Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:754/19.0BELLE
Secção:CT
Data do Acordão:11/07/2024
Relator:TIAGO BRANDÃO DE PINHO
Descritores:DECISÃO-SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
NULIDADE PROCESSUAL
VÍCIOS DA SENTENÇA
NULIDADE SENTENÇA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário:1 - O processo de Impugnação Judicial é uma sequência de atos jurídicos, praticados pelas partes, pelo Ministério Público e pelo Tribunal, ordenada em fases sucessivas (articulados, instrução, alegações, parecer e sentença) que visa a composição definitiva do litígio, em prazo razoável e mediante processo equitativo.

2 - Esta tramitação é enquadrada, além do mais, pelo princípio do contraditório que, fundado na garantia constitucional a um processo equitativo, impõe que as partes tenham uma intervenção ativa na composição do litígio, com a efetiva possibilidade de, não só responder a tudo o que a contraparte apresenta no processo (numa dialética processual de ação-reação, em que cada uma das partes apresenta a sua solução para o dissídio – a primeira e a segunda via para a composição do litígio), mas também com a efetiva possibilidade de influenciar a decisão final, numa manifestação do caráter democrático do processo que lhe imprime maior qualidade e, consequentemente, legitima a função jurisdicional enquanto poder do Estado.

3 – São dois os interesses tutelados no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil: por um lado, o legislador pretendeu que o Juiz, no âmbito do seu dever de gestão processual, praticasse todos os atos necessários a concretizar a possibilidade de as partes influenciarem a composição do litígio (preocupação com a tramitação do processo); por outro, o legislador quis evitar a prolação de decisões-surpresa (preocupação com o próprio conteúdo da decisão).

4 - A decisão-surpresa é uma decisão que, em violação da segunda parte do n.º 3 do artigo 3.º do CPC – isto é, sem contraditório -, compõe o litígio através de uma terceira via suscitada pelo Juiz, diferente das apresentadas pelo Autor e pelo Réu.

5 - No momento em que é proferida sentença que, sem contraditório, compõe o litígio através de uma terceira via suscitada pelo Juiz, ela emerge viciada no seu conteúdo e gera, simultaneamente, uma nulidade processual, pois antes desta decisão ser proferida com violação da segunda parte do n.º 3 do artigo 3.º do CPC nenhum desvio ao rito processual houve, já que imediatamente antes da prolação da decisão que adota a terceira via inexiste qualquer omissão, uma vez que o contraditório ainda poderia ser assegurado.

6 - O recurso previsto no artigo 627.º, n.º 1, do CPC, sem necessidade de convocação do regime do artigo 615.º do CPC, é o meio processual adequado para impugnar a decisão-surpresa com fundamento quer no erro de julgamento relacionado com o conteúdo da sentença, quer no vício relacionado com a ofensa à lei do processo.

7 - A sentença proferida em 27 de fevereiro de 2024 que, além do mais, fixou 49 factos como provados (alíneas B) a XX) do probatório) com base em 49 documentos juntos aos autos por determinação da Juíza, antes de decorrido o prazo de 10 dias para a Recorrente se poder conformar ou impugnar a veracidade da letra ou da assinatura de cada um deles, não só se encontra viciada, nesta parte, quanto ao seu conteúdo, por violação do princípio do contraditório, como afetou o rito processual, na medida em que ofendeu a lei adjetiva ao ser proferida antes de ser dado o despacho de admissão dos documentos, de ser encerrada a reaberta fase de instrução, de as partes terem sido convidadas a pronunciar-se sobre as alterações que tais documentos podem ter introduzido à matéria de facto e de direito, e de ter sido aberta vista ao Ministério Público para o mesmo efeito.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na Subsecção Tributária Comum do Tribunal Central Administrativo Sul:

Vem o presente recurso jurisdicional, interposto por R...., SA, da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, proferida em 27 de fevereiro de 2024, que julgou improcedente a Impugnação Judicial por aquela deduzida contra a liquidação de IRC n.º 2018.8310004852 e respetivos juros compensatórios, relativa ao exercício de 2014.
Fundamentou-se a decisão em que não se verificou a invocada duplicação de contabilização de rendimentos, nem houve vício de violação de lei, por errónea quantificação do facto tributário.
A Recorrente, nas suas conclusões, começou por referir que “Terminada a produção de prova, tendo sido as partes notificadas para alegar, tendo-o feito e aguardando os autos a prolação da sentença, o princípio da boa gestão processual não permite que o Juiz titular do processo mande a Secretaria do Tribunal telefonar à Representante da Fazenda Pública para juntar 49 documentos que não constavam dos autos” (Conclusão A), pois “Processualmente, após a conclusão da audiência de discussão e julgamento[, e das alegações, havendo] necessidade de esclarecer algum aspecto, determina o artigo 607.º/2 do CPC que o Juiz possa ordenar a abertura da audiência” (Conclusão B).
