Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 1638/18.5 BELSB-A |
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Secção: | CA |
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Data do Acordão: | 10/20/2022 |
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Relator: | DORA LUCAS NETO |
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Descritores: | ILEGITIMIDADE ATIVA SUSPENSÃO EFICÁCIA DE NORMAS ART. 130.º, N.º 2 E ART. 9.º, N.º 2, DO CPTA |
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Sumário: | ![]() |
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Aditamento: | ![]() |
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:
I. Relatório A Requerente ORDEM DOS ENFERMEIROS, veio interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, de 15.07.2022, proferida no âmbito do processo cautelar por si intentado contra o INEM – INSTITUTO NACIONAL DE EMERGÊNCIA MÉDICA, I.P., o MINISTÉRIO DA SAÚDE, e contra a ORDEM DOS MÉDICOS, mais tendo indicado como Contrainteressados, N... (e Outros). Na providência cautelar em apreço, a Requerente, ora Recorrente, havia requerido o decretamento da providência de «(…) suspensão de eficácia, com força obrigatória geral das normas regulamentares contidas nos Protocolos dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar, (…) e nas Memórias Descritivas dos Cursos de Formação dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar, definidos pelo INEM, I.P., com parecer prévio da Ordem dos Médicos e homologado pelo Ministério da Saúde (…)». O tribunal a quo julgou procedente a exceção de ilegitimidade ativa, suscitada que foi, em sede de oposição, pelos Requeridos, ora Recorridos, mais determinando, em consequência, a sua absolvição da instância. Nas alegações de recurso, concluiu, assim, como se segue – cfr. fls. 919 e ss., do SITAF: «(…) 1. Em causa no presente processo está a suspensão de normas regulamentares que constituem a regulamentação necessária à produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, diploma que veio proceder à revisão da carreira de técnico de ambulância de emergência (TAE) do INEM, IP, criando e definindo o regime da carreira especial de técnico de emergência pré-hospitalar, doravante designados por TEPH; 2. Em concreto, em causa no presente processo está a suspensão dos Protocolos dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar, através dos quais se definem os algoritmos de decisão a utilizar pelos TEPH no exercício das atividades associadas à emergência pré-hospitalar, aprovados pelo INEM, IP, previstos no Decreto-Lei 19/2016, de 15 de abril; 3. E ainda, a suspensão de eficácia das Memórias Descritivas dos Cursos de Formação dos TEPH, realizados pelo INEM, IP, com parecer prévio da Ordem dos Médicos, e homologado pelo Ministério da Saúde, que definem o teor da Formação que será ministrada aos TEPH durante o período experimental; 4. Atendendo a que ambos os documentos constituem a regulamentação necessária à produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 19/2016, resulta claro que não estamos no âmbito da atividade política, nem da atividade legislativa do Governo, mas sim no âmbito da sua atividade administrativa, a qual é sindicável pelos Tribunais Administrativos, em face da sua ilegalidade; 5. As normas regulamentares em causa são manifestamente ilegais, desde logo pela violação do Direito à Saúde, conforme concretizado na Lei de Bases da Saúde; 6. As normas regulamentares aqui em causa também são manifestamente ilegais por violação do disposto no Estatuto da Ordem dos Enfermeiros e do Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermeiros, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 161/96, de 4 de setembro; 7. Atendendo aos vícios invocados às normas regulamentares suspendendas a Ordem dos Enfermeiros tem legitimidade para a ação de impugnação das mesmas, com força obrigatória geral, enquanto associação no âmbito da ação popular, atento o seus fins e atribuições, e consequentemente para a providência cautelar de suspensão de eficácia das mesmos; 8. Ao longo do seu Requerimento Inicial, a Ordem dos Enfermeiros, ao abrigo do disposto no Artigo 3.º, que lhe confere a atribuição de proteger o Título de Enfermeiro e a profissão de Enfermeiro, limitou-se a invocar as ilegalidades das normas regulamentares, em especial o facto de através das mesmas se atribuírem competências reservadas aos Enfermeiros, a terceiros sem formação adequada e sem o Título de Enfermeiro. 