Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:08958/12
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:04/16/2015
Relator:HELENA CANELA (por vencimento)
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRA-CONTRATUAL - BOM NOME
Sumário:I – As disposições conjugadas dos artigos 6º e 2º nº 1 do DL. nº 48.051, têm aptidão para abranger situações de ilicitude que, nos termos gerais, se subsumem à sua previsão normativa, por referência à violação de normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis ou de regras de ordem técnica e de prudência comum com ofensa de posições jurídicas subjetivas de outrem.

II – Se a conduta da PSP causou ofensa à honra e bom nome do autor, enquanto direito de personalidade juridicamente tutelado, tal basta para se ter por verificado o requisito de ilicitude, caindo na hipótese normativa ínsita no artigo 6º do DL. nº 48.051.

III – O disposto no artigo 484º do Código Civil (de acordo com o qual “quem afirmar ou difundir facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou coletiva, responde pelos danos causados”) não implica que o conceito de ilicitude acolhido no artigo 6º do DL. nº 48.051 para efeitos de responsabilidade civil extracontratual do Estado sofra aqui qualquer restrição, espartilhamento ou mesmo exclusão.

IV – Na aceção mais ampla da causalidade adequada, que é de acolher, o artigo 563º não exige a exclusividade do facto condicionante do dano (no sentido que só esse facto tenha determinado o dano), admitindo que outros factos, contemporâneos ou posteriores, possam ter também concorrido para a sua produção.


V - Se é verdade que as conversas, comentários ou juízos feitos pelas pessoas em geral ultrapassam a esfera do lesante, como o ultrapassam o modo como foram veiculadas as notícias nos diversos meios de comunicação social, o certo é que os mesmos se fundaram nos factos que foram constatados (que se vieram a revelar errados) e divulgados pela PSP, e esses sem dúvida lhe são imputáveis. Não podendo, então, deixar de considerar-se consequência normal os danos verificados, pelo menos em certa medida, até por apelo aos critérios de normalidade e razoabilidade e mesmo de experiência comum.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO
O Estado Português, representado pelo Ministério Público, réu na ação administrativa comum sob a forma de processo ordinário instaurada no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal (Proc. nº 139/06.9BEFUN) por Rui …………………… (devidamente identificado nos autos), no qual peticionou a condenação daquele no pagamento da quantia global de 77 245,79 €, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento, e ainda os danos futuros que vieram a revelar-se, a fixar em execução de sentença, inconformado com a sentença de 23/02/2012, daquele Tribunal, pela qual, julgada parcialmente procedente a ação foi o réu Estado Português condenado a pagar ao autor a quantia de 40.000,00 € a título de indemnização por danos morais, bem como aquilo que se vier a liquidar em execução de sentença pelos danos patrimoniais referidos nos factos R) e T), acrescidos de juros de mora desde a citação até integral e efetivo pagamento, vem dela interpor o presente recurso, pugnando pela revogação da sentença recorrida e sua substituição por outra que julgue totalmente improcedente o pedido formulado pelo Autor.

Nas suas alegações o Recorrente formula as seguintes conclusões nos seguintes termos:
«1.º A sentença recorrida omite por completo a operação de julgamento da matéria de facto essencial para a apreciação da questão analisada e decidida pelo que, por falta de fundamentação de facto e por ter violado o disposto nos artigos 653º, nº2 e 659º, nº3 do CPC, é nula nos termos do art.668º, nº l, al. b) do mesmo Código.

2.º E a sentença sob recurso enferma ainda do vício de contradição entre os fundamentos e a decisão o que acarreta a sua nulidade face ao disposto no art. 668.º, nº l, al. c) do CPC.

3.º Perante o pedido formulado nos autos - indemnização com fundamento em facto ilícito - é aplicável, ao caso, a regra geral da responsabilidade civil extracontratual do Estado, por facto ilícito, tal qual é definida no Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967.

4.º A responsabilidade civil extracontratual do Estado e pessoas colectivas, por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes, assenta nos pressupostos da idêntica responsabilidade prevista na lei civil, que são o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o prejuízo ou dano, e o nexo de causalidade entre este e o facto.

5° No caso em apreço, as forças policiais adaptaram todos os procedimentos adequados, quer ao realizar o teste rápido ao produto apreendido (pelo menos nada se provou em contrário), quer na comunicação efectuada aos órgãos de comunicação social no contexto dos procedimentos de informação.

6º De facto, a própria sentença reconhece que "a PSP informou os media apenas de que o teste rápido dera o produto apreendido no automóvel como sendo heroína, sem identificar os ocupantes do veículo" (facto S). Não está portanto provado que tenha sido a PSP a identificar o A.

7.º Perante os factos provados nos autos é de concluir pela inexistência de ilicitude e de culpa.

8.° Claudica, de igual forma, o pressuposto do nexo de causalidade, pois, os factos provados não permitem formular qualquer juízo de imputação dos eventuais prejuízos à actuação dos elementos da P.S.P.

9° Assim, e pelo exposto, entendemos que o Réu Estado deve ser absolvido do pedido.

10º Tendo a sentença agora posta em crise violado a Lei, nomeadamente os artigos 2.º nº l e 6.º do DL 48051, de 21 de Novembro de 1967.

11.º Quando assim se não entenda e, sempre sem conceder, deverá o valor da indemnização, nomeadamente por danos não patrimoniais, fixado em €40.000,00, ser substancialmente reduzido.»


Notificado o Recorrido contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso, com manutenção do decidido na sentença recorrida, tendo formulado ali as seguintes conclusões, nos seguintes termos:

«1. A sentença recorrida bem esteve contém todas as razões de facto e de direito, ainda que de forma sucinta, que demonstra claramente por que se decidiu naquele sentido.

2. O Mmº Juíz a quo, e na douta sentença proferida, identifica com suficiência e clareza os motivos, causas ou pressupostos da sua decisão;

3. A sentença recorrida não enferma de qualquer vício de contradição entre os fundamentos e a decisão, não se verificando qualquer nulidade, devendo por isso ser mantida;

4. Encontram-se preenchidos todos os requisitos ou pressupostos do dever de indemnizar do Estado Português por facto ilícito, previsto nos artºs 2º e 6º do DL 48051 de 22.11.67, bem como nos termos do art. 483º, 487º e 493º nº1 do Código civil., culpa essa por parte da PSP por negligência dos seus órgãos ou agentes;

5. Existe nexo de causalidade entre a conduta objectiva da PSP e os danos referidos e sofridos pelo apelado, na medida em que a actuação da PSP na comunicação efectuada aos meios de comunicação social não foi feita com cuidado, sem reserva pela identificação das partes envolvidas, e sem a certeza dos resultados obtidos, gerou alarme social e teve as suas consequências na esfera pessoal e patrimonial do apelado.

6. Estamos perante um facto ilícito, culposo


Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos à Conferência para julgamento.


*
II. DA DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO (das questões a decidir)
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 144º nº 2 e 146º nº 4 do CPTA e dos artigos 660º nº 2, 664º, 684º nºs 3 e 4 e 690º do CPC antigo (correspondentes aos artigos 5º, 608º nº 2, 635º nºs 4 e 5 e 639º do CPC novo, aprovado pela Lei n.º 41/013, de 26 de Junho) ex vi dos artigos 1º e 140º do CPTA.
No caso, em face dos termos em que foram enunciadas as conclusões de recurso pelo recorrente, são colocadas a este Tribunal as seguintes questões:

1. - saber se a sentença recorrida é nula:

- nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 668º do CPC (antigo), por falta de fundamentação de facto e por ter violado o disposto nos artigos 653º, nº2 e 659º, nº3 do CPC - (conclusão 1ª das alegações de recurso);

- nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 668º do CPC (antigo), por contradição entre os fundamentos e a decisão - (conclusão 2ª das alegações de recurso);

2. - saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento (de direito), por perante os factos provados nos autos ser de concluir pela inexistência de ilicitude e de culpa bem como do pressuposto do nexo de causalidade, por os factos provados não permitirem formular qualquer juízo de imputação dos eventuais prejuízos à atuação dos elementos da P.S.P., devendo o Estado Português ter sido absolvido do pedido indemnizatório, e se ao decidir como decidiu a sentença recorrida fez errada interpretação dos artigos 2º nº 1 e 6º do DL. nº 48051, de 21 de Novembro de 1967 – (conclusões 3ª a 10ª das alegações de recurso).

3. - saber se em vez dos 40.000,00 € de indemnização por danos não patrimoniais fixados na sentença recorrida, deve o valor de tal indemnização ser reduzido, com fixação de montante substancialmente inferior – (conclusão 11ª das alegações de recurso).

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III. FUNDAMENTAÇÃO
A – De facto
Na sentença recorrida foi dada como provada a seguinte factualidade, nos seguintes termos:
«Do saneador

A) A 8 de Fevereiro de 2005, o A. sofreu um acidente de viação pelas 13h50 na ER 101, no sentido …………- …………...

B) Na altura fazia-se acompanhar pelo seu irmão, que veio a falecer.

C) Após todas as demais diligências para assistência aos feridos.

D) Os agentes da PSP, ao procurar dentro da viatura os elementos de identificação do condutor, ora A., encontraram dentro da sua carteira do condutor, um produto "de cor castanho claro embrulhado num papel branco" (doc.1).

E) Os agentes em questão deslocaram-se à esquadra da PSP de ……………, onde procederam ao “Teste rápido de detecção de produto de estupefaciente, do tipo "A", reagente "Marques"”, tendo o mesmo dado positivo.

F) O qual, após pesagem, apresentou o peso de 0,55gr.

G) Tal "apreensão" foi noticiada nos meios de comunicação, nomeadamente no Diário de Notícias e Jornal da Madeira, no dia 10 de Fevereiro de 2005 (doc.2).

