Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:695/15.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:04/08/2021
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:NULIDADES DA SENTENÇA;
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA;
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA;
DESISTÊNCIA DA INSTÂNCIA;
ARTIGO 290.º CPC.
Sumário:I. Nos termos do artigo 16.º, n.ºs 1 e 2 da Portaria n.º 380/2017, de 19/12, na redação conferida pela Portaria n.º 4/2020, de 13/01, quanto aos “Atos processuais de magistrados”, é estabelecido que os atos processuais de juízes são praticados no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais administrativos e fiscais, com aposição de assinatura eletrónica qualificada ou avançada, a qual dispensa para todos os efeitos a assinatura autógrafa em suporte de papel dos atos processuais.

II. Mostrando-se assinada a sentença, mediante assinatura digital realizada no âmbito do sistema SITAF, não procede o fundamento da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, a) do CPC.

III. A sentença, enquanto decisão judicial, pode padecer de vícios de duas ordens, os quais obstam à sua eficácia ou validade:

i) pode ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo a consequência a da sua revogação (erro de julgamento de facto ou de direito);

ii) como ato jurisdicional, pode ter violado as regras próprias da sua elaboração ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é emanada, tornando-se passível de nulidade, nos termos do artigo 615.º do CPC.

IV. Nos termos do n.º 1 do artigo 205.º da CRP e do n.º 1 do artigo 154.º do CPC, a decisão judicial deve ser motivada, através da exposição dos fundamentos de facto e de direito, pelo que a fundamentação das decisões judiciais é um dever constitucionalmente consagrado.

V. Como corolário desse dever impõem os artigos 154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, que as decisões sejam sempre fundamentadas, com a indicação dos factos julgados provados e não provados, para além dos fundamentos de direito.

VI. Reconhecendo-se que a decisão recorrida não reflete a estrutura formal de uma sentença, por não conter o relatório, que identifique as partes e o objeto do litígio, nem a fundamentação de facto, ainda assim permite entender as razões que a motivaram e que conduziram ao dispositivo, não enfermando da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, b) do CPC.

VII. O artigo 615.º, n.º 1, c) do CPC prevê que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível: o vício previsto na primeira parte da norma verifica-se sempre que a fundamentação de facto e de direito da decisão proferida apontam num certo sentido e, depois surge um dispositivo que, de todo, não se coaduna com as premissas; ocorre o vício previsto na segunda parte sempre que alguma ambiguidade ou obscuridade, torne a decisão ininteligível.

VIII. Ocorre ambiguidade sempre que certo termo ou frase sejam passíveis de uma pluralidade de sentidos e inexistam meios de, com segurança, determinar o sentido prevalecente; verifica-se obscuridade, sempre que um termo ou uma frase não têm um sentido que seja percetível, determinável.

IX. Não tendo a Autora se pronunciado ou requerido a extinção do processo, nunca tendo expressado a sua desistência, nem sequer de modo implícito, não pode o Tribunal extinguir o processo.

X. A concordância das partes quanto à suspensão da instância não acarreta qualquer manifestação de vontade em pôr termo ao processo, não produzindo quaisquer efeitos sobre a desistência do processo, não se podendo confundir com a desistência da instância.

XI. Além de que não existiu a prática de qualquer ato processual ou extraprocessual das partes que permita sustentar a desistência da instância, além de a Autora nunca ter desistido da instância, nos termos do artigo 290.º do CPC.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – RELATÓRIO


O Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, E.P.E., devidamente identificado nos autos, inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, datada de 08/11/2020, que no âmbito da ação administrativa instaurada contra a Secretaria Regional de Saúde da Região Autónoma dos Açores, julgou extinta a instância por desistência do Autor.


*

O Autor, ora Recorrente, apresentou recurso contra a decisão recorrida, tendo nas respetivas alegações, formulado as seguintes conclusões, que ora se reproduzem:

“I. Por sentença proferida nos presentes autos e notificada em 09/11/2020, foi declarada extinta a instância por desistência;

II. Ora, para além, do Autor não ter desistido da instância, a referida sentença enferma, ainda, das nulidades previstas no art. 615.º, n.º 1, al. a), b) e c) do Código de Processo Civil;

III. Com efeito, a sentença notificada, para além de não constar de papel timbrado e não estar datada, não se encontra assinada, sendo, por conseguinte, nula, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil;

IV. Acresce que a sentença não especifica os fundamentos (neste caso) de direito que justificam a decisão, limitando-se a Meritíssima Juiz a reproduzir legislação e a remeter para decisões proferidas noutros processos, sem, contudo, reproduzir o seu teor, identificar o litígio ou o Tribunal que as proferiu, para concluir, de forma ambígua, obscura e em clara violação da lei, pela extinção da instância por desistência por interpretação da conduta das partes, consubstanciando as nulidades previstas nas alíneas b) e c) do art. 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil;

V. Com efeito, o ora Recorrente intentou a presente acção contra a Secretaria Regional da Saúde dos Açores, em 20/03/2015, peticionando o pagamento de prestações de saúde e fármacos a utentes beneficiários do Serviço Regional de Saúde dos Açores, no valor de € 4.673.746,07 (e não € 4.644.741,86, conforme referido);

