuração que lhe é dada pela Requerente no seu articulado inicial, e que é possível aferir pelos documentos anexos, para que remetem, e, sobretudo, em conjugação com a factualidade e documentos trazidos aos autos pela Entidade Requerida, envolve terceiros, os quais o decretamento das providências requeridas poderá prejudicar diretamente, nomeadamente os candidatos cuja seleção da candidatura da Requerente, no Programa Venture Capital prejudicaria, ou seja, os candidatos que receberam os €30.000.000,00 finais do Programa Venture Capital e que não seriam selecionados ou não receberiam todo o investimento público solicitado como consequência de a candidatura da Requerente ser selecionada e receber assim esses €30.000.000,00 finais.
Nesta senda, não descurando que no âmbito da tutela cautelar, o universo dos contrainteressados surge delimitado de forma mais restrita que na ação principal, é evidente que, qualquer que venha a ser a decisão a proferir nesta sede cautelar, não será atingida apenas a esfera jurídica da Requerente, mas também a dos candidatos identificados no documento 0, a fls. 668 dos autos no Sitaf, pois, de facto, se foram decretadas as providências requeridas, a admissão provisória da Requerente, com a concessão de fundos, e a suspensão da execução dos contratos já celebrados com os candidatos finais, irá impedir a atribuição dos fundos e a execução do Programa Ventura Capital, conforme se retira da resolução fundamentada apresentada.
Pelo que, é claro o impacto direto nos restantes candidatos selecionados no Programa em apreço.
Ora, os contornos da relação material descrita pela Requerente, não lhe eram desconhecidos, porquanto é manifesto que tinha conhecimento das finalidades a prosseguir com a execução do procedimento e contratos que pretende suspender, não sendo incontestado que desconheciam a existência de contrainteressados, nomeadamente dos candidatos que receberam os €30.000.000,00 finais do Programa Venture Capital e que não seriam selecionados ou não receberiam todo o investimento público solicitado como consequência de a candidatura da Requerente ser selecionada.
Com efeito, nos termos do art. 115.º do CPTA, se a identidade dos contrainteressados não for conhecida, o interessado tem a faculdade de requerer certidão que a contenha, não resultando dos autos que a Requerente tenha usado da prerrogativa prevista.
Logo, também é possível concluir que a Requerente não cuidou de averiguar da existência destes contrainteressados.
Dito isto, não é possível ultrapassar que impendia sobre a Requerente, a indicação da identidade e da residência dos contrainteressados a quem a adoção da providência cautelar pudesse prejudicar, conforme determina o artigo 114.º n.º 3, al. d) do CPTA, porque, de facto, qualquer que seja a decisão sobre os pedidos cautelares em causa, irá prejudicar diretamente os restantes candidatos ao Programa Ventura Capital que não seriam selecionados ou veriam o montante do investimento a receber reduzido, por causa da admissão da Requerente.
Aqui chegados, colocando-se a questão de saber se pode o Tribunal convidar a Requerente, nesta fase processual, a aperfeiçoar (novamente) o seu requerimento inicial quanto à indicação de contrainteressados, impõe-se tecer algumas considerações em confronto com a jurisprudência e doutrina em vigor.
(…)
Ante o expendido, e no caso concreto, não se verificam razões juridicamente válidas para divergir do entendimento da jurisprudência supra citada, que se acolhe integralmente, de modo que, ultrapassado o momento do despacho liminar a que se refere o artigo 116.º do CPTA, julga-se que, perante a constatação da falta de identificação dos contrainteressados que, enquanto tal, deviam ter sido indicados e citados para o processo cautelar, o juiz cautelar deve apenas emitir a decisão de absolvição da instância por verificação da exceção dilatória de ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio passivo, e não já proceder ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial previsto no artigo 114.º nº 5 do CPTA.
Nestes termos, uma vez que, não chegamos ainda à fase de apurar, se, do ponto de vista substancial, estavam reunidos todos os pressupostos de facto e de direito, porque se constata que existem contrainteressados no decretamento das providências requeridas, julga-se procedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio passivo, por falta de indicação dos contrainteressados, pelo que, leva à absolvição da instância da Entidade Requerida.
Não obstante, a presente decisão concede aos Requerentes “a possibilidade de apresentação de novo requerimento”, nos termos do art. 116.º, n.º 3, do CPTA, por equivaler à rejeição prevista neste preceito para a fase do despacho liminar. – (sublinhados nossos).
