Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
| Processo: | 20024/16.5BCLSB |
| Secção: | CA |
| Data do Acordão: | 04/08/2021 |
| Relator: | ANA CELESTE CARVALHO |
| Descritores: | AÇÃO ARBITRAL; RECURSO; AÇÃO DE ANULAÇÃO; CUMULAÇÃO DE FUNDAMENTOS; SUCESSÃO DE LAV NO TEMPO; FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO ARBITRAL. |
| Sumário: | I. Extraindo-se do contrato de concessão celebrado entre as partes e da Portaria n.º 454/2001, de 05/05, que aprovou o “novo contrato tipo de concessão de distribuição de energia elétrica em baixa tensão”, que os litígios emergentes sobre a execução e interpretação das cláusulas do contrato serão julgados por uma comissão composta por três árbitros, sem que as partes tenham convencionado a possibilidade de interposição de recurso do acórdão arbitral para o tribunal estadual, antes tendo acordado que o litígio é julgado segundo as regras do processo constantes do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, em vigor desde 01/03/2014 e que é subsidiariamente, a Lei de Arbitragem Voluntaria (LAV), aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14/12, resulta do conjunto das regras processuais escolhidas “ab initio”, que o recurso não é admissível. II. No que se refere à LAV, aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14/12, por as partes não terem previsto expressamente a possibilidade recurso, a decisão arbitral também não é suscetível de recurso (artigo 39.º, n.º 4 da LAV), sendo a decisão apenas suscetível de ser anulada, nos termos do artigo 46.º da LAV. III. Vigorando à data da celebração da convenção de arbitragem o regime plasmado no artigo 29.º da Lei n.º 31/86, de 29/08 (LAV), que estabelecia a regra da recorribilidade da decisão arbitral para os tribunais estaduais, a que as partes poderiam renunciar (sendo que a autorização dada aos árbitros para julgarem segundo a equidade equivaleria a essa renúncia), a regra que veio a ser consagrada na Lei n.º 63/2011, de 14/12, é oposta à que anteriormente vigorava. IV. O artigo 4.º, n.º 3 da Lei n.º 63/2011, de 14/12, definiu regras de aplicação da lei no tempo, mantendo o direito ao recurso da decisão arbitral que assistia segundo a Lei n.º 31/86, de 29/09, vigente à data da celebração da convenção de arbitragem. V. Ainda que o processo arbitral tenha decorrido ao abrigo da lei nova, se a convenção arbitral foi celebrada antes de 14 de março de 2011, a lei aplicável em matéria de recursos é a lei velha, lei que seria aplicada caso o processo arbitral houvesse decorrido ao abrigo dessa lei. VI. Porém, como as partes acordaram no início do processo arbitral que o litígio é julgado segundo as regras do processo constantes do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, em vigor desde 01/03/2014 e que é subsidiariamente, a Lei de Arbitragem Voluntaria (LAV) em vigor, está excluído o direito ao recurso. VII. As causas de anulação da decisão arbitral reportam-se à instância processual de arbitragem e não à relação substantiva, pelo que os fundamentos da ação de anulação são exclusivamente de índole adjetiva ou processual. VIII. Sob o mesmo impulso processual da parte vencida na decisão arbitral, é de admitir a alegação de fundamentos próprios do recurso jurisdicional e de fundamentos próprios da ação de anulação da decisão arbitral, tratando de forma unitária as vias de impugnação da decisão arbitral, sem prejuízo da submissão a regras de direito diferenciadas de cada um desses meios de impugnação. IX. As partes podem usar, em simultâneo, ambos os meios de impugnação da decisão arbitral. X. O artigo 46.º, n.º 3 da LAV procede a um elenco taxativo de fundamentos de anulação da decisão arbitral. XI. Em face da formulação dos fundamentos de anulação previstos no artigo 46.º, n.º 3 da LAV, é dispensável convocar a norma do artigo 615.º do CPC, que estabelece os casos em que as sentenças dos tribunais estaduais são nulas, por a LAV regular de modo próprio os fundamentos da ação de anulação. XII. Porém, atenta a construção e desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial em torno das causas de nulidade da sentença, é de reconhecer a relevância do disposto no artigo 615.º do CPC, na medida em que os fundamentos de anulação da decisão arbitral sejam decalcados da previsão dessa norma, sem prejuízo das especificidades dos tribunais arbitrais e das sentenças arbitrais. XIII. Não procedem as causas de anulação previstas no artigo 46.º, n.º 3, a), iii), v) e vi) da LAV, se o acórdão arbitral decide sobre questão abrangida pela convenção de arbitragem, não ultrapassando o seu âmbito, não condena em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, não conhece de questões de que não podia tomar conhecimento, nem incorreu em falta de fundamentação. |
| Votação: | UNANIMIDADE |
| Aditamento: |
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| Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:
I – RELATÓRIO
* No presente articulado, formulou a ora Recorrente as seguintes conclusões, que ora se reproduzem:“1 - O Tribunal Arbitral fixou o seguinte objecto processual: Determinação (i) da conformidade, legal e contratual, da utilização das infraestruturas afetas à concessão dos autos (designadamente, dos respetivos postos e/ou apoios) pelas operadoras “C.......”, “O.......”, “N.......”, “V.......” e “Z.......”, para efeitos da instalação de meios destinados à prestação de serviços de telecomunicações - e, nesse âmbito, (ii) do suscitado dever de a Demandada restituir ao Demandante, e em que medida, os valores que auferiu de tais operadoras por via dessa utilização (portanto, consentida pela Demandada). 2 - Este objecto é consentâneo com a Portaria n.º 454/2001, de 5 de Maio, adiante apenas Portaria, que fixa os termos do contrato de concessão tipo e que, no seu artigo 36.°, impõe às partes a submissão de qualquer litígio que se levante entre a Câmara e o concessionário sobre a execução ou a interpretação das cláusulas do contrato de concessão a uma comissão constituída por três árbitros e implicaria determinar qual é o sentido e alcance do n.° 3 do artigo l.° do Contrato de Concessão de Distribuição de Energia Eléctrica em Baixa Tensão, entre as partes celebrado e da Portaria n.