Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:498/23.9BELSB  
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:02/05/2025
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:CONFLITO DE COMPETÊNCIA
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
JUÍZO ADMINISTRATIVO
JUÍZO TRIBUTÁRIO
Sumário:
Votação:DECISÃO SINGULAR
Indicações Eventuais:Vice-Presidente em regime de substituição da Juíza Presidente
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Decisão


[art.º 36.º, n.º 1, alínea t), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF)]


I. Relatório


A Senhora Juíza do Juízo Tributário Comum do Tribunal Tributário de Lisboa (doravante Tribunal) veio requerer oficiosamente, junto deste TCAS, ao abrigo do disposto na alínea t) do n.º 1 do art.º 36.º do ETAF, a resolução do Conflito Negativo de Competência, em Razão da Matéria, suscitado entre si e Senhor Juiz do Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (doravante Tribunal), uma vez que ambos se atribuem mutuamente competência, negando a própria, para conhecer da ação para reembolso, por enriquecimento sem causa, que AA e BB (doravante AA.) intentaram contra o Estado Português e a Autoridade Tributária e Aduaneira (doravante RR.).


Chegados os autos a este TCAS, foi dado cumprimento ao disposto no art.º 112.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC). Pronunciaram-se os AA., no sentido de ser competente o Juízo Administrativo Comum do Tribunal.


Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público (...), nos termos do art.º 112.º, n.º 2, do CPC, que emitiu pronúncia no sentido de a competência ser atribuída ao Juízo Administrativo Comum do Tribunal.


É a seguinte a questão a decidir:

a. A competência para decidir ação para reembolso de valores de impostos pagos, sustentada em enriquecimento sem causa dos RR., cabe ao Juízo Administrativo Comum do Tribunal ou ao Juízo Tributário Comum do Tribunal?


II. Fundamentação


II.A. Para a apreciação do presente conflito, são de considerar as seguintes ocorrências processuais, documentadas nos autos:

1. Em 16.02.2023, os AA. apresentaram, no Tribunal, ação que designaram de “Acção para reembolso por enriquecimento sem causa nos termos do disposto no artigo 473.º e seguintes do Código Civil sob forma de processo comum”, contra os RR., na qual formularam o seguinte pedido na petição inicial, após aperfeiçoamento:


“Nestes termos, deve a presente acção ser considerada procedente por provada e os Réus serem condenados no pagamento aos Autores do montante € 2.825,88 (dois mil oitocentos e vinte e cinco euros e oitenta e oito cêntimos) acrescido de juros de mora à taxa legal contabilizados desde a data da entrada da presente acção em juízo e os vincendos até integral pagamento” (cfr. documentos com os n.ºs ... e ... de registo no SITAF neste TCAS, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

2. Foi proferida decisão, no Tribunal...Juízo Administrativo Comum, a 14.02.2024, da qual se extrai designadamente o seguinte:

“Os Autores, na petição inicial aperfeiçoada, alegam ter suportado um determinado valor em impostos superior ao que seria devido, peticionando que tal montante lhes seja devolvido.

A causa de pedir enunciada insere-se no âmbito de uma relação jurídica tributária, em que são aplicados regimes jurídicos tributários.

Ora, sendo a matéria de natureza tributária, a competência para apreciação do litígio cabe aos tribunais tributários (artigo 49.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).

*

Nos termos e com os fundamentos expostos, declaro este Tribunal incompetente, em razão da matéria, para conhecer do presente processo, sendo para o efeito competente o Juízo Tributário Comum, do Tribunal Tributário de Lisboa, pelo que transitada a decisão, deverá o processo ser-lhe remetido” (cfr. documento com o n.º ... de registo no SITAF neste TCAS).

3. A decisão referida em 2) foi notificada às partes e ao ... e os autos foram remetidos ao Tribunal e distribuídos no Juízo Tributário Comum (cfr. documentos com os n.ºs ... a ... de registo no SITAF neste TCAS).

