Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1729/09.3BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:02/20/2025
Relator:CRISTINA COELHO DA SILVA
Descritores:AUDIÊNCIA PRÉVIA
Sumário:I- Em sede de Direito Tributário, o artigo 60º da Lei Geral Tributária esclarece em que situações essa audiência prévia deve ocorrer, concedendo aos contribuintes a possibilidade de participarem nas decisões que lhes digam respeito em matéria tributária, designadamente por imperativo constitucional.
II– Tendo a AT proferido uma decisão de indeferimento duma reclamação graciosa com base em novos elementos que, entretanto, obteve junto de entidades terceiras, e sobre os quais o contribuinte não foi chamado a pronunciar-se, ocorreu violação do aludido direito o que conduz à preterição duma formalidade essencial que tem como consequência a anulabilidade do ato.
III– O princípio do aproveitamento dos atos administrativos não pode aplicar-se quando não seja possível, num juízo de prognose póstuma, concluir que o ato praticado teria o mesmo conteúdo do ato praticado.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul





I – RELATÓRIO


R......., com demais sinais nos autos, na qualidade de cabeça de casal da herança indivisa por óbito de C........, na sequência de indeferimento de reclamação graciosa, deduziu impugnação judicial contra o ato de liquidação de IRS referente ao exercício de 2004 e respetivos juros de mora, no montante global de € € 132.546,43.


*


O Tribunal Tributário de Lisboa, por decisão de 10 de Outubro de 2020, determinou a anulação da decisão da reclamação graciosa.


***


Inconformada com a decisão, a Recorrente, Fazenda Pública, interpôs recurso da mesma tendo formulado as seguintes conclusões:


“CONCLUSÕES:


a. Visa o presente recurso reagir contra a douta decisão que julgou a Impugnação Judicial procedente, e, em consequência, anulou a decisão da reclamação graciosa respeitante à liquidação de IRS n.º ..........00, referente ao ano de 2004, que resultou no apuramento de Imposto a pagar no montante de € 132.546,43, com as legais consequências.


b. Decidiu o douto tribunal a quo que o direito de audiência não podia deixar de ser assegurado e que não o tendo sido se preteriu formalidade essencial para de seguida concluir pela anulação da decisão da reclamação graciosa.


c. Resulta da matéria de facto provada que o Impugnante foi notificado para exercer o seu direito de audição prévia em relação à intenção da Administração Fiscal de indeferir a reclamação graciosa e que o mesmo exerceu o seu direito de audição.


d. A AT procedeu à análise do direito de audição exercido pelo Impugnante e posteriormente elaborou e notificou a decisão final de indeferimento da reclamação graciosa.


e. Considerando que a AT apenas respondeu aos argumentos e meios probatórios adicionais apresentados e apenas complementou a fundamentação em função desses elementos, não decorria o dever de notificar novamente o sujeito passivo, para efeitos de direito de audição atento o disposto no artigo 60.º, n.º 3, da LGT, contrariamente ao que foi decidido pelo tribunal a quo.


f. Caso assim não se entenda sempre se dirá que atento o princípio do aproveitamento dos atos administrativos determinaria a sanação desta eventual irregularidade, porquanto, expurgado o vício que o inquina – se tivesse sido precedido de uma segunda audiência prévia - o ato continuava a ter o mesmo conteúdo decisório do ato impugnado


g. Em face dos elementos adicionais apresentados em sede de direito de audição, a AT concluiu que também a alienação dos prédios sob a designação dos artigos 223 e 32, em 14-10-2004 pelo valor de €75.000,00 e € 20.000,00, respetivamente, eram passíveis de tributação em sede da Categoria G (mais-valias) em função do disposto no artigo 10.º, n.º 1 al. a) do CIRS. Conjugado com o prescrito no artigo 5.º n.º 1 do Decreto-lei n.º 442-A/88, de 30/11 e artigo 1.º §2.º do Código do imposto de Mais-Valias/CIMV.