VI. Porém, ao contrário do referido na sentença, a invocada responsabilidade da Ré pelo pagamento dos cuidados de saúde facturados e peticionados não teve origem em quaisquer termos de responsabilidade, mas antes na qualidade de beneficiários do Serviço Regional de Saúde dos utentes (cfr. art. 5.º, 6.º, 8.º, 10.º, 11.º, 13.º e 18.º a 33.º da petição inicial);

VII. Tal responsabilidade financeira, não obstante decorrer do regime legal já em vigor, conforme decidido pelos Tribunais Superiores (cfr. acórdão do Tribunal Central Administrativo, datado de 05/06/2014, proferido no âmbito do processo n.º 10121/13, e acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 03/04/2015 – Proc. n.º 01295/14, e 04/11/2015 – Proc. n.º 0255/15), foi, inclusive, reforçada pelas Leis de Orçamento de Estado de 2013 (art. 149.º, n.º 2, da lei n.º 66-B/2012), 2014 (art. 147.º, n.º 2, da Lei n.º 83-C/2013) e 2015 (art. 150.º, n.º 2, da Lei n.º 82-B/2014);

VIII. Acontece, porém, que, em 2016, veio a Lei Orçamento de Estado de 2017 (Lei n.º 7- A/2016, de 30 de Março) consagrar o princípio da reciprocidade, no âmbito da responsabilidade financeira na prestação de cuidados de saúde pelo SNS aos utentes dos SRS das regiões autónomas e a destes para com os utentes do SNS (cfr. art. 111.º), com efeitos a partir da data de entrada em vigor dos diplomas aprovados pelas Assembleias legislativas das Regiões Autónomas que estabelecessem a reciprocidade dos cuidados prestados pelos SRS, ou entidades neles integrados, aos utentes do SNS;;

IX. Em 08/04/2016, foi publicado o Decreto Legislativo Regional n.º 7/2016/A, nos termos do qual se determinava que, “no cumprimento do princípio da reciprocidade quanto à gratuitidade da prestação de cuidados de saúde, não são cobrados, pelo SRS, ou entidades nele integradas, aos utentes ou às unidades de saúde do SNS, os cuidados de saúde prestados aos utentes do SNS” (art. 2.º, n.º 1), com efeitos a partir da data da entrada em vigor de legislação nacional que viesse a estabelecer a gratuitidade dos cuidados prestados pelo SNS, ou entidades nele integradas, aos utentes do SRS;

X. Tal veio a verificar-se em 16/07/2016, com a entrada em vigor da Lei n.º 20/2016, de 15/07/2016, nos termos da qual se determinava que, “no cumprimento do princípio da reciprocidade quanto à gratuidade da prestação de cuidados de saúde, não são cobrados, pelo SNS, ou entidades nele integradas, aos utentes ou às unidades de saúde dos SRS, os cuidados de saúde prestados aos utentes do SRS” (art. 2.º, n.º 1);

XI. Em face da inversão do regime financeiro até então consagrado, determinou o art. 111.º, n.º 4, da LOE 2017, que “as dívidas liquidadas à presente data e derivadas da prestação de cuidados de saúde pelo SNS aos utentes dos SRS, e destes aos utentes do SNS, são regularizadas nos termos a acordar entre o Governo da República e os respectivos Governos Regionais, que, para o efeito, constituirão um grupo de trabalho conjunto”;

XII. No seguimento desta solução, consagrou o art. 4.º do Decreto Legislativo Regional n.º 7/2016/A, que “as situações de custos derivados da prestação de cuidados de saúde aos utentes do SRS, que, à data da entrada em vigor do presente decreto legislativo regional, configurem uma situação de dívida perante as entidades integradas no SNS, serão resolvidas por um grupo de trabalho conjunto constituído entre o Governo da República e o Governo Regional dos Açores” (nosso sublinhado);

XIII. E, de igual forma, a Lei n.º 20/2016: “as situações de custos derivados da prestação de cuidados de saúde aos utentes do SRS, que, à data da entrada em vigor do presente decreto legislativo regional, configurem uma situação de dívida perante as entidades integradas no SNS, serão resolvidas por um grupo de trabalho conjunto constituído entre o Governo da República e os Governos Regionais dos Açores e da Madeira” (nosso sublinhado);

XIV. O referido grupo de trabalho foi formalmente constituído pelo Despacho n.º 9075/2016, de 15 de Julho, “com vista a acordar os devidos termos de acordo a celebrar entre o Governo da República e os respectivos Governos Regionais” (nosso sublinhado), ficando incumbido de apresentar, até ao dia 30 de Outubro de 2016, uma proposta de projecto de acordo de regularização de dívidas;

XV. No decurso destas alterações legislativas, o ora Recorrente, notificado para se pronunciar sobre o requerimento de extinção da instância apresentado pelo Réu, requereu, em 19/05/2016, a suspensão da instância até à conclusão dos trabalhos do grupo (na altura ainda) a constituir pelo Governo da República e Governos Regionais;

