Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:35/24.8BEFUN
Secção:CT
Data do Acordão:10/10/2024
Relator:ISABEL VAZ FERNANDES
Sumário:
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contra-Ordenacionais
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul
I – RELATÓRIO

A S..., LDA., melhor identificada nos autos, deduziu reclamação judicial, ao abrigo dos artigos 276.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário, contra o acto de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia no âmbito do processo de execução fiscal n.º 2810202301186523, praticado pela Chefe do Serviço de Finanças do Funchal 1.

O Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, por decisão de 11 de maio de 2024, julgou totalmente improcedente a presente a reclamação deduzida por aquela sociedade e, em consequência, absolveu do pedido a Fazenda Pública.

Não concordando com a sentença, a Recorrente, veio interpor recurso da mesma, tendo nas suas alegações, formulado as seguintes conclusões:

«I. Interpõe a Recorrente o presente Recurso contra a Sentença proferida no âmbito do processo de Reclamação Judicial que correu os seus termos, sob o n.º 35/24.8BEFUN, junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, e que foi apresentada contra a decisão de indeferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia, que a antecedeu;

II. Subjacente à Sentença ora recorrida, está o seguinte entendimento do Tribunal a quo

o “No caso dos autos, a dívida em execução fiscal - processo de execução fiscal n.º 2810202301186523 - respeita à recuperação do auxílio de Estado em cumprimento da decisão adoptada pela Comissão Europeia - DECISÃO (UE) 2022/1414, de 04/12/de 2020 - relativa ao regime de auxílios SA.21259 (2018/C), aplicado por Portugal a favor da Zona Franca da Madeira, cf. 1. dos factos provados.

o Quanto à execução da Decisão de Recuperação, em virtude de Portugal não dispor de um regime legal processual específico para a recuperação de auxílios de estado considerados ilegais, a opção tomada por Portugal para a recuperação desses mesmos auxílios foi o recurso à emissão de actos tributários, v.g. actos de liquidação e, em caso do não pagamento voluntário pelo beneficiário do auxílio, o recurso à cobrança coerciva através do processo de execução fiscal.

o Sobre o regime a adoptar, neste âmbito, pelos Estados-Membros, importa considerar o disposto no art. 16.º (Recuperação do auxílio), do Regulamento (UE) 2015/1589 do CONSELHO, de 13 de Julho de 2015, que estabelece as regras de execução do artigo 108.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o qual dispõe que: “1. Nas decisões negativas relativas a auxílios ilegais, a Comissão decidirá que o Estado-Membro em causa deve tomar todas as medidas necessárias para recuperar o auxílio do beneficiário (decisão de recuperação). A Comissão não deve exigir a recuperação do auxílio se tal for contrário a um princípio geral de direito da União.

o 2. (…).

o 3. Sem prejuízo de uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia nos termos do artigo 278.º do TFUE, a recuperação será efectuada imediatamente e segundo as formalidades do direito nacional do Estado-Membro em causa, desde que estas permitam uma execução imediata e efectiva da decisão da Comissão. Para o efeito e na eventualidade de um processo nos tribunais nacionais, os Estados-Membros interessados tomarão as medidas necessárias previstas no seu sistema jurídico, incluindo medidas provisórias, sem prejuízo da legislação da União.”

o O princípio da cooperação leal assume uma importância fundamental no que respeita à execução administrativa do direito da União ou mesmo na sua aplicação pelos tribunais nacionais, impondo a estes que garantam a eficácia das normas da União nos ordenamentos jurídicos dos Estados.

o Nessa medida, dispõe o art. 4.º do Tratado da União Europeia:

“3. Em virtude do princípio da cooperação leal, a União e os Estados-Membros respeitam-se e assistem-se mutuamente no cumprimento das missões decorrentes dos Tratados.

o Os Estados-Membros tomam todas as medidas gerais ou específicas adequadas para garantir a execução das obrigações decorrentes dos Tratados ou resultantes dos atos das instituições da União.