Continuou defendendo que “Inexistindo qualquer despacho a reabrir a instância [sic], não podia uma determinação verbal, efectuada pela Mma. Juiz ao funcionário da Secretaria do Tribunal para telefonar à Representante da Fazenda Pública, conduzir à junção de quarenta e nove documentos ao processo, documentos esses que serviram para dar como provada a matéria constante de 49 alíneas da matéria de facto dada por provada (da alínea b) à alínea xx)” (Conclusão C), advogando na Conclusão D) que com esta atuação e a elaboração da “sentença três ou quatro dias depois [da junção aos autos dos documentos solicitados] ocorre a violação do dever de:
a) fazer cumprir o princípio do contraditório consagrado no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (…); b) pugnar pela efectiva existência de um processo equitativo que assegure a igualdade de armas na tramitação processual – n.º 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa;
c) garantir a igualdade das partes (…);
d) garantir o cumprimento do princípio da cooperação (…)” (Conclusão D),
bem como a violação da imparcialidade do Tribunal (Conclusões J e K).
Pugna, assim, pela nulidade da sentença:
- por omissão de pronúncia, por “omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar «decisões-surpresa» (Conclusão F); e
- por excesso de pronúncia, uma vez que “o Juiz conheceu de questões de que não podia ter conhecimento – designadamente, findo o julgamento, mandou a Fazenda Pública vir ao processo juntar mais documentos, sem reabrir a instância [sic], sem dar à outra parte a oportunidade de se pronunciar, necessariamente violando igualmente o disposto no artigo 615.º/1 – d) do CPC” (conclusão I).
Impugna também a matéria de facto “constante das alíneas B) a XX) dos factos dados por provados, por inobservância dos dispositivos legais citados” (Conclusões M a R), defendendo que “deverá ser aditada uma alínea aos factos não provados com a seguinte redação: Factos Não Provados – não provado que «o montante apurado de € 156.745,95 corresponde a rendimento referente ao ano de 2014»” (Conclusão S), bem como outra com o seguinte teor: “«O montante de € 97.512,20, acrescido ao IRC de 2013, referente à contabilização de contratos em curso, foi contabilizado no IRC do ano de 2014»” (Conclusão U).
Conclui, ainda, que “alegou e provou que adoptou o regime do acréscimo de rendimentos, o qual não é ilegal” e que, por força das correções efetuadas pela Administração Tributária, “No caso em análise existe, manifestamente, uma errónea quantificação de facto tributário, pelo que a liquidação viola o disposto no artigo 99.º/a) do CPPT” (Conclusões X a RR).
Termina pedindo que seja dado provimento ao Recurso e, em consequência, revogada a decisão proferida.
A Autoridade Tributária e Aduaneira não contra-alegou.
A Exma. Juíza do Tribunal a quo sustentou “na íntegra a decisão proferida, ora objecto de recurso”, por entender que “na situação em apreço o Tribunal, ao abrigo do dever de gestão processual e da celeridade, aquando da elaboração da sentença constatou a incompletude do Relatório de Inspecção, uma vez que os documentos de suporte às correcções impugnadas não constavam do mesmo, motivo pelo qual os solicitou verbalmente através da secretaria.
Considerando que as facturas em causa deram origem às correcções impugnadas e tinham sido emitidas pela própria Impugnante, motivo pelo qual eram do seu conhecimento, foi determinada a sua junção aos autos, tendo por esse motivo sido dispensado o contraditório, por manifestamente desnecessário, face à proibição da prática de actos inúteis”.
“Acresce que não era necessária a reabertura da instrução, uma vez que não estava em causa a produção de nova prova, mas apenas completar os documentos em falta no Processo Administrativo Instrutor, uma vez que todas as facturas em causa estão referidas no Relatório de Inspecção Tributária”.
A Exma. Magistrada do Ministério Público emitiu parecer no qual considerou que “As questões a decidir no presente Recurso são duas. A saber:
a) Se a junção de documentos (facturas) ordenada pelo Tribunal antes de proferir a Sentença e por ter constatado que as mesmas não acompanharam o Relatório Técnico da AT (facturas juntas pela Impugnante, ora Recorrente) viola o princípio do contraditório e enferma de nulidade a decisão;
b) Se o método utilizado pela AT para cálculo da matéria tributável viola o artigo 99.º do CPPT”.
Acompanhando “na íntegra o despacho de sustentação da Mma. Juiz recorrida” quanto à primeira questão, e, quanto à segunda, “a decisão recorrida e o Parecer do Ministério Público que esta acolheu”, emitiu parecer no sentido de “que ao recurso interposto deve ser negado provimento, mantendo-se o decidido”.
E, corridos os vistos legais, nada obsta à decisão.
Vejamos, pois:
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QUANTO À ALEGADA NULIDADE DA SENTENÇA:
A Recorrente, como se viu, com fundamento na violação do princípio do contraditório e na existência de uma decisão-surpresa invoca a nulidade da sentença quer com fundamento na “omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa” (Conclusão F), quer por excesso de pronúncia, uma vez que “o Juiz conheceu de questões de que não podia ter conhecimento” (Conclusão I).