4. Foi proferida decisão no Tribunal – Juízo Tributário Comum, a 15.10.2024, da qual se extrai designadamente o seguinte:

“Antes de mais, não basta um litígio ter origem numa relação jurídico-tributária, para que a competência material para a sua apreciação seja atribuída aos tribunais tributários. Veja-se, desde logo, os casos fundados em responsabilidade civil ou atrasos na justiça com origem em processos judicias ou procedimentos tributários, acções que, inequivocamente, são apreciadas pelos tribunais administrativos.

De facto, os tribunais tributários não podem ser chamados a intervir se inexistir disposição legal a atribuir-lhes a competência para o julgamento do conflito em questão, e nessa definição o legislador atribuiu competência aos Tribunais Tributários, sobretudo, para apreciar acções impugnatórias ou condenatórias relativamente a actos ou normas, arredando da esfera da sua competência acções judiciais relativas a outras pretensões, como pedidos de indemnização, que exigem a aplicação e apreciação de regimes jurídico-administrativos ou civis (como é, aliás, o caso do instituto do enriquecimento sem causa).

Com efeito, estabelece o artigo 49º do ETAF, sob a epígrafe “competência dos tribunais tributários” o seguinte:

“1 - Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, compete aos tribunais tributários conhecer:

a. Das acções de impugnação:

i. Dos actos de liquidação de receitas fiscais estaduais, regionais ou locais, e parafiscais, incluindo o indeferimento total ou parcial de reclamações desses actos;

ii. Dos actos de fixação dos valores patrimoniais e dos actos de determinação de matéria tributável susceptíveis de impugnação judicial autónoma;

iii. Dos actos praticados pela entidade competente nos processos de execução fiscal; iv) Dos actos administrativos respeitantes a questões fiscais que não sejam atribuídos à competência de outros tribunais;

b. Da impugnação de decisões de aplicação de coimas e sanções acessórias em matéria fiscal;

c. Das acções destinadas a obter o reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos em matéria fiscal;

d. Dos incidentes, embargos de terceiro, reclamação da verificação e graduação de créditos, anulação da venda, oposições e impugnação de actos lesivos, bem como de todas as questões relativas à legitimidade dos responsáveis subsidiários, levantadas nos processos de execução fiscal;

e. Dos seguintes pedidos:

i. De declaração da ilegalidade de normas administrativas de âmbito regional ou local, emitidas em matéria fiscal;

ii. De produção antecipada de prova, formulados em processo neles pendente ou a instaurar em qualquer tribunal tributário;

iii. De providências cautelares para garantia de créditos fiscais;

iv. De providências cautelares relativas aos actos administrativos impugnados ou impugnáveis e as normas referidas na subalínea i) desta alínea;

v. De execução das suas decisões;

vi. De intimação de qualquer autoridade fiscal para facultar a consulta de documentos ou processos, passar certidões e prestar informações;

f. Das demais matérias que lhes sejam deferidas por lei. (…)”.

Em concretização deste preceito do ETAF, dispõe ainda o artigo 97º do CPPT, sob a epígrafe “Processo judicial tributário”:

“1 - O processo judicial tributário compreende:

a. A impugnação da liquidação dos tributos, incluindo os parafiscais e os actos de autoliquidação,

retenção na fonte e pagamento por conta;

b. A impugnação da fixação da matéria tributável, quando não dê origem à liquidação de qualquer tributo;

c. A impugnação do indeferimento total ou parcial das reclamações graciosas dos actos tributários;

d. A impugnação dos actos administrativos em matéria tributária que comportem a apreciação da legalidade do acto de liquidação;

e. A impugnação do agravamento à colecta aplicado, nos casos previstos na lei, em virtude da apresentação de reclamação ou recurso sem qualquer fundamento razoável;

f. A impugnação dos actos de fixação de valores patrimoniais;