Desde já adiantamos que a sentença recorrida, na parte em que conjecturou a existência de outros contrainteressados para além da identificada “S…. CAPITAL – SOCIEDADE GESTORA DE ORGANISMOS DE INVESTIMENTO COLETIVO, S.A.”, mostra-se isenta de erro.
Apreciemos.
Em primeiro lugar, não podemos perder de vista que a ora Recorrente não pretende apenas a adopção da providência cautelar de suspensão da eficácia da decisão que excluiu a sua candidatura do procedimento referente ao Programa Venture Capital, pois também requer a adopção das medidas cautelares de admissão ao concurso, de modo a ser graduada com as candidaturas já admitidas e seleccionadas, bem como, a providência de admissão provisória ao concurso, acedendo, deste modo, ao investimento posto a concurso, conforme se extrai do objecto formulado em sede do requerimento inicial.
Em segundo lugar, compulsadas as conclusões de recurso, que servem de fio condutor à presente sindicância, diferentemente do que indicia a Recorrente, o Tribunal a quo efectivamente deslindou a existência de outros contrainteressados em função da concreta relação material controvertida.
Para tanto, o Tribunal a quo, no discurso fundamentador da sentença recorrida, convocou a prova documental (não colocada em crise pelas partes) que entendeu suportar a ilação de que, para além da contrainteressada identificada no requerimento inicial, outros candidatos foram admitidos ao Programa Venture Capital e que, nessa qualidade, também passaram a ser beneficiários de montantes de financiamento atribuídos parcelarmente por conta do valor globalmente destinado ao referido Programa.
Nesta medida, bem andou o Tribunal a quo ao considerar que, por conta da eventual admissão da candidatura da ora Recorrente ao predito Programa, não seria unicamente a identificada contrainteressada a quem a adopção das medidas cautelares poderia directamente prejudicar (cf. artigo 114.º, n.º 3, alínea d), do CPTA), mas também os demais candidatos já admitidos ao aludido Programa, igualmente beneficiários de financiamento, pois que, como correctamente afirmou a sentença recorrida, ou “não seriam selecionados ou veriam o montante do investimento a receber reduzido, por causa da admissão da Requerente”.
Isto é, se admitida a candidatura da ora Recorrente nos termos por esta pretendidos no requerimento inicial, o montante global do financiamento para o Programa Venture Capital teria de ser proporcionalmente redistribuído por mais um candidato (a ora Recorrente), e, nessa medida, verificar-se-ia, forçosamente, a correspectiva diminuição ou alteração das tranches financeiras com que já contavam todos os beneficiários, ou até, quiçá, a exclusão do financiamento de determinado candidato por esgotamento da verba.
É inegável, portanto, que todos os beneficiários do Programa Venture Capital podem ser directamente prejudicados com a adopção das medidas cautelares requeridas pela ora Recorrente, assumindo-se que, a não serem decretadas as medidas cautelares, podem os actuais candidatos seleccionados, em último caso, retirar um benefício da não admissão da candidatura da Recorrente, pois, nessa perspectiva, manteriam a situação vantajosa que actualmente lhes advém da sedimentação da quota-parte do financiamento que já lhes foi destinada.
Por conseguinte, tendo presente a concreta relação material controvertida, não descortinamos qualquer erro que, nesta parte, contamine o raciocínio patente no discurso da decisão recorrida, designadamente, em considerar que de tal relação é possível identificar outros contrainteressados para além da “S…”, atenta a noção derramada no artigo 57.º do CPTA, e que, como tal, podem ser prejudicados com a adopção das medidas cautelares requeridas, em especial, no tocante à clamada medida de admissão provisória da candidatura e de acesso da ora Recorrente ao investimento financeiro posto a concurso, atento o previsto no já citado artigo 114.º, n.º 3, alínea d), do CPTA.
Em terceiro lugar, ainda que ponderado o argumento factual lançado em conclusões recursivas de que a contrainteressada “S….” desistira da sua candidatura, isso não retira a qualidade de contrainteressados aos demais candidatos do Programa Venture Capital que já viram as suas candidaturas admitidas e aptas aos correspondentes financiamentos.