° 454/2001, de 5 de Maio. 3 - Contudo, em sede de sentença, o Tribunal arbitral parece afastar-se deste objecto ao estipular no ponto IV-B-1 (página 16 da sentença) que a questão jurídica central a decidir se traduz em apurar se a Demandada incorreu na prática de conduta ilícita. 4 - Nos termos da legislação invocada no curso das alegações, a actividade da demandada aqui apelante consiste na distribuição de energia eléctrica que, no que respeita à baixa tensão, é exercida em regime de concessão de serviço público, mediante contratos celebrados com os municípios. 5 - O artigo 2.º do citado DL 344-8/82 prevê a regulamentação dos contratos de concessão mediante portaria que estabeleça um contrato tipo, modelo que veio a ser consagrado pela Portaria n.º 148/84, de 15 de Setembro, e posteriormente pela Portaria n.º 454/2001, de 5 de Maio que revogou a primeira e com base na qual veio a ser celebrado o contrato de concessão de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão no município de Vila Nova de Gaia, entre o demandante e a demandada, em 5 de Dezembro de 2001 , a que se reportam os presentes autos. 6 - A actividade de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão é a única actividade da demandada no que respeita às infraestruturas afectas à distribuição de energia eléctrica em baixa tensão. 7 - Quando o n.° 3 do artigo 1.° do Contrato de Concessão de Distribuição de Energia Eléctrica em Baixa Tensão, entre as partes celebrado e da Portaria n.° 454/2001, de 5 de Maio, se refere actividades diferentes daquelas que constituem o objecto da concessão, está obviamente a referir-se a actividades da aqui apelante, pelas quais esta é responsável. 8 - Assim, quer nos termos do artigo 9.° do Código Civil no que respeita à interpretação do n.° 3 do artigo 1.º do contrato tipo fixado pela referida Portaria, quer nos termos do artigo 236.° do mesmo código, no que respeita à interpretação da mesma norma do contrato propriamente dito, o que pode corresponder à vontade do legislador e das partes é apenas a possibilidade de a demandada vir a exercer, ela própria, e com utilização das referidas infraestruturas, uma actividade diversa da distribuição de energia eléctrica em baixa tensão, situação em que deveria compensar o município. 9 - Além de ser esta a letra da lei e do contrato (não poderão ser utilizados pela E....... em actividades diferentes daquelas que constituem o objecto da concessão) cabe perguntar que sentido faria a E....... obrigar-se a rever em alta o valor da renda paga pela concessão, ou a efectuar qualquer outro tipo de pagamento ao município, em virtude de uma actividade desenvolvida por terceiro? 10 - Nestes termos, é de concluir que a sentença recorrida procedeu a uma incorrecta interpretação e aplicação do n.° 3 do artigo 1.° do Contrato de Concessão de Distribuição de Energia Eléctrica em Baixa Tensão, entre as partes celebrado e da Portaria n.° 454/2001, de 5 de Maio, bem como dos artigos 9.° e 236.° do Código Civil, ao considerar que a referida norma legal e cláusula contratual contempla toda e qualquer actividade ainda que de qualquer entidade diferente da concessionária. 11 - A demandada sempre encarou a disponibilização dos apoios da rede de distribuição de energia eléctrica às empresas prestadoras de serviços de telecomunicações, para aí instalarem os seus cabos de fibra óptica, como integrando uma obrigação de serviço público, nos termos da legislação indicada no corpo destas alegações. 12 - Com a aprovação da Lei das Comunicações Electrónicas - Lei 5/2004, de 10 de Fevereiro - que estabelece o regime jurídico aplicável às redes e serviços de comunicações electrónicas e aos recursos e serviços conexos, foi atribuído às empresas que oferecem redes de comunicações públicas e serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público o direito de utilização do domínio público, em condições de igualdade, para a implantação, a passagem ou o atravessamento necessários à instalação de sistemas, equipamentos e demais recursos, conforme dispõem os artigos 1.° e 24.°, n.° 1, alínea b), do referido diploma, este último sob a epígrafe Direitos de passagem. 13 - Por seu turno, o DL 123/2009, de 21 de Maio, diploma que define o regime jurídico da construção, do acesso e da instalação de redes e de infraestruturas de comunicações electrónicas, reafirma, conforme se pode ler no seu preâmbulo, nos termos da Lei das Comunicações Electrónicas, aprovada pela Lei 5/2004 de 10 de Fevereiro, o direito de utilização do domínio público para a implantação, passagem ou atravessamento necessários à instalação de sistemas, através de procedimentos transparentes, céleres e não discriminatórios e adequadamente publicitados. 14 - Este direito de passagem só cede perante razões de natureza técnica e de segurança relevantes que se encontram elencadas no artigo 14.° do DL 123/2009, de 21 de Maio e que são atrás se encontram elencadas. 15 - Nos termos da alínea b) do artigo 2.° do DL 123/2009, de 21 de Maio, as disposições dos seus capítulos i, ii e iii aplicam-se a todas as entidades sujeitas à tutela ou superintendência de órgãos do Estado, das Regiões Autónomas ou das autarquias locais, que exerçam funções administrativas, revistam ou não caracter empresarial, bem como às empresas públicas e concessionárias, nomeadamente as que actuem na área das infraestruturas rodoviárias, ferroviárias, portuárias, aeroportuárias, de abastecimento de água, de saneamento e de transporte distribuição de pás e electricidade; 16 - Quanto ao artigo 13.° que se insere no capítulo iii do mesmo diploma, este estabelece no seu n.° 1 que as entidades referidas no artigo 2 o estão obrigadas a assegurar às empresas de comunicações electrónicas o acesso às infraestruturas aptas ao alojamento de redes de comunicações electrónicas que detenham ou cuja gestão lhes incumba. 17 - Daqui resulta que a demandada não tem, nos termos da Lei, qualquer opção quanto a autorizar, ou não autorizar, o acesso àquelas infraestruturas por parte dos operadores de telecomunicações. 18 - Mais, diga-se, é sobre ela, enquanto concessionária, que a lei faz recair a obrigação de viabilizar o acesso às infraestruturas e impõe a obrigatoriedade de não participar no benefício da actividade das operadoras de telecomunicações ao estabelecer a possibilidade de uma remuneração apenas orientada para os custos, com adiante melhor se referirá. 