h. A referida fundamentação já havia sido apresentada no projeto de decisão em relação ao prédio sob o artigo 35, pelo que não se tratou de uma argumentação nova, o Impugnante já conhecia a interpretação da AT em relação à referida legislação.


i. Pelo que perante os elementos trazidos em sede de direito de audição e os elementos constantes no processo de reclamação graciosa, não poderia a AT decidir de outro modo, pois não corresponde ao exercício de um poder discricionário, mas sim a um ato vinculado, sujeito ao princípio da legalidade.


j. Assim, é possível concluir, sem margem para dúvidas, que se o Impugnante tivesse sido novamente ouvido antes da decisão final, a sua intervenção no procedimento não poderia ter provocado uma reponderação da situação e, desse modo, influir na decisão final.


k. A degradação de formalidade em formalidade não essencial ocorre quando, atentas as circunstâncias, a intervenção do interessado se tornou inútil porque independentemente da sua intervenção e das posições que o mesmo pudesse tomar, a decisão da Administração só pudesse ser aquela que foi tomada, como é o caso dos autos.


l. Ainda que o ato impugnado não tenha sido precedido de audiência prévia, o princípio do aproveitamento dos atos administrativos determina a sanação desta eventual irregularidade, expurgado o vício que o inquina, o ato continua a ter o mesmo conteúdo decisório do ato impugnado, pois subsistem fundamentos exatos bastantes para suportar a validade do ato, conforme supra referido.


m. Pelo exposto, a douta sentença ao decidir pela ilegalidade da decisão de indeferimento da reclamação graciosa violou as normas previstas nos artigos 60.º, n.º 3, da LGT e 163.º, n.º 5, do CPA.


n. Com efeito, é forçoso concluir, salvo melhor entendimento, que a sentença recorrida enferma de vício de violação de lei, devendo ser a mesma revogada e ser decidido pela legalidade da decisão da reclamação graciosa respeitante à liquidação de IRS n.º ..........00, referente ao ano de 2004.

Nos termos supra expostos, e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que julgue a impugnação judicial totalmente improcedente.

PORÉM V. EX.AS DECIDINDO FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA”

***


A Impugnante, devidamente notificada, apresentou contra-alegações nas quais pugnou pela manutenção da decisão.


***


O Exmo. Procurador-Geral Adjunto do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo, devidamente notificado para o efeito, ofereceu aos autos o seu parecer no sentido da procedência do recurso da Fazenda Pública.


***


Colheram-se os vistos dos Juízes Desembargadores adjuntos.


***


DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO


Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, em consonância com o disposto no art. 635º do CPC e art. 282º do CPPT, são as conclusões apresentadas pelo recorrente nas suas alegações de recurso, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer, ficando, deste modo, delimitado o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem.


No caso que aqui nos ocupa, as questões a decidir consistem em saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de facto e de Direito ao ter considerado violado o direito de audição prévia antes da liquidação.


***


II – FUNDAMENTAÇÃO


- De facto


A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:


“1) O ora Impugnante apresentou em 25.05.2005, na qualidade de cabeça de casal da herança de seu falecido Pai, C........, a declaração modelo 3 de IRS para efeitos de liquidação daquele imposto, limitada ao dia 22 do mês de Outubro de 2004, data em que se deu o óbito.


2) Em 22 de Setembro de 2005, o Impugnante veio apresentar declaração de rendimentos de substituição modelo 3, via internet, respeitante ao ano de 2004, pretendendo alterar os valores declarados no anexo G - cf. docs. de fls.2 ,129 e 130 do Processo de Reclamação Graciosa (PRG) apenso, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.


3) A declaração de substituição foi convolada em reclamação graciosa, dando lugar ao processo cujos termos correm pela Divisão de Justiça Administrativa da Direção de Finanças de Lisboa (Proc. N.º REC ……..) - cf. fls.2 do PRG apenso, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.