H) Após a análise e observação do referido produto constatou-se que era heroína.

I) O A. encontrava-se ferido.

J) Contudo, já posteriormente, ao ter conhecimento da situação, não aceitou, dado que nunca foi nem consumidor, nem tão pouco traficante.

L) Efectivamente aquele era um pó do A., mas não era drogas.

M) Era pó da ervanária, que lhe tinham aconselhado a usar na carteira para afastar "invejas" e "maus-olhados",

N) Não era, nem nunca foi, pó estupefaciente.

O) Efectivamente após a análise laboratorial pelo laboratório da Polícia Científica (LPC) da Polícia Judiciária em Lisboa, constataram que não se tratava de droga.

P) Aliás, tal foi também noticiado no Diário de Notícias e Jornal da Madeira no dia 4 de Agosto de 2005.

Q) Vindo inclusive o Comando Regional a esclarecer.

R) Desde a data do acidente até à presente, o A. vê a sua clientela diminuída, perdendo desse modo receitas.

Das respostas à base instrutória

S) O A. começou a ser rotulado de "drogado" e "traficante" em consequência das notícias publicadas, sendo que a PSP informou os media apenas de que o teste rápido dera o produto apreendido no automóvel como sendo heroína, sem identificar os ocupantes do veículo.

T) Inclusive o A., que possuía uma empresa de construção, começou a perder clientes devido a fama que possuía.

U) O seu próprio filho, que tinha apenas 12 anos, era apontado na escola como o filho do drogado.

V) O que tem gerado grande sofrimento em toda a família.

X) O A., em virtude das calúnias que foi alvo, tinha vergonha de sair à rua pois era apontado.

Z) Por causa desta situação, o A. teve de ir a médicos, incluindo um psiquiatra.

AA) O A., antes do acidente, auferia em part-time nos fins de semanas, em trabalhos de pintura de residências, uma média de € 200,00 (duzentos euros), mensais.»

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B – De direito
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1. Da nulidade da sentença
Das questões de saber se a sentença recorrida é nula:

- nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 668º do CPC (antigo), por falta de fundamentação de facto e por ter violado o disposto nos artigos 653º, nº2 e 659º, nº3 do CPC - (conclusão 1ª das alegações de recurso);

- nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 668º do CPC (antigo), por contradição entre os fundamentos e a decisão - (conclusão 2ª das alegações de recurso).

Começa o recorrente por invocar que a sentença recorrida se limitou a dar determinados factos como provados, mas não especifica os factos não provados e nada explica ou diz quanto à convicção do julgador face à prova testemunhal produzida, assim violando o disposto nos artigos 653º nº 2 e 659º nº 3, ambos do CPC (antigo), sendo nula face ao estatuído no artigo 668º nº 1, alínea b) do mesmo Código.
E invoca ainda que é absolutamente contraditório dizer que a PSP não identificou os ocupantes (da viatura sinistrada) e simultaneamente afirmar que violou o direito ao crédito e ao bom nome do autor, havendo uma real contradição entre os fundamentos e a decisão, já que a fundamentação aponta num sentido e a decisão condenatória segue o caminho oposto, acarretando a nulidade da sentença nos termos previsto no artigo 668º nº 1, alínea c) do CPC (antigo).
Vejamos.
Importa antes do mais explicitar que à data em que foi prolatado a sentença recorrida (23/02/2012) se encontrava em vigor o CPC antigo (anterior ao CPC novo aprovado pela Lei nº 41/2013), pelo que é à luz do quadro normativo em vigor à data, decorrente daquele CPC (em aplicação supletiva do CPTA - cfr. artigos 1º, 35º e 41º do CPTA), que deve ser dada resposta à questão da nulidade da sentença submetida em recurso a este Tribunal, conforme decorre do artigo 142º nº 1 do CPC antigo, em vigor à data, correspondente ao artigo 136º nº 1 do CPC novo (aprovado pela Lei nº 41/2013), ex vi do artigo 1º do CPTA.
As situações de nulidade da sentença encontram-se legalmente tipificadas no artigo 668º nº 1 do CPC antigo (correspondente ao artigo 615º nº 1 do CPC novo, aprovado pela Lei nº 41/2013), cuja enumeração é taxativa, comportando causas de nulidade de dois tipos, as de carácter formal (alínea a)) e as respeitantes ao conteúdo da decisão (alíneas b) a e)).
Dispõe, assim, o nº 1 daquele artigo 668º do CPC artigo, o seguinte: “É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar -se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”

Na sentença recorrida o Tribunal a quo, julgando parcialmente procedente a ação, condenou o réu Estado Português “a pagar ao autor a quantia de 40.000,00 € a título de indemnização por danos morais, bem como aquilo que se vier a liquidar em execução de sentença pelos danos patrimoniais referidos nos factos R) e T), acrescidos de juros de mora desde a citação até integral e efetivo pagamento” (cfr. respetivo segmento decisório).
Decisão que, considerando a matéria de facto nela foi elencada, assentou na seguinte fundamentação, assim vertida na sentença recorrida, que se passa a transcrever:




















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Em sintonia com o comando constitucional inserto no artigo 205º nº 1 da CRP dispõe o artigo 158º do CPC antigo sob a epígrafe “dever de fundamentar a decisão” (correspondente ao artigo 154º do CPC novo), que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas” (nº 1), não podendo a justificação consistir “na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição” (nº 2).
A fundamentação das decisões jurisdicionais, para além de visar persuadir os interessados sobre a correção da solução legal encontrada pelo Estado, através do seu órgão jurisdicional, tem como finalidade elucidar as partes sobre as razões por que não obtiveram ganho de causa, para as poderem impugnar perante o tribunal superior, desde que a sentença admita recurso, e também para este tribunal poder apreciar essas razões no momento do julgamento.
Mas, como é consensual na Doutrina e na Jurisprudência, a falta de motivação (quer de facto quer de direito) suscetível de integrar a nulidade de sentença a que se reporta a alínea b) do nº 1 do artigo 668º do CPC antigo (correspondente ao atual artigo 615º) é apenas a que se reporta à falta absoluta de fundamentos (vide, entre outros, os Acórdãos do STA de 14/07/2008, Proc. n.º 510/08; de 03/12/2008, Proc. n.º 540/08; de 01/09/2010, Proc. n.º 653/10; de 07/12/2010, Proc. n.º 1075/09; de 02/03/2011, Proc. n.º 881/10; de 07/11/2012, Proc. n.º 1109/12; de 29/01/2014, Proc. n.º 1182/12; de 12/03/2014, Proc. n.º 1404/13, in, www.dgsi.pt/jsta). Para que se esteja perante falta de fundamentos de facto geradores da nulidade de sentença é mister que o juiz omita totalmente a especificação dos factos que hão-de suportar a decisão que profere. Só aí se estará perante falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão a que alude a alínea b) do nº 1 do artigo 668º do CPC (antigo).
É certo que de harmonia com o disposto no artigo 659º do CPC antigo (correspondente ao artigo 607º do CPC novo), aplicável aos Tribunais Administrativos ex vi do artigo 1º do CPTA, na sentença o juiz “começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar (nº 1), seguindo-se os fundamentos, “devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final (nº 2). Devendo ainda, no que tange à fundamentação de facto, tomar em consideração“os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito … fazendo o exame crítico das provas de que lhe cumpre conhecer” (nº 3).
Ora como é bom de ver na sentença recorrida foram elencados os factos provados, os quais resultaram, como decorre da autonomização ali feita, quer da matéria de facto dada como assente no despacho proferido em sede de audiência preliminar efetuada em 16/12/2008 (cfr. ata de fls. 308 ss.), quer do julgamento feito pelo juiz do processo, após audiência de discussão e julgamento levada em cabo em duas sessões (em 15/01/2009 e 11/02/2009 - cfr. respetivas atas de fls. 326 ss. e fls. 333 ss.), quanto aos factos que haviam sido levados à Base Instrutória, que vieram a merecer a resposta lavrada a fls. 335 ss., com base na convicção formada pelo Tribunal a quo nos termos ali externados na respetiva motivação, que foi lida em 12/02/2009 (cfr. ata de fls. 337 ss.).
O que significa que o processualismo que foi seguido pelo Tribunal a quo quanto à seleção e julgamento da matéria de facto foi o então previsto no CPC antigo, em vigor à data, designadamente nos seus artigos 508º-A, 511º, 652º e 653º, aplicável à presente ação ex vi do artigo 35º nº 1 do CPTA. Tendo o despacho pelo qual foi dada resposta aos artigos da Base Instrutória (lavrado a fls. 335 ss.), com o qual foi feito o julgamento da matéria de facto, observado e cumprido o disposto no nº 3 do artigo 653º do CPC (antigo).
Mostrando-se a sentença recorrida fundamentada, de facto e de direito, tem de concluir-se não merecer provimento o recurso nesta parte, não se verificando a invocada nulidade da sentença prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 668º do CPC (antigo).
Como também não se verifica a invocada nulidade da sentença prevista na alínea c) do mesmo artigo 668º do CPC (antigo).
É que a nulidade da sentença por contradição entre a decisão e os fundamentos, prevista naquela alínea c), tem como premissa a violação do necessário silogismo judiciário que deve existir em qualquer decisão judicial. Com efeito entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. De modo que se o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, tal oposição será causa de nulidade da sentença – vide a este respeito Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora; Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, págs. 689 ss; José Lebre de Freitas, in “Código de Processo civil Anotado”, 2º Vol., Coimbra Editora, 2001, pág. 670, e Luís Filipe Brites Lameiras, in, “Notas Práticas ao Regime dos Recursos em Processo Civil”, Almedina, 2009, pág. 36 ss..
Assim, para que ocorra nulidade da sentença por contradição entre a decisão e os fundamentos prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 668º do CPC (antigo) tem que se estar perante um paradoxo ou incoerência de raciocínio, de modo que as premissas consideradas (fundamentos) não poderiam conduzir, de forma lógica, à conclusão (decisão) a que se chegou, mas a outra, oposta ou divergente.
Como é bom de ver, da contraposição entre o decidido na sentença recorrida e os respetivos fundamentos nela externados (que já se reproduziu supra) é manifesto não se verificar qualquer contradição entre o segmento decisório da sentença – no qual, julgando-se parcialmente procedente a ação, foi o réu Estado Português condenado a pagar ao autor a quantia de 40.000,00 € a título de indemnização por danos morais, bem como aquilo que se vier a liquidar em execução de sentença pelos danos patrimoniais referidos nos factos R) e T), acrescidos de juros de mora desde a citação até integral e efetivo pagamento – e os respetivos fundamentos, se estes passam, precisamente, pela conclusão, tirada pela Mmª Juiz do Tribunal a quo, de que se encontram verificados os pressupostos do dever de indemnizar fundado em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos e culposos, como fez.
Tem, pois, que concluir-se que a sentença recorrida não incorre na nulidade prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 668º do CPC (antigo), ex vi do artigo 1º do CPTA, improcedendo também nesta parte o recurso.