XVI. Por despacho datado de 06/06/2016, foi determinada a suspensão da instância, nos termos do art. 272.º, n.º 1, 2.ª parte do Código de Processo Civil, “por estar em curso o processo de aprovação de legislação com directa repercussão na matéria dos autos e não resultando inequivocamente da legislação actualmente em vigor a extinção da dívida em discussão”, tendo o Autor sido notificado para comunicar ao Tribunal as conclusões do grupo de trabalho logo que delas tivesse conhecimento;

XVII. Em 08/06/2017, 23/10/2017, 17/04/2018 e 08/04/2019, foi o Autor notificado para informar o Tribunal da situação em que se encontrava o processo de regularização das dívidas, sendo respondido que ainda não tinha sido comunicada a formalização de acordo;

XVIII. Em 30/05/2019, foram as partes notificadas do despacho que ordenava que os autos aguardassem a conclusão dos referidos trabalhos, e para comunicar ao Tribunal o desfecho de tais trabalhos, assim que do mesmo tivessem conhecimento;

XIX. Em face do teor deste último despacho, que não determinava qualquer prazo para informar se já havia acordo, antes relegando para o momento em que se tivesse conhecimento do mesmo, nada foi respondido até à presente data, porque nenhum acordo foi ainda formalizado;

XX. Aliás, decorridos mais de quatro anos sobre a data limite de apresentação da referida proposta de projecto de acordo, nada foi ainda comunicado ao ora Recorrente;

XXI. É neste contexto que a Meritíssima Juiz a quo vem agora, ao arrepio do que foi sendo decidido ao longo destes quatro anos, com base na mesma legislação e sem que tenha havido qualquer facto superveniente que o justifique, considerar, tout court e sem qualquer fundamentação que não a mera reprodução de normas, que ocorreu a desjudicialização do litígio;

XXII. Mais, decide ainda extinguir a instância, porque interpreta a conduta das partes como desistência do Autor, aceite pelo Réu;

XXIII. Ora, com o devido respeito, para além da inexistente fundamentação, tal decisão é ambígua, obscura e violadora da lei, não só porque inexiste legalmente a figura da desjudicialização de litígio (a lei prevê o compromisso arbitral, podendo-se considerar-se, no limite, a figura de transacção, já que, nesse caso, o litigio é dirimido por acordo e não propriamente pela via judicial, mas excluindo estes casos, não se entende o alcance, nem efeito legal, da invocada “desjudicialização”), mas também porque, tendo a suspensão sido requerida pelo próprio Autor, ora Recorrente, e mantendo-se os pressupostos desse requerimento, nenhum motivo se verifica para impugnar tal decisão;

XXIV. Bem pelo contrário, mantêm-se inalteradas as circunstâncias e pressupostos subjacentes à suspensão da instância decretada em 06/06/2018 (e reiterada em 30/05/2019), a qual deverá manter-se;

XXV. Com efeito, o grupo de trabalho conjunto a que se referem os art. 111.º, n.º 4, da Lei n.º 7-A/2016 (LOE/2016), 4.º do Decreto Legislativo Regional 7/2016/A e 4.º da Lei n.º 20/2016, criado pelo Despacho n.º 9075/2016, de 15/07/2016, não é mais do que um mero grupo de trabalho, que ficou cometido de apresentar, até ao dia 30/10/2016, “uma proposta de projecto de acordo de regularização de dívidas” (nosso sublinhado);

XXVI. Ora, um grupo de trabalho (no qual, note-se, o ora Recorrente, entidade pública dotadas de personalidade jurídica, autonomia administrativa, financeira e patrimonial não participa) composto para apresentar uma proposta de projecto de acordo dificilmente se poderá configurar como podendo ter outro efeito na presente acção que não o mero fundamento para a sua suspensão, uma vez que (apenas) o acordo final poderá implicar (esse sim) a extinção da instância, mas por inutilidade superveniente da presente lide;

XXVII.A tal circunstância acresce que, não obstante ultrapassado o prazo determinado, não foi, ainda, conforme referido, comunicada ao Autor, a formalização/conclusão de acordo relativamente aos créditos pendentes, nomeadamente, aos peticionados nos presentes autos, que permanecem, assim, em dívida;

XXVIII.Aliás, em face do tempo decorrido a intervenção judicial estará plenamente justificada, se não se alcançar o referido acordo ou se se verificar uma inversão da opção política que esteve na base da aprovação desta legislação (o que, aliás, não se afigura despiciendo, tendo em conta a evolução legislativa e jurisprudencial nesta matéria), configurando a presente situação um motivo justificado para a manutenção da suspensão da instância ordenada pelo Tribunal, nos termos do art. 272.º, n.º 1, in fine, do CPC, até à conclusão dos trabalhos do referido grupo;

XXIX. Acresce que, nos vários momentos em que foi notificado para vir aos autos informar da situação em que que se encontrava o processo de regularização das dívidas (08/06/2017, 23/10/2017, 17/04/2018, 08/04/2019 e 30/05/2019), o ora Recorrente nunca manifestou qualquer intenção de desistir da instância;