4) O ora Impugnante foi notificado pela Administração Fiscal para apresentar os documentos constantes do ofício n.º………, de 11.12.2006, designadamente documentos comprovativos respeitantes à aquisição e alienação, tais como escritura de compra e venda dos bens devidamente discriminados no referido ofício, cuja alienação declarou no anexo G da declaração apresentada inicialmente - cf. doc. de fls.16 do PRG apenso.


5) Em 22.12.2004 o ora Impugnante apresentou alguns documentos dos solicitados - cf. docs. de fls.17 a 52 do PRG apenso, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.


6) No PRG, o Impugnante foi notificado para exercer o seu direito de audição prévia em relação à intenção da Administração Fiscal de indeferir a reclamação graciosa de acordo com os fundamentos constantes da informação de fls.156 e seguintes do PRG anexo aos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.


7) O Impugnante exerceu o seu direito de audição - cf. doc. de fls.165 a 174 do PRG apenso, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos fiscais.


8) O Impugnante foi notificado em 02 de Setembro de 2009 do despacho proferido pelo Diretor de Finanças Adjunto de Lisboa, no processo de reclamação graciosa, indeferindo o pedido do reclamante - cf. docs. n.ºs 2 e 3 juntos com a petição inicial.


9) Em relação ao prédio urbano inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo 223º da freguesia de Póvoa de Santa Iria, estariam apenas sujeitos a tributação os ganhos obtidos com a alienação de 11/16, e em relação ao prédio urbano inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo 32º da freguesia de Vialonga, estariam apenas sujeitos a tributação os ganhos obtidos com a alienação de 3/8 - cf. fls.157 do PRG apenso, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.


10) O falecido contribuinte adquiriu metade do prédio urbano inscrito na matriz predial respectiva da freguesia de Póvoa de Santa Iria sob o artigo …… por permuta, através de escritura realizada em 22 de Julho de 1972; adquiriu mais 3/16 desse prédio por partilha subsequente à morte de sua Mãe, A.........., ocorrida em 23 de Março de 1974; e, adquiriu os 5/16 restantes por permuta, através de escritura realizada em 11 de Agosto de 1980 - cf. certidão emitida pela 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira, com o teor da descrição e de todas as inscrições sobre o prédio em causa, junta pelo Impugnante ao processo de reclamação graciosa com o seu requerimento de 3/4/2008.


11) O falecido contribuinte adquiriu 3/8 do prédio urbano inscrito na matriz predial respectiva da freguesia de Vialonga sob o artigo ….. por partilha subsequente à morte de sua Mãe, A.........., ocorrida em 23 de Março de 1974 e os 5/8 restantes por permuta, através de escritura realizada em 11 de Agosto de 1980 - cf. certidão emitida pela 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira, com o teor da descrição e de todas as inscrições sobre o prédio em causa, junta pelo Impugnante ao processo de reclamação graciosa com o seu requerimento de 3/4/2008.”


***


A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte:


“Não existem outros factos com relevância para a apreciação do mérito dos autos.”


*


Ao abrigo do disposto no artigo 662º, nº 1 do CPC, aditam-se, oficiosamente, os seguintes factos:


12. Em 31/11/2007 foi elaborado um projeto de decisão sobre a reclamação graciosa melhor identificada no ponto 3 deste probatório, da qual consta, com relevo para a decisão o seguinte:


“(texto integral no original; imagem)”








(cfr. docs. de fls. 155 a 160 do processo instrutor junto aos autos);


13. No exercício de audição prévia, defendeu o Impugnante que os prédios inscritos nas matrizes……, da freguesia da Póvoa de Santa Iria, e 32 da freguesia de Vialonga haviam sido totalmente adquiridos pelo falecido, antes de 01/01/1989, e relativamente ao prédio inscrito na matriz rústica sobe o artigo ….. da freguesia de Arruda dos Vinhos que o mesmo rústico à data da entrada em vigor do CIRS (cfr. docs. de fls. 165 a 169 do processo instrutor junto aos autos);