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Não se mostrando a sentença recorrida ferida de nulidade, por qualquer dos fundamentos invocados, nos termos supre decididos, vejamos agora se deve a mesma ser revogada e substituída por decisão de improcedência da ação, com absolvição total do réu do pedido (conclusões 3ª a 10ª das alegações de recurso). Ou, se assim não se concluir, por decisão que em vez dos 40.000,00 € de indemnização por danos patrimoniais, fixe montante indemnizatório substancialmente inferior (conclusão 11ª das alegações de recurso).
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2. Da questão de saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento (de direito), por não ser de concluir pela existência de ilicitude, de culpa e de nexo de causalidade, tendo a sentença recorrida feito errada interpretação dos artigos 2º nº 1 e 6º do DL. nº 48051, de 21 de Novembro de 1967 - (conclusões 3ª a 10ª das alegações de recurso).
A sentença recorrida condenou o Estado Português a pagar ao autor, aqui recorrido, a quantia de 40.000,00 €, a título de indemnização por danos morais, bem como aquilo que se vier a liquidar em execução de sentença pelos danos patrimoniais referidos nos factos R) e T), acrescidos de juros de mora desde a citação até integral e efetivo pagamento.
Na apreciação do mérito da ação a sentença recorrida aplicou o quadro normativo resultante do DL. nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967, o que não é posto em causa no presente recurso, nem merece reparo, já que em face das datas (situadas no ano de 2005) a que reportam os factos constitutivos da pretensão indemnizatória em causa nos autos, fundada em responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, por factos ilícitos e culposos de gestão pública, é de aplicar o quadro normativo resultante do DL. nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967, não obstante tenha entretanto sido aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, o novo regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas.
Na sentença recorrida começou-se por explanar que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e de outros entes públicos por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes, regulada pelo referido DL. nº 48051, assenta nos pressupostos da identifica responsabilidade prevista no Código Civil, designadamente nos seus artigos 483º ss. e 563º, a saber, o dano, o facto, a ilícito, o nexo de causalidade e a culpa.

E deu como verificados os danos, ali assim referidos:

«- o autor, que possuía uma empresa de construção, começou a perder clientes devido a fama que possuía. Desde a data do acidente até à presente, o A. vê a sua clientela diminuída, perdendo desse modo receitas;

- A. começou a ser rotulado de "drogado" e "traficante" em consequência das notícias publicadas, sendo que a PSP informou os media apenas de que o teste rápido dera o produto apreendido no automóvel como sendo heroína, sem identificar os ocupantes do veículo;

- a situação descrita tem gerado grande sofrimento em toda a família;

- o Autor, em virtude das calúnias de que foi alvo, tinha vergonha de sair à rua pois era apontado;

- por causa desta situação, o A. teve de ir a médicos, incluindo um psiquiatra.»

Após o que se escreveu o seguinte no discurso fundamentador da sentença recorrida, que se passa a transcrever:
«(…)Está provado o seguinte facto humano: a PSP divulgou aos media, com erro de seu equipamento, que encontrara no carro do A. heroína, quando afinal se apurou que o pó não era droga.
Tal facto é ilícito, porque viola o direito do A. ao crédito e ao bom nome (arts. 483º-1 e 484º CC).
Há nexo causal adequado entre a conduta objetiva da PSP e os danos referidos, na medida em que tal conduta não foi indiferente para a produção de tais danos e não precisou de circunstâncias extraordinárias para ser causa.
Há culpa da PSP, na medida em que o facto lhe é imputável a título de dolo na comunicação aos media dum resultado que poderia ser falso e na medida em que o facto lhe é imputável a título de negligência com o erro do aparelho que acusou heroína erradamente

Do que concluiu estar o Réu obrigado a indemnizar o Autor.
E fazendo aplicar os dispositivos ínsitos nos artigos 562º, 566º, 494º e 496º do Código Civil, que invocou, fixou em 40.000,00 € a indemnização por danos morais, devida ao autor. Dizendo-se ali, a respeito destes, o seguinte:
«(…) Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562º CC).
A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor. Sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (art. 566º CC).
Na fixação da indemnização da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º CC (art. 496º CC).
(…)
Quanto aos cit. danos morais do A, é evidente que os mesmos merecem a tutela do Direito. A culpa da PSP não é de menosprezar de todo, pois que a revelação do resultado do teste (errado) foi intencional, associada ao risco do erro e da publicidade danosa de um erro, com alarme social óbvio neste contexto das drogas ilegais. Não afasta a censurabilidade da conduta o facto de os media e a população, com a 1ª notícia dada pela PSP, terem depois ampliado o erro danoso até à identidade do A. (…)»