Os Estados-Membros facilitam à União o cumprimento da sua missão e abstêm-se de qualquer medida suscetível de pôr em perigo a realização dos objetivos da União.”

o Neste contexto, a forma de recuperação dos auxílios de estado considerados ilegais por decisão da Comissão Europeia, mediante a utilização do procedimento tributário, através da emissão de actos de liquidação, cujo destinatário é o beneficiário do auxílio, possibilitando a devolução voluntária, e do processo tributário, através do processo de execução fiscal, impondo a devolução coerciva, é compatível com o direito da União traduzido na Decisão de Recuperação – DECISÃO (UE) 2022/1414, de 04/12/de 2020 - e no Regulamento (UE) 2015/1589 do CONSELHO, de 13 de Julho de 2015.

III. Conforme resulta do que antecede, na Sentença proferida pelo Tribunal a quo o Meritíssimo Juiz entendeu e julgou como assente o seguinte facto: “No caso dos autos, a dívida em execução fiscal - processo de execução fiscal n.º 2810202301186523 - respeita à recuperação do auxílio de Estado em cumprimento da decisão adoptada pela Comissão Europeia - DECISÃO (UE) 2022/1414, de 04/12/de 2020 - relativa ao regime de auxílios SA.21259 (2018/C), aplicado por Portugal a favor da Zona Franca da Madeira, cf. 1. dos factos provados”;

IV. Sendo que, em momento imediatamente anterior, o Tribunal a quo julgou assente que “A Reclamante foi citada para o processo de execução fiscal n.º 2810202301186523 (…)”, juntando para o efeito a imagem da citação junta aos autos como Documento n.º 1 e da qual consta expressamente, na parte da Identificação da dívida em cobrança coerciva, que o Imposto alegadamente em dívida diz respeito a IRC;

V. Tal asserção não tem, contudo, correspondência com o citação junta aos autos, não resultando da mesma que a natureza da dívida respeite à recuperação do auxílio de Estado em cumprimento, mas sim a IRC;

VI. Nas palavras do Tribunal Central Administrativo Sul “Ocorre erro de julgamento de facto quando o juiz decide mal ou contra os factos apurados. Por outras palavras, tal erro é aquele que respeita a qualquer elemento ou característica da situação “sub judice” que não revista natureza jurídica. O erro de julgamento, de direito ou de facto, somente pode ser banido pela via do recurso e, verificando-se, tem por consequência a revogação da decisão recorrida.

II. Na impugnação da decisão da matéria de facto apurada de 1ª. Instância a lei processual civil impõe ao recorrente um ónus rigoroso, devendo, nas alegações de recurso, especificar, obrigatoriamente não só os pontos de facto que considera incorretamente julgados, mas também os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que, em sua opinião, impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da adoptada pela decisão recorrida.

III. A alteração da matéria de facto pressupõe assim a existência de nítida disparidade entre erro na sua apreciação e a divergência do sentido em que se formou a convicção do julgador, sendo que a respetiva reapreciação por parte do tribunal de recurso está limitada aos casos em que ocorre erro manifesto ou grosseiro ou em que os elementos documentais fornecem uma resposta inequívoca em sentido diferente daquele que foi considerado no tribunal a quo, sendo certo que na situação em análise” (cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido no processo n.º 1447/11.2BELRS, de 22 de outubro de 2020, consultável em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/e3b672eeace4a4a3802586090050551e?OpenDocument).

VII. Ora, ao julgar como assente que “No caso dos autos, a dívida em execução fiscal (…) respeita à recuperação do auxílio de Estado”, o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo faz uma interpretação errónea da citação junta aos autos, desconsiderando o facto - por razões não totalmente compreensíveis – de o referido documento identificar expressamente que a dívida cuja cobrança coerciva se requer diz respeito ao IRC de 2018.