XXX. Não se compreende, pois, como pode o Tribunal a quo interpretar a conduta do Autor como desistência da instância;

XXXI. Aliás, nos termos do art. 290.º, n.os 1 e 4, do CPC, a desistência pode fazer-se por documento autêntico ou particular, por termo no processo ou em acta;

XXXII. A lei exige assim, e como não poderia deixar de ser, uma declaração expressa de desistência da instância, efectivamente firmada pela parte, correspondendo àquilo que ela realmente quis e conforme o conteúdo da declaração feita;

XXXIII.A decisão proferida com base na interpretação da conduta processual das partes revela-se contrária à lei e arbitrária, para além de, conforme exposto, não resultar, de todo, da conduta do Autor qualquer indício de que pretendesse desistir da instância;

XXXIV. Em face do exposto, deve a presente sentença ser declarada nula, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. a), b) e c) do Código de Processo Civil, permanecendo a instância suspensa até à conclusão dos trabalhos do referido grupo.”.

Pede que o recurso seja julgado procedente e, consequentemente, ser a sentença proferida declarada nula, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. a), b) e c) do Código de Processo Civil, determinando-se a suspensão da instância até à conclusão dos trabalhos do grupo de trabalho constituído pelo Despacho n.º 9075/2016, de 15 de Julho,


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A Entidade Demandada, notificada, veio contra-alegar o recurso, no âmbito do qual formulou as seguintes conclusões:

“1ª Até 1 de janeiro de 2013, é indubitável que nunca se constituiu qualquer dívida do SRS ao SNS, por serviços prestados por este a cidadãos residentes nos Açores;

2ª A Lei do Orçamento do Estado para 2016 (artigo 111º) e a Lei nº 20/2016, de 15 de julho, estabeleceram o princípio da reciprocidade na prestação de cuidados de saúde pelo SNS a cidadãos abrangidos pelos serviços regionais de saúde e por estes aos cidadãos abrangidos pelo primeiro;

3ª Este princípio é igualmente válido para as dívidas constituídas na vigência das leis do orçamento do Estado para 2013, 2014 e 2015;

4ª Essas dívidas estão a ser objeto de tratamento por um grupo de trabalho previsto nas leis referidas na 2ª conclusão;

5ª Consequentemente, a presente ação deixou de ter objeto;

6ª Ou então há motivo justificado para que se suspenda a instância;

7ª Em qualquer caso, o Autor não provou que os cidadãos indicados nas faturas são fiscal ou efetivamente residentes nos Açores, nem que são beneficiários do SRS dos Açores;

8ª Mesmo que o provasse, as entidades que integram o Serviço Regional de Saúde não são responsáveis pelo pagamento dos serviços prestados pelo Autor;

9ª Essa responsabilidade incumbe ao Estado, nos termos da Constituição e da Lei de Bases da Saúde;

10ª O nº 2 do artigo 149º da Lei nº 66-B/2012, de 31 de dezembro, o nº 2 do artigo 147º da Lei nº 83-C/2013, de 31 de dezembro, e o nº 3 do artigo 150º da Lei nº 82-B/2014, de 31 de dezembro, só eram aplicáveis a situações em que se verificasse a existência de um número de compromisso válido, emitido pelo Serviço Regional de Saúde;

11ª E mesmo verificados todos os requisitos referidos, as normas em causa não deveriam ser aplicadas, por serem manifestamente inconstitucionais.”.

Pede que se negue provimento ao recurso e que se mantenha a sentença recorrida; subsidiariamente, que se suspenda a instância ou se julgue a ação improcedente por não provada a dívida invocada.


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O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, não emitiu parecer.

*

O processo teve vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, indo à Conferência para julgamento.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

As questões suscitadas pelo Recorrente são as seguintes:

1. Nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, a) do CPC, por falta de assinatura;

2. Nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, b) e c) do CPC, por falta de fundamentos de direito e por ambiguidade e obscuridade;

3. Erro de julgamento de direito, por não ter requerido a desistência da instância e a mesma se fazer por documento autêntico ou particular, por termo no processo ou em ata, nos termos do artigo 290.º, n.ºs 1 e 4 do CPC, exigindo declaração expressa.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

O Tribunal a quo não procedeu ao julgamento da matéria de facto.

DE DIREITO

Cumpre conhecer as questões suscitadas no recurso, segundo a sua ordem lógica ou prioritária de conhecimento.

1. Nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, a) do CPC, por falta de assinatura

Nos termos da alegação do Recorrente a sentença recorrida enferma de nulidade, por não se encontrar assinada, além de não constar de papel timbrado e não estar datada.

Sem razão, porquanto embora se confirme que a sentença foi impressa sem qualquer sinal exterior que identifique o Tribunal em que foi proferida, por não conter qualquer referência ao Tribunal de onde emana, apresenta-se assinada digitalmente, nos termos em que consta do canto superior direito, permitindo identificar a autora da sentença e sua respetiva data, segundo o sistema informático que vigora nos tribunais administrativos, o SITAF.