9. Também ao longo do seu Requerimento Inicial, e em cumprimento do seu desígnio fundamental, de defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços de enfermagem e a representação e defesa dos interesses da profissão, a Ordem dos Enfermeiros apenas defende a ilegalidade dos normas regulamentes pela violação do Direito à Saúde dos cidadãos que recorrem ao INEM, IP, concretizado na Lei de Bases da Saúde que, na sua Base VI determina que “a formação do pessoal deve assegurar uma qualificação técnico-científica tão elevada quanto possível tendo em conta o ramo e o nível do pessoal em causa”; 10. Resulta claro que as normas regulamentares suspendendas põem em causa o exercício da profissão de Enfermeiros – atribuindo competências a terceiros que são reservadas aos Enfermeiros – mais pondo em risco o Direito à Saúde de todos aqueles que venham a recorrer aos serviços do INEM, IP prestados pelos TEPH, a Ordem dos Enfermeiros tem legitimidade para, perante os Tribunais, em representação dos que exercem a profissão de Enfermeiros, bem como dos cidadãos que pretendem aceder aos cuidados de saúde e de enfermagem a prestar pelo INEM, IP, pugnar pela ilegalidade dos mesmos, e consequentemente, pela suspensão da sua eficácia, com força obrigatória geral; 11. A Sentença incorre em erro de julgamento grosseiro ao considerar que a Ordem dos Enfermeiros não legitimidade porque “a defesa da saúde pública não constitui uma atribuição específica da requerente”, na medida em que, mesmo que se viesse tal afirmação é verdadeira, o que se prevê sem conceder, a verdade é que no presente processo não está em causa uma mera “defesa da saúde pública” mas sim a defesa do título de enfermeiro e da profissão de enfermeiro, a qual constitui uma atribuição específica da requerente, atendo o disposto no artigo 3.º do seu Estatuto; 12. Da mesma forma que não seria legal substituir os Juízes por técnicos com o 12.º ano, e uma ação de formação de 910 horas, também não é legal a substituição dos Enfermeiros por TEPH nas ambulâncias de Suporte Imediato de Vida e no Sistema Integrado de Emergência Médica, sendo que, nestes dois casos, há uma diferença: no primeiro caso, havendo um erro, os cidadãos poderiam recorrer para um Tribunal, com um Juiz, no segundo caso, havendo erro, o cidadão morre ou fica marcado para toda a vida por esse erro; 13. A Ordem dos Enfermeiros é a “associação pública profissional representativa dos que, em conformidade com o presente Estatuto e as demais disposições legais aplicáveis, exercem a profissão de enfermeiro”, a qual “tem como desígnio fundamental a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços de enfermagem e a representação e defesa dos interesses da profissão” (v. artigo1.º e 3.º/1 do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, aprovado pela Lei n.º 104/98, de 21 de abril, na versão introduzida pela Lei n.º 2/2013, de 16 de setembro); 14. A Ordem dos Enfermeiros tem como atribuições, entre outras, “proteger o título e a profissão de enfermeiro promovendo procedimento legal contra quem o use ou exerça a profissão ilegalmente” e “participar na elaboração da legislação que diga respeito à profissão de enfermeiro” (v. artigo 3.º/3 do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros). 15. A Ordem dos Enfermeiros tem como incumbência legal a de “representar os enfermeiros junto dos órgãos de soberania e colaborar com o Estado e demais entidades públicas sempre que estejam em causa matérias relacionadas com a prossecução das atribuições da Ordem, designadamente nas ações tendentes ao acesso dos cidadãos aos cuidados de saúde e aos cuidados de enfermagem” (v. 3.º/4 do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros); 16. Assim sendo, e porque em causa nos presentes autos estão normas regulamentares que permitem a prática de atos de Enfermagem por pessoas que não são Enfermeiros, bem como de atos que põem em causa o acesso aos cuidados de saúde e aos cuidados de enfermagem no âmbito do Sistema Integrado de Emergência Médica, resulta claro que a Ordem dos Enfermeiros tem legitimidade para a ação principal da qual depende a presente providência cautelar, e consequentemente tem legitimidade para a presente providência cautelar, enquanto Associação Pública que tem como desígnio fundamental a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços de enfermagem, com a incumbência de representar os enfermeiros junto dos órgãos de soberania, designadamente nas ações tendentes ao acesso dos cidadãos aos cuidados de saúde. (…)».