VIII. Este erro nos factos julgados como assentes, tem, necessariamente, consequências na análise – também ela errónea – do direito;

IX. Em primeiro lugar, e como a ora Recorrente tem sustentado ao longo das peças judiciais apresentadas, o raciocínio adotado pela Autoridade Tributária, agora corroborado pelo Tribunal a quo, padece de um erro de direito inultrapassável, o qual torna a presente Decisão ilegal;

X. É que, ao contrário do que a Autoridade Tributária e o Tribunal a quo sustentam, a questão não se prende com a vinculação do Estado Português e respetivas instituições à Decisão da Comissão Europeia, mas apenas com a forma adotada na execução da referida Decisão;

XI. É que como bem sabe o Tribunal a quo é o próprio Tribunal de Justiça da União Europeia a dizer que a execução das decisões de recuperação de auxílios de Estado considerados ilegais deve ser feita de acordo com a ordem jurídica interna dos Estados Membros;

XII. A este propósito veja-se a posição adotada pelo Tribunal Geral da União Europeia, em 27 de outubro de 2023, nos processos T-718/22 e T-723/22. Diz então o Tribunal que “No caso de ser identificado um beneficiário do auxílio declarado ilegal e incompatível com o mercado interno, a Comissão esclareceu, no considerando 216 da decisão recorrida, o método com base no qual o montante do auxílio a restituir devia ser calculado pelas autoridades portuguesas”;

XIII. Mais dizendo que: “É irrelevante para esta conclusão a alegação de que, na prática, as autoridades portuguesas quantificaram o montante dos auxílios a recuperar junto de cada beneficiário segundo um método fixo. Com efeito, essa crítica visa as modalidades de recuperação dos auxílios em causa, que estão sujeitas à fiscalização exclusiva dos órgãos jurisdicionais nacionais (v., neste sentido, Acórdão de 21 de dezembro de 2011, A2A/Comissão, C-320/09 P, não publicado, EU:C:2011:858, n.° 162)” – assinalado pela Recorrente;

XIV. Isto porque:

o Ora, o contencioso relativo a essas medidas nacionais de recuperação, suscetível de determinar a sua anulação, é da competência exclusiva do juiz nacional e deve ser considerado uma simples emanação do princípio da proteção jurisdicional efetiva que constitui, em conformidade com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, um princípio geral do direito da União Europeia (v., neste sentido, Acórdãos de 13 de fevereiro de 2014, Mediaset, C-69/13, EU:C:2014:71, n.° 34, e de 11 de setembro de 2014, Comissão/Alemanha, C-527/12, EU:C:2014:2193, n.° 45 e jurisprudência referida);

o o Decorre do exposto que cabe ao órgão jurisdicional nacional, se for interpelado, pronunciar-se sobre a questão de saber se os auxílios concedidos às recorrentes ao abrigo do Regime III o foram em conformidade com as Decisões de 2007 e de 2013 que o autorizaram e, por conseguinte, constituem «auxílios existentes» na aceção do artigo 1.°, alínea b), ii), do Regulamento 2015/1589, eventualmente após ter submetido uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça nos termos do artigo 267.° TFUE;

o Assim, no âmbito dos presentes recursos, o Tribunal Geral examinará os fundamentos invocados pelas recorrentes apenas na parte em que dizem respeito à decisão recorrida e não às medidas nacionais de recuperação adotadas pelas autoridades portuguesas em execução desta última decisão (cfr. pontos 26, 27 e 28 da Decisão do Tribunal Geral da União Europeia).

XV. De onde se conclui que cabe aos juízes nacionais controlar juridicamente os moldes em que é feita a recuperação dos auxílios em execução da Decisão da Comissão, através da aplicação da legislação interna, o que não sucedeu, antes tendo optado o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo por não apreciar o mérito da pretensão como legalmente se impunha e agora se requer;

XVI. Com efeito, a decisão de não conhecer o mérito da pretensão como legalmente se impunha e ora se requer para além de ser manifestamente ilegal, teve consequências graves na situação económica da ora Recorrente;

XVII. Conforme sobejamente demonstrado, foi a própria Autoridade Tributária que, incumbida de proceder à recuperação dos auxílios de Estado, decidiu liquidar adicionalmente imposto (IRC), como se este fosse devido nos anos em causa; e subsequentemente, em face da falta de pagamento voluntário do imposto adicionalmente liquidado, instaurar os processos de cobrança coerciva a que ora se reage;