Em boa verdade, justifica-se que os demais candidatos ao financiamento assim continuem a ser identificados, sobretudo, na perspectiva em que, a admitir-se a candidatura da ora Recorrente, não é certo e líquido que a verba da contrainteressada desistente a si seja exclusivamente alocada, como também teriam igual interesse na atribuição dessa quantia os demais candidatos já admitidos, cuja situação seria mais vantajosa sem a presença da candidatura da ora Recorrente.
Em suma, como se constata, nada do afirmado em conclusões recursivas é de molde a alterar o bem julgado nesta parte da sentença recorrida, ou seja, de que a partir da concreta relação material controvertida é possível identificar outros contrainteressados a quem a adopção das providências cautelares possam directamente prejudicar.
Questão diversa passa agora por saber qual a solução perante tal cenário, se, como decidiu a sentença recorrida, a absolvição do ora Recorrido da instância por preterição de litisconsórcio necessário passivo, decorrente da falta de indicação de todos os contrainteressados, ou, como propugna a Recorrente, a prolação de um despacho-convite com vista a suprir tal falta, formalidade essa que a Recorrente assevera ter sido omitida pelo Tribunal a quo, geradora de nulidade processual, nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do CPC, aplicável “ ex vi” do artigo 1.º do CPTA.
A questão supra colocada não é nova na jurisprudência dos tribunais superiores da jurisdição administrativa, cujas respostas ao longo do tempo não têm sido uniformes.
Façamos, pois, uma breve resenha da evolução jurisprudencial nesta temática:
O acórdão do STA, de 05/12/2013, proferido no processo sob o n.º 01357/13, ainda sob a versão antiga do CPTA, disponível em www.dgsi.pt (assim como todos os acórdãos que, de seguida, citaremos), decidiu, segundo consta do seu sumário, que Numa providência cautelar, após a citação da entidade requerida, nos termos do art. 117º, n.º 1, do CPTA, não é possível proferir o despacho de correcção mencionado no art. 114º, n.º 4.;
O acórdão deste TCAS, de 28/02/2018, tirado no processo sob o n.º 323/17.0BEBJA, defendeu no ponto VII do seu sumário que Num processo cautelar, ultrapassado o momento do despacho liminar a que se refere o artigo 116º do CPTA, perante a constatação da falta de identificação dos contra-interessados que como tal deviam ter sido indicados e citados para o processo cautelar, o juiz cautelar deve apenas emitir a decisão de absolvição da instância por verificação da exceção dilatória de ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio passivo, e não já proceder ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial previsto no artigo 114º nº 5 do CPTA;
No mesmo sentido, mas já com um voto de vencido, temos o acórdão do STA, de 30/03/2023, prolatado no processo sob o n.º 0449/22.8BELRA, de cujo sumário resulta o seguinte: Ainda que se considere sanável a excepção da ilegitimidade passiva singular, o regime processual pormenorizadamente estabelecido pelo CPTA para os processos cautelares e a sua natureza de meio processual célere, simples e expedito, destinado a acautelar sem delongas os prejuízos decorrentes da demora na obtenção da decisão definitiva, obsta a que, ultrapassada a fase liminar e apresentados os articulados, o juiz possa convidar o requerente a aperfeiçoar o seu requerimento inicial de modo a substituir a entidade requerida;
Elucidativo da presente problemática, veja-se o teor do voto de vencido produzido no acórdão do STA acabado de citar:
1. Divergi, desde logo, do entendimento que obteve vencimento quanto à impossibilidade/inexistência de convite ao aperfeiçoamento em sede cautelar.
2. Ante o que resulta previsto nos arts. 07.º, 114.º e 116.º do CPTA ressalta, por um lado, a existência de uma decisão de convite ao aperfeiçoamento relativamente ou quanto a alguns dos elementos/fundamentos de rejeição liminar e de que, por outro lado, precedendo o despacho de aperfeiçoamento o despacho liminar de admissão ou rejeição do requerimento cautelar tal implicará que a não prolação do despacho de aperfeiçoamento, nos casos em se justificaria a sua emissão, podendo ter consequências negativas para o requerente dado este ficar impedido de suprir as deficiências ou irregularidades que poderiam ter sido detetadas aquando do despacho liminar de admissão, fazendo perigar a tutela jurisdicional efetiva em sede cautelar e em decorrência a própria tutela a título principal.