Nos termos do artigo 16.º, n.ºs 1 e 2 da Portaria n.º 380/2017, de 19/12, na redação conferida pela Portaria n.º 4/2020, de 13/01, quanto aos “Atos processuais de magistrados”, é estabelecido que os atos processuais de juízes são praticados no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais administrativos e fiscais, com aposição de assinatura eletrónica qualificada ou avançada, a qual dispensa para todos os efeitos a assinatura autógrafa em suporte de papel dos atos processuais.

Por conseguinte, mostrando-se assinada a sentença, mediante assinatura digital realizada no âmbito do sistema SITAF, não procede o fundamento do recurso.

Termos em que será de negar provimento à nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, a) do CPC.

2. Nulidade, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, b) e c) do CPC, por falta de fundamentos de direito e por ambiguidade e obscuridade

Sustenta o Recorrente que a sentença não especifica os fundamentos de direito que justificam a decisão, além de ser ambígua, obscura e em clara violação de lei, limitando-se a reproduzir legislação e a remeter para decisões proferidas noutros processos, sem reproduzir o seu teor, nem identificar o litígio ou o Tribunal que proferiu tais decisões, concluindo pela extinção da instância por desistência.

Invoca que intentou a presente ação contra a Secretaria Regional da Saúde dos Açores, peticionando o pagamento de prestações de saúde e fármacos a utentes beneficiários do Serviço Regional de Saúde dos Açores, mas ao contrário do referido na sentença, a responsabilidade da Ré não teve origem em quaisquer termos de responsabilidade, mas antes na qualidade de beneficiários do Serviço Regional de Saúde dos utentes, sendo uma responsabilidade financeira, que não obstante decorrer do regime legal já em vigor, conforme decidido pelos Tribunais Superiores, foi reforçada pelas Leis de Orçamento de Estado de 2013, 2014 e 2015.

Porém, alega que em 2016, veio a Lei Orçamento de Estado de 2017 consagrar o princípio da reciprocidade, no âmbito da responsabilidade financeira na prestação de cuidados de saúde pelo SNS aos utentes dos SRS das regiões autónomas e a destes para com os utentes do SNS.

Em face da inversão do regime financeiro até então consagrado, determinou o artigo 111.º, n.º 4, da LOE 2017, que “as dívidas liquidadas à presente data e derivadas da prestação de cuidados de saúde pelo SNS aos utentes dos SRS, e destes aos utentes do SNS, são regularizadas nos termos a acordar entre o Governo da República e os respectivos Governos Regionais, que, para o efeito, constituirão um grupo de trabalho conjunto”, vindo, em sequência a ser aprovados o Decreto Legislativo Regional n.º 7/2016/A e a Lei n.º 20/2016.

O referido grupo de trabalho foi constituído pelo Despacho n.º 9075/2016, de 15/07, ficando incumbido de apresentar, até ao dia 30/10/2016, uma proposta de projeto de acordo de regularização de dívidas.

Por isso, sustenta o Recorrente, foi, por diversas vezes requerida e decidida a suspensão da instância até à conclusão dos trabalhos do grupo constituído pelo Governo da República e Governos Regionais, como se verificou pelo despacho datado de 06/06/2016, nos termos do artigo 272.º, n.º 1, 2.ª parte do CPC, “por estar em curso o processo de aprovação de legislação com directa repercussão na matéria dos autos e não resultando inequivocamente da legislação actualmente em vigor a extinção da dívida em discussão”.

Em 08/06/2017, 23/10/2017, 17/04/2018 e 08/04/2019, foi o Autor notificado para informar o Tribunal da situação em que se encontrava o processo de regularização das dívidas, sendo respondido que ainda não tinha sido comunicada a formalização de acordo e em 30/05/2019, foram as partes notificadas do despacho que ordenava que os autos aguardassem a conclusão dos referidos trabalhos, e para comunicar ao Tribunal o desfecho de tais trabalhos, assim que do mesmo tivessem conhecimento.

Este último despacho não determinou qualquer prazo para informar se já havia acordo, antes relegando para o momento em que se tivesse conhecimento do mesmo, nada tendo sido respondido porque nenhum acordo foi ainda formalizado.

É neste contexto que foi decidido na sentença recorrida que ocorreu a desjudicialização do litígio, extinguindo a instância ao interpretar da conduta das partes a desistência do Autor e aceite pela Ré.

Invoca ser inexistente a fundamentação, além de a decisão ser ambígua, obscura e violadora da lei, por não inexistir legalmente a figura da desjudicialização de litígio e se manterem inalteradas as circunstâncias e pressupostos subjacentes à suspensão da instância decretada em 06/06/2018 (e reiterada em 30/05/2019), a qual deverá manter-se.

Vejamos.

A sentença, enquanto decisão judicial, pode padecer de vícios de duas ordens, os quais obstam à sua eficácia ou validade:

i) pode ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo a consequência a da sua revogação (erro de julgamento de facto ou de direito);

ii) como ato jurisdicional, pode ter violado as regras próprias da sua elaboração ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é emanada, tornando-se passível de nulidade, nos termos do artigo 615.º do CPC.

A nulidade da sentença pode ser declarada e invocada a todo o tempo – cfr. José Lebre de Freitas, inCódigo de Processo Civil Anotado”, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 2001, pág. 669.