Ou seja, a Recorrente funda a nulidade da sentença quer na existência de uma nulidade processual (a preterição do princípio do contraditório), quer no conteúdo da própria sentença (que conheceu de matéria que, perante a falta de contraditório, não podia conhecer).
Determinemos, então, se, no caso, estamos perante uma violação do contraditório e uma decisão-surpresa.
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Nos presentes autos, de acordo com a sua composição no sistema informático e com o despacho de sustentação proferido pela Senhora Juíza do Tribunal a quo, verifica-se que, no que ora interessa:
1 – No dia 31 de março de 2022, em sede de diligência de inquirição de testemunhas, a Senhora Juíza do Tribunal a quo proferiu oralmente o seguinte despacho, tal como se encontra exarado na ata da diligência: “Ficam notificadas as partes para virem juntar alegações escritas, no prazo de 30 dias. Declaro encerrada a presente diligência.” – cfr. ata da diligência, documento n.º 005307828 do processo;
2 – Em 6 de maio de 2022, a Representante da Fazenda Pública apresentou as suas alegações – cfr. o documento n.º 00507831 do processo;
3 – No dia 9 de maio de 2022, a Impugnante apresentou as suas alegações – cfr. o documento n.º 005307833 do processo;
4 – Em 10 de fevereiro de 2023, foi aberta vista ao Ministério Público – cfr. o documento n.º 005307872 do processo;
5 – No 13 de fevereiro de 2023, o Ministério Público emitiu parecer – cfr. o documento n.º 005307873 do processo;
6 – Em 6 de março de 2023, o processo foi concluso à Juíza titular – cfr. o documento n.º 005307874 do processo;
7 – Entre 6 de março de 2023 e 20 de fevereiro de 2024, em data que não foi possível apurar, a Juíza titular do processo solicitou verbalmente à secretaria do Tribunal que entrasse em contacto telefónico com a Representação da Fazenda Pública para que esta juntasse aos autos 47 faturas e 2 notas de crédito referidas no Capítulo III, ponto 1.2.1 – Rendimentos não considerados – Conta 27211, do Relatório de Inspeção Tributária já junto aos autos – cfr. o teor do despacho de sustentação e o requerimento de junção de documentos ao autos identificado no ponto seguinte;
8 – No dia 20 de fevereiro de 2024, a Representação da Fazenda Pública, “por lhe ter sido solicitado verbalmente pela secretaria do TAF de Loulé, a mando da Meritíssima Juiz titular do processo”, juntou aos autos aqueles documentos – cfr. os documentos n.º 005307884 a 005307886 do processo;
9 – No mesmo dia, foi emitida, por via eletrónica, notificação relativa àquela junção de documentos, dirigida à Mandatária da Impugnante – cfr. o documento n.º 005307887 do processo;
10 – Em 21 de fevereiro de 2024, o processo foi concluso à Juíza titular – cfr. o documento n.º 005307889 do processo;
11 – No dia 27 de fevereiro de 2024, foi proferida sentença que, além do mais, fixou 49 factos como provados (alíneas B) a XX) do probatório) com base naqueles documentos juntos 7 dias antes – cfr. o documento n.º 005307890 do processo;
12 – Em 28 de fevereiro de 2024, foi emitida, por via eletrónica, notificação da sentença, dirigida ao Ministério Público, à Mandatária da Impugnante e à Representante da Fazenda Pública – cfr. os documentos n.º 005307891 a 005307894 do processo;
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A tramitação do processo de Impugnação Judicial encontra-se prevista no Código de Procedimento e de Processo Tributário, diploma que, sem prejuízo do disposto no direito da União Europeia, noutras normas de direito internacional que vigorem diretamente na ordem interna, na Lei Geral Tributária ou em legislação especial, é aplicável ao processo judicial tributário – cfr. os artigos 99.º e seguintes, e 1.º, alínea b), do CPPT.
Quando as normas do CPPT não contêm uma regulamentação imposta pela ordem jurídica verifica-se a existência de um caso omisso que deve ser regulado, de acordo com a sua natureza, pela aplicação supletiva do direito subsidiário previsto no artigo 2.º do CPPT.
Ora, uma vez que o processo de Impugnação Judicial tem natureza essencialmente anulatória, os casos omissos devem ser regulados pelas normas previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos (cuja Ação Administrativa tem uma dimensão anulatória – cfr. o artigo 50.º e seguintes do CPTA – que não se encontra nas ações reguladas no Código de Processo Civil), sendo que à Ação Administrativa se aplica, supletivamente, o “disposto na lei de processo civil, com as necessárias adaptações” – artigo 1.º do CPTA.
Já quanto ao recurso da sentença proferida em processo de Impugnação Judicial é aplicável o CPC, por força da remissão expressa do artigo 281.º do CPPT.