XVIII. Assim, o que está a ser exigido à Recorrente é o pagamento de IRC, pelo que ao qualificar a quantia a recuperar como imposto e emitir atos tributários está a Autoridade Tributária vinculada a cumprir a lei (nomeadamente a possibilidade de pagamento em prestações ou da suspensão do processo de execução fiscal através da prestação de uma garantia ou através da sua dispensa);

XIX. Afastar a aplicação destes institutos jurídicos significa negar a natureza tributária da dívida (em manifesta contradição com os atos emitidos);

XX. Certo é que o recurso ao procedimento tributário não possibilita a seleção parcial dos segmentos daquele regime, sendo igualmente certo que não existe qualquer procedimento específico para o efeito porque o Estado (enquanto legislador) não o previu.;

XXI. Centrando o tema que nos ocupa – a Sentença que indeferiu a Reclamação de Atos do Órgão de Execução Fiscal apresentada contra o pedido de dispensa da prestação da garantia – importa deixar claro que porque assim entendeu o Estado português, na origem destes autos está a emissão de liquidações de IRC, cuja falta de pagamento dentro do prazo de pagamento voluntário deu origem à instauração de processos de execução fiscal contra a Recorrente;

XXII. Ora, o processo de execução fiscal consiste num processo de execução simplificado face àquele que é o regime geral de execução (civil), porque assenta no princípio de que o Estado é uma entidade investida de maior autoridade e que se presume que atua de boa fé, circunstância que permite simplificar o processo (menos moroso e com menos etapas que o processo de execução civil), o que precisamente tem levado a um alargamento das dívidas (ainda que não fiscais, o que não é o caso dos autos), a serem cobradas coercivamente por esta via;

XXIII. A este propósito, veja-se o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (“TCA Sul”) de 25/11/2021, proferido no processo 239/14.1BECTB: “O recurso ao processo executivo para cobrança de dívidas não fiscais, legalmente previsto, tem sido visto como uma forma apetecível para diversas entidades credoras, atenta a sua rapidez, simplicidade e eficácia, quando comparado com a execução comum, o que nos deve levar a uma cuidada interpretação e aplicação do nº 2 do artigo 148º do CPPT.”;

XXIV. Naturalmente, e ainda que tendencialmente mais célere e simplificado, o processo de execução fiscal é um processo de cobrança coerciva, em que naturalmente (por imposição da própria justiça e da Constituição portuguesa), são consagradas diversas garantias aos executados;

XXV. Ou seja, aqui chegados o que se verifica é que em resultado da Decisão da Comissão que condena o Estado português à recuperação de auxílios ilegais concedidos no âmbito do reconhecimento da ZFM e do regime fiscal especial ao abrigo do qual as entidades com sede naquele local eram tributadas, a Autoridade Tributária optou por recuperar os auxílios de Estado em questão através de liquidações de imposto;

XXVI. E que o recurso àquele procedimento de liquidação de imposto (cfr. artigos 59.º e seguintes do CPPT) implica o cumprimento das normas que o regem, incluindo - com redobrada relevância - as normas que titulam as garantias dos contribuintes;

XXVII. No que diz respeito à dispensa de prestação de garantia importa ainda notar que de acordo com o n.º 4, do artigo 52.º, da LGT, para que o Executado possa ser isentado da prestação de garantia é necessário que i) a prestação de garantia lhe cause prejuízo irreparável ou ii) que seja manifesta a sua falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido e, bem assim, que iii) a insuficiência / inexistência de bens não seja da sua responsabilidade;

XXVIII. Estes requisitos, exigidos pelo n.º 4 do artigo 52° da LGT, são requisitos alternativos, como nos indica a conjunção disjuntiva “ou”, o que significa que a lei se basta com a verificação de um dos requisitos aí previstos, desde que não seja apurada a responsabilidade do executado pela insuficiência ou inexistência de bens ou de rendimentos (cf. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, no Processo: 02029/07, de 09-10-2007, in www.dgsi.pt).