As situações de nulidade da decisão encontram-se taxativamente previstas no n.º 1 do artigo 615.º do CPC, comportando causas de nulidade de dois tipos: uma causa de caráter formal, prevista na alínea a) e várias causas respeitantes ao conteúdo da decisão, nas alíneas b) a e).

Prevê o artigo 615.º do mesmo Código, sob a epígrafe de “Causas de nulidade da sentença”, que:

1 – É nula a sentença quando:

(…)

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

2.1. Nulidade, por falta de fundamentação

Nos termos do n.º 1 do artigo 205.º da CRP e do n.º 1 do artigo 154.º do CPC, a decisão judicial deve ser motivada, através da exposição dos fundamentos de facto e de direito, pelo que a fundamentação das decisões judiciais é um dever constitucionalmente consagrado.

Como corolário desse dever impõem os artigos 154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, que as decisões sejam sempre fundamentadas, com a indicação dos factos julgados provados e não provados, para além dos fundamentos de direito.

Nos termos do artigo 154.º, sob epígrafe “Dever de fundamentar a decisão”:

1 – As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.

2 – A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição (…).”.

Estabelece o disposto no artigo 607.º, n.ºs 2, 3 e 4, do CPC, norma cuja epígrafe consiste em “Sentença”, que:

2 – A sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, se seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar.

3 – Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.

4 – Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamento que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”.

Para que a sentença padeça do vício que consubstancia a nulidade prevista na alínea b), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, é necessário que a falta de fundamentação seja absoluta, não bastando que a justificação da decisão se mostre deficiente, incompleta ou não convincente.

Por outras palavras, uma decisão judicial apenas é nula quando lhe falta em absoluto qualquer fundamentação, pois a simples deficiência, mediocridade ou erro de fundamentação afeta o valor doutrinal da decisão, que, por isso, poderá ser revogada ou alterada, mas não produz nulidade – Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil anotado”, Vol. V, Coimbra, 1984 (reimpressão), pág. 140 e Acórdão do STA, de 11/09/2007, recurso 059/07.

No entanto, como decidido no Acórdão do TRP, de 08/09/2020, Proc. n.º 15756/17.5T8PRT-A.P1, “no atual quadro constitucional (artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, ainda que a densificar em concretas previsões legislativas, de forma a que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, nos casos em que tal for admissível, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do acto decisório.” (vide ainda o Acórdão do STJ, de 02/03/2011, Proc. nº 161/05.2TBPRD.P1.S1).

Assim, o que a lei considera nulidade é a falta de motivação, tanto de facto, como de direito, por a simples insuficiência ou incompletude da motivação ou o erro de fundamentação é espécie diferente e podendo afetar o valor da sentença, mediante a sua revogação em recurso jurisdicional, não produz a sua nulidade, salvo se também neste caso a fundamentação aduzida não permitir a compreensão da decisão tomada.

A sentença comporta o relatório, os fundamentos e a decisão.

Nos fundamentos, o Tribunal deve discriminar os factos que considera provados e admitidos por acordo e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas.

Nos fundamentos de facto, o Tribunal deve utilizar todos os factos adquiridos durante a tramitação da causa e todas as provas produzidas, de acordo com o princípio da aquisição processual; nos fundamentos de direito devem ser enunciadas as normas legais ou princípios jurídicos que alicerçam o julgamento.

Nos termos dos citados preceitos legais, a sentença deve espelhar ou refletir em termos de probatório todos os factos que servem de base à decisão, além das respetivas razões ou argumentos jurídicos.

Ao Tribunal compete especificar os motivos da decisão, quer sobre a matéria de facto, revelando as razões que o levaram a dar por provado certo facto ou ao invés, ao dar por não provada a factualidade alegada pelas partes nos seus respetivos articulados, perante os meios de prova produzidos e as posições que as partes tomaram nos articulados, quer sobre a matéria de direito.

A exigência legal de enunciação ou explicitação da fundamentação constitui uma garantia da transparência, da imparcialidade e da inerente assunção da responsabilidade por parte do julgador.

Se, à luz desta caracterização a decisão, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência e da experiência, então ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.

No presente caso, a decisão recorrida julgou ter ocorrido a desistência da instância, não tendo enunciado autonomamente qualquer facto.

O que deve ser enquadrado na circunstância de a concreta decisão recorrida não ter procedido ao julgamento do mérito da causa, não carecendo de proceder à análise valorativa dos factos e das provas.

Como invocado, tradicionalmente tem entendido a jurisprudência que o vício de falta de fundamentação apenas se verifica quando ocorre falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito.

No presente caso, sendo totalmente omissa a fundamentação de facto da decisão recorrida, a mesma não se impunha para o julgamento ocorrido, visto não ter existido o conhecimento sobre o mérito do litígio.

No que respeita à fundamentação de direito, ainda que seja errónea, permite compreender as razões em que o Tribunal a quo se estribou para julgar extinta a instância: entender ter ocorrido a desjudicialização do litígio e extrair da manifestação das partes quanto à suspensão da instância, a vontade em quererem pôr termo ao processo.