14. Em 11/08/2009 foi elaborada a informação final sobre o pedido de reclamação graciosa, da qual consta, com relevo para a decisão o seguinte:


“(texto integral no original; imagem)”





“(texto integral no original; imagem)”











“(texto integral no original; imagem)”





“(texto integral no original; imagem)”








“(texto integral no original; imagem)”





“(texto integral no original; imagem)”


“(texto integral no original; imagem)”








(cfr. doc. de fls. 258 a 275 do processo instrutor junto aos autos).


***


III . Do Direito


Na presente sede recursória insurge-se a Fazenda Pública quanto ao decidido pelo Tribunal a quo em virtude de considerar que a decisão da reclamação graciosa apenas respondeu ao aduzido pelo Recorrido em sede de audiência prévia e complementou essa fundamentação com elementos trazidos aos autos pelo mesmo.


Já o recorrido sustenta que a decisão recorrida se deve manter, desde logo, porque a decisão da reclamação graciosa foi sustentada em factos novos, nunca antes esgrimidos pela AT no projecto que lhe havia sido notificado para pronúncia antes da decisão.


O Tribunal a quo, depois de estabelecer o quadro legal aplicável, ancorou a decisão recorrida da seguinte forma:


No caso sub judice, o Impugnante interpôs reclamação graciosa da liquidação adicional e neste meio de reação administrativa teve a oportunidade de se pronunciar, como efetivamente se pronunciou, sobre as questões relativamente às quais lhe foi previamente concedida a faculdade de se pronunciar previamente à liquidação.


(…)


Resulta dos factos considerados provados por este tribunal, que, o Impugnante, teve conhecimento de uma fundamentação – a proferida em sede de projeto de decisão da reclamação graciosa, mas essa mesma fundamentação foi alterada aquando da decisão de indeferimento da reclamação graciosa.


Significa isto que, ao contrário do explicitado na decisão de indeferimento da reclamação graciosa, com esta decisão passou a ser exigido ao contribuinte um novo ónus probatório que deverá assentar em novos factos que poderiam ter sido, desde logo, apresentados em sede de direito de audição.


O que resulta claramente do confronto do teor do projeto de decisão da reclamação graciosa com o conteúdo do despacho de indeferimento da reclamação graciosa.


O Impugnante poderia ter efetuado uma diferente análise aos novos factos/argumentos trazidos pela Administração Fiscal, no exercício do seu direito de audição, se essa possibilidade tivesse tido, que poderia ter influenciado a decisão final da reclamação graciosa, permitindo uma decisão de deferimento total ou, até, parcial.


Mas, mais importante do que ter influenciado decisivamente ou não a decisão da reclamação graciosa, a Autoridade Tributária deveria ter permitido que o Impugnante, ao abrigo do artigo 60.º da LGT, se tivesse pronunciado sobre esta nova fundamentação das liquidações adicionais de IRS que alterou o projeto de decisão da reclamação graciosa sobre o qual o ora Impugnante exerceu o seu direito de audição prévia.


Como resulta dos documentos infra, existe de facto uma alteração nos fundamentos que a Administração Fiscal teve em conta no projeto de decisão da reclamação graciosa, sobre o qual o Impugnante se pronunciou e, os fundamentos que serviram de base à decisão da reclamação graciosa, com implicações diretas no teor da decisão. Fundamentos nunca antes notificados ao Impugnante, que por isso, não teve oportunidade de interferir na mesma.


Do que resulta, que, no âmbito do PRG, o Impugnante foi notificado para exercer o seu direito de audição prévia em relação à intenção da Administração Fiscal de indeferir a reclamação graciosa de acordo com os fundamentos constantes da informação de fls.156 e seguintes do processo de reclamação.