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Nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável, então, à tramitação do processo de Impugnação Judicial nos apontados termos, “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
O processo de Impugnação Judicial é uma sequência de atos jurídicos, praticados pelas partes, pelo Ministério Público e pelo Tribunal, ordenada em fases sucessivas (articulados, instrução, alegações, parecer e sentença) que visa a composição definitiva do litígio, em prazo razoável e mediante processo equitativo – cfr. os artigos 99.º a 126.º e 96.º, n.º 1, do CPPT, bem como o artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
Esta tramitação é enquadrada, além do mais, pelo princípio do contraditório que, fundado na garantia constitucional a um processo equitativo, impõe que as partes tenham uma intervenção ativa na composição do litígio, com a efetiva possibilidade de, não só responder a tudo o que a contraparte apresenta no processo (numa dialética processual de ação-reação, em que cada uma das partes apresenta a sua solução para o litígio), mas também de influenciar a decisão final, numa manifestação do caráter democrático do processo que, no limite, lhe imprime maior celeridade (a parte vencida, se convencida, não recorre), maior qualidade (porque todas as questões são decididas ponderando uma maior variedade de argumentos) e, consequentemente, legitima a função jurisdicional enquanto poder do Estado.
Este direito geral ao contraditório é, por vezes, especificado na lei, como acontece no artigo 415.º, n.º 1, do CPC – “Salvo disposição em contrário, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas” -, sendo que na sua ratio está a intenção do legislador, também constitucional, de as partes poderem discutir a solução apresentada pelo Autor, a solução trazida pelo Réu, mas também qualquer solução de terceira via, para utilizar a feliz expressão utilizada na doutrina italiana, equacionada pelo Juiz (por se tratar, por exemplo, de questão de conhecimento oficioso, de facto que não carecia de alegação ou de meio de prova trazido ao processo ao abrigo do poder de inquisitório do Juiz, que as partes não tenham debatido na primeira e na segunda via proposta para a composição do litígio).
Deste modo, ao impor ao abrigo do princípio do contraditório, no n.º 3 do artigo 3.º do CPC, que as partes tenham a possibilidade de se pronunciarem sobre todas as questões, nomeadamente as de facto, pretendeu o legislador evitar que aquelas, atuando com uma diligência normal, fossem confrontadas com uma decisão prejudicial que não tinham a obrigação de prever e que não tiveram possibilidade de influenciar: a chamada decisão-surpresa.
São, assim, dois os interesses tutelados no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil: por um lado, o legislador pretendeu que o Juiz, no âmbito do seu dever de gestão processual, praticasse todos os atos necessários a concretizar a possibilidade de as partes influenciarem a composição do litígio; por outro, o legislador quis evitar a prolação de decisões-surpresa.
Ou seja, ali, o legislador mostrou uma preocupação com a tramitação do processo; aqui, com o próprio conteúdo da decisão.
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As questões da preterição do princípio do contraditório e da sentença configurar uma decisão-surpresa têm animado o debate entre os processualistas nos últimos anos:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pp. 22-23, defende que “sempre que o juiz, ao proferir a sentença, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, o meio de reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso fundado em nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d)” do CPC, tal como a Recorrente advoga na Conclusão F) do seu Recurso;
- Luís Correia de Mendonça, no seu artigo “O Contraditório e a Proibição das Decisões-Surpresa”, publicado na Revista da Ordem dos Advogados do primeiro semestre de 2022, sustentando que “o contraditório é um princípio estruturante do processo civil, mas é mais do que isso: é um direito processual fundamental”, considera que “A falta de actuação do contraditório concretiza um mau exercício dos poderes do juiz, que se traduz na impossibilidade para as partes de exercerem os respectivos poderes processuais”, defendendo, então, que “A sentença proferida nestas condições pode, por isso, considerar-se ferida de nulidade extraformal (ou se se preferir virtual) «geneticamente derivada das garantias constitucionais», o que, “tratando-se de vício da sentença, este deve ser feito valer em sede de recurso, não sendo de exigir à parte interessada que alegue as concretas deduções defensivas que teria utilizado se o acto omitido (de actuação do contraditório) tivesse sido praticado e que se tivessem sido devidamente levadas em conta pelo juiz teriam podido razoavelmente conduzir a uma decisão diversa daquela que foi efetivamente tomada”;
- Na recente edição de setembro de 2024 da Revista Julgar, Paulo Ramos de Faria e Nuno de Lemos Jorge, no artigo “As outras nulidades da sentença cível”, qualificam a decisão-surpresa como uma nulidade processual (“um ato não permitido por lei, mais precisamente, é, em si mesma, um ato que viola o disposto na segunda parte do n.º 3 do art. 3.º [do CPC], podendo esta viciação influir no exame ou na decisão da causa (art. 195.º, n.º 1)” – conclusão 2.1 do artigo), mas sustentam que “Da decisão-surpresa cabe recurso (normal) por error in judicando no julgamento pressuponente. Não sendo a decisão recorrível, por a causa não o admitir, cessa o concurso aparente, sendo aplicável sem dificuldade o regime da nulidade (art. 195.º), podendo a parte prejudicada dela reclamar para o juiz do processo (art. 197.º)” – conclusão 2.2 do artigo);
- Miguel Teixeira de Sousa, no blog do Instituto Português de Processo Civil, tem vindo a criticar a qualificação da decisão-surpresa como uma nulidade processual (contra a qual se deveria, então, reclamar), sustentando tratar-se, antes, de uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia (que deve, em conformidade, ser invocada em sede de recurso), tal como a Recorrente alega na sua Conclusão I);
Por fim, dá-se nota de que antes da decisão-surpresa ter começado a ter eco autónomo na doutrina, o Supremo Tribunal Administrativo, ao mais alto nível, em acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário de 6 de julho de 2011 – processo n.º 786/10, concluiu que “as nulidades do processo anteriormente ocorridas e não sanadas, conhecidas com a notificação da sentença e às quais esta implicitamente deu cobertura, têm o mesmo regime das nulidades da sentença (…), dado que se tornaram também vício da mesma e causa da sua nulidade”, posição que vem sendo mantida – cfr., por exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16 de setembro de 2020 – processo n.º 01763/13.0BEBRG.