3. Nos casos previstos nas als. a) a f) e h) e i) do n.º 3 do art. 114.º do CPTA a prolação do convite do tribunal ao suprimento constitui uma formalidade essencial [omissão de ato] cuja inobservância pode acarretar a nulidade dos atos processuais subsequentes tal como resulta previsto, em termos gerais, no art. 195.º do CPC/2013, já que estamos em presença de poder/dever que impende sobre o julgador, dado o seu caráter vinculativo, arredada que está a possibilidade de o juiz optar entre proferir ou não tal despacho, e dessa omissão poder influir no exame e na decisão da causa [cfr., no quadro normativo do processo administrativo, Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, in: “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 5.ª edição, págs. 985/987; no quadro normativo do processo civil, Ac. do STJ de 06.06.2019 - Proc. n.º 945/14.0T2SNT-G.L1.S1; Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in: “Código de Processo Civil Anotado”, vol. II, pág. 632; ver sob a problemática também, A. S. Abrantes Geraldes e outros, in: “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2.ª edição, págs. 705 e segs.].
4. Para além disso, tratando-se de uma nulidade acobertada na própria decisão objeto de impugnação [cfr., entre outros, Acs. do STA de 13.2.2014 - Proc. n.º 0830/13, de 04.02.2016 - Proc. n.º 01075/12, de 08.03.2018 - Proc. n.º 01144/17; A. S. Abrantes Geraldes, in: “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª edição, pág. 30] a interposição de recurso, tendo também como fundamento uma omissão causal do despacho de aperfeiçoamento a que o juiz estava obrigado, constituiria a via adequada para apurar o relevo de tal omissão e conhecer das suas consequências/reflexos, se for o caso, na anulação da decisão, de modo a facultar à parte interessada a possibilidade de superar a situação ocorrida.
5. Nestas circunstâncias e de harmonia com o sumariamente exposto deveria ter sido concedido provimento ao recurso jurisdicional sub specie, revogando-se o acórdão recorrido.
(Carlos Luís Medeiros de Carvalho);
De sentido diverso ao até agora retratado, deparamo-nos com o acórdão deste mesmo TCAS, de 16/12/2015, produzido no processo sob o n.º 12692/15, que já vem admitir o seguinte: I - Resultando dos factos alegados no requerimento inicial e dos documentos com o mesmo juntos, a existência de contra-interessados, os quais não foram identificados, deve o Tribunal, em sede de apreciação liminar, determinar a notificação do requerente para suprir a falta (cfr. artigos 114º, n.º 4 e 116º, n.º 2, al. a) do CPTA).
II - A interpretação conjugada dos artigos 114º, n.ºs 3, alínea d) e 4, e 116º n.º 2, al. a) do CPTA segundo o princípio do favorecimento do processo ou princípio pro actione constante do artigo 7º impõe ao Tribunal, mesmo depois de ultrapassada a fase de apreciação liminar, a prolação de despacho a ordenar a notificação do requerente para suprir a falta resultante da não indicação dos contra-interessados, cuja existência resulta do teor do requerimento inicial e dos documentos juntos com o mesmo. (sublinhado nosso);
De igual sentido, surge-nos o acórdão do TCAN, de 10/02/2023, concebido no processo sob o n.º 01670/22.4BEBRG, de cujo sumário consta o seguinte entendimento: 1.Nos termos do n.º5 do art.º 114.º do CPTA, o juiz antes de proferir despacho liminar, caso verifique que falta qualquer um dos requisitos externos a que se faz menção no n.º3 desse preceito, deve proferir despacho de convite ao requerente para que, em cinco dias, proceda ao suprimento da irregularidade ou à correção do vício ou da falta.
2.De acordo com a disciplina da alínea a), n.º 2 do artigo 116.º do CPTA, o não suprimento das deficiências por parte do requerente determina a rejeição liminar da providência cautelar, sem prejuízo de nos termos do n.º 3 do mesmo preceito, o requerente apresentar novo requerimento.
3. A prolação de despacho liminar sem prévio despacho de convite ao requerente da providência para suprir irregularidade, vício ou falta relativamente aos requisitos externos que esse requerimento apresente, por não terem sido detetadas pelo juiz nessa fase prévia ao despacho liminar, é de molde a comprometer de forma irremediável a sorte da providência cautelar, gerando consequências hostis.