19 - Fará algum sentido que, como refere a sentença recorrida, o legislador - o mesmo que produziu o contrato de concessão tipo - quisesse, simultaneamente, criar na esfera jurídica das concessionárias uma obrigação de viabilizar o acesso às infraestruturas pelas operadoras de telecomunicações e manter o direito de conceder tal acesso (com todas as suas limitações) na esfera dos concedentes? 20 - O legislador, avisado como é, sabia, ao legislar sobre o acesso às infraestruturas, que esta actividade se encontra concessionada por meio de contratos que obedecem ao contrato tipo estabelecido pela Portaria 454/2001. 21 - A limitação, relativa a outras actividades, como resulta com clareza da letra da lei e dos elementos próprios da interpretação, reporta-se a actividades da própria concessionária que se venham a equacionar no futuro, com eventuais repercussões no valor da renda paga pela concessão mas não a actividades de terceiros que a demanda é obrigada a viabilizar. 22 - Concluindo, quer seja direito legal quase-potestativo como defende o Professor Vieira de Andrade em Parecer Jurídico junto aos autos, quer seja verdadeira servidão administrativa, como defende no seu voto de vencido o árbitro Miguel Pena Machete, o certo é que, exceptuando razões técnicas e de segurança cuidadosamente estipuladas pela lei, a demandada se encontra numa situação de absoluta sujeição. 23 - Cumpre ainda salientar que é errada a análise a que procede a decisão recorrida ao confrontar o regime contratual com o regime legal. Pois, na realidade, estamos perante duas disposições legais (Portaria 454/2001, de 5 de Maio e DL 123/2009, de 21 de Maio) aliás, de diferente hierarquia e data, o que sempre implicaria, segundo a interpretação defendida, que a existir obrigação de não exercer a tal actividade sem autorização do concedente, esta se encontraria revogada por norma posterior e de maior valor. 24 - Por outro lado, no n.° 2 do referido artigo 13.° do DL 123/2009, de 21 de Maio, estipula-se que o acesso referido no número anterior (proporcionado pelas referidas entidades, neste caso a demandada) deve ser assegurado em condições de igualdade, transparência e não discriminação, mediante condições remuneratórias orientadas para os custos, nos termos do artigo 19° que, por sua vez, estabelece no seu n.° 1 que a remuneração pelo acesso e utilização das infraestruturas detidas pelas entidades referidas no artigo 2. °, deve ser orientada para os custos, atendendo aos custos decorrentes da construção, manutenção reparação e melhoramento das infraestruturas em questão. 25 - É esta orientação em política de remuneração do acesso às redes que integram a concessão que é seguida pela demandada, tendo sido dado como provado que esta incorre em custos, ao contrário do demandante que não provou, nem sequer alegou, a existência de qualquer custo com a actividade das operadoras de telecomunicações. 26 - Relevante ainda é a circunstância (facto provado sob a alínea V)) de, nem as operadoras de telecomunicações, nem as autoridades reguladoras (ERSE e ANACOM), nem a própria demandante, nos termos do n.° 3 do referido artigo 19°, terem posto em causa junto da ANACOM, entidade reguladora do sector das telecomunicações, o valor cobrado pela demandada, sendo esta a única entidade competente para decidir sobre a adequação do valor da remuneração solicitada face à regra de orientação para os custos estabelecida no n.° 1 do mesmo artigo. 27 - Esta competência justifica-se dada a complexidade das contas das empresas que operam nos sectores regulados, tema que neste caso é duplamente complexo por se entrecruzarem dois sectores regulados - o da electricidade e o das telecomunicações - o que impõe aliás a audição da ERSE pela própria ANACOM num processo daquela natureza, conforme disposto no n.º 5 do artigo 19.º do citado DL 123/2009. 28 - A condenação dos autos, ignora por completo este normativo e obriga a demandada a um pagamento em violação do citado artigo 19.º, como o será de forma flagrante, qualquer importância recebida pelo município que concessionou a distribuição de energia eléctrica em baixa tensão e que nem sequer demonstrou a existência de qualquer custo com a actividade das operadoras de telecomunicações. 29 - Também não é verdade que ao município esteja vedada a obtenção de qualquer receita proveniente da actividade das operadoras de telecomunicações, como defendido na sentença recorrida. 30 - Pois, pelo exercício do direito de passagem, conforme estabelece n.º 2 do artigo 106.º da Lei 5/2004, na redacção que actualmente resulta da Lei 27/2015 de 3 de Setembro, podem os municípios criar, actualmente ao abrigo da Lei 53-E/2006, de 29 de Dezembro, e proceder à posterior liquidação e cobrança de uma taxa municipal de direitos de passagem (TMDP), o que acontece no caso dos autos, atento o facto provado sob a alínea T). 31 - Nos termos da actual redacção do artigo 13.º do citado DL 123/2009, especificamente no seu número 4, será possível ao município, além da TMDP, auferir uma remuneração, orientada para os custos, tal como definida no artigo 19.º do mesmo diploma. 32 - Contudo, esta possibilidade só existe quando o município explora ele mesmo as infraestruturas pretendidas pelos operadores e não quando as concessionou previamente, como é o caso dos presentes autos. 33 - Ou seja, esta cobrança não está ao alcance do demandante porque concessionou a distribuição de energia eléctrica na sua área geográfica, mas também, naturalmente, por não suportar qualquer custo com a utilização que é feita pelos operadores de telecomunicações. 34 - Foram assim, incorrectamente interpretados e aplicados os citados preceitos da Portaria 454/2001, de 5 de Maio, da Lei 5/2004, de 10 de Fevereiro e do DL 123/2009, de 21 de Maio. 35 - Chegados a este ponto e tendo a sentença recorrida determinado que a norma constante do n.° 3 do artigo 1.° da Portaria e do contrato de concessão deve ser interpretada no sentido de se aplicar a qualquer actividade desenvolvida pela própria ou por terceiros e apenas consentida pela demandada, haveria ainda que, em cumprimento do artigo 36.