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Impõe-se tomar posição, face às diferentes qualificações apresentadas pela Recorrente e às várias soluções que têm sido avançadas na doutrina e na jurisprudência, avançando-se desde já que nos distanciaremos das teses que vislumbram na decisão-surpresa uma nulidade da sentença, por omissão ou por excesso de pronúncia, e estaremos mais próximos da jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo e da posição defendida por Paulo Ramos de Faria e Nuno Jorge Lemos.
Pois bem:
Como se disse e é sabido, o processo é constituído por uma sucessão de atos jurídicos, ordenada em fases sucessivas, com vista à composição definitiva do litígio, em prazo razoável e mediante processo equitativo.
Atendendo à pretensão do Autor, o legislador escolheu, dentro da sua liberdade de conformação legislativa, o rito processual que entendeu mais adequado para assegurar a tutela jurisdicional efetiva.
Daí que qualquer desvio injustificado à tramitação escolhida pelo legislador, seja por ação seja por omissão, constitua uma irregularidade processual.
Tal irregularidade constitui uma nulidade processual quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa: “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa” – artigo 195.º, n.º 1, do CPC.
Quanto aos desvios ao rito processual mais gravosos, os que constituem nulidades processuais, o Tribunal pode conhecer oficiosamente de alguns, mas não de todos. Com efeito, nos termos do artigo 196.º do CPC, “Das nulidades mencionadas nos artigos 186.º e 187.º, na segunda parte do n.º 2 do artigo 191.º e nos artigos 193.º e 194.º pode o Tribunal conhecer oficiosamente, a não ser que devam considerar-se sanadas; das restantes só pode conhecer sobre reclamação dos interessados, salvos os casos especiais em que a lei permite o conhecimento oficioso”.
Verifica-se, então, que estas nulidades processuais estão relacionadas com a tramitação do processo (com “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva”), desde que a lei o declare ou a irregularidade possa influir no exame ou na decisão da causa, sendo conhecidas pelo Juiz titular do processo - cfr. o artigo 196.º do CPC.
Ora, esta opção pelo conhecimento da reclamação pelo Juiz do titular do processo compreende-se bem por ser ele o responsável pela gestão da tramitação processual e não se encontrar esgotado o seu poder jurisdicional - cfr. o artigo 613.º do CPC -, já que, habitualmente, tais desvios, sendo criados pelo Juiz, ocorrem antes de ser proferida a sentença.
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Os artigos 186.º a 202.º do CPC regulam, assim, as nulidades processuais que constituem as irregularidades mais gravosas ao rito processual escolhido pelo legislador.
Diferente é o objeto dos artigos 615.º, 666.º e 685.º do mesmo compêndio legal que se refere, antes às nulidades da sentença, isto é, aos vícios de que a sentença pode padecer quanto ao seu conteúdo.
Ora, suscitada a nulidade da sentença, por excesso de pronúncia, ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1, alínea e), segunda parte do CPC , segundo o qual é nula a sentença quando o Juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, então o titular do processo deve “apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso” – artigo 617.º, n.º 1 – e – n.º 2 -, e caso decida suprir esta nulidade, o despacho proferido é considerado “como complemento e parte integrante” da sentença, ficando o recurso interposto a ter como objeto a nova decisão.
E o mesmo se diga, mutatis mutandis, quanto à arguição da nulidade de sentença por omissão de pronúncia. Também aqui a nulidade é apreciada pelo Juiz que proferiu a sentença que, caso entenda dever suprir a nulidade, profere despacho em que conhece da questão omitida sendo este complemento e parte integrante da sentença.