O Impugnante foi notificado em 02 de Setembro de 2009 do despacho proferido pelo Diretor de Finanças Adjunto de Lisboa, no processo de reclamação graciosa, indeferindo o pedido do reclamante.


Do projecto de decisão da reclamação graciosa consta, conforme resulta da matéria de facto considerada provada, relativamente ao prédio urbano inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ……..º da freguesia de Póvoa de Santa Iria, estariam apenas sujeitos a tributação os ganhos obtidos com a alienação de 11/16, e em relação ao prédio urbano inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo …..º da freguesia de Vialonga, estariam apenas sujeitos a tributação os ganhos obtidos com a alienação de 3/8.


Da informação com base na qual foi proferido o despacho de indeferimento da reclamação graciosa (Informação de fls.259 e seguintes do respetivo processo), a posição da Administração Tributária em relação à tributação dos ganhos obtidos com a alienação dos prédios urbanos em causa alterou-se.


A Administração Tributária, apesar de reconhecer que o Impugnante em sede do exercício do direito de audição prévia, fez prova de que ambos os prédios em causa haviam sido adquiridos, na sua totalidade, em data anterior a 1 de janeiro de 1989, invocou nessa 2ª Informação novos elementos que levaram a reformular o projeto de decisão, passando a considerar-se estarem sujeitos a tributação todos os ganhos obtidos com a alienação desses prédios (cf. fls.267 do PRG que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais).


Da reformulação do projeto de decisão, resulta a conclusão de que os ganhos a tributar seriam no valor de €199.737,86, valor superior ao que constava da primeira informação, sobre a qual o Impugnante foi notificado para exercer o direito de audição prévia.


O Impugnante não foi notificado para exercer o seu direito de audição prévia em relação à reformulação do projeto de decisão feita pela Administração Tributária com base nos novos elementos invocados na 2ª Informação. (…)


A audiência dos interessados destina-se essencialmente a permitir a sua participação nas decisões que lhes dizem respeito, contribuindo para um cabal esclarecimento dos factos e uma mais adequada e justa decisão, a omissão dessa audição constitui a preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade dessa decisão, a menos que seja manifesto que a decisão viciada só podia, em abstrato, ter o conteúdo que teve em concreto.


Com efeito, a jurisprudência do STA tem formado uma sólida orientação no sentido de que os vícios de forma não impõem, necessariamente, a anulação do ato a que respeitam, e que as formalidades procedimentais essenciais se degradam em não essenciais se, apesar delas, foi dada satisfação aos interesses que a lei tinha em vista ao prevê-las – veja-se acórdão do STA de 27/1/2016, Processo 0174/15.


Consequentemente, a formalidade em causa (essencial) só se degrada em não essencial, não sendo, por isso, invalidante da decisão, nos casos em que a audiência prévia não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, o que impõe o aproveitamento do ato.


O que daí resulta é que, por força do princípio geral de aproveitamento do ato administrativo e por razões de segurança jurídica e economia processual, o ato administrativo, apesar de inválido, não deve ser anulado quando, designadamente, o seu conteúdo não podia ser outro e não haja interesse relevante na sua anulação e, bem assim, quando se comprove, sem margem para dúvidas, que o vício formal não teve qualquer influência na decisão e que a decisão tomada era a única concretamente possível.


Todavia, no caso em análise, não pode dar-se por seguro que o exercício do direito de audiência não teria qualquer relevância na decisão da reclamação graciosa, posto que o Impugnante, face ao teor da proposta de decisão, podia procurar convencer a Administração da fragilidade da sua retórica argumentativa, induzindo-a a compatibilizar a factualidade aceite com a observância da legalidade que teve de vir defender nesta impugnação.


Até porque, como se verifica pelo teor da fundamentação da decisão proferida na reclamação graciosa, nela trouxeram-se à colação argumentos que não constavam do projeto de decisão da reclamação impugnada.