Defende desde logo o Estado Português no presente recurso que não existe qualquer facto ilícito, por a comunicação efetuada pela PSP aos órgãos de comunicação social não conter qualquer identificação do autor, nem da matrícula do carro e não ter contribuído, por qualquer via ou modo, para a conexão estabelecida pela comunicação social entre a informação pública por si divulgada e o respetivo interveniente (o autor, ora recorrido); que as forças policiais adaptaram, no caso, todos os procedimentos adequados, quer ao realizar o teste rápido ao produto apreendido (pelo menos nada se provou em contrário), quer na comunicação efetuada aos órgãos de comunicação social no contexto dos procedimentos de informação; que a própria sentença reconhece que “a PSP informou os media apenas de que o teste rápido dera o produto apreendido no automóvel como sendo heroína, sem identificar os ocupantes do veículo”, não estando assim provado que tenha sido a PSP a identificar o A., e que assim é de concluir pela inexistência de ilicitude e de culpa.
E invoca que também claudica o pressuposto do nexo de causalidade, por os factos provados não permitirem formular qualquer juízo de imputação dos eventuais prejuízos à atuação dos elementos da P.S.P.
Vejamos, então, se merece provimento do recurso, atentando no quadro normativo aplicável.
Dispõe o artigo 22º da CRP que “o Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”.
O DL. nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967 que estabelecia, à data dos factos, o regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas por atos de gestão pública (cfr. artigo 1º), dispunha no nº 1 seu artigo 2º o seguinte: “O Estado e demais pessoas coletivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de atos ilícitos culposamente praticados pelos respetivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício”.
Por sua vez estatuía o artigo 6º do mesmo diploma que se consideram ilícitos “os atos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os atos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devem ser tidas em consideração”.
E de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 4º do mesmo diploma, a culpa dos titulares ou agentes é apreciada nos termos do artigo 487º do Código Civil, ou seja, “na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”. Sendo que, como se diz no Acórdão do STA de 04-04-2006, no Proc. nº 01116/05 o “paradigma da conduta diligente implica, no âmbito da responsabilidade extracontratual dos entes públicos, a comparação do concreto comportamento apurado, com o que seria de exigir a um funcionário ou agente zeloso e cumpridor e, quando transposto para a falta do serviço, sem imputação do comportamento censurável a um certo e determinado funcionário ou agente, a comparação com os standards de atuação que se devem esperar daquele serviço a funcionar normalmente, isto é, com o nível médio de funcionamento que, com razoabilidade, se pode reclamar dele”, operando, assim, a chamada culpa do serviço, figura acolhida quer pela Doutrina quer pela Jurisprudência, e que influenciada por referências objetivas relacionadas com a função dos órgãos administrativos, amplia na prática as possibilidades de imputação de culpa à Administração quando os danos verificados não são suscetíveis de serem imputados a este ou àquele comportamento em concreto de um qualquer agente ou titular de órgão administrativo, sendo todavia consequência do mau funcionamento generalizado do serviço administrativo em causa (vide, para mais desenvolvimentos, a respeito do que deve entender-se para este efeito por «funcionamento anormal do serviço», entre outros, Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in, “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas – anotado”, Coimbra Editora, 2008, pág. 133, e Margarida Cortez, in, “Responsabilidade Civil da Administração Pública”, Seminário Permanente de Direito Constitucional e Administrativo, Vol. I, Associação Jurídica de Braga – Departamento Autónomo de Direito da Universidade do Minho, 1999, pág. 69 ss.).
À luz do artigo 6º do DL. nº 48051, de 21/11/1967, já supra citado, os atos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis são ilícitos para efeitos de responsabilidade civil extracontratual, e os atos materiais que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis ou as regras de ordem técnica e de prudência comum que devem ser tidas em consideração são ilícitos para efeitos de responsabilidade civil extracontratual.
No caso dos autos, e ainda que não seja evidente a destrinça, não estão em causa atos jurídicos, mas atos materiais, que o autor imputa à PSP. Pelo que estaremos perante facto ilícito para efeitos de responsabilidade civil extracontratual, à luz do disposto no artigo 6º do DL. nº 48.051, se for de concluir que os atos materiais em causa violam as “normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis” ou se não cumprem “as regras de ordem técnica e de prudência comum que devem ser tidas em consideração”.
Importando ter presente, porque não será despiciente na situação dos autos, que muito embora exista uma aproximação prática entre as noções de ilegalidade e de ilicitude quando o facto constitutivo da obrigação de indemnizar se funda num ato jurídico, estas não são inteiramente coincidentes, nem se configuram como perfeitamente sinónimos, como tem vindo a ser entendido pela Doutrina e pela Jurisprudência (vide, a este propósito, Joaquim Gomes Canotilho in, O Problema da Responsabilidade Civil do Estado por Actos Lícitos, Coimbra 1974, pág. 74 ss.. e in, RLJ Ano 125º, págs. 83 ss..; Rui Medeiros in, Ensaio Sobre Responsabilidade Civil do Estado por Actos Legislativos, págs. 165 ss., e ainda, e a título ilustrativo os Acórdãos do STA de 23/10/2008, Proc. n.º 0264/08, e de 04/11/2008, Proc. n.º 0104/08, in www.dgsi.pt, e o Acórdão do TCA Norte de 02-04-2009, Procº 01504/05.4BEVIS). À primeira vista parecerá que o legislador ali reconduziu a ilicitude à anti-juridicidade objetiva ao considerar ilícitos os atos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis. Porém, o artigo 6º do DL. nº 48.051 deve ser combinado com o disposto nos seus artigos 2º nº 1 e 3º nº 1, normas que fazem apelo à violação de direitos ou interesses protegidos dos lesados. Cite-se, a este propósito Margarida Cortez, in, Responsabilidade Civil da Administração Pública (Semanário Permanente de Direito Constitucional e Administrativo, Vol I, Associação Jurídica de Braga, Departamento Autónomo de Direito da Universidade do Minho, Novembro, 1999, pág. 72) que quando a este aspeto diz o seguinte: “Só podem ser qualificados como ilícitos os atos (jurídicos) que violem os direitos subjetivos ou disposições destinadas a proteger interesses de terceiros”.
Deste modo deve entender-se que a ilicitude não se basta com a genérica antijuridicidade, uma vez que pressupõe a violação de uma posição jurídica substantiva (direito subjetivo ou interesse legalmente protegido) do particular. E se isto vale quando o facto constitutivo da obrigação de indemnizar se funda num ato jurídico, assim também será, por maioria de razão, quando o facto constitutivo é um ato material.
Assim, as disposições conjugadas dos artigos 6º e 2º nº 1 do DL. nº 48.051, têm aptidão para abranger situações de ilicitude que, nos termos gerais, se subsumem à sua previsão normativa, por referência à violação de normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis ou de regras de ordem técnica e de prudência comum com ofensa de posições jurídicas subjetivas de outrem. O que abarcará outros factos antijurídicos que possam estar especialmente previstos na lei, mormente na lei civil, igualmente aplicáveis no âmbito da responsabilidade administrativa.
E importa ainda abordar desde já as questões em torno do pressuposto do nexo de causalidade, cuja verificação vem também posta em causa pelo recorrente no presente recurso.
Não há dúvida que pressuposto da obrigação de indemnizar (e simultaneamente sua medida) é também o nexo de causalidade, estatuindo a tal respeito o artigo 563º do Código Civil, precisamente sob a epígrafe “nexo de causalidade”, que “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.
É reiterado o entendimento segundo o qual o artigo 563º do Código Civil consagrava a teoria da causalidade adequada na formulação negativa de Ennecerus/Lehmann no sentido de que “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”. De modo que para que se verifique nexo causal seja necessário que os danos, apreciados segundo um juízo de prognose póstuma, sustentado em critérios de normalidade e razoabilidade e na experiência comum, possam ser considerados consequência normal da lesão, ou seja, que a ação ou omissão (facto) se mostre adequada à produção do dano, gerando fortes probabilidades de o originar.
E a tal respeito tem-se entendido que para que um facto seja causa de um dano é necessário, antes de mais, que no plano naturalístico, ele seja condição sem a qual o dano não se teria verificado. E que depois há ainda que ver se aquele facto era, em abstrato, ou em geral, segundo as regras da vida, causa adequada ou apropriada, para a produção do dano.
Pelo que a esta luz não serão ressarcíveis todos e quaisquer danos que sobrevenham ao facto (ilícito), mas tão só os que ele tenha realmente ocasionado, isto é, aqueles cuja ocorrência esteja com ele numa relação de adequação causal. O juízo de adequação causal tem assim que assentar numa relação entre o facto e o dano, de modo que este corresponda a uma decorrência adequada daquele. A este respeito, entre outros, M. Almeida e Costa, in, Direito das Obrigações, 11.ª edição, pág. 605, diz que “(…) não há que ressarcir todos e quaisquer danos que sobrevenham ao facto ilícito, mas tão-só os que ele tenha na realidade ocasionado, os que possam considerar-se pelo mesmo produzidos (art. 563.º).”.
Tal não implica, porém, que se exija a exclusividade da condição, no sentido de que tenha o facto (ilícito) que ter, só por si, determinado o dano, admitindo-se puderem ter colaborado na sua produção outros factos, concomitantes ou posteriores, por a causalidade não ter que ser necessariamente direta e imediata, podendo ser meramente indireta, desde que o facto (ilícito) condicionante desencadeie outro que diretamente suscite o dano.
E esse tem sido o sentido em que a jurisprudência se vem pronunciando, acompanhando também a doutrina, considerando existir nexo de causalidade adequada entre a conduta (ilícita) e o dano quando este, pelas regras de experiência comum, possa ser consequência daquela, bastando uma causalidade indireta, que se dá “quando o facto não produz ele mesmo o dano mas desencadeia ou proporciona um outro que leva à verificação deste." - vide, entre outros, os Acórdãos do STJ de 28/03/2007, Proc. 3956/06; de 31/03/2009, Proc. 08B2421 e de 20/01/2010, Procº. nº. 670/04.0TCGMR.S, in. www.dgsi.pt/jstj.
Ou, noutra dimensão, que o facto só deixará de ser causa adequada do dano, desde que se mostre, por sua natureza, ser de todo inadequado e o dano se haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excecionais, importando citar, pela sua clareza, o que a este respeito se diz no Acórdão do STJ de 07/04/2005, Proc. 03B4474, in, www.dgsi.pt/jstj: “na conceção mais criteriosa da doutrina da causalidade adequada, para os casos em que a obrigação de indemnização procede de facto ilícito culposo, quer se trate de responsabilidade extracontratual, quer contratual - a «formulação negativa», acolhida no artigo 563.º do Código Civil segundo a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal de Justiça - o facto que atuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente para a verificação do mesmo, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excecionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto”.
E como diz Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in, “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas – anotado”, Coimbra Editora, 2008, pág. 81-82 (nota 9 ao artigo 3º daquele regime), a problemática do nexo causal envolve “uma «vertente naturalística», que se contém no âmbito restrito da matéria factual, e consiste em saber se o facto, em termos de fenomenologia real e concreta, deu origem ao dano; e uma «vertente jurídica», que constitui matéria de direito (…) que consiste em apurar se esse facto concreto pode ser havido, em abstrato, como causa idónea do dano”. E que, continua, “partindo de uma formulação negativa («danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão»), que, por isso mesmo, consente uma aceção mais ampla da causalidade adequada, o artigo 563º não exige a exclusividade do facto condicionante do dano (no sentido que só esse facto tenha determinado o dano), admitindo que outros factos, contemporâneos ou posteriores, possam ter também concorrido para a sua produção. Do mesmo passo que se não exclui uma causalidade indireta ou mediata, o que sucede «quando o facto não produz ele mesmo o dano, mas desencadeia ou proporciona um outro que leva à verificação deste».
E esta aceção, mais ampla, de causalidade adequada para efeitos do estabelecimento do nexo causal entre o facto (ilícito) e o dano, tem cabimento em sede de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícitos do Estado e demais entidades públicas não só em face do disposto no artigo 563º do Código Civil (acompanhando-se a jurisprudência e doutrina civilista), mas igualmente perante o regime de responsabilidade aprovado pela Lei nº 67/2007, mormente dos seus artigos 2º nº 1, à luz do artigo 22º da CRP, como o evidencia a expressão “de que resulte” ali contida.
Descendo à situação dos autos, diga-se desde já que não merece censura, no nosso entendimento, o juízo feito na sentença recorrida no sentido de se encontrarem verificados, no caso, os pressupostos de ilicitude, culpa e nexo de causalidade adequada. Ainda que possa não ser se subscrever algum particular e específico aspeto enunciado no discurso fundamentador feito pelo Tribunal a quo, designadamente no que tange à natureza dolosa (e intencional) que imputa à conduta levada a cabo pela PSP. Já lá iremos.
Comecemos por atentar na questão da ilicitude.