4.A obrigação do juiz convidar as partes a suprir certas deficiências dos seus articulados, como é o caso da falta de indicação de contrainteressados, é um poder-dever, isto é, um poder vinculado que o juiz não pode deixar de cumprir sob pena de incorrer numa nulidade processual por a omissão por ele cometida ser suscetível de influir no exame e na decisão da causa.
Aliás, encontramos similitudes entre o processo tratado pelo acórdão do TCAN acabado de identificar e o processo que ora temos entre mãos, de cujo teor, para melhor esclarecimento da posição que aqui vamos adoptar, tem interesse destacar os seguintes excertos:
(…) 3.2. A questão essencial a decidir no âmbito do presente recurso é a de saber se o despacho saneador-sentença enferma de erro de julgamento por ter absolvido da instância as ora apeladas com fundamento em ilegitimidade passiva por preterição de litisconsócio passivo necessário decorrente da falta de indicação da contrainteressada “Rede Elétrica Nacional-REN”, na fase posterior ao despacho liminar, sem que o Tribunal a quo tivesse previamente dirigido convite aos Apelantes para que suprissem a referida exceção.
Perscrutada a decisão recorrida, constata-se que o Tribunal a quo, depois de enunciar as razões pelas quais considerou que nos presentes autos a identificada empresa tinha de figurar como contrainteressada, entendeu que, tendo sido já ultrapassada a fase do despacho liminar, já não podia proferir despacho a convidar os Apelantes a suprirem, querendo, a exceção decorrente da falta de indicação da referida contrainteressada.
(…)
De acordo com a disciplina da alínea a), n.º2 do artigo116.º do CPTA, o não suprimento das deficiências por parte do requerente determina a rejeição liminar da providência cautelar, sem prejuízo de nos termos do n.º3 do mesmo preceito, o requerente apresentar novo requerimento.
Ora, no processo em análise, o Tribunal a quo proferiu despacho liminar de admissão da presente providência cautelar, no qual concluiu não haver « motivos para rejeição liminar, nos termos do 116.º 2 do CPTA», pelo que, não se tendo apercebido da necessidade de indicação da REN como contrainteressada, admitiu a presente providência cautelar sem previamente proferir despacho de convite aos requerentes para suprirem a falta de indicação da identidade e sede da sobredita contrainteressada.
Sucede que, tendo as Requeridas nas respetivas oposições invocado a exceção da sua ilegitimidade passiva por falta de indicação da contrainteressada Rede Elétrica Nacional, o Tribunal a quo deu como verificada essa exceção mas considerando não lhe ser possível, nesta fase, convidar os Requerentes a suprirem essa falta, proferiu decisão de absolvição da instância.
(…)
Da análise da jurisprudência citada, verificamos que a questão que constitui o cerne desta apelação, não tem sido apreciada pelos tribunais superiores desta jurisdição de modo uniforme. E que tendo o Supremo Tribunal Administrativo sido chamado a pronunciar-se sobre esta questão, aquela alta instância perfilhou a tese de acordo com a qual o despacho de convite ao aperfeiçoamento no domínio das providências cautelares apenas pode ter lugar antes da prolação do despacho liminar, sufragando a posição então subscrita Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha no seu “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 2.ª edição revista, 2007, pag. 671, de acordo com a qual, “a falta do despacho de aperfeiçoamento não constitui sequer uma nulidade processual, visto que não se trata de uma formalidade processual que a lei especialmente prescreva e que deva ter sempre lugar, mas de um poder-dever do juiz, para cujo incumprimento não existe sanção específica”.
Como sabemos, a realidade não é estática, e como tal, também o direito, como ramo de uma ciência social que é, está sujeito às mutações que resultam da dinâmica da vida, e daí que, a jurisprudência tenha, por vezes, de evoluir, de modo a ser adaptada às novas conceções e às novas teses que os investigadores sociais entendam, de forma sustentada e credível, que melhor realizam a ideia de justiça e de direito.
É partindo deste quadro de referência, que não podemos deixar de expressar a nossa discordância face ao entendimento jurisprudencial que limita o despacho de convite ao requerente de uma providência cautelar para suprir as irregularidades na indicação dos requisitos previstos no n.º3 do artigo 114.º do CPTA, à fase que precede o despacho liminar, por considerarmos que esse entendimento não é o que melhor se coaduna à ideia de uma boa administração da justiça, particularmente, sob o prisma da tutela jurisdicional efetiva.