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A decisão-surpresa é uma decisão que, em violação da segunda parte do n.º 3 do artigo 3.º do CPC – isto é, sem contraditório -, compõe o litígio através de uma terceira via, suscitada pelo Juiz, que não constava nem da via apresentada inicialmente pelo Autor, nem da segunda proposta apresentada nos autos pelo Réu para a solução do litígio.
Aproveitando o debate de Miguel Teixeira de Sousa com Paulo Ramos de Faria e Nuno de Lemos Jorge, a sentença viciada pela decisão-surpresa encontra-se afetada no seu conteúdo, pois antes desta decisão ser proferida com violação da segunda parte do n.º 3 do artigo 3.º do CPC nenhum desvio ao rito processual houve, rectius nenhuma nulidade processual foi cometida, já que antes da prolação da decisão que adota a terceira via inexiste qualquer omissão, uma vez que o contraditório ainda poderia ser assegurado. Ou seja, nenhuma nulidade processual anterior ocorreu que se possa considerar comunicada à sentença.
Mas os efeitos da decisão-surpresa não se esgotam no vício próprio relativo ao conteúdo da sentença: reflexamente, a decisão-surpresa introduz uma desordenação no rito processual, pois a sentença só seria proferida no momento adequado depois de assegurado o contraditório quanto à terceira via.
Há, então um erro na “decisão de decidir”, na expressão daqueles dois últimos Autores, um erro de julgamento quanto ao reconhecimento da factualidade processual relevante, já que a lei impunha uma atividade processual diferente (em concreto, a prática de despacho que assegurasse o contraditório quanto à terceira via, que não a prolação de sentença que configura uma decisão-surpresa); além de uma ofensa às normas que regulam a tramitação do processo.
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Nos tempos mais recentes, a doutrina e a jurisprudência têm-se inclinado para classificar a decisão-surpresa como um vício próprio da sentença, em concreto, uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia, já que esta se pronuncia sobre questão (surpresa) relativamente à qual, sem a audição prévia das partes, não se poderia pronunciar, como, aliás, a Recorrente afirma na sua Conclusão I).
Todavia, enquanto a nulidade por excesso de pronúncia prevista no artigo 615.º do CPC se supre dando por não escrito o segmento da sentença que extravasa o objeto do processo, tal como imposto pelo princípio do dispositivo (temperado eventualmente com as questões cujo conhecimento oficioso é determinado pelo legislador), o vício da decisão-surpresa não pode ser assim corrigido, desde logo porque nada há que possa ser dado por não escrito: bem pelo contrário, impõe-se, antes, a prática de atos que concretizem o contraditório e o direito a um processo equitativo.
Aliás, se, no mesmo processo, for proferida uma sentença com o mesmo conteúdo de outra, anterior, que tenha sido anulada por padecer de nulidade por excesso de pronúncia, a nova decisão padecerá necessariamente da mesma nulidade; já se, no mesmo processo, for proferida uma sentença com o mesmo conteúdo de outra, anterior, a que tenha sido diagnosticado o vício de decisão-surpresa, a nova decisão poderá ser perfeitamente válida se, entretanto, o contraditório foi observado quanto à terceira via.
Acompanha-se, deste modo, Paulo Ramos de Faria e Nuno Jorge Lemos quando afirmam que a decisão-surpresa é mero excesso da sentença, um excesso de pronunciação, mas não um excesso de pronúncia, causa de nulidade de sentença nos termos do artigo 615.º do CPC.
E o mesmo se diga, mutatis mutandis, quanto à possibilidade de se qualificar o vício como uma nulidade da sentença por omissão de pronúncia, como afirma a Recorrente na sua Conclusão F): se o Juiz entendesse dever suprir esta nulidade, o despacho em que determinasse o cumprimento do contraditório implicaria sempre a prática de atos processuais posteriores, pelo que tal despacho nunca poderia ser complemento e parte integrante da sentença.
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Afirmou-se, supra, que a opção legislativa pelo conhecimento da Reclamação da nulidade processual pelo Juiz titular do processo se compreende por ser ele o responsável pela gestão da tramitação processual e não se encontrar esgotado, em regra, o seu poder jurisdicional.
A questão torna-se mais complexa, como assinala Abrantes Geraldes, ob. cit, 2020 (edição em que, ao contrário da de 2013, supra citada, já não sustenta expressamente ser a omissão de pronúncia a causa da nulidade da decisão-surpresa), em comentário ao artigo 627.º do CPC, p. 25, quando “é o próprio juiz que, ao proferir a sentença, omite uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa. Nestes casos, a sujeição ao regime geral das nulidades processuais, nos termos do arts. 195.º e 199.º, levaria a que a decisão que deferisse a nulidade se repercutisse na invalidação da sentença, com a vantagem adicional de tal ter de ser determinado pelo próprio juiz, fora das exigências e dos encargos (inclusive financeiros) inerentes à interposição do recurso. Porém, tal solução defronta-se com o enorme impedimento constituído pela regra, praticamente inultrapassável, ínsita no art. 613.º, à qual presidem razões de certeza e de segurança jurídica que levam a que, proferida sentença (ou qualquer outra decisão), se esgota o poder jurisdicional, de modo que, sendo admissível recurso, é exclusivamente por esta via que pode ser alcançada a revogação ou a modificação da decisão”.