° da Portaria e do contrato de concessão no âmbito da resolução do litígio relativo à execução ou a interpretação das cláusulas do contrato de concessão e tendo em consideração a definição do objecto do presente litigio, a saber: Determinação (i) da conformidade, legal e contratual, da utilização das infraestruturas afectas à concessão dos autos (designadamente dos respetivos postes e/ou apoios) pelas operadoras “C.......”, “O.......”, “N.......”, “V.......” e “Z.......”, para efeitos da instalação de meios destinados à prestação de serviços de telecomunicações e, neste âmbito, (ii) do suscitado dever de a Demandada restituir ao Demandante, e em que medida, os valores que auferiu de tais operadoras por via dessa utilização (portanto, consentida pela Demandada), proceder à determinação do alcance da norma assim interpretada e definir de que modo e em que medida deveria a demandada partilhar com o demandante os valores que auferiu das operadoras de telecomunicações, bem como, para o futuro, determinar a necessidade das partes, estabelecerem, por acordo, o valor da compensação devida à Câmara. 36 - Contudo, a sentença recorrida, proferindo decisão que ultrapassa o âmbito da arbitragem, não só analisa a pretensa responsabilidade contratual em que a demandada terá incorrido ao permitir o acesso às infraestruturas por parte das operadoras de telecomunicações, atribuindo uma indemnização ao demandante, como determina, para o futuro, a forma como devem as partes partilhar a referida “receita”, o que configura nulidade da sentença arbitral, nos termos da parte final da alínea iii), do n.° 3, do artigo 46.° da LAV, o que se invoca para todos os efeitos legais. 37 - Quanto à questão da responsabilidade contratual, sem prejuízo da nulidade atrás invocada, logo no que respeita à ilicitude, não podemos concordar com a sentença recorrida, pois a demandada, como atrás se defendeu, não desenvolveu qualquer conduta ilícita. 38 - Na realidade, sendo certo que o património e infraestruturas afectas à concessão não podiam ser utilizadas pela E....... em actividade diferente da que constitui o objecto da concessão, o certo é que a demandada não as utilizou em qualquer outra actividade que não fosse a distribuição de energia eléctrica em baixa tensão. 39 - Contudo, ainda que se viesse a entender o contrário, o que só por dever de patrocínio se admite, haveria então que considerar que a obrigação de obter o acordo do município mediante o pagamento de uma compensação ao demandante se extinguiu com a entrada em vigor do DL 123/2009, de 21 de Maio, na medida que este diploma estabelece, como atrás melhor se desenvolveu, por um lado, e quanto à demandada, uma obrigação de permitir o acesso às referidas infraestruturas que não cede perante a vontade do demandante e por outro, a limitação de apenas auferir uma compensação orientada para os custos, o que impede a cobrança de uma compensação a entregar ao município, o que constitui, em ambos os casos, impossibilidade objectiva, nos termos do artigo 790.° do Código Civil. 40 - Também no que respeita à culpa, parece-nos evidente que a demandada agiu sem culpa ao adoptar uma conduta que lhe foi imposta por lei e cuja inobservância a faria aliás, incorrer em contra-ordenação, punível com coima, nos termos do artigo 89.° do citado DL123/2009. 41 - Quanto ao dano, a nossa divergência é total quanto à sentença recorrida, isto porque o demandante não alegou e muito menos demonstrou a existência de qualquer dano, nem formulou sequer qualquer pedido de indemnização. 42 - Como ensina Antunes Varela A obrigação de indemnizar pode, com efeito, resultar entre outros... do não cumprimento da obrigação... e mais à frente: - A indemnização, no seu sentido rigoroso, compreende apenas as medidas ou providências destinadas a reparar o prejuízo sofrido por outrem com exclusão do que seja a mera realização específica (coactiva) do direito. A entrega judicial ao credor da coisa que lhe é devida ou a restituição coerciva da coisa ao dono que dela foi desapossado não constituem, rigorosamente, uma indemnização. Mas já haverá indemnização, se á entrega da coisa acrescer uma soma destinada a compensar o prejuízo resultante da falta de disponibilidade dela durante o período em que o credor ou o dono esteve ilicitamente privado da sua posse. 43 - Ora, no caso dos presentes autos, a admitir-se que a demandada deve uma compensação ao demandante nos termos do n.° 3 do artigo 1.° da Portaria e do contrato de concessão, no que respeita ao período de 2005 (pedido) até ao presente, o que só por dever de patrocínio aqui se admite, o tribunal arbitral apenas poderia tentar apurar o valor dessa compensação (no que custa a conceder atento o teor do artigo 19.° do DL 123/2009) com base nos factos provados, ou, caso não fosse possível, relegar o apuramento desse valor para execução de sentença. 44 - Mas este valor - esta compensação - a ser devida, não o seria nunca como indemnização, posto que não há prejuízo, mas sim como compensação, prevista na Portaria e no contrato, pelo exercício de actividade diferente da que constitui o objecto da concessão. 45 - Só através do (errado) caminho seguido, pôde o Tribunal Arbitral, arbitrar um valor com base na equidade, nos termos do n.° 3 do artigo 566.° do Código Civil, que na realidade não pode aqui ser convocado, atenta a inexistência de danos (dano emergente ou lucro cessante) por parte do demandante que não os alegou e muito menos provou. 46 - A possibilidade aberta pelo n.° 3 artigo 566.° não dispensa o lesado de demonstrar a existência de danos e de os caracterizar, o que manifestamente não aconteceu, nem podia acontecer, no caso dos autos. 47 - Se vier a transitar a decisão que condena a demandada a compensar o demandante pelo exercício da tal actividade, jamais tal compensação pode ser fixada sem que seja em primeiro lugar tentado o acordo das partes e, em segundo lugar, caso se fruste essa tentativa, sem que se apure o valor admissível dessa compensação, para o que, no entendimento da demandada terá que ser convocada a intervenção da ANACOM, atentos os poderes que, em exclusivo, lhe são concedidos pelo artigo 19.° do DL 123/2009, bem como a da ERSE atenta a complexidade da regulação do sector energético. 48 - Não havendo dano, nada há a dizer quanto ao nexo de causalidade. 