Ora, sem prejuízo de se reconhecer que a decisão recorrida não reflete a estrutura formal de uma sentença, por não conter a fundamentação de facto, ainda assim permite entender as razões que a motivaram e que conduziram ao dispositivo.

A decisão recorrida não padece verdadeiramente de nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto, mas antes de erro de julgamento na apreciação do objeto do litígio, das consequências a extrair do regime da suspensão da instância e ainda acerca da desistência da instância.

2.2. Nulidade por a decisão ser ambígua e obscura

Sustenta ainda o Recorrente a nulidade da decisão, com fundamento na ambiguidade e obscuridade evidenciada em relação aos fundamentos de direito e em relação à decisão proferida.

O artigo 615.º, n.º 1, c) do CPC prevê que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

O vício previsto na primeira parte da norma legal em causa verifica-se sempre que a fundamentação de facto e de direito da decisão proferida apontam num certo sentido e, depois surge um dispositivo que, de todo, não se coaduna com as premissas.

Trata-se de um vício lógico na construção da sentença, distinto do erro de julgamento que ocorre quando existe errada valoração da prova produzida, errada qualificação jurídica da factualidade provada ou errada determinação ou interpretação das normas legais aplicáveis.

Já o vício previsto na segunda parte do preceito legal, ocorre sempre que alguma ambiguidade ou obscuridade, torne a decisão ininteligível.

Ocorre ambiguidade sempre que certo termo ou frase sejam passíveis de uma pluralidade de sentidos e inexistam meios de, com segurança, determinar o sentido prevalecente.

Verifica-se obscuridade, sempre que um termo ou uma frase não têm um sentido que seja percetível, determinável.

Quer a ambiguidade, quer a obscuridade têm que se projetar na decisão, tornando-a incompreensível, insuscetível de ser apreciada criticamente. por não se alcançarem as razões subjacentes e comprometendo a sua própria execução por força de tais vícios.

No caso em apreço, na decisão recorrida julgou-se extinta a instância, por desistência da instância.

O Recorrente pugna pela nulidade da decisão recorrida por ambiguidade ou obscuridade, pois julga a verificação da desistência da instância, sem que a mesma tenha ocorrido, não existindo nenhuma manifestação das partes nesse sentido, além de não ocorrer a desjudicialização do litígio.

No entanto, o decidido não enferma da nulidade invocada, pois não é possível extrair a ambiguidade ou obscuridade.

Podendo enfermar de erro de julgamento, não padece da censura alegada pelo Recorrente.


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Termos em que, improcedem as conclusões do recurso respeitantes às nulidades decisórias invocadas contra a decisão recorrida, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, b) e c), do CPC.

3. Erro de julgamento de direito, por não ter requerido a desistência da instância e a mesma se fazer por documento autêntico ou particular, por termo no processo ou em ata, nos termos do artigo 290.º, n.ºs 1 e 4 do CPC, exigindo declaração expressa

Por último, vem o Recorrente dirigir o erro de julgamento de direito à sentença recorrida, com o fundamento de não ter requerido a desistência da instância e a mesma se fazer por documento autêntico ou particular, por termo no processo ou em ata, nos termos do artigo 290.º, n.ºs 1 e 4 do CPC, exigindo declaração expressa, o que no caso não ocorreu.

Mais alega que o grupo de trabalho conjunto a que se referem os artigos 111.º, n.º 4, da Lei n.º 7-A/2016 (LOE/2016), 4.º do Decreto Legislativo Regional 7/2016/A e 4.º da Lei n.º 20/2016, criado pelo Despacho n.º 9075/2016, de 15/07/2016, não é mais do que um mero grupo de trabalho, que ficou cometido de apresentar, até ao dia 30/10/2016, “uma proposta de projecto de acordo de regularização de dívidas”.

Entende que chegando as partes a acordo, esse sim, poderá implicar a extinção da instância, mas por inutilidade superveniente da presente lide.

Termina, no sentido de nunca ter manifestado qualquer intenção de desistir da instância, não podendo o Tribunal a quo interpretar a conduta do Autor como desistência da instância.

Vejamos.

Sem que se verifiquem os fundamentos da nulidade decisória invocados pela Recorrente, quer no respeitante à falta de fundamentação, quer à ambiguidade e obscuridade da decisão, por ser possível compreender os motivos em que o Tribunal se baseou para decidir, a decisão proferida pelo Tribunal a quo encontra-se enfermada de erro de julgamento.

Analisando a tramitação dada à causa, decorrente da prática dos atos processuais pelas partes e pela Juíza da causa, afigura-se evidente que nunca o Autor se pronunciou ou requereu a extinção do processo, nunca tendo expressado a sua desistência, nem sequer de modo implícito, do mesmo modo que a contraparte não praticou qualquer ato processual concordante com esse conteúdo ou apto a produzir tal efeito extintivo da instância.