Importa começar por frisar que a prolação de despacho liminar sem prévio despacho de convite ao requerente da providência para suprir irregularidade, vício ou falta relativamente aos requisitos externos que esse requerimento apresente, por não terem sido detetadas pelo juiz nessa fase prévia ao despacho liminar,
é de molde a comprometer de forma irremediável a sorte da providência cautelar, gerando consequências hostis, tal como a de levar ao indeferimento da providência.
Não é despiciendo observar a evolução da doutrina a este respeito, sendo relevante aqui dar nota da posição atualmente perfilhada por Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha -, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, Almedina, 5.ª Edição, pág.987-, os quais sustentam agora que: «A não prolação do despacho de aperfeiçoamento, nos casos em que se justificaria a sua emissão, pode ter, pois consequências negativas para o requerente, quando este fique impedido de suprir as deficiências ou irregularidades que poderiam ter sido detetadas aquando do despacho de admissão, assim vendo naufragar, em detrimento do princípio da tutela jurisdicional efetiva, a possibilidade de obter um desfecho favorável para o processo cautelar. A prolação do convite do tribunal ao suprimento constitui, por isso, uma formalidade essencial cuja inobservância pode acarretar, nos termos gerais do artigo 195.º do CPC, a nulidade dos atos processuais subsequentes».( sublinhado nosso).
Prosseguem os mesmos autores, afirmando que se lhe afigura necessário, no entanto, « introduzir, quanto a este ponto, uma precisão, em consonância com o entendimento doutrinal e jurisprudencial consolidado em relação à situação similar do artigo 508.º, n.ºs2 e 3 do CPC anterior a 2013, para o que se impõe distinguir entre o convite às partes para corrigir o articulado irregular, isto é, o articulado que não obedece aos requisitos formais, como são os previstos nas alíneas a) a f) e i) do n.º3 do presente artigo 114.º, que deve entender-se como um poder vinculado , e o convite para corrigir o articulado deficiente, isto é, o articulado que contém imprecisões ou insuficiências na exposição ou concretização da matéria de facto que constitui a causa de pedir, a que se refere a alínea g) do mesmo n.º3, que corresponde a um dever não vinculado ou uma mera faculdade. No primeiro caso, a omissão do despacho de aperfeiçoamento gera uma nulidade processual, visto que se trata, dado o seu caráter de vinculatividade, da omissão de uma formalidade que a lei prescreve e cuja omissão pode influir no exame e na decisão da causa; no segundo caso, o poder do juiz é discricionário e, como tal, o seu não exercício não pode fundar a arguição de nulidade».
Ora, em situações como a dos presentes autos ou em relação àquelas a que alude o artigo 590.º, n.º 2 do CPC, afigura-se-nos, que a obrigação do juiz convidar as partes a suprir as deficiências dos seus articulados é um poder- dever, isto é, um poder vinculado que o juiz não pode deixar de cumprir sob pena de incorrer numa nulidade processual por a omissão por ele cometida ser suscetível de influir no exame e na decisão da causa.
Com relevo para esta questão, não podemos deixar de referir que após uma fase inicial em que se discutia se o convite ao aperfeiçoamento era um poder discricionário que assista ao juiz, ou um poder vinculado, atualmente é largamente maioritário o entendimento doutrinário e jurisprudencial em como se trata de um poder -dever, ou seja, um poder vinculado que o juiz tem de cumprir sob pena de incorrer numa nulidade processual- Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol.I, 2.ª edição Almedina, pág. 706.
Nesta linha de entendimento, também se pronuncia Teixeira de Sousa, para quem a omissão de despacho de aperfeiçoamento em qualquer das suas variantes, com extração de efeitos diversos daqueles que ocorreriam se acaso fosse determinada a correção do vício detetado ou fosse dada à parte a possibilidade de suprir a falha processual, se converte, afinal, numa nulidade da própria decisão que venha a ser proferida. E acrescenta « a nulidade da omissão do despacho de aperfeiçoamento só se verifica se, na apreciação do pedido da parte, for dada relevância à deficiência do articulado, ou seja, se o pedido formulado pela parte for julgado improcedente precisamente com fundamento naquela deficiência»- cfr. https:blogippc.blogspot.com.
No mesmo sentido, vejam-se os Acs. do TRP, de 10/09/2019, processo n.º 11226/16 e de 08/01/2018, processo n.º 1676/16.