O Recorrido Ministério da Saúde contra-alegou, tendo concluído como se segue - cfr. fls. 947 e ss., do SITAF: «(…) a) As normas suspendendas, respeitantes à formação dos TEPH, não tratam de serviços de enfermagem, sendo que os interesses da profissão de enfermeiro, que inequivocamente incumbe à Ordem dos Enfermeiros defender, não constituem objeto das mesmas normas, a título principal ou acessório, visto que em lado algum dos documentos que as suportam são tratadas matérias próprias da profissão de enfermagem ou que relevem da prática de atos próprios desta profissão; b) Dos Protocolos de Atuação dos TEPH e das memórias descritivas dos cursos de formação destes técnicos, que suportam as normas suspendendas, não constam quaisquer provisões respeitantes ao título e à profissão de enfermeiro, nem as mesmas dispõem sobre formas de exercício da enfermagem e, muito menos, tratam de matérias de natureza legislativa conexas ou não com a profissão de enfermeiro suscetíveis de ditar a necessidade de proteção e participação que a requerente invoca; c) A situação dos autos, que diz exclusivamente respeito à formação dos TEPH, profissionais de saúde cujo conteúdo funcional, competências, carreira e respetivos requisitos de ingresso constam do Dec.-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, nada tem que ver com as atribuições estatutárias da Ordem dos Enfermeiros; d) Os Estatutos da OE, no que respeita aos seus “fins e atribuições”, não lhe conferem o direito ou o dever de pugnar com aqueles objetivos; logo, a requerente exorbita manifestamente das suas finalidades estatutárias; e) Não estão em crise quaisquer interesses que incumba à OE defender ou representar e dos quais seja titular, direta ou indiretamente, pelo que é evidente que se encontra a pleitear desprovida da necessária legitimação processual; f) A legitimidade das pessoas coletivas públicas e privadas para intentar o procedimento cautelar com vista à sua posterior impugnação, encontra-se restringida aos direitos e interesses que lhes cumpra defender; g) Não faz parte dos fins e atribuições da OE interferir em decisões de natureza político-administrativa relacionadas com a melhor governação e boa execução do SNS; h) A defesa da saúde pública não constitui uma atribuição específica da OE, pelo que esta carece de legitimidade para pedir a suspensão de eficácia, com força obrigatória geral, das normas regulamentares contidas nos Protocolos dos Técnicos de Emergência Hospitalar e nas Memórias Descritivas dos Cursos de Formação dos Técnicos de Emergência Hospitalar; i) E também não teria legitimidade ativa para intervir no pleito através de uma ação popular nos termos da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, visto que apenas possuem o direito de ação popular as associações e fundações especificamente defensoras, v.g., da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, da proteção ao consumo de bens e serviços, do património cultural e do domínio público. (…)»
Também o Recorrido INEM, I.P. contra-alegou, tendo concluído nos seguintes termos - cfr. fls. 962 e ss., do SITAF. «(…) I. Os Protocolos dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar e as Memórias Descritivas dos Cursos de Formação dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar definidos pelo INEM, I.P., visados pela Ordem dos Enfermeiros no presente processo cautelar, dizem respeito exclusivamente à formação dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar, nos termos do Decreto-Lei n.º 19/2016, de 15 de abril, nada dispondo quanto ao acesso à profissão de enfermeiro, o seu exercício (seja área funcional e/ou conteúdo funcional) e, em consequência, não ataca e/ou belisca a dignidade do exercício de enfermeiro; II. A Ordem dos Enfermeiros não tem por missão e/ou atribuições a defesa da saúde pública e qualidade de vida; III. A Ordem dos Enfermeiros litiga desprovida da necessária legitimidade processual IV. A sentença a quo mostra-se assim irrepreensível, devendo ser mantida em face da sua bondade, assim se fazendo a tão acostumada Justiça! (…)»
O DMMP junto deste tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do n.º 1 do art. 146.º e do n.º 2 do art. 147.º, ambos do CPTA, não emitiu pronúncia.