De resto, decorre do próprio teor da sentença recorrida que o Tribunal a quo reconhece essa circunstância, pois afirma na sua fundamentação que extrai a desistência, não de um ato de manifestação de vontade expresso ou inequívoco do Autor, mas da interpretação extraída da conduta processual das partes ao aceitarem a suspensão da instância, como decorre do seguinte teor: “Tal conduta das partes é interpretada pelo tribunal como desistência da instância da A., aceite pelo R..”.

Não podem existir quaisquer dúvidas que a concordância das partes quanto à suspensão da instância não acarreta qualquer manifestação de vontade em pôr termo ao processo.

A suspensão da instância não produz quaisquer efeitos sobre a extinção do processo, não se podendo confundir com a desistência da instância.

Não existiu a prática de qualquer ato processual ou extraprocessual das partes que o permita sustentar, além de o Autor nunca ter desistido da instância.

Além de que, não foi praticado qualquer ato, nos termos previstos no artigo 290.º do CPC, que exprima juridicamente a vontade do Autor em pôr termo ao processo.

Acresce não ser possível extrair dos termos do litígio ou da prática dos atos processuais a desjudicialização do litígio, como entendido na sentença recorrida, pois a constituição de um mero grupo de trabalho, não tem a capacidade de regular só por si os direitos controvertidos no presente processo e de lhes pôr termo, nem tão pouco de se refletir na existência do presente processo.

Nestes termos, procede o fundamento do recurso, enfermando a sentença recorrida de erro de julgamento ao extrair a desistência da instância e ao julgar extinta a instância.


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Em suma, em face de todo o exposto, será de conceder provimento ao recurso, implicando a revogação da decisão recorrida e a baixa dos autos, para o seu normal prosseguimento se nada mais obstar.

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Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I. Nos termos do artigo 16.º, n.ºs 1 e 2 da Portaria n.º 380/2017, de 19/12, na redação conferida pela Portaria n.º 4/2020, de 13/01, quanto aos “Atos processuais de magistrados”, é estabelecido que os atos processuais de juízes são praticados no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais administrativos e fiscais, com aposição de assinatura eletrónica qualificada ou avançada, a qual dispensa para todos os efeitos a assinatura autógrafa em suporte de papel dos atos processuais.

II. Mostrando-se assinada a sentença, mediante assinatura digital realizada no âmbito do sistema SITAF, não procede o fundamento da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, a) do CPC.

III. A sentença, enquanto decisão judicial, pode padecer de vícios de duas ordens, os quais obstam à sua eficácia ou validade:

i) pode ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo a consequência a da sua revogação (erro de julgamento de facto ou de direito);

ii) como ato jurisdicional, pode ter violado as regras próprias da sua elaboração ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra da qual é emanada, tornando-se passível de nulidade, nos termos do artigo 615.º do CPC.

IV. Nos termos do n.º 1 do artigo 205.º da CRP e do n.º 1 do artigo 154.º do CPC, a decisão judicial deve ser motivada, através da exposição dos fundamentos de facto e de direito, pelo que a fundamentação das decisões judiciais é um dever constitucionalmente consagrado.

V. Como corolário desse dever impõem os artigos 154.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, que as decisões sejam sempre fundamentadas, com a indicação dos factos julgados provados e não provados, para além dos fundamentos de direito.

VI. Reconhecendo-se que a decisão recorrida não reflete a estrutura formal de uma sentença, por não conter o relatório, que identifique as partes e o objeto do litígio, nem a fundamentação de facto, ainda assim permite entender as razões que a motivaram e que conduziram ao dispositivo, não enfermando da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, b) do CPC.

VII. O artigo 615.º, n.º 1, c) do CPC prevê que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível: o vício previsto na primeira parte da norma verifica-se sempre que a fundamentação de facto e de direito da decisão proferida apontam num certo sentido e, depois surge um dispositivo que, de todo, não se coaduna com as premissas; ocorre o vício previsto na segunda parte sempre que alguma ambiguidade ou obscuridade, torne a decisão ininteligível.

VIII. Ocorre ambiguidade sempre que certo termo ou frase sejam passíveis de uma pluralidade de sentidos e inexistam meios de, com segurança, determinar o sentido prevalecente; verifica-se obscuridade, sempre que um termo ou uma frase não têm um sentido que seja percetível, determinável.

IX. Não tendo a Autora se pronunciado ou requerido a extinção do processo, nunca tendo expressado a sua desistência, nem sequer de modo implícito, não pode o Tribunal extinguir o processo.

X. A concordância das partes quanto à suspensão da instância não acarreta qualquer manifestação de vontade em pôr termo ao processo, não produzindo quaisquer efeitos sobre a desistência do processo, não se podendo confundir com a desistência da instância.

XI. Além de que não existiu a prática de qualquer ato processual ou extraprocessual das partes que permita sustentar a desistência da instância, além de a Autora nunca ter desistido da instância, nos termos do artigo 290.º do CPC.


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Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso interposto e, em consequência, em revogar a decisão recorrida e ordenar a baixa dos autos, para o seu normal prosseguimento, se nada mais obstar

Custas pela Recorrida.

Registe e Notifique.

A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 01/05, tem voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Juízes integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores, Pedro Marchão Marques e Alda Nunes.


(Ana Celeste Carvalho - Relatora)