XXIX. Ora, a Recorrente não dispõe de meios financeiros ou quaisquer bens imóveis que possa oferecer à penhora e que lhe permitam suspender este processo de execução fiscal – situação essa que o Tribunal a quo não cuidou de analisar;

XXX. Ficou demonstrado que a dívida exequenda nos autos diz respeito a IRC, e não à recuperação de auxílios de Estado, e, bem assim, a imperatividade da lei interna na execução da Decisão proferida pela Comissão Europeia, não restando senão concluir que a Sentença proferida pelo Tribunal a quo deve ser anulada por este Tribunal por ter sido proferida em sentido contrário à legislação portuguesa aplicável, devendo ser determinada a baixa dos autos e condenado o Tribunal a quo a proferir uma Sentença que analise o mérito da pretensão da ora Recorrente, como legalmente se impõe.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO MERECER PROVIMENTO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA E SUBSTITUÍDA A MESMA POR UM ACÓRDÃO QUE DÊ TOTAL PROVIMENTO À PRETENSÃO DA RECORRENTE, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS.»


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A Recorrida, Fazenda Pública, apresentou contra-alegações e não tendo formulado conclusões, o termina da seguinte forma:
«Termos em que:

i) Deverá ser rejeitado o presente recurso no que respeita ao invocado erro de julgamento de facto;

ii) Deverá ser negado provimento ao presente recurso, confirmando-se a sentença recorrida que julgou improcedente a Reclamação.

iii) Deverá ser recusada a aplicação do das normas previstas nos n.ºs 6, 8 e 9 do art.º 278.º do CPPT, por serem contrárias ao Direito da União Europeia.»


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A Recorrida, Fazenda Pública, apresentou requerimento com pedido de reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia para esclarecer a questão de interpretação de actos de instituições da União Europeia em causa no recurso, peticionando no final o seguinte:
«Termos em que se requer que este Venerando Tribunal Central Administrativo Sul se digne formular um pedido de reenvio prejudicial ao TJUE, nos termos do artigo 267º, primeiro parágrafo, alínea b), e terceiro parágrafo, do TFUE, aplicável por força do disposto no n.º 4 do art.º 8.º da CRP, para esclarecer a questão acima referida em 20., com a consequente suspensão da presente instância de recurso. »

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A Recorrente, notificada do citado requerimento, veio se pronunciar por pedindo no final:

«NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, DEVERÁ O PRESENTE PEDIDO SER INDEFERIDO, COM A CONSEQUENTE REJEIÇÃO DO PEDIDO DE REENVIO PREJUDICIAL APRESENTADO, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS.»


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A Recorrida, Fazenda Pública, veio, ao abrigo do princípio da cooperação previsto no art.º 7.º do Código de Processo Civil (doravante, CPC), aplicável ex vi do art.º 2.º, alínea e) do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), informar, através de requerimento, o seguinte:
«1. O Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal (“TAFF”), no âmbito do processo n.º 299/24.7BEFUN (Reclamação de ato do órgão de execução fiscal), formulou junto do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”) um pedido de reenvio prejudicial tendo por objeto a seguinte questão (cf. despacho que se junta com o n.º 1 (1) - Expurgado dos elementos identificativos das partes e dos respetivos mandatários/representantes em juízo, por força dos deveres de sigilo fiscal e de proteção de dados pessoais.:

«“A expressão “recuperação imediata e efetiva” que consta do Art.º 5.º da Decisão da Comissão Europeia (Decisão (UE) 2022/1414 da Comissão, de 4 de dezembro de 2020 e a expressão “a recuperação será efetuada imediatamente e segundo as formalidades do direito nacional do Estado-Membro em causa, desde que estas permitam uma execução imediata e efetiva da decisão da Comissão” que consta do n.º 3 do Art.º 16.º do Regulamento (UE) 2015/1589, devem ser interpretadas no sentido de que são de afastar as regras do direito português relativas às garantias processuais previstas em sede de processo de execução fiscal, designadamente as atinentes à suspensão do processo de execução fiscal, ou, pelo contrário, continua a Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira vinculada a observar todas as garantias processuais previstas no direito tributário português, independentemente de estar em causa a recuperação de auxílios de Estado declarados ilegais pela Decisão da Comissão?».
(DOC. 1)
2. Ora, essa questão é similar àquela que se encontra em discussão nos presentes autos, pelo que, salvo melhor entendimento, se afigura relevante a pronúncia do TJUE para o caso dos autos, sem prejuízo de outras questões que este Venerando Tribunal julgue pertinente submeter ao TJUE.