Não é, pois, possível a formulação de um juízo de prognose póstuma que leve o tribunal a concluir que sempre seria o mesmo o conteúdo da decisão caso tivesse havido lugar à audição do Impugnante relativamente às alterações apresentadas em relação ao projeto de decisão sobre o qual exerceu o seu direito de audição prévia.


Nesta perspetiva, tem de concluir-se que o direito de audiência não podia deixar de ser assegurado e que não o tendo sido se preteriu formalidade essencial, o que acarreta a anulação da decisão final da citada reclamação graciosa, de modo a permitir que seja assegurada a reponderação da concreta situação tributária à luz dos elementos e das considerações que o Impugnante possa eventualmente trazer nos termos do artigo 60.º da LGT.


Face ao exposto, resta concluir pela procedência da tese do Impugnante.


Adiantamos, desde já, que a sentença recorrida não merece a censura que lhe é dirigida pela Recorrente.


Comecemos por convocar o quadro legal aplicável aos autos.


O artigo 60º da LGT, à data dos factos, determinava o seguinte:


“1 - A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:


a) Direito de audição antes da liquidação;


b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições;


c) Direito de audição antes da revogação de qualquer benefício ou acto administrativo em matéria fiscal;


d) Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indirectos, quando não haja lugar a relatório de inspecção;


e) Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspecção tributária.


2 - É dispensada a audição:


a) No caso de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe seja favorável;


b) No caso de a liquidação se efectuar oficiosamente, com base em valores objectivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito.


3 - Tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais ainda se não tenha pronunciado.


4 - O direito de audição deve ser exercido no prazo a fixar pela administração tributária em carta registada a enviar para esse efeito para o domicílio fiscal do contribuinte.


5 - Em qualquer das circunstâncias referidas no n.º 1, para efeitos do exercício do direito de audição, deve a administração tributária comunicar ao sujeito passivo o projecto da decisão e sua fundamentação.


6 - O prazo do exercício oralmente ou por escrito do direito de audição, não pode ser inferior a 8 nem superior a 15 dias.


7 - Os elementos novos suscitados na audição dos contribuintes são tidos obrigatoriamente em conta na fundamentação da decisão.”


Este direito que é conferido pela Lei Geral Tributária de participação dos contribuintes nas decisões que lhe sejam desfavoráveis, decorre da própria Constituição da República Portuguesa que no seu artigo 267º, nº 5, onde se estabelece que todos os cidadãos podem participar nas decisões que lhe digam respeito. Estamos aqui perante uma tutela preventiva contra eventuais lesões dos direitos ou interesses dos administrados.


Em sede geral, o artigo 12º o Código do Procedimento Administrativo concretiza este direito em sede de Direito Administrativo, ao estabelecer que os órgãos da Administração Pública devem assegurar a participação dos particulares, na formação das decisões que lhes disserem respeito, designadamente através da respetiva audiência. Os termos em que esta audiência se realiza vêm estabelecidos os arts. 121º a 125º daquele diploma legal.


Em sede de Direito Tributário, o artigo 60º da Lei Geral Tributária, como vimos, esclarece em que situações essa audiência prévia deve ocorrer, concedendo aos contribuintes a possibilidade de participarem nas decisões que lhes digam respeito em matéria tributária.


Acresce que o próprio CPPT, no seu art. 45º, nº 1, vem também reconhecer este direito à participação dos contribuintes na formação das decisões.


No momento em que é concedido o direito dos particulares se pronunciarem sobre uma determinada proposta de decisão, devem ser-lhes dado a conhecer todos os aspetos relevantes para a decisão, quer no que respeita aos factos, quer no que respeita ao direito aplicável, bem como sobre as provas carreadas para o procedimento que sustentam a proposta de decisão.