49 - Concluindo, no âmbito da responsabilidade contratual, encontram-se ausentes todos os seus pressupostos - ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade - mas, mesmo que se venha a determinar como ilícita a conduta da demandada aqui apelante, o que só por dever de patrocínio se admite, e apesar de a demandada defender que demonstrou não ter agido com culpa, faltaria sempre o pressuposto do dano que foi essencial a toda a construção da sentença recorrida que interpretou e aplicou incorrectamente os artigos 562.°, 563.°, 564.°, 566.°, 790.°, 798.° e 799.° do Código Civil. 50 - A sentença recorrida carece ainda de qualquer fundamentação no que respeita ao fraccionamento da decisão. Isto é, não se encontra claramente fundamentada a decisão de utilizar diferentes critérios conforme os períodos em análise, o que também revela obscuridade da mesma, o que torna a sentença nula por falta de fundamentação e obscuridade nos termos da alínea vi) do n.° 3 do artigo 46.° da LAV e das alíneas b) e c), do n.° 1, do artigo 615.° do CPC 51 - Quanto aos juros, a mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, nos termos do n.º 1 do artigo 804.º do Código Civil. Porém, imperativo se torna que a obrigação exista. Ora, tendo o Tribunal Arbitral recorrido funcionado precisamente com o objectivo de determinar qual o sentido e alcance do n.º 3 do artigo 1.º da Portaria e do contrato de concessão, evidente se torna que só com o trânsito da decisão recorrida se encontrará judicialmente reconhecido o direito do município à referida compensação. 52 - Não se trata portanto da liquidez a que alude o artigo 805.º do mesmo código mas da própria determinação da existência da obrigação, pelo que foram incorrectamente interpretados e aplicados os artigos 804.º a 806.º do Código Civil, pois os juros só poderão ser contabilizados após o trânsito da decisão recorrida. 53 - Quanto à condenação em juros constante do ponto b.2) da parte decisória da sentença, manifestamos incompreensão, pois não se percebe como possa ocorrer uma condenação em juros para o futuro, relativos a prestações que ainda não se encontram vencidas (2017, 2018 ...) com início de contagem na data da prolação da sentença recorrida, pelo que se conclui que sentença é nula por ambígua e obscura nos termos da alínea c) do artigo 615.º do CPC e por condenar em quantidade superior e objecto diferente do pedido, nos termos da alínea v) do n .º 3 do artigo 46.º da LAV e da alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC. 54 - Quanto à prescrição do direito do demandante, importa referir que este formulou um pedido emergente do direito a uma compensação por força do n.º 3, do artigo 1.º do Contrato de Concessão. 55 - Há pois que ter em consideração os períodos reais de utilização dos apoios da rede de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão que atrás foram indicados, tendo consequentemente em consideração que, nos termos da alínea g) do artigo 310.º do Código Civil, se encontra prescrito o direito a exigir o pagamento destas prestações, ou de parte delas, periodicamente renováveis que foram pagas há mais de cinco anos anteriores à propositura da presente acção pelas operadoras de telecomunicações, e recebidas pela demandada, o que se invocou, em devido tempo, para todos os efeitos legais. 56 - A conclusão a que chegou a decisão recorrida quanto aos juros é fruto da construção (errada) a que procedeu configurando o direito do demandante como uma indemnização. 57 - Como compensação, o direito do demandante decorrerá de todas e de cada uma das prestações anuais que a ré aufere das operadoras de telecomunicações, por cada um dos postes por estas utilizados (conforme consta da matéria provada sob a alínea P) que remete para os quadros 6, 7 e 8 da contestação), havendo portanto lugar à aplicação do invocado artigo 310.º do Código Civil como alegado que foi incorrectamente interpretado e aplicado.”. A Recorrente dá por reproduzido o voto de vencido do Árbitro Miguel Pena Machete e pede que o recurso seja julgado procedente. * O Recorrido, Município de Vila Nova de Gaia apresentou contra-alegações, sem apresentar conclusões. Invoca que o recurso não é admissível, pelo que não deve ser admitido, mas, admitindo a possibilidade de o recurso ser convalidado oficiosamente em ação de impugnação, vem deduzir oposição, contrariando o alegado pela Recorrente. * O processo vai, com vistos dos Exmos. Juízes Adjuntos, à Conferência para julgamento.* O processo vai, com vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, à Conferência para julgamento.
II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.
Nos termos invocados pela Recorrente, impõe-se decidir sobre: 1. o recurso jurisdicional interposto contra o acórdão arbitral, com fundamento em causas de nulidade e em erro de julgamento de direito.
Impõe-se ainda apreciar as questões suscitadas pelo Recorrido, respeitantes: 1. ao pedido de desentranhamento do acórdão proferido por este TCAS; 2. à rejeição do recurso jurisdicional interposto contra o acórdão arbitral.
III. FUNDAMENTOS
DE FACTO * No uso dos poderes previstos no artigo 662.º do CPC, adita-se, neste Tribunal ad quem a seguinte factualidade, com relevo para a decisão a proferir: 1. O contrato de concessão de distribuição de energia elétrica em baixa tensão celebrado entre as partes foi renovado em 05/12/2001, prevendo-se no seu artigo 36.º, n.º 1 que qualquer litígio que se levante entre a Câmara e o concessionário sobre a execução ou interpretação das cláusulas do contrato de concessão serão julgados por uma comissão constituída por três árbitros, sendo um nomeado pela Câmara, outro pelo concessionário e o terceiro por acordo dos outros dois, em conformidade com o estabelecido na Portaria n.º 454/2001 de 5/05 – acordo e cfr. acórdão arbitral; 2. No dia 3 de março de 2015 o Município de Vila Nova de Gaia solicitou a constituição do Tribunal Arbitral – cfr. acórdão arbitral; 3. Em 01/09/2015 foi aprovado o Regulamento de Arbitragem aplicável ao litígio, constando do teor, de entre o mais o seguinte: «imagem no original» (…)” – vide documento n.º 2 junto com a oposição, constante a fls. 194 e segs. dos autos. DE DIREITO Considerada a factualidade fixada, importa, agora, entrar na análise das questões objeto do presente recurso jurisdicional, suscitadas pelo Recorrente e pelo Recorrido, segundo a sua ordem lógica e prioritária de conhecimento.