3. Ao mencionado pedido de reenvio prejudicial formulado pelo TAFF foi atribuído o número de processo “C-545/24” no TJUE, conforme documento que se junta com o n.º 2.

(DOC. 2)
4. Mais se informa que os acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA) nos processos n.º 033/24.1BEFUN, 088/24.9BEFUN, 50/24.1BEFUN, 092/24.7BEFUN e 094/24.3BEFUN, mencionadas no ponto 1. do requerimento de 2/08/2024, com a Ref.ª SITAF 005343039, ainda não transitaram em julgado, nos termos do art.º 628.º do CPC, aplicável ex vi do art.º 2.º, alínea e) do CPPT, por a Fazenda Pública deles ter reagido nos termos dos artigos 125.º do CPPT, 195.º, 613.º, 615.º, n.º 1, alínea d) e n.º 4, 616.º, n.º 1, 666.º e 685.º do CPC, ex vi do art.º 2.º, alínea e) do CPPT, aguardando-se a pronúncia do STA.

Junta: 2 documentos.»

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A Recorrente pronunciou-se quanto ao requerimento que antecede pugnando pelo respectivo indeferimento, ou, em alternativa, requereu a reformulação da questão colocada ao TJUE, com a consequente suspensão da presente instância.
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O DMMP junto deste Tribunal Central Administrativo emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.
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Com dispensa dos vistos, vem o processo submetido à conferência da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul para decisão.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

- De facto

«Factos provados com interesse para a decisão:

1. A Comissão Europeia adoptou a DECISÃO (UE) 2022/1414, de 04/12/de 2020, relativa ao regime de auxílios SA.21259 (2018/C), aplicado por Portugal a favor da Zona Franca da Madeira – Regime III, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, e da qual consta entre o mais, que:

“Artigo 1.º

O regime de auxílios «Zona Franca da Madeira (ZFM) – Regime III», na medida em que foi aplicado por Portugal em violação da Decisão C(2007) 3037 final da Comissão e da Decisão C(2013) 4043 final da Comissão, foi executado ilegalmente por Portugal em violação do artigo 108.º, n.º 3, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, e é incompatível com o mercado interno.

(…).

Artigo 5.º

1.A recuperação dos auxílios concedidos ao abrigo do regime previsto no artigo 1.º deve ser imediata e efectiva.

2.Portugal deve assegurar a execução da presente decisão no prazo de oito meses a contar da data da respectiva notificação.

(…).”

2. A 27/09/2023, foi emitida a certidão de dívida 2023/2282266, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, e foi instaurado o processo de execução fiscal n.º 2810202301186523 contra a Reclamante.

3. A Reclamante foi citada para o processo de execução fiscal n.º 2810202301186523, nos seguintes termos:


“(texto integral no original; imagem)”

4. A Reclamante requereu ao M...a emissão de garantia bancária a favor da Administração Tributária, no montante de €13.028.536,70, o que foi recusado.

5. A Reclamante requereu ao órgão de execução fiscal – Serviço de Finanças do Funchal 1 – a dispensa de prestação de garantia para suspensão do processo de execução fiscal n.º 2810202301186523, mediante requerimento cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido,

6. Através do ofício 4346, de 09/11/2023, a Reclamante foi notificada da decisão de indeferimento do requerimento referido em 5. supra, com os seguintes fundamentos:


“(texto integral no original; imagem)”



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Factos não provados

«Inexistem factos com interesse para a decisão a dar como não provados.»