g. A impugnação das providências cautelares adoptadas pela administração tributária;

h. As acções para o reconhecimento de um direito ou interesse em matéria tributária;

i. As providências cautelares de natureza judicial;

j. Os meios acessórios de intimação para consulta de processos ou documentos administrativos e passagem de certidões;

l. A produção antecipada de prova;

m. A intimação para um comportamento;

n. O recurso dos actos praticados na execução fiscal, no próprio processo ou, nos casos de subida imediata, por apenso;

o. A oposição, os embargos de terceiros e outros incidentes, bem como a reclamação da decisão da verificação e graduação de créditos;

p. A acção administrativa, designadamente para a condenação à prática de acto administrativo legalmente devido relativamente a actos administrativos de indeferimento total ou parcial ou da revogação de isenções ou outros benefícios fiscais, quando dependentes de reconhecimento da administração tributária, bem como para a impugnação ou condenação à prática de acto administrativo legalmente devido relativamente a outros actos administrativos relativos a questões tributárias que não comportem apreciação da legalidade do acto de liquidação, e para a impugnação ou condenação à emissão de normas administrativas em matéria fiscal;

q. Outros meios processuais previstos na lei. (…)”.

Resulta, pois, das normas transcritas – e como já anteriormente avançado – que nem todas as pretensões são da competência material dos tribunais tributários, sendo certo que de nenhuma das alíneas elencadas supra consta acção fundada em enriquecimento sem causa.

Por outro lado, importa referir que a sentença de 14.02.2024 parece não ter compreendido, com o devido rigor, a forma como os Autores configuraram a acção e, bem assim, a respectiva causa de pedir.

Com efeito, e se bem se compreende a petição inicial, os Autores não vêm imputar vícios aos actos tributários, nem pedir a respectiva anulação total ou parcial – caso em que, inequivocamente, seria este Tribunal Tributário o competente para decidir. Antes alegam os Autores que pagaram um montante total de € 6.282,07 (IVA e IRS, custos e multas), mas que o valor efectivamente devido ao Estado era de € 3.456,19, pelo que houve enriquecimento ilegítimo do Estado no montante de € 2.825,88, à custa do seu património, convocando para o efeito os artigos 473º e 479º do Código Civil.

Como se vê, a relação jurídica tributária não está directamente em causa, sendo apenas invocada como pressuposto da nova relação geradora da obrigação de enriquecimento sem causa onde radica a pretensão dos Autores, na qual haverá de apreciar, designadamente: (i) se há um enriquecimento; (ii) se o enriquecimento carece de causa justificativa; (iii) se o enriquecimento foi obtido à custa de quem requer a restituição e (iv) o requisito negativo consistente na ausência de outro meio jurídico adequado, como prescreve o Artigo 474º do Código Civil.

Essa apreciação – atinente aos pressupostos do enriquecimento sem causa – contende já com o mérito da acção, que, como se constata, não equivale a aplicar regimes jurídico-tributários, como erroneamente se assume na sentença de 14.02.2024.

Esta nova relação em causa nos autos não é, pois, regida por normas de direito fiscal e, assim sendo, é competente para dirimir o litígio o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa – Juízo Comum.

No mesmo sentido já se pronunciou, designadamente, TCA Norte, em acórdão de 05.06.2015, processo nº 01286/12.3BEBRG, que conclui:

“… que se afigura pacífico é que a resolução desta questão não convoca a aplicação de normas de direito fiscal. De resto, concebe-se uma afinidade não despicienda entre a obrigação de restituição do enriquecimento injustificado e a obrigação de indemnização por responsabilidade civil extracontratual, sobretudo por facto lícito, e, portanto, valerão analogicamente as razões da solução prevista no artigo 4º/1/g) do ETAF e artigo 2º/2/e) /f) do CPTA, …. Em suma assiste razão à Recorrente, sendo competente para a causa em razão da matéria a secção administrativa do TAF de Braga.”