Esta posição, salvo o devido respeito, é a que se nos prefigura ser a correta em face do ordenamento processual atualmente em vigor, pelo que acolhemos integralmente a doutrina supra enunciada.
No caso dos autos, é inequívoco que impendia sobre o Tribunal a quo o poder-dever de convidar os Apelantes a dar cumprimento ao disposto no n.º5 do artigo 114.º do CPTA na fase previa ao despacho liminar, mas não o tendo feito, o mesmo incorreu numa nulidade processual.
Ademais, note-se que a seguir-se a tese que foi perfilhada pelo Tribunal a quo- que, contudo, se impõe referir, não é nenhuma tese exotérica, encontrando-se a decisão recorrida fundamentada e estribada em jurisprudência- se chega ao paradoxo de o Tribunal que proferiu a decisão recorrida, valendo-se da sua própria omissão -nulidade decorrente de não ter convidado os Apelantes a suprirem a falta de indicação da contrainteressada conforme lhe era legalmente imposto- acaba por absolver as Apeladas da instância, o que naturalmente não se concede. Essa circunstância aponta no sentido de estar-se perante um poder-dever vinculado do juiz.
Neste conspecto, o que se impõe, salvo melhor opinião, é antes, a anulação da decisão recorrida, determinando-se que a 1.ª Instância supra a nulidade em que incorreu. E não se diga que, a esta solução, obsta o disposto no n.º1 do artigo 115.º do CPTA, porquanto se trata apenas de uma faculdade que a lei concede ao requerente de uma providência cautelar de requerer previamente certidão de que constem os elementos de identificação dos contrainteressados, quando os desconheça. O não exercício dessa faculdade não tem qualquer efeito preclusivo quanto ao poder-dever que impende sobre o juiz do processo de convidar o requerente a suprir a falta de indicação dos contrainteressados, quer antes da prolação do despacho liminar, quer após essa fase e antes da decisão final.
(…)
Resulta do exposto, impor-se, na procedência do presente recurso, anular o saneador-sentença recorrido e determinar o cumprimento pela 1.ª Instância do que lhe é determinado pelo citado n.º 5 do artigo 114.º do CPTA, dirigindo convite aos Apelantes, para que supram o vício de que padece o seu articulado inicial e só no caso destas incumprirem, ou não acatarem esse convite, aí sim, haverá fundamento legal para se absolver os Apelantes da instância.;
Por fim, no mesmo sentido, convocamos ainda o recente acórdão deste TCAS, de 03/10/2024, tirado no processo sob o n.º 260/24.1BEFUN, enfatizando-se o seu sumário, como segue: I. Visando a providência cautelar a suspensão da eficácia de embargo e sendo a pretensão suscetível de afetação direta de interesses de terceiros, é obrigatória a indicação de contrainteressados, conforme decorre do disposto nos artigos 10.º, n.º 1, 57.º e 114.º, n.º 3, al. d), do CPTA.
II. A falta de indicação dos contrainteressados reconduz-se a uma exceção dilatória, cuja verificação obsta ao conhecimento do mérito da causa, dando lugar à absolvição dos demandados da instância, cf. artigo 89.º, n.os 2 e 4, al. e), do CPTA.
III. No caso das providências cautelares, perante a falta de indicação dos contrainteressados a quem a adoção da providência cautelar possa diretamente prejudicar, impõe o artigo 114.º, n.º 5, do CPTA, a notificação do interessado para suprir a falta no prazo de cinco dias.
IV. A omissão do despacho de aperfeiçoamento, quando se justifica a sua emissão, implica a falta de formalidade essencial que pode acarretar a nulidade dos atos processuais subsequentes, cf. artigo 195.º do CPC.
V. Assim, ainda que se encontre ultrapassada a fase liminar prevista no artigo 116.º do CPTA, no caso de omissão de indicação dos contrainteressados, cabe ao juiz convidar a parte a aperfeiçoar a sua petição inicial. (sublinhado nosso).
Pois bem, explanadas que foram as principais linhas de orientação jurisprudencial sobre a presente temática, sem que lhes possamos apontar um fio de prumo uniforme e constante, temos agora de pender no caso vertente para a solução que pugnamos ser a mais ajustada.
Nessa senda, desde já adiantamos que não nos afastamos do sentido decisório sufragado pelos dois últimos acórdãos atrás aludidos, sobretudo, se tido em conta o mais recente acórdão deste TCAS, de 03/10/2024, produzido no processo sob o n.º 260/24.1BEFUN.