A Constituição da República Portuguesa assegura no nº 1 do seu artigo 25º que “a integridade moral e física das pessoas é inviolável” e prescreve no nº 1 do artigo 26º que “a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação”.
A este respeito Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. I, 4ª ed. Revista, 2007, pág. 466, dizem que “o direito ao bom nome e reputação (nº 1) consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a competente reparação”.
O artigo 70º do Código Civil tutela igualmente a personalidade moral, o bom-nome e consideração social das pessoas dispondo que “a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral” (nº 1) e que “independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida” (nº 2).
A propósito da honra e do bom nome juridicamente tutelado enquanto direito de personalidade, referem os autores, que este abrange a “projeção do valor da dignidade humana, que é inata, ofertada pela Natureza igualmente para todos os seres humanos, insuscetível de ser perdida por qualquer homem em qualquer circunstância (...) em sentido amplo, inclui também o bom nome e reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político (…) envolve, finalmente, o crédito pessoal, como projeção social das aptidões e capacidades económicas desenvolvidas por cada homem” (cfr. Capelo de Sousa, in, “O Direito Geral da Personalidade”, 1995, págs. 303-304); que a honra é um “(…) bem da personalidade e imaterial, que se traduz numa pretensão ou direito do indivíduo a não ser vilipendiado no seu valor aos olhos da sociedade e que constitui modalidade do livre desenvolvimento da dignidade humana, valor a que a Constituição atribui a relevância de fundamento do Estado Português; enquanto bem da personalidade e nesta sua vertente externa, trata-se de um bem relacional, atingindo o sujeito enquanto protagonista de uma actividade económica, com repercussões no campo social, profissional e familiar e mesmo religioso” (cfr. Maria Paula Andrade, in, “ Da Ofensa do Crédito e do Bom Nome, 1996, pág. 97); que “(…) o direito à vida, ou à honra, ou à integridade física, ou à privacidade, ou à imagem, por exemplo, não constituem direitos subjetivos autónomos, mas antes poderes jurídicos que integram o direito de personalidade do seu titular, poderes estes que são exercidos quando a dignidade do seu titular for posta em causa através de ameaças ou ofensas àqueles específicos bens de personalidade” (cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, in, “Teoria Geral do Direito Civil”, 2005, págs. 38 e ss.); que a honra “é a dignidade pessoal pertencente à pessoa enquanto tal, e reconhecida na comunidade em que se insere e em que coabita e convive com as outras pessoas…” (cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, in, “Direito de Personalidade”, 2006, pág. 76); que a honra “… é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale, e que a consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal forma que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa ao desprezo público” (cfr. Beleza dos Santos, RLJ, Ano 92º, pág. 164); que a “perda ou lesão da honra – a desonra – resulta, ao nível pessoal, subjetivo, na perda do respeito e consideração que a pessoa tem por si própria, e ao nível social, objetivo, pela perda do respeito e consideração que a comunidade tem pela pessoa” e que “…as causas de perda ou do detrimento da honra – de desonra – são, em termos muito gerais, ações da autoria da própria pessoa ou que lhe sejam imputadas, e que sejam consideradas reprováveis na ordem ética vigente, quer ao nível da própria pessoa, quer ao nível da sociedade.” (cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, in, “Direito de Personalidade”, 2006, pág. 76).
Temos assim que a honra comporta uma dimensão interna/subjetiva (o eu moral ou psicológico), correspondendo à consideração da pessoa por si própria, à sua auto-estima, e uma dimensão externa/objetiva (o eu social), correspondendo à ideia que os outros têm de nós, traduzindo-se no respeito que cada pessoa goza na comunidade a que pertence, isto é, na reputação, no bom nome, no crédito ou consideração exterior.
Aqui chegados não há dúvida que na situação dos autos a honra do autor foi ofendida, tendo sido ferida e afetada, ao serem-lhe imputados, na comunidade em que se encontrava inserido, no meio social e profissional em que se movia, e também no seu espaço privado, mais reservado, entre a sua família, comportamentos reprováveis, ética e juridicamente. Em concreto a posse de heroína (0,55gr) aquando do acidente de viação ocorrido em 08/02/2005 de que veio a falecer o seu irmão, que ali o acompanhava, encontrada na sua carteira, dentro do veículo que conduzia pelos agentes da PSP e por estes apreendida, apreensão que foi na ocasião divulgada, e noticiada nos meios de comunicação social. O que originou que o autor começasse a ser rotulado de "drogado" e "traficante", em consequência das notícias publicadas, de modo que o autor, que possuía uma empresa de construção, começou a perder clientes devido a tal fama, sendo o seu filho, à data de 12 anos de idade, apontado na escola como o filho do drogado, tendo o autor vergonha de sair à rua, por ser apontado, tendo que ir a médicos, incluindo um psiquiatra, e gerando tal situação grande sofrimento em toda a família.
Lembre-se, que foram os agentes da PSP que aquando do acidente, e após as demais diligências para assistência aos feridos (incluindo o autor, que conduzia o veículo) ao procurarem dentro da viatura os elementos de identificação do condutor (o autor) encontraram dentro da sua carteira um produto "de cor castanho claro embrulhado num papel branco", tendo então na esquadra da PSP de Santa Cruz procedido ao “Teste rápido de deteção de produto de estupefaciente, do tipo "A", reagente "Marques", constatando-se que o referido produto era heroína.
Porém, aquele pó não era heroína (ou qualquer outra droga/ estupefaciente), mas sim pó da ervanária, que lhe tinham aconselhado a usar na carteira para afastar "invejas" e "maus-olhados", o que foi constatado após a análise laboratorial pelo laboratório da Polícia Científica (LPC) da Polícia Judiciária em Lisboa. Sendo certo que tal diligência (análise) veio a ter lugar porque o autor, posteriormente ao acidente de viação (no qual, lembre-se, conduzia o veículo em que seguia com o seu irmão, que veio dele a falecer, e do qual resultou ferido o autor) por o autor ter tido conhecimento da situação, que não aceitou, por nunca ter sido consumidor ou traficante. Tendo então, sido tal circunstância noticiado no Diário de Notícias e Jornal da Madeira no dia 4 de Agosto de 2005 e tendo vindo o Comando Regional da PSP esclarecer.
É certo que aquando do acidente (Fevereiro de 2005) a PSP apenas informou os media de que o teste rápido, então realizado, dera o produto apreendido no automóvel como sendo heroína, sem identificar os ocupantes do veículo, não tendo assim na informação divulgada pela PSP sido identificados os ocupantes do veículo automóvel, nomeadamente o autor. Mas não pode desconsiderar-se o contexto factual em que foi apreendido o dito “pó acastanhado”, indicado como se fosse heroína, nem a gravidade do acidente, que envolveu o veículo (no qual o “pó” foi encontrado e apreendido), nem a divulgação desse facto conjugada com a notícia do próprio acidente, nem também o facto de o acidente ter causado a morte do irmão do autor, que conduzia o veículo. O que permitiu que fosse feita a correspondência entre os factos. Mormente a partir nas notícias saídas nos meios de comunicação social (nas quais é possível descortinar elementos de identificação do autor, com referência ao grau de parentesco dos ocupantes do veículo, às respetivas idades, à gravidade dos ferimentos, e do veículo, com publicação de fotografias deste, onde é visível designadamente parte da sua matrículavide Doc. nº 2, junto com a Petição Inicial).
Ora tal basta para se concluir pela verificação de ilícito para efeitos de responsabilidade civil extracontratual do Estado por atos de gestão pública à luz do regime contido no DL. nº 48.051, mormente em face das disposições conjugadas do nº 1 do artigo 2 e do artigo 6º daquele diploma, já supra visitados. Não se impondo que a imputação da posse do “pó acastanhado”, tido por heroína, tivesse que ter sido feita a “determinada” pessoa, no caso ao autor, para adequadamente se entender que a conclusão tirada pela PSP à data do acidente (que se veio a revelar errada), e a sua divulgação, configuram a verificação de ilicitude para efeitos de fazer emergir na esfera do Estado o dever de indemnizar os danos causados por tal conduta. Como já se disse as disposições conjugadas dos artigos 6º e 2º nº 1 do DL. nº 48.051, têm aptidão para abranger situações de ilicitude que, nos termos gerais, se subsumem à sua previsão normativa, por referência à violação de normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis ou de regras de ordem técnica e de prudência comum com ofensa de posições jurídicas subjetivas de outrem. E no caso é evidente que a conduta da PSP causou (ainda que numa relação de causalidade indireta) ofensa à honra e bom nome do autor, enquanto direito de personalidade juridicamente tutelado. E tal basta, caindo na hipótese normativa ínsita no artigo 6º do DL. nº 48.051.
É verdade que a respeito do artigo 484º do Código Civil, que estabelece que “quem afirmar ou difundir facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou coletiva, responde pelos danos causados”, se tem entendido que “…tem de haver a imputação de um facto, não bastando alusões vagas e gerais…” (cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, in “Direito das Obrigações, 5ª edição, 1991, pág. 453) e que “…pouco importa que o facto afirmado ou divulgado seja ou não verdadeiro (…) contanto que seja suscetível, ponderadas circunstâncias do caso, (…) de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que ela seja tida (prejuízo do bom nome) no meio social em que vive ou exerce a sua atividade” (cfr. Antunes Varela, in, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9ª edição, págs. 567-568).
Mas tal não implica que o conceito de ilicitude acolhido no artigo 6º do DL. nº 48.051 para efeitos de responsabilidade civil extracontratual do Estado sofra aqui qualquer restrição, espartilhamento ou mesmo exclusão decorrente do disposto no artigo 484º do Código Civil.
Não há dúvida que foi divulgado na comunicação social, tendo essa divulgação origem em comunicado da PSP, a apreensão de "droga" (heroína), estando tal circunstância envolvida com o acidente, facto que se tornou público. O acidente foi grave, envolveu a morte de uma pessoa, irmão do autor, sendo este quem conduzia o veículo onde se encontrava o “pó” apreendido. Pelo que é natural o estabelecimento de uma ligação do facto ao autor. O ilícito está assim também na divulgação de uma informação "errada" (que se veio a verificar errada), o que aliás motivou comunicação posterior da PSP "corrigindo" a informação anterior. Tendo a afetação da honra e bom nome do autor decorrido dessa circunstância.
É indubitável que a situação em que o autor foi colocado, gerada pela conduta da PSP, será, para a generalidade das pessoas, no mínimo confrangedora. E que atento o meio em que se insere o autor (e a sua família), e as concretas circunstâncias em que ocorreu não podia deixar de ser notado e comentado, como efetivamente foi, colocando-o, na posição de ter de se justificar.
E foi aliás, em resultado da sua iniciativa na procura da salvaguarda da verdade (até então só sua), tendo em vista a preservação (defesa) da sua honra e bom nome, que se veio a apurar que havia sido errada a conclusão tirada pela PSP de que o “pó” apreendido era heroína. Mas nessa ocasião o dano já tinha sido causado. E este nunca foi reparado em todas as suas consequências e efeitos, antes se querendo tão-só esquecer (ou fazer esquecer) que a mesmo algum dia veio a ter lugar. E esse não é um resultado juridicamente aceitável.
Tem, pois de considerar-se preenchido, no caso, o pressuposto da ilicitude, e com ele o da culpa, já que a conduta da PSP consubstanciou, naquelas circunstâncias, a violação de direitos de personalidade do autor, juridicamente tutelados e protegidos, geradora dos danos (patrimoniais e não patrimoniais) cuja ressarcimento se impõe.
Não merece, pois, acolhimento, a tese defendida pelo recorrente Estado Português, no sentido de não se encontrarem verificados os pressupostos da ilicitude e da culpa. Como também não merece acolhimento o entendimento, que defende, de que não se encontra verificado o pressuposto do nexo de causalidade.
Com efeito se é certo que as conversas, comentários ou juízos feitos pelas pessoas em geral ultrapassam a esfera do lesante, como o ultrapassam o modo como foram veiculadas as notícias nos diversos meios de comunicação social, o certo é que os mesmos se fundam nos factos que foram constatados (que se vieram a revelar errados) e divulgados pela PSP, e esses sem dúvida lhe são imputáveis. Não podendo assim deixar-se de considerar consequência normal, pelo menos em certa medida, até por apelo aos critérios de normalidade e razoabilidade e mesmo de experiência comum, os danos verificados. Sendo certo que na aceção mais ampla da causalidade adequada, que vimos é de acolher, o artigo 563º não exige a exclusividade do facto condicionante do dano (no sentido que só esse facto tenha determinado o dano), admitindo que outros factos, contemporâneos ou posteriores, possam ter também concorrido para a sua produção. Do mesmo passo que se não exclui uma causalidade indireta ou mediata, o que sucede «quando o facto não produz ele mesmo o dano, mas desencadeia ou proporciona um outro que leva à verificação deste» (vide a este respeito, e neste sentido, o recente acórdão deste TCA Sul de 26/03/2015, Proc. nº 8.446/12, in, www.dgsi.pt/jtcas, de que fomos relatores).
Tem assim que concluir-se que a sentença recorrida fez correta interpretação e aplicação dos normativos legais referidos.
De modo que, verificando-se no caso os pressupostos legais de que depende o dever de indemnização, a cargo Estado Português, este não podia ter sido absolvido do pedido como propugna.
Não merece, pois, acolhimento o recurso nesta parte.