Como lapidarmente é sumariado no Acórdão do STA de 25/06/2008, no processo nº 392/08 “O exercício do direito de audiência prévia constitui uma importante manifestação do princípio do contraditório e uma sólida garantia de defesa dos direitos do administrado, sendo reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência como um princípio estruturante da actividade administrativa cuja violação ou incorrecta realização se traduz numa violação de uma formalidade essencial que, em princípio, é determinante da ilegalidade do próprio acto.”


É também exemplarmente esclarecedor o afirmado no Aresto aquele mesmo Supremo Tribunal de 19/04/2017, no recurso nº 11014/16, “IV - O direito de audição não é uma mera perda de tempo no procedimento tributário. É uma preciosa oportunidade para a Administração Tributária, que prossegue apenas interesses de legalidade estrita, avaliar as situações concretas, tão cedo quanto possível de molde a garantir que cobra eficazmente tudo o que é devido e apenas o que é devido, seguindo um processo justo, equitativo e eficiente.”


De tudo o afirmado decorre que os contribuintes devem ser ouvidos antes da tomada duma decisão que lhe seja desfavorável, sendo que apenas nas situações legalmente estabelecidas pode ser afastado este direito à participação.


Baixando agora ao caso dos autos decorre do recorte probatório fixado que:


- O Recorrido apresentou uma declaração de substituição, na qualidade de cabeça-de-casal da herança do seu pai, a qual foi, corretamente, convolada em reclamação graciosa;


- Considerando a AT que necessitava de mais elementos para tomar uma decisão sobre a questão, notificou o Recorrido para este apresentar elementos, o que este cumpriu;


- Em face dos elementos coligidos, foi elaborada uma informação no sentido de indeferir o seu pedido e corrigir a declaração por si apresentada com determinados fundamentos, tendo notificado o Recorrido para este se pronunciar sobre aquela concreta informação e aquele concreto sentido de decisão;


- Em face do direito de audição do Recorrido a AT analisa de novo o processo e, deixando cair determinados argumentos e factos para sustentar a sua decisão, lança mão de novos elementos, que anteriormente não haviam sido dados a conhecer ao contribuinte, e decide a reclamação graciosa, não com base nos fundamentos sobre os quais o contribuinte havia sido inicialmente ouvido, mas com base em novos fundamentos, factos e elementos probatórios que, entretanto, carreou para o processo, como bem resulta do confronto entre o projeto de decisão transcrito no ponto 12 da matéria de facto agora aditada, com a decisão final da reclamação transcrita no ponto 15 da matéria de facto também aditada por este Tribunal.


O fundamento do indeferimento da reclamação foi, não já a circunstância de os prédios, quer o inscrito na matriz predial sob o artigo 223, da freguesia da Póvoa de Santa Iria, quer o inscrito na matriz predial sob o artigo 32º, da freguesia de Vialonga, terem sido apenas parcialmente adquiridos antes de 1/01/1989, como constava do projeto de decisão que havia sido notificado ao Recorrido para pronúncia prévia, mas agora a circunstância de os mencionados imóveis serem lotes de terreno para construção e sobre os quais existia um alvará de construção. Também relativamente ao imóvel inscrito na matriz sob o artigo 26, nunca antes questionado como, aliás, é admitido na própria informação final, também foram efetuadas correções. Ora, estes factos são factos novos que nunca havia constituído fundamento para indeferimento.


Sobre estes novos factos e fundamentos, nunca foi o Recorrido foi ouvido.


Assim, quando lhe foi notificada a decisão esta constituiu uma surpresa, pois desconhecia, não apenas os novos factos que a AT havia carreado para o processo administrativo, como não conhecia, também, os novos fundamentos invocados para sustentar a decisão de indeferimento.


Mas mais, esta nova decisão, alterava também o quantum do imposto a pagar pelo Recorrido. Na verdade, enquanto no projeto de decisão de que o contribuinte havia sido notificado o valor a pagar de IRS do exercício de 2004 era no montante de € 144.524,86, já na decisão que lhe foi comunicada a valor do imposto a pagar era de € 152.888,53, como bem se refere na decisão sob recurso.