E ainda o Supremo Tribunal Administrativo, em acórdãos do Plenário de 29.01.2014, processo nº 01771/13 e de 18.04.2018, processo/Conflito nº 046/18, do qual se extrai o seguinte:

(…) nesta jurisdição, o que determina a competência material do Tribunal é a circunstância do conflito cuja resolução se pretende ter emergido de uma relação jurídica administrativa ou de uma relação jurídica fiscal. No primeiro caso será competente o Tribunal Administrativo, no segundo essa competência caberá ao Tribunal Tributário. A natureza da relação jurídica que está na origem do dissídio é, assim, o elemento-chave na tarefa de identificação do Tribunal competente para o julgamento. O que nos força a definir o que se deve entender por relação jurídica administrativa e por relação jurídica tributária por tais definições serem essenciais na economia da decisão que temos de tomar.

2. 1. O conceito de relação jurídica administrativa não tem assento legal o que não impede que possamos considerá-la, para este efeito, como uma relação que se estabelece entre dois ou mais sujeitos regulada por normas de direito administrativo, em que desses sujeitos é uma entidade ou um órgão da Administração Pública que actua no exercício de poderes de autoridade que lhe são próprios com vista à satisfação do interesse público. Já o mesmo não acontece com a noção de relação jurídica tributária visto esta não só ter definição legal – são as “estabelecidas entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e colectivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas” (art.º 1.º/2 da Lei Geral Tributária) - como têm o seu objecto normativamente especificado e têm indicadas as entidades da Administração Tributária que podem figurar como sujeitos dessa relação. Não se pense, porém, que as relações jurídicas administrativas e as relações jurídicas fiscais se repelem mutuamente ou que é possível traçar entre elas uma clara e inultrapassável linha divisória pois o facto de um dos seus sujeitos ser, forçosamente, uma entidade ou órgão da Administração não só destrói essa ideia como nos leva a concluir que, na sua essência, a relação jurídica tributária é uma espécie de um género mais abrangente, a relação jurídica administrativa. (…)

Por ser assim é que, por um lado, a lei fala em competências administrativas no domínio tributário (n.º 3 do art.º 1.º da LGT) e, por outro, o legislador teve grande preocupação em definir com rigor o conceito de relação jurídica tributária e de identificar as entidades que, em nome da Administração, nelas podiam intervir. Preocupação resultante da necessidade de a autonomizar, teórica e praticamente, perante a relação jurídica administrativa e de, nessa medida, se evitarem os problemas que poderiam advir de uma eventual confusão de conceitos.

(…) .2. 2. O que fica dito elucida-nos das razões que levaram o legislador a definir a competência dos Tribunais Administrativos de uma forma muito ampla e genérica e do mesmo não ter sucedido quando se tratou de definir a competência dos Tribunais Tributários. Com efeito, enquanto o art.º 44.º/1 do ETAF estatuiu que cabe aos Tribunais Administrativos conhecer “de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa”, o seu art.º 49.º indicou com rigor as matérias cujo julgamento era da competência dos Tribunais Tributários (…). O que quer dizer que, se bem virmos, o legislador configurou os Tribunais Administrativos como uma espécie de Tribunal comum da jurisdição administrativa - vocacionados para julgar todos os conflitos que lei não comete especificamente aos Tribunais Tributários – e que a competência atribuída aos Tribunais Tributários foi definida em termos bem precisos e rigorosos – cabe-lhe julgar os conflitos emergentes das relações jurídicas tributárias elencadas na lei – o que tem por consequência que estes não podem ser chamados a intervir se inexistir disposição legal a atribuir-lhes a competência para o julgamento do conflito em questão.