Acolhemos, deste modo, a fundamentação esgrimida nos citados acórdãos, sobretudo, tendo presente que, como propugnou o recente acórdão deste TCAS acabado de citar, (…) a omissão do despacho de aperfeiçoamento, quando se justifica a sua emissão, implica um desfecho negativo para o requerente, que fica “impedido de suprir as deficiências ou irregularidades que poderiam ter sido detetadas aquando do despacho de admissão, assim vendo naufragar, em detrimento do princípio da tutela jurisdicional efetiva, a possibilidade de obter um desfecho favorável para o processo cautelar. A prolação do convite do tribunal ao suprimento constitui, por isso, uma formalidade essencial cuja inobservância pode acarretar, nos termos gerais do artigo 195.º do CPC, a nulidade dos atos processuais subsequentes” (Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Fiscais, 2021, pág. 987) – (sublinhados nossos).
Por conseguinte, tendo em atenção a conjugação da alínea d) do n.º 3 do artigo 114.º do CPTA com o seu n.º 5, e ainda o próprio princípio do “pro actione”, com tradução no artigo 7.º do CPTA, enveredamos pelo entendimento de que, no caso vertente, também se impunha a prolação do despacho-convite do Tribunal a quo à ora Recorrente tendo em vista a identificação de todos os contrainteressados, falta que deveria ser suprida em cinco dias.
Como atrás já se perspectivou, a omissão do despacho-convite de aperfeiçoamento, quando se justifica a sua emissão, implica a falta de formalidade essencial que acarreta a nulidade dos atos processuais subsequentes, conforme o artigo 195.º, n.º 1, do CPC.
E ainda que se encontrasse ultrapassada a fase liminar prevista no artigo 116.º do CPTA, no caso de omissão de indicação dos contrainteressados, sempre cabia ao juiz a quo convidar a parte em falta para aperfeiçoar o requerimento inicial.
Do atrás exposto, resulta, em suma, a arguida nulidade processual, impondo-se, com efeito, anular a decisão recorrida, que absolveu da instância o ora Recorrido, e determinar que seja proferido o despacho omitido, isto é, de convite à ora Recorrente para, no prazo de cinco dias, aperfeiçoar o requerimento inicial, com a indicação de todos os contrainteressados.
***
Custas a cargo do Recorrido – cf. artigos 527.º, n.º 1, 539.º, n.º 1, do CPC, 1.º e 189.º, n.ºs 1 e 2, do CPTA, 7.º, n.º 2, e 12.º, n.º 2, do RCP.
***
Em conclusão, é elaborado sumário, nos termos e para os efeitos do estipulado no artigo 663.º, n.º 7, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, nos seguintes moldes:
I - No caso dos processos cautelares, perante a falta de indicação dos contrainteressados a quem a adopção da providência cautelar possa directamente prejudicar, impõe o artigo 114.º, n.º 3, alínea d), em conjugação com o n.º 5, do CPTA, a notificação do interessado para suprir a falta no prazo de cinco dias.
II - A omissão do despacho de aperfeiçoamento, quando se justifica a sua emissão, enquanto poder-dever do juiz, implica a falta de formalidade essencial que acarreta a nulidade dos actos processuais subsequentes (cf. artigo 195.º, n.º 1, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 1.º do CPTA).
III - E ainda que se encontre ultrapassada a fase liminar prevista no artigo 116.º do CPTA, no caso de total omissão de indicação de contrainteressados ou de falta de indicação de todos os contrainteressados que emerjam da concreta relação material controvertida, cabe ao juiz convidar a parte para aperfeiçoar o seu requerimento inicial.
***
VI - Decisão.
Ante o exposto, acordam, em conferência, os Juízes-Desembargadores que compõem a Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso, anular a sentença recorrida e determinar a baixa dos autos à 1.ª instância para que seja proferido o despacho omitido, de convite à ora Recorrente para, no prazo de cinco dias, aperfeiçoar o seu requerimento inicial, com a indicação de todos os contrainteressados.

Custas a cargo do Recorrido.

Registe e notifique.

Lisboa, 09 de Janeiro de 2025.
Marcelo Mendonça – (Relator)
Marta Cavaleira – (1.ª Adjunta)
Mara de Magalhães Silveira – (2.ª Adjunta)