*
3. Da questão de saber se em vez dos 40.000,00 € de indemnização por danos não patrimoniais fixados na sentença recorrida, deve o valor de tal indemnização ser reduzido, com fixação de montante substancialmente inferior – (conclusão 11ª das alegações de recurso).
Nos termos do disposto no artigo 496º nº1 do Código Civil apenas são atendíveis para efeitos de indemnização os danos não patrimoniais que por revelarem gravidade mereçam a tutela do direito, caso em que o montante será fixado equitativamente pelo Tribunal. Tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º do Código Civil: o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
Sendo que gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objetivo (ainda que tendo-se em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de fatores subjetivos (como referem Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 2. edição, em anotação ao artigo 496.º, e como é entendimento unânime da Jurisprudência, cfr., a título ilustrativo, o Acórdão do STA de 16-12-2003, Proc. nº 565/03, in Acórdãos Doutrinais 507, 383).
Quando se fala em danos não patrimoniais ou morais estão em causa, designadamente, males como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética, que por atingirem bens protegidos por lei contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa ilícita (como a saúde, o bem-estar, a liberdade, a beleza, a perfeição física a honra ou o bom nome) não integram o património do lesado, sendo assim insuscetíveis de avaliação pecuniária, sendo certo que, simultaneamente, só podem ser compensados com uma obrigação pecuniária (vide, neste sentido Antunes Varela, in, Das Obrigações Em Geral, 10ª Edição, pág. 499 e Maria Manuel Veloso, in, Danos Não Patrimoniais – Comemorações dos 35 Anos do Código Civil, III, pág. 554 e ss.). Daí a emergência de certa Jurisprudência que, a partir da infungibilidade dos bens que desencadeiam os danos não patrimoniais e realçando as funções compensatória, e sancionatória da respetiva indemnização, considera que esta, enquanto lenitivo para os danos suportados, não deve ser miserabilista nem meramente simbólica, mas também não deve nem pode representar negócio (vide a propósito, o Acórdão do STA de 28-01-2009, Proc.º 0884/98, bem como o Acórdão do STJ de 27-02-2007, Proc° n° 05A3765, e jurisprudência ali citada, in www.dgsi.pt).
Por outro lado, e ainda, como defende a Doutrina e perfilha a Jurisprudência à luz do disposto artigo 496.º do Código Civil, para efeitos indemnizatórios a gravidade do dano moral há-de medir-se por um padrão objetivo e não de acordo com fatores subjetivos, ligados a uma sensibilidade particularmente aguçada (vide, neste sentido Antunes Varela, in, Das Obrigações Em Geral, 10ª Edição, pág. 499, Pires de Lima e Antunes Varela in, Código Civil Anotado, Vol. I, 2. edição, anotação I ao artigo 496.º e os Acórdãos do STA de 18-01-2005, Proc.º 01703/02; de 28-01-2009, Proc.º 0852/07 e de 28-01-2009, Proc.º 0884/98, in www.dgsi.pt).
No caso dos autos é premente ter presente as concretas circunstâncias em que ocorreu a errada conclusão, tirada pela PSP, de que o “pó” encontrado e apreendido, na posse do autor, era heroína e os efeitos da sua divulgação, e como a mesma foi vivenciada pelo autor.
Fazendo aplicar os dispositivos ínsitos nos artigos 562º, 566º, 494º e 496º do Código Civil, que invocou, a Mmª Juiz do Tribunal a quo fixou uma indemnização por danos morais, devida ao autor, entendendo que os mesmos são merecedores da tutela do Direito. E são, efetivamente, o que ademais não é posto em causa no presente recurso.
Mas diz-se ainda na sentença recorrida a respeito deles que “…a culpa da PSP não é de menosprezar de todo, pois que a revelação do resultado do teste (errado) foi intencional, associada ao risco do erro e da publicidade danosa de um erro, com alarme social óbvio neste contexto das drogas ilegais”. E nela também já se tinha dito que “…há culpa da PSP, na medida em que o facto lhe é imputável a título de dolo na comunicação aos media dum resultado que poderia ser falso e na medida em que o facto lhe é imputável a título de negligência com o erro do aparelho que acusou heroína erradamente.”
De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 4º do mesmo diploma, a culpa dos titulares ou agentes é apreciada nos termos do artigo 487º do Código Civil, ou seja, “na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso”. Sendo que, como se diz no Acórdão do STA de 04-04-2006, no Proc. nº 01116/05 o “paradigma da conduta diligente implica, no âmbito da responsabilidade extracontratual dos entes públicos, a comparação do concreto comportamento apurado, com o que seria de exigir a um funcionário ou agente zeloso e cumpridor e, quando transposto para a falta do serviço, sem imputação do comportamento censurável a um certo e determinado funcionário ou agente, a comparação com os standards de atuação que se devem esperar daquele serviço a funcionar normalmente, isto é, com o nível médio de funcionamento que, com razoabilidade, se pode reclamar dele”. Opera, assim, a chamada culpa do serviço, figura acolhida quer pela Doutrina quer pela Jurisprudência, e que influenciada por referências objetivas relacionadas com a função dos órgãos administrativos, amplia na prática as possibilidades de imputação de culpa à Administração quando os danos verificados não são suscetíveis de serem imputados a este ou àquele comportamento em concreto de um qualquer agente ou titular de órgão administrativo, sendo todavia consequência do mau funcionamento generalizado do serviço administrativo em causa (vide, para mais desenvolvimentos, a respeito do que deve entender-se para este efeito por «funcionamento anormal do serviço», entre outros, Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in, “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas – anotado”, Coimbra Editora, 2008, pág. 133, e Margarida Cortez, in, “Responsabilidade Civil da Administração Pública”, Seminário Permanente de Direito Constitucional e Administrativo, Vol. I, Associação Jurídica de Braga – Departamento Autónomo de Direito da Universidade do Minho, 1999, pág. 69 ss.).
É o que sucede no caso, já que em face dos factos apurados não é possível imputar a qualquer concreto agente ou titular de órgão o resultado (errado) do 1º teste ao “pó” apreendido, nem os efeitos causados pela sua divulgação. Tendo então de concluir-se estarmos perante culpa do serviço (PSP), na aceção supra referida.
O que concomitantemente conduz a que não seja de subscrever a consideração, feita na sentença recorrida, de que se está perante facto imputável a título de dolo. Apenas se podendo concluir pela negligência (culpa do serviço) decorrente da comparação com os standards de atuação que se devem esperar do serviço, a funcionar normalmente (isto é, com o nível médio de funcionamento que, com razoabilidade, se pode reclamar dele).
O que não deixa de ter repercussão no quantum da indemnização devida pelos danos não patrimoniais, em face do disposto no artigo 494º do CC, ex vi do artigo 496º nº 1 do mesmo Código.
O que conjugado com as demais circunstâncias do caso impele e impõe a fixação de um montante indemnizatório inferior aos 40.000,00 € que foram atribuídos pela sentença recorrida.
Devendo a indemnização devida pelos danos não patrimoniais verificados ser fixada em 15.000,00 €, valor que se reporta como justo e adequado, tendo em atenção que a conduta é imputada ao serviço (PSP) a título de negligência; que os seus efeitos perduraram por um período compreendido entre Fevereiro e Agosto de 2005, data em que foi reposta a verdade, a gravidade do contexto em que a conduta teve lugar, com a morte do irmão do autor resultante de acidente envolvendo viatura conduzida pelo autor e ainda os padrões indemnizatórios geralmente adotados na jurisprudência (mormente os que foram fixados nos Acórdãos do TCA Norte de 02/04/2009, Proc.º 1504/05.4BEVIS e de 07/05/2009, no Proc.º nº 714/05.9BELRA, e noutros processos idênticos, tais como nos Processos nº 1496/05.0BEVIS, nº 1497/05.8BEVIS e nº 1504/06.4BEVIS, in, www.dgsi.pt/jtcan).
O que se decide.
Merecendo, assim, neste ponto, provimento o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, e fixando-se no montante de 15.000,00 € a indemnização devida pelos danos não patrimoniais. O que se decide.
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IV. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal em conceder parcial provimento ao recurso jurisdicional, fixando-se no montante de 15.000,00 € a indemnização devida ao autor pelos danos não patrimoniais.
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Custas por ambas as partes, na proporção do respetivo decaimento - artigo 527º nºs 1 e 2 do CPC novo (aprovado pela Lei nº 41/2013) e artigos 7º e 12º nº 2 do RCP (artigo 8º da Lei nº 7/2012, de 13 de fevereiro) e 189º nº 2 do CPTA.
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Notifique.
D.N.
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Lisboa, 16 de Abril de 2015