Por ser assim não é lícito afirmar que o facto de inexistir no elenco do art.º 49.º do ETAF uma referência aos litígios decorrentes de responsabilidade civil emergente de questões fiscais é insuficiente para declarar que os Tribunais Tributários são incompetentes para o julgamento das acções fundadas naquela responsabilidade e não é lícito porque essa omissão quer, justamente, significar que o legislador não quis que essa matéria integrasse a competência dos Tribunais Tributários. E de nada vale convocar o que se dispõe no art.º 4.º/1, al.ªs g) e h) do ETAF para contrariar o que fica dito, uma vez que estatuir que os Tribunais Administrativos e os Tribunais Tributários são competentes para julgar questões em que haja lugar a responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito público, sem especificar a quem cabe esse julgamento em cada caso, remete-nos para as normas gerais de atribuição de competência contidas nos art.ºs 44.º e 49.º do ETAF. E, como já sabemos, destas resulta que a competência para julgar acções fundadas naquela responsabilidade não está cometida aos Tribunais Tributários. De resto, é muito significativo que o processo tributário não inclua as acções destinadas a efectivar a responsabilidade civil extracontratual como uma das formas dos contribuintes poderem defender os seus direitos.”

Estabelecida a doutrina resta aplicá-la ao caso concreto.

3. No caso sub judice, a Autora instaurou contra o Instituto de Segurança Social uma acção administrativa comum, fundada no enriquecimento sem causa (…)

A Sr.ª Juíza a quem a acção foi distribuída julgou a área administrativa daquele Tribunal incompetente em razão da matéria (…). O processo foi, pois, remetido à área tributária do TAF e a Sr.ª Juíza a quem o mesmo foi distribuído também julgou a área tributária materialmente incompetente uma vez que, “conforme foi decidido, em plenário, pelo Supremo Tribunal Administrativo, no seu acórdão de 14.05.2015, «as acções administrativas destinadas à apreciação da responsabilidade de entes públicos por prejuízos decorrentes da prática de actos tributários ou de actos administrativos em matéria tributária, fundando-se na responsabilidade civil extracontratual ou no instituto do enriquecimento sem causa, são da competência material dos tribunais administrativos»”.

4. (…) Fundando essa pretensão [da Autora] no enriquecimento sem causa e na violação do princípio da confiança uma vez que o Réu ao fazer suas quantias que sabe não lhe pertencerem está, sem causa justificativa, a obter um enriquecimento à custa do património da Autora e a violar a confiança nele depositada. O que evidencia, de forma clara, que o que está em causa não é um conflito emergente de uma relação jurídica tributária, mas um conflito que nasce de uma errada entrega de quantias ao Réu e da ilegal retenção das mesmas, por não dispor de fundamento legal para tal. Ou seja, a Autora não vem discutir se as verbas que entregou ao Instituto de Solidariedade e da Segurança Social eram, ou não devidas e, sendo-o, qual a taxa que devia presidir ao seu cálculo, mas, apenas e tão só, alegar que fez determinadas entregas àquela entidade e que esta considera não serem devidas por não ter reconhecido a qualidade de trabalhadora da Autora da identificada senhora. (…)

O que significa estarmos perante uma acção fundada num instituto do direito civil e na violação de um princípio estruturante da actividade administrativa (art.ºs 473.º a 482.º do Cod. Civil e 8.º e 10.º do CPA) e não perante um conflito emergente de uma relação jurídica cuja resolução tenha de ser feita com apelo a normas de direito tributário. Ademais, estando legalmente tipificada a competência dos Tribunais Tributários (art.º 49.º do ETAF) não se encontra em nenhuma das suas estatuições norma capaz de ser integrada pela causa de pedir e pelo pedido aqui formulado (…)”. [fim de citação]

Assim, em face do exposto, e sem necessidade de mais amplas considerações, impõe-se concluir que é da competência material do Tribunal o conhecimento da presente acção.