I. 1. Questões a apreciar e decidir Atentas as conclusões de recurso e respetivas alegações, importa apreciar e decidir se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento de direito ao ter considerado verificada a exceção dilatória de ilegitimidade ativa da Recorrente para peticionar a suspensão de eficácia, com força obrigatória geral, dos Protocolos de Atuação dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar (TEPH) e das Memórias Descritivas dos respetivos cursos de formação, que suportam as normas regulamentares suspendendas, ao abrigo do disposto nos art.s 112.º n.º 1 e 130.º n.º 1 e 2, ambos do CPTA.
II. Fundamentação II.1. De Facto O único facto provado constante da matéria de facto da sentença recorrida, fixada que foi, apenas, para conhecimento da exceção, é aqui transcrito ipsis verbis - cfr. fls.899 e ss., do SITAF: «(…) i) Do erro de julgamento de direito em que incorreu a sentença recorrida ao ter considerado verificada a exceção dilatória de ilegitimidade ativa da Recorrente, para peticionar a suspensão de eficácia, com força obrigatória geral, dos Protocolos de Atuação dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar (TEPH) e das Memórias Descritivas dos respetivos cursos de formação, que suportam as normas regulamentares suspendendas, ao abrigo do disposto nos art.s 112.º n.º 1 e 130.º n.º 1 e 2, ambos do CPTA. Para assim decidir, o Tribunal a quo atentou, em suma, no seguinte No âmbito de aplicação da norma contida no art. 130.º, n.º 2, do CPTA, que, sob a epígrafe «Suspensão de eficácia de normas», rege o seguinte: «2. O Ministério Público e as pessoas e entidades referidas no n.º 2 do artigo 9.º podem pedir a suspensão, com força obrigatória geral, dos efeitos de qualquer norma em relação à qual tenham deduzido ou se proponham deduzir pedido de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral.» Que o disposto no art. 9.º, n.º2, do CPTA, sob a epígrafe «Legitimidade ativa», dispõe, por seu turno, que «Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valor e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais». Na circunstância de, nos presentes autos, a Requerente, ora Recorrente, peticionar a «suspensão de eficácia, com força obrigatória geral, das normas regulamentares contidas nos Protocolos dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar, através dos quais se definem os algoritmos de decisão a utilizar pelos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar no exercício das actividades associadas à emergência pré-hospitalar, e nas Memórias Descritivas dos Cursos de Formação dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar, definidos pelo INEM, I.P., com parecer prévio da Ordem dos Médicos e homologado pelo Ministério da Saúde, as quais definem o teor da Formação ministrada aos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar no período experimental.» Na doutrina que decorre da Decisão Sumária proferida, em 06.03.2021, P. 27/21.9BALSB, pelo Supremo Tribunal Administrativo (1), da qual decorre, em síntese, que: «(…) a invocação da defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços de enfermagem, que serão interesses relacionados com a saúde e qualidade de vida dos utentes dos serviços de saúde (in casu, dos utentes do SNS), é um desígnio cuja obtenção está directamente associada àqueles que são os fins e atribuições da OdE. Se o acesso à profissão de enfermeiro e o exercício das respectivas funções estiverem devida e correctamente regulados, disso beneficiarão os destinatários dos serviços de enfermagem. Seja como for, o que importa sublinhar é que apenas possuem o direito de acção popular, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda, as associações e fundações defensoras, entre outros, da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, da protecção do consumo de bens e serviços, do património cultural e do domínio público (cfr. art. 1.º, n.º2, e art. 2.º, n.º1, da Lei n.º83/95, de 31.08, na sua actual redacção, que regula o direito de participação popular e de acção popular, conjugados com o art. 9.