Assim, quando o Juiz profere uma sentença com recurso a uma terceira via em vez de tramitar o processo em obediência ao rito processual que se encontra previsto na lei, com a observância do contraditório, vicia o seu conteúdo de forma imediata, e, de forma mediata, ao omitir uma formalidade de cumprimento obrigatório, isto é, ao desviar, por omissão, o rito processual imposto por lei, gera uma irregularidade processual que, por influir no exame ou na decisão da causa, deve ser classificada como nulidade processual.
Ou seja, a sentença que, sem contraditório, compõe o litígio através de uma terceira via suscitada pelo Juiz:
- Fica imediatamente viciada quanto ao seu conteúdo; e
- Mediatamente, afeta o rito processual, na medida em que ofende a lei adjetiva, pois o dever omitido que constitui a nulidade processual secundária encontra-se funcionalizado à prolação da sentença – cfr. o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 9 de abril de 1997 – processo n.º 21.070.
Em suma, no momento em que é proferida sentença que, sem contraditório, compõe o litígio através de uma terceira via suscitada pelo Juiz, ela emerge viciada no seu conteúdo e gera, simultaneamente, uma nulidade processual.
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Finalmente, quanto ao meio processual adequado para sindicar estes vícios, o Recurso Jurisdicional é o modo de sindicar a validade dos atos jurisdicionais praticados no processo judicial tributário – artigos 281.º e 279.º, n.º 1, alínea a), do CPPT.
E no âmbito deste recurso, previsto no artigo 627.º, n.º 1, do CPC, pode ser alegado quer o erro de julgamento relacionado com o conteúdo da sentença, quer o vício relacionado com a ofensa à lei do processo, tal como se decidiu já, ao mais alto nível, no acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 6 de julho de 2011 – processo n.º 0786/10 e tem sido reafirmado ao longo do tempo naquela secção, nomeadamente no acórdão de 16 de setembro de 2020 – processo n.º 01762/13.0BEBRG.
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Ora, assente que está a natureza dos vícios imputados à sentença e à idoneidade do presente Recurso para deles conhecer - sem necessidade, pois, de convocar o regime do artigo 615.º do CPC -, regressemos ao caso dos autos.
Após a emissão do parecer do Ministério Público que precede a sentença – cfr. os artigos 121.º e 122.º do CPPT -, a Fazenda Pública, “por lhe ter sido solicitado verbalmente pela secretaria do TAF de Loulé, a mando da Meritíssima Juiz titular do processo”, juntou ao processo, no dia 20 de fevereiro de 2024, 47 faturas e 2 notas de crédito referidas no Capítulo III, ponto 1.2.1 – Rendimentos não considerados – Conta 27211, do Relatório de Inspeção Tributária que já se encontrava junto aos autos.
No mesmo dia 20 de fevereiro de 2024, foi emitida, por via eletrónica, notificação relativa àquela junção de documentos, dirigida à Mandatária da Impugnante, ora Recorrente, para sua análise, de modo a se poder conformar com os documentos ou impugnar a veracidade da letra ou da assinatura, ao abrigo do artigo 374.º do Código Civil, no prazo supletivo de 10 dias – cfr. o artigo 149.º, n.º 1, do CPC.
E, antes de completado este prazo de 10 dias, a Impugnante foi surpreendida, no dia 27 de fevereiro de 2024, pela prolação de sentença que, além do mais, fixou 49 factos como provados (alíneas B) a XX) do probatório) com base naqueles documentos juntos 7 dias antes.
Atuação que, efetivamente, configura uma violação do princípio do contraditório e conduz à classificação da sentença como decisão-surpresa quanto àqueles 49 factos dados como provados, uma vez que a Impugnante ainda estava em prazo para se pronunciar sobre a admissibilidade e a força probatória dos documentos, tendo, então, o Juiz fixado os factos através de uma terceira via que não tinha sido discutida pelas partes nos autos.
Neste sentido pode ver-se Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil – conceito e princípios gerais à luz do Código revisto, Gestlegal, 4.ª edição, 2017, p. 134, quando refere que o princípio do contraditório “implica também que as mesmas faculdades [para impugnar a admissibilidade e a força probatória de prova pré-constituída] sejam reconhecidas a ambas as partes quando a iniciativa da prova seja oficiosa”, além de “antes da apreciação final, isto é, antes da decisão sobre a matéria de facto (hoje, integrada na sentença final), se pronunciarem sobre os termos em que ela deve ser feita”.
Acresce que com a imediata prolação da sentença, foi preterido o despacho de admissão dos documentos, não foi encerrada a reaberta fase de instrução, as partes não foram convidadas a pronunciar-se sobre as alterações que tais documentos podem ter introduzido à matéria de facto e de direito, nem foi aberta vista ao Ministério Público para o mesmo efeito.