Consequentemente, este Juízo Tributário Comum, do Tribunal Tributário de Lisboa, é absolutamente incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção, o que constitui uma excepção dilatória típica, de conhecimento oficioso, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar, in casu, à remessa do processo ao tribunal competente [cfr. artigos 18º, nº 1 do CPPT e dos artigos 61º, 278º, nº 2, 576º, nºs 1 e 2, 577º, alínea a), e 578º do CPC, aplicáveis ex vi do artigo 2º, alínea e) do CPPT].

(…)

DISPOSITIVO

Em face do exposto, nos termos das disposições legais citadas, julgo este Juízo Comum do Tribunal Tributário de Lisboa absolutamente incompetente em razão da matéria para conhecer da presente acção administrativa e, em consequência, determino a remessa dos presentes autos ao Juízo Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

(…) Após trânsito, conclua para os ulteriores termos de resolução do conflito negativo de competência ” (cfr. documento com o n.º ... de registo no SITAF neste TCAS).

5. Quando os presentes autos chegaram a este Tribunal, ambas as decisões judiciais tinham transitado em julgado (cfr. plataforma SITAF).


*


II.B. Apreciando.


Considerando o quadro processual descrito, cumpre decidir qual o juízo comum, se do tribunal tributário, se do tribunal administrativo de círculo, materialmente competente para o conhecimento dos autos.


Vejamos, então.


Nos termos do art.º 36.º, n.º 1, alínea t), do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respetivo tribunal central administrativo”, sendo que, no âmbito do contencioso administrativo, os conflitos de competência jurisdicional encontram-se regulados nos art.ºs 135.º a 139.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA).


Estabelece-se no n.º 1 do art.º 135.º do CPTA que a resolução dos conflitos “entre tribunais da jurisdição administrativa e fiscal ou entre órgãos administrativos” segue o regime da ação administrativa, com as especialidades resultantes das diversas alíneas deste preceito, aplicando-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto na lei processual civil (cfr. art.ºs 109.º e ss. do CPC).


Por sua vez, o art.º 136.º do mesmo diploma estatui que “a resolução dos conflitos pode ser requerida por qualquer interessado e pelo Ministério Público no prazo de um ano contado da data em que se torne inimpugnável a última das decisões”.


Entende-se (como tem sido pacífico na jurisprudência deste TCAS) que, apesar de o art.º 136.º do CPTA manter a redação originária, a mesma não afasta a aplicação da norma constante do n.º 1 do art.º 111.º do CPC, a qual deve ser também aplicada no contencioso administrativo, com as devidas adaptações, ex vi art.º 135.º, n.º 1, do CPTA.


Ademais, a competência, designadamente em razão da matéria, dos tribunais administrativos e fiscais é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria (cfr. o art.º 13.º do CPTA e o art.º 16.º, n.º 2, do CPPT).


Nos termos do art.º 212.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP):

“Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Por sua vez, ao nível da lei ordinária, determina o art.º 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscal (ETAF), que:

“1 - Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.

O art.º 4.º, para o qual remete este n.º 1 do art.º 1.º, prescreve que:

“1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:

a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;

b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;

c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;

d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;

e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;

f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;

g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;

i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;

j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;

k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;

l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias;

m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;

n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;

o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.

2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade”.

É também de considerar o disposto no art.º 44.º-A, do ETAF, os termos do qual:

“1 - Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

a) Ao juízo administrativo comum conhecer de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência não esteja atribuída a outros juízos de competência especializada, bem como exercer as demais competências atribuídas aos tribunais administrativos de círculo”.