1. Do desentranhamento do acórdão proferido por este TCAS
2. Da rejeição do recurso jurisdicional interposto contra o acórdão arbitral * Cumpre agora decidir se se verificam os fundamentos para a ação de anulação do acórdão arbitral, invocados pela Recorrente.3. Da ação de anulação Para além dos fundamentos do recurso, respeitantes ao mérito da causa, relativos ao erro de julgamento do acórdão arbitral, a Recorrente invocou diversas causas de anulação, nos termos do disposto no artigo 46.º da LAV, aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14/12, aplicável ao presente litígio, nos termos do n.º 1 do seu artigo 4.º. Como antes decidido no Acórdão deste TCAS, de 12/09/2013, Processo 01570/06, “as causas de anulação da decisão arbitral reportam-se à relação processual de arbitragem e não à relação substantiva aí pleiteada ou seja, os fundamentos para a propositura de uma acção de anulação da decisão arbitral são exclusivamente de índole adjectiva ou processual”, ou seja, “o enfoque quanto ao âmbito de conhecimento da presente lide desloca-se da relação jurídica material litigiosa, decorrente do thema decidendum, existente em momento prévio à constituição da instância arbitral, para a relação jurídica processual, decorrente da própria instância arbitral, incidindo quanto à validade formal da decisão arbitral.”. A principal diferença entre a designada impugnação e o recurso reside no facto de neste ser “o próprio mérito da sentença arbitral, o seu sentido ou efeito, que é posto em causa, por os árbitros terem cometido um error in iudicando, um erro de julgamento (de facto ou de direito), independentemente de ele respeitar ao fundo da causa, às leis substantivas aí (des)aplicadas ou, antes, aos respectivos pressupostos processuais (às leis adjectivas ) - pretendendo o recorrente portanto que, em vez da sentença “condeno”, o tribunal decida “absolvo”, que, em vez de declarar prescrito o direito accionado, o julgue ainda susceptível de exercício, que, em vez de considerar a acção extemporânea e inadmissível, a dê como tempestiva e admissível. Na impugnação, pelo contrário, não se discute (senão indirectamente, claro) o sentido da sentença - se a condenação é devida, a prescrição verificada, a propositura da acção tempestiva - , discutem-se, sim, os vícios do percurso, do processo, que levou os árbitros até à sentença; é um error in procedendo que está agora em causa, isto é, por exemplo, se o litígio era arbitrável, se as regras do contraditório foram observadas, se a sentença vem assinada pelos árbitros cujo voto contribuiu para formar a maioria que a aprovou (ou pela maioria dos árbitros, qualquer uns, se isso se admitir (…).” (Mário Esteves de Oliveira e et alii, op. cit., pág. 546). Além do mais, acolhe-se a interpretação que admite, sob o mesmo impulso processual da parte vencida na decisão arbitral, a alegação de fundamentos de recurso jurisdicional e de fundamentos de anulação da decisão arbitral, tratando de forma unitária as vias de impugnação da decisão arbitral, sem prejuízo da submissão a regras de direito diferenciadas de cada um desses meios de impugnação, como no tocante aos seus respetivos requisitos de admissibilidade. Neste sentido, “As partes podem recorrer (quando esta hipótese esteja contratualizada), podem intentar ação de anulação e podem usar de ambos os meios em simultâneo” e “No recurso podem invocar, também, fundamentos de anulação, na anulação, só podem invocar as causas previstas no art.º 46º” (António Menezes Cordeiro, op. cit., pp. 437). Este entendimento mostra-se acolhido em diversa jurisprudência, de entre a qual, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (TRP), de 06/02/2020, Processo 20/20.9YRPRT, segundo o qual: “o recurso da sentença arbitral, quando seja admissível, pode ter como fundamento também as nulidades da sentença. Desde logo porque no âmbito do processo judicial é exactamente assim que sucede: a parte pode suscitar no recurso as nulidades da sentença recorrida, só o devendo fazer em requerimento autónomo dirigido ao juiz que proferiu a sentença nos casos em que a sentença não admita recurso (artigo 617.º do Código de Processo Civil). Se isso é assim no recurso de uma sentença judicial, deve ser por identidade de razões (talvez mesmo, por maioria de razão) no recurso de uma sentença arbitral já que a LAV prevê a possibilidade de o tribunal judicial conhecer das nulidades da sentença arbitral (independentemente do modo) anulando a sentença se para tal houver razões, e o recurso da sentença arbitral é igualmente um recurso jurisdicional, não se vislumbrando razões para que o seu objecto seja menos amplos precisamente numa situação em que é necessário que ele seja pelo menos. tão amplo quanto no comum das situações. Depois porque a própria LAV prevê uma situação em que as nulidades da sentença arbitral são afinal arguidas e conhecidas não por via de acção mas por via de excepção. Referimo-nos à possibilidade de o condenado na sentença arbitral se opor à execução desta sentença «com qualquer dos fundamentos de anulação da sentença previstos no n.º 3 do artigo 46.º» (artigo 48.º da LAV). Ainda que essa possibilidade esteja dependente da circunstância de ainda não ter decorrido o prazo para a apresentação do pedido de anulação da sentença (n.º 2) ou, tendo decorrido já esse prazo, de ter sido instaurada a acção de anulação e o pedido não ter ainda sido rejeitado por sentença transitada em julgado (n.º 1), certo é que é a própria LAV a permitir que os fundamentos de nulidade da sentença arbitral possam ser invocados pela parte não por via de acção (através da instauração de uma acção judicial cuja pedido seja a anulação) por via de excepção (como meio de defesa a uma pretensão que se funda na sentença inválida e, portanto, como forma de neutralização do caso julgado formado pela sentença e da sua exequibilidade). Ainda, porque a consagração de uma acção especial de anulação da sentença arbitral pelo artigo 46.º da LAV tem uma razão de ser que nada tem a ver com a necessidade de a anulação ser deduzida numa acção autónoma. O que justifica a previsão do artigo 46.º da LAV é o facto de a sentença arbitral não admitir, em regra, recurso e por isso não haver, em regra, uma forma de as partes suscitarem a questão da nulidade da sentença. A acção de anulação surge assim como a forma normal, regular, sempre disponível e irrenunciável, de suscitar os vícios da sentença arbitral. Uma vez que o artigo 45.