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Motivação da decisão de facto

«Nos termos do art. 123.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o juiz deve indicar os motivos de facto e de direito que fundamentam a sua decisão, indicando e fazendo o exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção.
A matéria de facto dada como provada nos presentes autos foi a considerada relevante para a decisão da causa controvertida segundo as várias soluções plausíveis das questões de direito.
A formação da nossa convicção para efeitos da fundamentação dos factos atrás dados como provados resultou do exame crítico dos documentos juntos aos autos, do processo de execução fiscal, a fls. 141 a 242 do SITAF, assim como da posição assumida pelas partes nos respectivos articulados.
O facto 1. foi considerado provado pela consulta ao Jornal Oficial da União Europeia, de 22/08/2022, disponível em https://eur-lex.europa.eu/oj/direct-access.html?locale=pt.»


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- De Direito

Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

Ora, lidas as conclusões das alegações de recurso, resulta que está em causa saber se o Tribunal a quo errou no seu julgamento ao concluir pela desaplicação das normas relativas à suspensão do processo de execução fiscal, por serem incompatíveis com o direito da União Europeia, o que determinou a improcedência da reclamação.

Sucede, porém, que, já neste TCAS, veio a Recorrida requerer o reenvio prejudicial para o TJUE, por forma a que este esclareça a questão da interpretação de actos de instituições de EU em causa no presente recurso.

Posteriormente, veio a Recorrida informar que o TAF do Funchal procedeu ao reenvio prejudicial da questão em apreciação, no âmbito do processo nº299/24.7BEFUN.

É do nosso conhecimento que o STA já proferiu diversos Acórdãos, em que está em causa esta mesma questão do reenvio prejudicial para o TJUE, relativamente à mesma matéria, e que merecem a nossa atenção.

Assim, seguiremos o entendimento vertido no Acórdão do STA proferido no âmbito do processo nº 148/24.6BEFUN, e que transcrevemos, na parte relevante:

“(…) 3.2.5. Cumpre, então, agora, decidir. E, neste sentido, começamos por sublinhar que é de conhecimento oficial que estão pendentes neste Supremo Tribunal e no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal diversos processos cujos litígios tem por objecto a mesma questão de fundo que ora nos cumpre decidir. Sendo que, conforme informação prestada e documentalmente comprovada neste (e noutros processos), no âmbito do processo n.º 299/24.7BEFUN foi formulado ao TJUE pedido de reenvio prejudicial. O qual, segundo também documento constante dos autos, foi aí recebido, tendo-lhe sido atribuído o n.º C-545/24. Ora, como se disse no acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Novembro de 2006, no processo n.º 1216/05 (integralmente disponível para consulta em www.dgsi.pt ), «Tendo sido suscitada no processo uma questão essencial, relativamente à qual em outro processo se haja decidido o reenvio prejudicial para o TJUE, não faz sentido um segundo reenvio em relação a essa questão essencialmente idêntica.

3.2.6. Assim, tendo em consideração a identidade da questão de mérito colocada em todos os processos mencionados e o pedido de reenvio prejudicial formulado, entende-se que é, por ora, e pelo menos até que o TJUE profira despacho de admissão do reenvio prejudicial que lhe foi submetido, de suspender a presente instância, nos termos do preceituado nos artigos 269.º, n.º 1, alínea c), e 272.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.(…)”

Assim, acolhendo a posição adoptada pelo STA, nomeadamente, no Acórdão parcialmente transcrito, será de suspender a presente instância, pelo menos, até que o TJUE profira despacho de admissão do reenvio prejudicial que lhe foi submetido.


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III- Decisão
Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul em suspender esta instância de recurso, até que esteja decidida pelo TJUE a admissibilidade do reenvio ou julgado de mérito o reenvio prejudicial que lhe foi enviado no âmbito do processo n.º 299/24.7BEFUN.

Notifique as partes e o Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste TCAS da presente decisão, mais se ordenando ao tribunal a quo que nos seja dado conhecimento de todas as comunicações que a partir da presente data lhe sejam realizadas pelo TJUE no âmbito do processo n.º 299/24.7BEFUN.

Lisboa, 10 de Outubro de 2024

(Isabel Fernandes)

(Luísa Soares)

(Lurdes Toscano)