Finalmente, é ainda de atentar no art.º 49.º do ETAF, nos termos do qual:

“1 - Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, compete aos tribunais tributários conhecer:

a) Das ações de impugnação:

i) Dos atos de liquidação de receitas fiscais estaduais, regionais ou locais, e parafiscais, incluindo o indeferimento total ou parcial de reclamações desses atos;

ii) Dos atos de fixação dos valores patrimoniais e dos atos de determinação de matéria tributável suscetíveis de impugnação judicial autónoma;

iii) Dos atos praticados pela entidade competente nos processos de execução fiscal;

iv) Dos atos administrativos respeitantes a questões fiscais que não sejam atribuídos à competência de outros tribunais;

b) Da impugnação de decisões de aplicação de coimas e sanções acessórias em matéria fiscal;

c) Das ações destinadas a obter o reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos em matéria fiscal;

d) Dos incidentes, embargos de terceiro, reclamação da verificação e graduação de créditos, anulação da venda, oposições e impugnação de atos lesivos, bem como de todas as questões relativas à legitimidade dos responsáveis subsidiários, levantadas nos processos de execução fiscal;

e) Dos seguintes pedidos:

i) De declaração da ilegalidade de normas administrativas emitidas em matéria fiscal;

ii) De produção antecipada de prova, formulados em processo neles pendente ou a instaurar em qualquer tribunal tributário;

iii) De providências cautelares para garantia de créditos fiscais;

iv) De providências cautelares relativas aos atos administrativos impugnados ou impugnáveis e as normas referidas na subalínea i) desta alínea;

v) De execução das suas decisões;

vi) De intimação de qualquer autoridade fiscal para facultar a consulta de documentos ou processos, passar certidões e prestar informações;

f) Das demais matérias que lhes sejam deferidas por lei.

2 - Compete ainda aos tribunais tributários cumprir os mandatos emitidos pelo Supremo Tribunal Administrativo ou pelos tribunais centrais administrativos e satisfazer as diligências pedidas por carta, ofício ou outros meios de comunicação que lhe sejam dirigidos por outros tribunais tributário”.

A competência em razão da matéria é fixada em função dos termos em que a ação é proposta, isto é, a mesma tem subjacente a pretensão dos, in casu, AA. e os fundamentos em que estes a alicerçam [cfr. Acórdão do Plenário do Supremo Tribunal Administrativo, de 21.03.2012 – (Processo: 0189/11): “A competência (ou jurisdição) de um tribunal afere-se pelo quid decidendum, ou seja, pelos objectivos prosseguidos pelo autor, que são, no recurso de acto administrativo, anular este, ou declarar a sua nulidade, com fundamento nos vícios que se lhe apontem”].


Atenta a relação controvertida, tal como configurada pelos AA., os mesmos imputam aos RR. uma situação de enriquecimento sem causa, por não ter sido anulada fatura recibo de ato isolado emitida em 2017, sendo que a sua reclamação graciosa, apresentada em 2021, foi recusada, atento o lapso de tempo decorrido, pelas finanças. Logo, tendo havido entrega de imposto superior à devida, resultou um enriquecimento sem causa do Estado.


Feito este enquadramento, ao nível da pretensão dos AA., cumpre, a este propósito, aferir o conceito de questão fiscal, chamando-se, a este respeito, à colação o Acórdão do Plenário do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.10.2003 (Recurso n.º 0937/03):

“[P]or questões fiscais deve entender-se tanto as resultantes de imposições autoritárias que postulem aos contribuintes o pagamento de toda e qualquer prestação pecuniária, em ordem à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos dos respectivos entes impositores, como também das que as dispensem ou isentem, ou, numa perspectiva mais abrangente, as respeitantes à interpretação e aplicação de normas de direito fiscal, com atinência ao exercício da função tributária da Administração Pública, em suma, ao regime legal dos tributos”.

Como sumariado no já mencionado Acórdão do Plenário do Supremo Tribunal Administrativo, de 21.03.2012 (Processo: 0189/11):

“O conceito de questão fiscal tem oscilado entre a tese restritiva ou redutora e a tese ampliativa.

A tese ampliativa é a que é hoje seguida na jurisprudência e abrange todas as questões cuja resolução exige a interpretação e a aplicação de quaisquer disposições de direito fiscal, desde que se situe no campo da actividade tributária do Estado.