º da LAV apenas permite às partes suscitar perante o tribunal arbitral a rectificação de erro de cálculo, erro material, erro tipográfico ou outro erro de natureza idêntico ou o esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade da sentença ou dos seus fundamentos, na maioria das situações, não havendo recurso, não haveria forma de arguir as nulidades da sentença, apesar da relevância que esse vício possa ter sobre o conteúdo da sentença e a sua força vinculativa. É por isso que o legislador se ocupou de criar uma outra possibilidade e uma forma específica para arguir os vícios da sentença arbitral. O que significa que esta forma específica para a suscitação dos vícios visa aumentar a protecção de que gozam as partes, não reduzi-la, logo é perfeitamente compatível com outros meios processuais de arguição das nulidades. Por fim, porque a própria redacção do n.º 1 e do n.º 3 do artigo 46.º da LAV apontam nesse sentido. Ao estabelecer que «salvo se as partes tiverem acordado em sentido diferente, ao abrigo do n.º 4 do artigo 39.º, a impugnação de uma sentença arbitral perante um tribunal estadual só pode revestir a forma de pedido de anulação, nos termos do disposto no presente artigo», a norma pretende dizer que podendo ser interposto recurso a impugnação da sentença arbitral não tem de ser feita através da acção autónoma de anulação. Por sua vez o que o n.º 3 afirma é que «a sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual se …», não é que «o tribunal estadual só pode julgar procedente a acção de anulação se…»”. Nestes termos, nada obsta a que se conheçam das causas de anulação do acórdão arbitral invocadas na presente impugnação, nos termos previstos no artigo 46.º da LAV. Vejamos. Nos termos das conclusões de recurso, alicerçadas na respetiva alegação recursiva, vem a impugnante dirigir causas de nulidade contra o acórdão arbitral, proferido no âmbito da arbitragem necessária ad hoc promovida pelo Município de Vila Nova de Gaia, nos termos do artigo 36.º do Contrato de Concessão de Distribuição de Energia Elétrica em Baixa Tensão, ao abrigo da Portaria n.º 454/2001 de 05/05, que fixa os termos do contrato de concessão tipo. Nos termos do artigo 46º, n.º 3 da Lei n.º 63/2011 de 14/12, “A sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se: a) A parte que faz o pedido demonstrar que: (…) iii) A sentença se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam o âmbito desta; ou (…) v) O tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento ou deixou de pronunciar-se sobre questões de que não podia tomar conhecimento ou deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar; vi) A sentença foi proferida com violação dos requisitos estabelecidos nos n.ºs 1 e 3 do artigo 42.º; (…)”. Como tem sido reconhecido de forma generalizada, o artigo 46.º, n.º 3 da LAV procede a um elenco taxativo de fundamentos de anulação da decisão arbitral (cfr. A. Menezes Cordeiro, op. cit., pp. 439 e doutrina e jurisprudência aí citadas). Assim sendo, em face da formulação dos fundamentos de anulação previstos no artigo 46.º, n.º 3 da LAV, é dispensável convocar a norma do artigo 615.º do Código de Processo Civil, que estabelece os casos em que as sentenças dos tribunais estaduais são nulas, por a LAV regular de modo próprio os fundamentos da ação de anulação, não obstante a coincidência de alguns dos seus fundamentos. Por esse motivo, atenta a construção e desenvolvimento, doutrinário e jurisprudencial, relativos às causas de nulidade da sentença, é de reconhecer a relevância do citado preceito da lei processual civil, como reconhecido no citado Acórdão do TRP, de 06/02/2020: “na medida em que os fundamentos de nulidade sejam decalcados da previsão do artigo 615.º do Código de Processo Civil esta conclusão não parece impedir que o tribunal possa usar o contributo desta norma para interpretar e aplicar o disposto no n.º 3 do artigo 46.º da LAV, não descurando nunca as especificidades dos tribunais arbitrais e das sentenças arbitrais, mas essencialmente a razão de ser na previsão legal”. Pelo que importa apreciar as causas de anulação do acórdão arbitral impugnado, nos termos invocados pelo Recorrente. 3.1. Do fundamento de anulação previsto no artigo 46º, n.º 3, a), iii) da LAV A ora Impugnante considera que o acórdão arbitral incorreu na nulidade prevista no artigo 46º, n.º 3, a), iii) da LAV, nos termos da qual aquele deverá ser anulado se se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam o âmbito desta. Alega a impugnante que, “tendo a sentença recorrida determinado que a norma constante do n.º 3 do art.º 1º da Portaria e do contrato de concessão deve ser interpretada no sentido de se aplicar a qualquer atividade desenvolvida pela própria ou por terceiros e apenas consentida pela demandada, haveria ainda que, em cumprimento do artigo 36º da Portaria e do contrato de concessão no âmbito da resolução do litígio relativo à execução ou a interpretação das cláusulas do contrato de concessão e tendo em consideração a definição do objeto do presente litigio, a saber: Determinação (i) da conformidade, legal e contratual, da utilização das infraestruturas afetas à concessão dos autos (designadamente, dos respetivos postos e/ou apoios) pelas operadoras “C.......”, “O.......”, “N.......”, “V.......” e “Z.......”, para efeitos da instalação de meios destinados à prestação de serviços de telecomunicações - e, nesse âmbito, (ii) do suscitado dever de a Demandada restituir ao Demandante, e em que medida, os valores que auferiu de tais operadoras por via dessa utilização (portanto, consentida pela Demandada), proceder à determinação do alcance da norma assim interpretada e definir de que modo e em que medida deveria a demandada partilhar com o demandante os valores que auferiu das operadoras de telecomunicações, bem como, para o futuro, determinar a necessidade das partes, estabelecerem, por acordo, o valor da compensação devido à Câmara”. Sustenta que o acórdão arbitral ultrapassa o âmbito da arbitragem, pois não só analisa a pretensa responsabilidade contratual em que a demandada terá incorrido ao permitir o acesso às infraestruturas por parte das operadoras de telecomunicações, atribuindo uma indemnização ao demandante, como determina, para o futuro, a forma como devem as partes partilhar a referida “receita”. Vejamos. Nos termos da convenção de arbitragem celebrada entre as partes as mesmas decidiram submeter a arbitragem qualquer litígio que viesse a surgir entre o Município de Vila Nova de Gaia e a então, E......., Distribuição – Energia S.A., sobre a execução ou interpretação das cláusulas do contrato de concessão. Os termos como as partes convencionarem regular os litígios emergentes do contrato de concessão celebrado são suficientemente amplos para abranger qualquer litígio que emerja da execução ou da interpretação das