º do CPTA). Significa isto que uma associação possui legitimidade para intentar uma acção popular quando tem como fim institucional a tutela dos valores em causa na acção principal, e, por isso também, na acção cautelar. Uma previsão genérica e ampla no sentido da promoção de um determinado interesse – que, in casu, seria o da defesa da saúde pública e da qualidade de vida – não cria por si só um dever de protecção desse bem. Se assim fosse, qualquer associação que fizesse alusão, ainda que em termos estatutários, a um dever genérico de promoção da legalidade da actuação das entidades públicas teria legitimidade activa para intentar toda e qualquer acção popular, o que desvirtuaria o regime jurídico vigente, quer o da lei que regula a acção popular, que o do CPTA. No caso da OdE (…) basta atentar nos seus fins e nas suas atribuições para compreender que não tem como fim específico e primordial a tutela da saúde pública enquanto bem constitucionalmente protegido. Em face do exposto, também agora a requerente cautelar não poderia valer-se do artigo 130.º, n.º2, para vir defender em juízo a saúde e a qualidade de vida dos utentes do SNS». (sublinhados nossos) Contra o assim decidido insurge-se a Recorrente, alegando, em suma, que as normas regulamentares em causa são manifestamente ilegais, por violarem o direito à saúde, conforme concretizado na Lei de Bases da Saúde e por violação do disposto no Estatuto da Ordem dos Enfermeiros (EOE) e do Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermeiros (REPE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 161/96, de 04.09. – cfr. conclusões de recurso n.º 5 e 6. Considera a Recorrente que o seu desígnio fundamental – cfr. art. 3.º do EOE – comporta a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços de enfermagem, no qual se enquadra a peticionada defesa do direito à saúde dos cidadãos que recorrem ao INEM, além da representação e defesa dos interesses da profissão de enfermeiro. Cumpre decidir. Foi peticionado nos autos a suspensão de eficácia de normas, com eficácia geral, ao abrigo do art. 130.º, n.º 2, do CPTA, a saber, dos Protocolos dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar (TEPH), através dos quais são definidos os algoritmos de decisão a utilizar pelos TEPH no exercício das atividades associadas à emergência pré-hospitalar, aprovados pelo INEM, IP, previstos no Decreto-Lei 19/2016, de 15.04. e, bem assim, das Memórias Descritivas dos Cursos de Formação dos TEPH, realizados pelo INEM, IP, com parecer prévio da Ordem dos Médicos, e homologado pelo Ministério da Saúde, que definem o teor da Formação que será ministrada aos TEPH durante o período experimental. Neste pressuposto, e seguindo a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, que decorre da decisão de 06.03.2021, já citada nos autos, dúvidas não temos que a defesa da saúde pública em geral, e sem uma ligação concreta com a atividade profissional dos enfermeiros, não constitui uma atribuição específica da Recorrente, enquanto ordem profissional. Assim sendo, é certo que carece a Requerente, ora Recorrente, de legitimidade para, com esse fundamento, reagir às normas regulamentares contidas nos Protocolos dos Técnicos de Emergência Hospitalar e nas Memórias Descritivas dos Cursos de Formação dos Técnicos de Emergência Hospitalar, pedindo a sua suspensão de eficácia, com força obrigatória geral, ao abrigo do disposto nas disposições conjugadas dos art.s 130.º, n.º 2, e 9.º, n.º 2, do CPTA. E isto porque, «(…) a invocação da defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços de enfermagem, que serão interesses relacionados com a saúde e qualidade de vida dos utentes dos serviços de saúde (in casu, dos utentes do SNS), é um desígnio cuja obtenção está directamente associada àqueles que são os fins e atribuições da OdE. Se o acesso à profissão de enfermeiro e o exercício das respectivas funções estiverem devida e correctamente regulados, disso beneficiarão os destinatários dos serviços de enfermagem. Seja como for, o que importa sublinhar é que apenas possuem o direito de acção popular, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda, as associações e fundações defensoras, entre outros, da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, da protecção do consumo de bens e serviços, do património cultural e do domínio público (cfr. art. 1.°, n.° 2, e art. 2.°, n.° 1, da Lei n.° 83/95, de 31.08, na sua actual redacção, que regula o direito de participação popular e de acção popular, conjugados com o art. 9.