Ora, do exposto decorre de forma absolutamente transparente que não foi conferido ao Recorrido o direito a pronunciar-se sobre a nova decisão, pelo que a sentença recorrida não enferma do erro de julgamento que lhe é assacado devendo manter-se na ordem jurídica.


Advoga ainda a Recorrente que sempre se deveria ter julgado que o ato poderia ter sido aproveitado por o mesmo não ser passível de ter outro conteúdo.


Apreciemos.


O princípio do aproveitamento do ato administrativo, que hoje encontra consagração legal no nº 5 do artigo 163º do Código de Procedimento Administrativo, tem ínsito a demonstração, inequívoca, nas concretas circunstâncias do caso, que o vício de que padece não implicaria uma alteração do seu conteúdo essencial, ou seja, quando seja seguro afirmar que o novo ato a emitir, isento desse vício, não poderia deixar de ter o mesmo conteúdo decisório que tinha o ato impugnado.


Mesmo antes desta consagração legal, já a nossa jurisprudência vinha aceitando este princípio, como podemos ver, a título de exemplo, no Aresto do STA de 2007/05/22, Proc. nº 0161/07, onde é afirmado: “(…) à face deste princípio não se justifica a anulação de um acto, (…), quando a existência desse vício não se veio a traduzir numa lesão em concreto para o interessado cuja proteção a norma visa, designadamente, no caso de um vício procedimental, quando a sua ocorrência não teve qualquer reflexo no procedimento administrativo


O mesmo Supremo Tribunal num Acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 2014.01.22, tirado no proc. nº 441/13, de forma absolutamente clarividente afirmou que: “a audiência prévia dos interessados não é um mero rito procedimental, a formalidade em causa (essencial) só se podia degradar em não essencial (não invalidante da decisão) se essa audiência não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, e se se impusesse, por isso, o aproveitamento do ato – utile per inutile non viciatur.


O que exige um exame casuístico, de análise das circunstâncias particulares e concretas de cada caso.”


Significa isto que se impõe que num juízo de prognose póstuma, seja possível e seguro afirmar que o novo ato, isento desse vício, não poderia deixar de ter o mesmo conteúdo decisório que tinha o ato impugnado, não se justificará a anulação do ato, por aplicação do princípio do aproveitamento dos atos.


Ora, tal não acontece no caso dos autos.


Na verdade, e contrariamente ao que é arguido pela Recorrente, seria sempre possível que o Recorrido, perante tais novos factos, viesse apresentar prova de que os imóveis em questão não eram lotes de terreno para construção, como aliás procurou fazer nos presentes autos, cabendo, então, à AT, em face dos novos elementos carreados para os autos administrativos, avaliar se os elementos que detém são ou não corretos, devem pronunciar-se sobre os elementos que o Recorrido possa juntar ao mesmo.


Na verdade, impõe-se a prova de que os imóveis em questão cumprem os requisitos do parágrafo 5º do artigo 1º do Código do Imposto de Mais-Valias, ou seja, que de acordo com o ali estabelecido, poderiam e deveriam ser considerados como lotes de terreno para construção.


Assim sendo, e num juízo de prognose póstuma, não podemos afirmar com a certeza necessária, que o ato a proferir teria exatamente o mesmo conteúdo do ato proferido, pelo que ao ter assim decidido, também a decisão recorrida não merece censura pelo que se impõe a sua manutenção na ordem jurídica.


*


CUSTAS


No que diz respeito à responsabilidade pelas custas do presente Recurso, atendendo ao seu total decaimento da Recorrente, as custas são da sua responsabilidade. [cfr. art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT].


***


III- Decisão


Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da Subsecção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.


Custas pela Recorrente, em ambas as instâncias.


Lisboa, 20 de Fevereiro de 2025


Cristina Coelho da Silva (Relatora)


Sara Diegas Loureiro


Ângela Cerdeira