cláusulas do contrato. Além disso, o objeto da arbitragem, tal como definido no acórdão arbitral é o da “Determinação (i) da conformidade, legal e contratual, da utilização das infraestruturas afetas à concessão dos autos (designadamente, dos respetivos postos e/ou apoios) pelas operadoras “C.......”, “O.......”, “N.......”, “V.......” e “Z.......”, para efeitos da instalação de meios destinados à prestação de serviços de telecomunicações - e, nesse âmbito, (ii) do suscitado dever de a Demandada restituir ao Demandante, e em que medida, os valores que auferiu de tais operadoras por via dessa utilização (portanto, consentida pela Demandada)”, pelo que, é de entender que a pronúncia do tribunal arbitral, constante da sua respetiva fundamentação e na concreta decisão condenatória, se compreende no âmbito da interpretação e execução do contrato de concessão em causa. Concretamente, respeita a condenação da ora impugnante, nos exatos termos decididos no acórdão arbitral, à interpretação e execução do disposto do artigo 1.º, n.º 3 do contrato de concessão, nos termos do qual “O património e infraestruturas afetos à concessão não poderão ser utilizados pelo concessionário em atividades diferentes daquelas que constituem objeto da concessão, sem que haja sido acordado entre as partes o valor da compensação devida à Câmara.”. Além de o objeto do litígio ter sido fixado em conformidade com o pedido formulado, do mesmo se destacando: - a determinação do valor que a E....... Distribuição auferiu pela utilização das referidas infraestruturas como infraestruturas aptas ao alojamento de redes de telecomunicações que constituem objeto da concessão, desde o início da sua utilização até à data da decisão do tribunal arbitral; * Em consequência, em face do exposto, será de não conhecer do objeto do recurso, por inadmissibilidade, e em julgar improcedentes os fundamentos de anulação do acórdão arbitral.* Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma: I. Extraindo-se do contrato de concessão celebrado entre as partes e da Portaria n.º 454/2001, de 05/05, que aprovou o “novo contrato tipo de concessão de distribuição de energia elétrica em baixa tensão”, que os litígios emergentes sobre a execução e interpretação das cláusulas do contrato serão julgados por uma comissão composta por três árbitros, sem que as partes tenham convencionado a possibilidade de interposição de recurso do acórdão arbitral para o tribunal estadual, antes tendo acordado que o litígio é julgado segundo as regras do processo constantes do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, em vigor desde 01/03/2014 e que é subsidiariamente, a Lei de Arbitragem Voluntaria (LAV), aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14/12, resulta do conjunto das regras processuais escolhidas “ab initio”, que o recurso não é admissível. II. No que se refere à LAV, aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14/12, por as partes não terem previsto expressamente a possibilidade recurso, a decisão arbitral também não é suscetível de recurso (artigo 39.º, n.º 4 da LAV), sendo a decisão apenas suscetível de ser anulada, nos termos do artigo 46.º da LAV. III. Vigorando à data da celebração da convenção de arbitragem o regime plasmado no artigo 29.º da Lei n.º 31/86, de 29/08 (LAV), que estabelecia a regra da recorribilidade da decisão arbitral para os tribunais estaduais, a que as partes poderiam renunciar (sendo que a autorização dada aos árbitros para julgarem segundo a equidade equivaleria a essa renúncia), a regra que veio a ser consagrada na Lei n.º 63/2011, de 14/12, é oposta à que anteriormente vigorava. IV. O artigo 4.º, n.º 3 da Lei n.º 63/2011, de 14/12, definiu regras de aplicação da lei no tempo, mantendo o direito ao recurso da decisão arbitral que assistia segundo a Lei n.º 31/86, de 29/09, vigente à data da celebração da convenção de arbitragem. V. Ainda que o processo arbitral tenha decorrido ao abrigo da lei nova, se a convenção arbitral foi celebrada antes de 14 de março de 2011, a lei aplicável em matéria de recursos é a lei velha, lei que seria aplicada caso o processo arbitral houvesse decorrido ao abrigo dessa lei. VI. Porém, como as partes acordaram no início do processo arbitral que o litígio é julgado segundo as regras do processo constantes do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, em vigor desde 01/03/2014 e que é subsidiariamente, a Lei de Arbitragem Voluntaria (LAV) em vigor, está excluído o direito ao recurso. VII. As causas de anulação da decisão arbitral reportam-se à instância processual de arbitragem e não à relação substantiva, pelo que os fundamentos da ação de anulação são exclusivamente de índole adjetiva ou processual. VIII. Sob o mesmo impulso processual da parte vencida na decisão arbitral, é de admitir a alegação de fundamentos próprios do recurso jurisdicional e de fundamentos próprios da ação de anulação da decisão arbitral, tratando de forma unitária as vias de impugnação da decisão arbitral, sem prejuízo da submissão a regras de direito diferenciadas de cada um desses meios de impugnação. IX. As partes podem usar, em simultâneo, ambos os meios de impugnação da decisão arbitral. X. O artigo 46.º, n.º 3 da LAV procede a um elenco taxativo de fundamentos de anulação da decisão arbitral. XI. Em face da formulação dos fundamentos de anulação previstos no artigo 46.º, n.º 3 da LAV, é dispensável convocar a norma do artigo 615.º do CPC, que estabelece os casos em que as sentenças dos tribunais estaduais são nulas, por a LAV regular de modo próprio os fundamentos da ação de anulação. XII. Porém, atenta a construção e desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial em torno das causas de nulidade da sentença, é de reconhecer a relevância do disposto no artigo 615.º do CPC, na medida em que os fundamentos de anulação da decisão arbitral sejam decalcados da previsão dessa norma, sem prejuízo das especificidades dos tribunais arbitrais e das sentenças arbitrais. XIII. Não procedem as causas de anulação previstas no artigo 46.º, n.º 3, a), iii), v) e vi) da LAV, se o acórdão arbitral decide sobre questão abrangida pela convenção de arbitragem, não ultrapassando o seu âmbito, não condena em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, não conhece de questões de que não podia tomar conhecimento, nem incorreu em falta de fundamentação. * Custas pela Recorrente. Registe e Notifique. A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 01/05, tem voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, respetivamente, os Desembargadores, Pedro Marchão Marques e Alda Nunes. (Ana Celeste Carvalho - Relatora) |