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Maria Helena Barbosa Ferreira Canelas (relatora por vencimento)





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António Paulo Esteves Aguiar de Vasconcelos



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Catarina de Moura Ferreira Ribeiro Gonçalves Jarmela Declaração de voto de vencida:


Votei vencida pelas razões a seguir indicadas, as quais constavam do projecto de acórdão que tinha elaborado e não obteve vencimento.

O recorrente defende que a decisão ora sindicada é ilegal por violação nomeadamente dos arts. 2º n.º 1 e 6º, do DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967, pois considera que não se provou, desde logo, a existência de qualquer facto ilícito.

Apreciando.

A sentença recorrida condenou o recorrente a pagar ao recorrido a quantia de € 40 000, a título de indemnização por danos morais, bem como aquilo que se vier a liquidar em execução de sentença pelos danos patrimoniais referidos nos factos R) e T), acrescidos de juros de mora desde a citação – 4.7.2006 - até integral e efectivo pagamento, à taxa legal anual de 4%.

Tal condenação foi proferida designadamente ao abrigo do DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967, e dos arts. 483º n.º 1 e 484º, ambos do Código Civil, e assentou na prática de um facto ilícito e culposo por parte da Polícia de Segurança Pública (PSP) que causou danos ao recorrido.

Na decisão recorrida escreveu-se o seguinte, no que respeita à prática do facto ilícito:
Está provado o seguinte facto humano: a PSP divulgou aos media, com erro de seu equipamento, que encontrara no carro do A. heroína, quando afinal se apurou que o pó não era droga.
Tal facto é ilícito, porque viola o direito do A. ao crédito e ao bom nome (arts. 483º-1 e 484º CC)”.

Do ora transcrito decorre que a sentença recorrida considerou que é imputável à PSP a prática de um facto ilícito, já que esta divulgou que se encontrava no carro do autor, ora recorrido, heroína, o que viola o direito do recorrido ao crédito e ao bom nome.

Defende o recorrente que não existe qualquer facto ilícito, já que a comunicação efectuada pela PSP aos órgãos de comunicação social não contém qualquer identificação do autor, nem à matrícula do carro e não contribuiu, por qualquer via ou modo, para a conexão estabelecida pela comunicação social entre a informação pública por si divulgada e o respectivo interveniente (o autor, ora recorrido).

Vejamos.

Ao tempo em que decorreram os factos integradores da causa de pedir desta acção, a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, no domínio dos actos de gestão pública, regia-se pelo disposto no DL 48 051, de 21 de Novembro de 1967 (entretanto revogado pelo art. 5º, da Lei 67/2007, de 31/12).

Estatui o art. 2º n.º 1, do citado DL 48 051, que:
O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício”.

Embora este diploma não disponha de uma regulamentação acabada no domínio da responsabilidade extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas, nomeadamente quanto ao nexo de causalidade, tem a jurisprudência do STA reconhecido que, por razões de ordem sistemática, se impõe nesse âmbito também o recurso às previsões do Cód. Civil (cfr. Ac. do STA de 21.4.1994, in AD 400-399).

A jurisprudência do STA tem, assim, decidido, de forma uniforme e pacífica, que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas e dos titulares dos seus órgãos e dos seus agentes, por facto ilícito de gestão pública, assenta, no essencial, nos pressupostos da responsabilidade civil previstos nos arts. 483º e ss., do Cód. Civil – neste sentido, entre outros, Acs. do STA de 13.10.1998, 26.9.02, 6.11.02, 18.12.02, 24.9.2003, 17.3.2005 e de 14.4.2005, procs. n.ºs 43.138, 487/02, 1.331/02, 1.683/02, 1.864/02, 230/05 e 86/04, respectivamente.

Assim, a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas e dos titulares dos seus órgãos e dos seus agentes, por facto ilícito e culposo de gestão pública, assenta nos seguintes pressupostos:
a) O facto do órgão ou agente que se traduz num comportamento voluntário, sob a forma de acção ou omissão;
b) A ilicitude;
c) A culpa, nexo de imputação ético-jurídica do facto ao lesante que pode revestir a forma de dolo ou mera culpa e que, na forma de mera culpa (negligência), traduz a censura dirigida ao autor do facto por não ter usado da diligência que teria um funcionário ou agente típico;
d) O dano, como lesão de ordem patrimonial ou não patrimonial;
e) O nexo de causalidade entre a conduta e o dano, apurado segundo a teoria da causalidade adequada.

Quanto ao pressuposto da ilicitude dispõe o art. 6º, do DL 48 051, o seguinte:
Para os efeitos deste diploma, consideram-se ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração”.

A definição de ilicitude deste art. 6º tem de ser lida à luz do art. 22º, da Constituição da República Portuguesa, que consagra a responsabilidade civil do Estado e das demais entidades públicas por acções ou omissões “de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”, ou em articulação com o art. 2º n.º 1, do citado DL 48 051, acima transcrito (“perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses”).

Dito por outras palavras, o conceito de ilicitude não se reconduz a um comportamento objectivamente antijurídico – violação de normas legais ou regulamentares, de princípios gerais ou de regras de ordem técnica e de prudência (ilicitude objectiva) -, exigindo também um desvalor da conduta quanto ao resultado, traduzido na violação de um direito ou interesse do particular (ilicitude subjectiva), cabendo ao autor, ora recorrido, o ónus de provar este pressuposto da ilicitude – nas vertentes objectiva e subjectiva -, nos termos do art. 342º n.º 1, do Cód. Civil.

De todo o modo, para além das situações de ilicitude que, nos ternos gerais, se encontram definidas no referido art. 6º, conjugado com o art. 2º n.º 1, por referência à violação de normas e princípios jurídicos e de regras de ordem técnica e de prudência comum e à ofensa de direitos ou interesses de outrem, há outros factos antijurídicos que estão especialmente previstos na lei civil, e que são igualmente aplicáveis no âmbito da responsabilidade administrativa.

Está nesse caso a afirmação ou a difusão de um facto susceptível de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa (cfr. art. 484º, do Cód. Civil) – neste sentido, Ac. do STA de 2.11.2011, proc. n.º 953/10.

Estabelece o art. 484º, do Código Civil, o seguinte:
Quem afirmar ou difundir facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados”.

Este preceito, ao proteger o crédito e o bom nome, nomeadamente da pessoa singular, tutela um dos elementos essenciais da dignidade humana que é a honra, ou seja, de um direito da personalidade, juridicamente protegido.

Com efeito, dispõe o art. 25º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), o seguinte:
A integridade moral e física das pessoas é inviolável”.

E prescreve o art. 26º n.º 1, do mesmo diploma, que:
A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”.

Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª ed. Revista, 2007, pág. 466, em comentário ao transcrito art. 26º n.º 1, esclarecem que “O direito ao bom nome e reputação (nº 1) consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a competente reparação (…)”.

Dispõe o art. 12º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem – cujas normas são objecto de recepção automática no nosso direito (cfr. art. 8º n.º 1, da CRP) -, o seguinte:
Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei”.

Na lei ordinária a personalidade moral, o bom-nome e consideração social das pessoas são valores tutelados no art. 70º, do Código Civil.

Estatui este art. 70º que:
1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.
2. Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida”.

Este normativo tutela a personalidade como direito absoluto, de exclusão, na perspectiva do direito à saúde, à integridade física, ao bem-estar, à liberdade e à honra, que são os aspectos que individualizam o ser humano, moral e fisicamente, e o tornam titular de direitos invioláveis.

Conforme supra referido, o art. 484º, acima transcrito, ao proteger o bom nome da pessoa singular tutela um dos elementos essenciais da dignidade humana – a honra.