° do CPTA). Significa isto que uma associação possui legitimidade para intentar uma acção popular quando tem como fim institucional a tutela dos valores em causa na acção principal, e, por isso também, na acção cautelar. Uma previsão genérica e ampla no sentido da promoção de um determinado interesse — que, in casu, seria o da defesa da saúde pública e da qualidade de vida — não cria por si só um dever de protecção desse bem. Se assim fosse, qualquer associação que fizesse alusão, ainda que em termos estatutários, a um dever genérico de promoção da legalidade da actuação das entidades públicas teria legitimidade activa para intentar toda e qualquer acção popular, o que desvirtuaria o regime jurídico vigente, quer o da lei que regula a acção popular, quer o do CPTA.» (2) (sublinhados nossos). Sendo evidente que os fins específicos e as atribuições da Recorrente – cfr. art. 3.° do Estatuto da Ordem Enfermeiros (EOE) (3) – não comportam a tutela da saúde pública enquanto bem constitucionalmente protegido, genericamente considerado, pois que este deve ser lido à luz do seu desígnio fundamental, de «defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços de enfermagem e a representação e defesa dos interesses da profissão» - cfr. art. 3.º, n.º 1, do EOE – e não outro, qual seja, a defesa dos interesses gerais dos destinatários dos serviços prestados por Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar, pois que é isso que pode ser posto em causa com as normas cuja suspensão de eficácia pretende obter. No mesmo pressuposto, carece também de legitimidade ativa a Recorrente, para levar a cabo o mesmo pedido de suspensão de eficácia de normas com força obrigatória geral, desta feita, com fundamento nas suas atribuições relativas ao acesso e exercício da profissão de enfermeiro - cfr. art. 3.º, n.ºs 2 e 3, alíneas i) e k), do EOE - que também invoca nos autos – cfr. conclusão n.º 8. E isto porque, por um lado, as referidas atribuições não lhe conferem legitimidade para tal, pois que as normas em causa dizem respeito a outra profissão, a de Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar. E, por outro lado, aplicando, mais uma vez, as disposições conjugadas dos art.s 130.°, n.° 2, do CPTA, art. 9.°, n.° 2, do mesmo Código, imperioso se torna concluir que, quando neste último se refere a «defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos», ao não ter a Recorrente enquadrado os interesses corporativos que elencou, num bem ou valor constitucionalmente protegido que lhe caiba proteger, nos termos supra expostos, não poderá fazer uso do meio processual previsto no art. 130.°, n.° 2, do CPTA, como fundamento para sustentar o pedido suspensão de normas com força obrigatória geral em apreço. Isto mesmo decorre da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo já citada nos autos e supra transcrita, em parte, ao aduzir expressamente que «(…) no que respeita ao pedido objecto da providência cautelar que agora se analisa, a suspensão de eficácia de normas com força obrigatória geral apenas pode ser requerida, nos termos do artigo 130.°, n.° 2, do CPTA, pelo Ministério Público e pelas “pessoas e entidades referidas no n.° 2 do artigo 9.°”, nos termos que aí se estabelecem.». É certo que o desenho e as opções político-legislativas das competências e atuação de cada uma das profissões aqui em causa pode ser conflituante, e a Recorrente pode com ele não concordar, mas a sua intervenção, enquanto ordem profissional, no procedimento de tomada das referidas decisões ou como reação a tais opções, deverá ser concretizado pelos meios legalmente previstos, designadamente, protegendo o título e a profissão de enfermeiro através da promoção do procedimento legal contra quem o use ou exerça a profissão ilegalmente e participar na elaboração da legislação que diga respeito à profissão de enfermeiro - - cfr. art. 3.º, n.º 3, EOE - a que também faz referência – cfr. conclusão n.º 14 -, ou através da intervenção do Provedor de Justiça, não sendo, porém, e face a todo o exposto, o recurso a tribunal, no caso em apreço, um deles. Nestes termos, imperioso se torna negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
III. Decisão Pelo exposto, acordam os juízes da secção do contencioso administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recuso e em manter a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Lisboa, 20.10.2022
Dora Lucas Neto
Pedro Nuno Figueiredo
Ana Cristina Lameira
(1) Disponível no SITAF. (2) Cfr. decisão STA, citado nos autos. (3) Aprovado pela Lei n.º 104/98, de 21.04, na versão introduzida pela Lei n.º 2/2013, de 16.09. |