(…) É "questão fiscal" a que exija a interpretação e aplicação de quaisquer normas de direito fiscal, substantivo ou adjectivo, para resolução de questões sobre matérias respeitantes ao exercício da função tributária da Administração Pública” (sublinhados nossos).

Chama-se ainda à colação o Acórdão do Plenário do Supremo Tribunal Administrativo, de 27.11.2019 (Processo: 0427/12.5BEVIS), onde se refere:

“[D]o cotejo do disposto, nomeadamente, nos arts. 44.º e 49.º do ETAF, resulta que, no perímetro da jurisdição administrativa e fiscal, os tribunais administrativos funcionam como tribunais comuns, por dotados de «uma competência que se pode qualificar como residual ou por exclusão», competindo-lhes o conhecimento de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa [cfr. o n.º 1 do referido art. 44.º], ao passo que a competência dos tribunais tributários está definida com rigor em preceito específico, o que significa que apenas poderão intervir com fundamento em disposição legal expressa que lhes confira competência para o julgamento do litígio [vide n.º 1 do citado art. 49.º] [cfr., entre outros, os Acs. do STA/Plenário de 09.05.2012 - Proc. n.º 0862/11, de 29.01.2014 - Proc. n.º 01771/13, de 10.09.2014 - Proc. nº 0621/14, em 15.10.2014 - Proc. nº 0873/14, de 14.05.2015 - Proc. n.º 01152/14, de 03.06.2015 - Procs. n.º 0520/15 e n.º 0172/15, de 25.06.2015 - Proc. n.º 0664/15, de 25.11.2015 - Proc. n.º 01346/15, de 01.06.2016 - Procs. n.º 079/16, n.º 0417/16 e n.º 0416/16, de 13.07.2016 - Proc. n.º 0619/16, de 29.09.2016 - Procs. n.º 01574/15 e n.º 0290/16, de 12.07.2017 - Proc. n.º 0610/17, de 18.04.2018 - Proc. n.º 01274/17].

Ora, in casu, como referido, a relação controvertida tal como configurada pelos AA. foi na perspetiva de situação de enriquecimento sem causa e não enquanto questão fiscal.


Como referido no Acórdão do Plenário do Supremo Tribunal Administrativo, de 18.04.2018 (Processo: 046/18), aliás citado na decisão mencionada em 4):

[O] que está em causa não é um conflito emergente de uma relação jurídica tributária mas um conflito que nasce de uma errada entrega de quantias ao Réu e da ilegal retenção das mesmas, por não dispor de fundamento legal para tal.

(…) O que significa estarmos perante uma acção fundada num instituto do direito civil e na violação de um princípio estruturante da actividade administrativa (art.ºs 473.º a 482.º do Cod. Civil e 8.º e 10.º do CPA) e não perante um conflito emergente de uma relação jurídica cuja resolução tenha de ser feita com apelo a normas de direito tributário.

Ademais, estando legalmente tipificada a competência dos Tribunais Tributários (art.º 49.º do ETAF) não se encontra em nenhuma das suas estatuições norma capaz de ser integrada pela causa de pedir e pelo pedido aqui formulado”.

Como tal, conclui-se que a competência material, in casu, é do Juízo de Administrativo Comum do Tribunal [art.º 5.º e art.º 44.º-A, n.º 1, alínea a), ambos do ETAF; art.º 2.º, alínea a), do DL n.º 174/2019, de 13 dezembro, conjugado com a alínea a) do art.º 1.º da Portaria n.º 121/2020, de 22 de maio].


III. Decisão


Face ao exposto, decide-se o presente conflito pela atribuição de competência para a tramitação e decisão do processo ao Juízo Administrativo Comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.


Sem custas.


Registe e notifique.


Baixem os autos.


Lisboa, d.s.


A Vice-Presidente, em substituição da(o) Juiz Presidente,


(Tânia Meireles da Cunha)