Como explica Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral da Personalidade, 1995, págs. 303-304, “A honra juscivilisticamente tutelada abrange desde logo a projecção do valor da dignidade humana, que é inata, ofertada pela Natureza igualmente para todos os seres humanos, insusceptível de ser perdida por qualquer homem em qualquer circunstância (...) em sentido amplo, inclui também o bom nome e reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político (…) envolve, finalmente, o crédito pessoal, como projecção social das aptidões e capacidades económicas desenvolvidas por cada homem”.

E Maria Paula Andrade, Da Ofensa do Crédito e do Bom Nome, 1996, pág. 97, afirma ser a honra um “(…) bem da personalidade e imaterial, que se traduz numa pretensão ou direito do indivíduo a não ser vilipendiado no seu valor aos olhos da sociedade e que constitui modalidade do livre desenvolvimento da dignidade humana, valor a que a Constituição atribui a relevância de fundamento do Estado Português; enquanto bem da personalidade e nesta sua vertente externa, trata-se de um bem relacional, atingindo o sujeito enquanto protagonista de uma actividade económica, com repercussões no campo social, profissional e familiar e mesmo religioso”.

Também Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 2005, págs. 38 e ss., esclarece que “(…) O direito à vida, ou à honra, ou à integridade física, ou à privacidade, ou à imagem, por exemplo, não constituem direitos subjectivos autónomos, mas antes poderes jurídicos que integram o direito de personalidade do seu titular, poderes estes que são exercidos quando a dignidade do seu titular for posta em causa através de ameaças ou ofensas àqueles específicos bens de personalidade.
A tipificação dos chamados direitos especiais de personalidade é um reflexo da tipificação de específicos bens de personalidade que integram a dignidade humana e das lesões que historicamente se foram tornando típicas.
A dignidade humana pode ser ameaçada ou ofendida em diversos bens que a integram - vida, integridade física, honra, privacidade, imagem, nome, etc. - para a defesa de cada um dos quais o direito de personalidade contém específicos meios ou bens, que beneficiam de específicos poderes jurídicos”.

O mesmo autor, in “Direito de Personalidade”, 2006, pág. 76, explicita que “O direito à honra é uma das mais importantes concretizações da tutela e do direito da personalidade.
A honra é um preciosíssimo bem da personalidade.
A honra é a dignidade pessoal pertencente à pessoa enquanto tal, e reconhecida na comunidade em que se insere e em que coabita e convive com as outras pessoas (…) A perda ou lesão da honra – a desonra – resulta, ao nível pessoal, subjectivo, na perda do respeito e consideração que a pessoa tem por si própria, e ao nível social, objectivo, pela perda do respeito e consideração que a comunidade tem pela pessoa.
A lesão da honra pode não ser total – só em casos excepcionais o será – e limitar-se a um seu detrimento. A honra, neste caso, é lesada, mas não perdida (…) Todas as pessoas têm direito à honra pelo simples facto de existirem, isto é, de serem pessoas. É um direito inerente à qualidade e à dignidade humana. Mas as pessoas podem perder a honra ou sofrer o seu detrimento em virtude de vicissitudes que tenham como consequência a perda ou diminuição do respeito e consideração que a pessoa tenha por si própria ou de que goze na sociedade.
As causas de perda ou do detrimento da honra – de desonra – são, em termos muito gerais, acções da autoria da própria pessoa ou que lhe sejam imputadas, e que sejam consideradas reprováveis na ordem ética vigente, quer ao nível da própria pessoa, quer ao nível da sociedade.”.

Como esclarece o Professor Beleza dos Santos, RLJ, Ano 92º, pág. 164, a honra “(…) é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale, e que a consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal forma que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa ao desprezo público”.

A honra comporta, portanto, a dimensão interna/subjectiva (o eu moral ou psicológico), correspondendo à consideração por si próprio, à auto-estima, e a dimensão externa/objectiva (o eu social), correspondendo à ideia que os outros têm de nós, traduzindo-se no respeito que cada pessoa goza na comunidade a que pertence, isto é, na reputação, no bom nome, no crédito ou consideração exterior.

A afirmação e difusão de factos que sejam idóneos a prejudicar o bom-nome de qualquer pessoa acarretam responsabilidade civil (extracontratual), implicam a obrigação de indemnizar, conforme previsto no citado art. 484º, do Código Civil, o qual prevê caso particular de ilicitude, mas não dispensa a cumulativa verificação dos restantes requisitos da obrigação de indemnizar acima enunciados (culpa, dano e nexo de causalidade).

Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª edição, 1991, pág. 453, esclarece, a propósito do mencionado art. 484º, que, “Conforme se infere da lei, tem de haver a imputação de um facto, não bastando alusões vagas e gerais. Parece indiferente, todavia, que o facto afirmado ou difundido seja verdadeiro ou não. Apenas interessa que, dadas as circunstâncias concretas, se mostre susceptível de afectar o crédito ou a reputação da pessoa visada - pessoa singular ou colectiva, devendo considerar-se incluídas nesta última categoria as sociedades”.

Também Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 9ª edição, págs. 567-568, afirma, quanto a este art. 484º, que “pouco importa que o facto afirmado ou divulgado seja ou não verdadeiro – contanto que seja susceptível, ponderadas circunstâncias do caso, de diminuir a confiança na capacidade e na vontade da pessoa para cumprir as suas obrigações (prejuízo do crédito) ou de abalar o prestígio de que a pessoa goze ou o bom conceito em que ela seja tida (prejuízo do bom nome) no meio social em que vive ou exerce a sua actividade”.

Conforme se sumariou no Ac. do STJ de 10.7.2008, proc. n.º 08P1410, “X - A ofensa ao crédito resultará da divulgação de facto que tenha como consequência a diminuição ou a afectação da confiança sobre a capacidade de cumprimento das obrigações da pessoa visada; a ofensa ao bom-nome abala o prestígio e a consideração social de que uma pessoa goze, perturbando o conceito e a apreciação positiva com que alguém é considerado no meio social onde se insere e se desenvolve a sua vida: o prestígio coincide, assim, com a consideração social das pessoas, que se projecta em perspectiva relacional entre a pessoa e o meio social.” (sublinhados nossos).

Retomando o caso vertente verifica-se que se encontra provado que o autor, ora recorrido, começou a ser rotulado de “drogado” e “traficante” em consequência das notícias publicadas, sendo que a PSP informou os órgãos de comunicação social apenas de que o teste rápido dera o produto apreendido no automóvel como sendo heroína, sem identificar os ocupantes do veículo (cfr. facto S)).

Assim, cumpre apreciar se tal actuação da PSP ofende o bom nome do recorrido.

Do acima exposto resulta que, para que ocorra tal ofensa, é necessária a imputação de um facto, não bastando alusões vagas e gerais, a determinada pessoa que seja capaz, isto é, idónea a abalar o prestígio e a consideração social de que a mesma goza.

Ora, na informação divulgada pela PSP não se identificam os ocupantes do veículo automóvel, nomeadamente o recorrido, pelo que não se pode considerar que o recorrente, através dos seus agentes, imputou ao recorrido a posse de produto que, após a realização do teste rápido, revelou ser heroína.

Dito por outras palavras, da informação divulgada pela PSP, à qual se alude em S), dos factos provados, não resulta qualquer indício de que o recorrido era um dos ocupantes do veículo no qual foi apreendido produto que, após a realização do teste rápido, revelou ser heroína, e, muito menos, que tal produto estava na sua posse.

Tal identificação antes resultou dos elementos constantes das notícias divulgadas nos meios de comunicação social – cfr. factos G) [no Doc. 2 apenas constam as notícias publicadas no Diário de Notícias e no Jornal da Madeira, mas das mesmas resultam vários elementos de identificação do recorrido, pois é feita referência maxime ao grau de parentesco dos ocupantes do veículo, às respectivas idades, à gravidade dos ferimentos que o mais velho apresenta e aí constam fotografias do veículo acidentado, onde é visível designadamente parte da matrícula] e S) -, os quais não foram obtidos através da informação divulgada pela PSP.

Na sentença recorrida considerou-se que a PSP praticou um facto ilícito porque “(…) divulgou aos media, com erro de seu equipamento, que encontrara no carro do A. heroína, quando afinal se apurou que o pó não era droga” (sombreado e sublinhado nossos), mas sem razão, pois da factualidade dada como assente resulta apenas que a PSP divulgou ter encontrou num veículo produto que, após realização do teste rápido, revelou ser heroína, sem identificar os ocupantes, ou seja, encontra-se provado que a PSP não divulgou que tal veículo era do autor, ora recorrido.

Assim, não sendo feita qualquer referência individualizada ao recorrido na informação divulgada pela PSP, isto é, aí não sendo imputado ao recorrido qualquer facto, não se pode considerar que foi violado o seu bom nome, ou seja, a conduta da PSP – traduzida na divulgação da informação descrita em S), dos factos provados - não pode ser considerada ilícita.

A existir conduta ilícita a mesma apenas poderia ser imputada aos órgãos de comunicação social, os quais divulgaram a notícia em causa com inclusão de vários elementos de identificação do recorrido, os quais não foram fornecidos pela PSP, ou seja, só em tais notícias existe a imputação de um facto ao recorrido (capaz de abalar o prestígio e a consideração social de que o mesmo goza).

Ora, recaindo sobre o recorrido o ónus de provar os pressupostos da responsabilidade civil, concretamente o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo causal, os quais são de verificação cumulativa, a falta de prova de qualquer deles – in casu do requisito relativo à ilicitude - resolve-se contra o mesmo, nos termos do art. 342º n.º 1, do Código Civil.

Assim, deveria ser revogada a decisão recorrida, por a mesma enfermar de erro de julgamento, e, em consequência, julgada totalmente improcedente a presente acção, absolvendo-se o réu, ora recorrente, do pedido.