A esta conclusão não obstam os argumentos apresentados pela Senhora Juíza que proferiu a sentença, uma vez que:
- Não há, nos autos, notícia de despacho que tenha determinado a junção dos documentos aos autos, de despacho que tenha admitido a junção, nem de despacho que tenha dispensado o contraditório, sendo que por força do artigo 132.º, n.º 1, do CPC, “O processo tem natureza eletrónica, sendo constituído por informação estruturada constante do sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais e por documentos eletrónicos”, e, nos termos do n.º 1 do artigo 153.º do CPC, “As decisões judiciais são elaboradas, mesmo nos casos em que a secretaria não tenha procedido à abertura de conclusão do processo, no sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais, que garante a sua datação, e assinadas pelo juiz (…)”, dispondo o seu n.º 3 que os despachos proferidos oralmente no decurso de ato de que deva lavrar-se auto ou ata são aí reproduzidos;
- Só depois do exercício do contraditório é que se poderia apreciar, com segurança, se os documentos juntos são, ou não, aqueles que a Impugnante havia entregue à Inspeção Tributária. Com efeito, a Representação da Fazenda Pública pode, por exemplo, por lapso, ter junto ao processo outros documentos que não os que havia recebido da Impugnante, pelo que não se pode acompanhar a argumentação de que o contraditório seria inútil. Por outro lado, o dever de gestão processual e de celeridade não pode fazer letra morta do princípio do contraditório que tem até, como se viu, respaldo constitucional: bem ao contrário, o subordinante deve ser o princípio do contraditório (que traz à decisão maior qualidade e, consequentemente, legitima a função jurisdicional) e o subordinado o princípio da celeridade (que não é a finalidade principal do processo judicial);
- A reabertura da instrução ocorre sempre que é necessário trazer ao processo novos meios probatórios. Cada uma das faturas e cada uma das notas de crédito são meios de prova autónomos que não se confundem entre si, nem com o Relatório de Inspeção Tributária. Tal reabertura implica o seu encerramento, as respetivas alegações e a vista ao Ministério Público, só podendo a sentença ser proferida depois desta (atenta a predita ordenação, em fases sucessivas, da sequência de atos jurídicos que compõem o processo judicial).
Pelo que se impõe concluir que, efetivamente, a sentença proferida em 27 de fevereiro de 2024, antes de decorrido o prazo de 10 dias para a Recorrente se poder conformar com os 49 documentos juntos por determinação da Juíza ou impugnar a veracidade da letra ou da assinatura de cada um deles, e que, além do mais, fixou 49 factos como provados (alíneas B) a XX) do probatório) com base naqueles documentos juntos 7 dias antes, não só se encontra viciada, nesta parte, quanto ao seu conteúdo, como afetou o rito processual, na medida em que ofendeu a lei adjetiva.
O que consequencia, então, a declaração da verificação da nulidade processual, devendo determinar-se a baixa dos autos ao Tribunal a quo, para aí se diligencie no sentido de ser observado o rito processual imposto por lei até se chegar ao momento em que a lei admite que seja proferida sentença, designadamente com a prolação, por escrito, do despacho que reabra a instrução e solicite a junção dos documentos, do despacho de admissão dos mesmos, do despacho que encerre a reaberta fase de instrução, do despacho que convide as partes a pronunciarem-se sobre as alterações que tais documentos podem ter introduzido à matéria de facto e de direito, e do despacho que abra vista ao Ministério Público para o mesmo efeito.
Afastamo-nos, assim, da alegação da Recorrente quanto à nulidade da sentença, quer por omissão quer por excesso de pronúncia, mas configura-se como manifesta a desnecessidade de a ouvir sobre esta terceira via, uma vez que o Recurso irá proceder e a decisão impugnada será removida da ordem jurídica, tal como pretende.
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Ou seja, em síntese conclusiva:
1 - O processo de Impugnação Judicial é uma sequência de atos jurídicos, praticados pelas partes, pelo Ministério Público e pelo Tribunal, ordenada em fases sucessivas (articulados, instrução, alegações, parecer e sentença) que visa a composição definitiva do litígio, em prazo razoável e mediante processo equitativo.
2 - Esta tramitação é enquadrada, além do mais, pelo princípio do contraditório que, fundado na garantia constitucional a um processo equitativo, impõe que as partes tenham uma intervenção ativa na composição do litígio, com a efetiva possibilidade de, não só responder a tudo o que a contraparte apresenta no processo (numa dialética processual de ação-reação, em que cada uma das partes apresenta a sua solução para o dissídio – a primeira e a segunda via para a composição do litígio), mas também com a efetiva possibilidade de influenciar a decisão final, numa manifestação do caráter democrático do processo que lhe imprime maior qualidade e, consequentemente, legitima a função jurisdicional enquanto poder do Estado.
3 – São dois os interesses tutelados no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil: por um lado, o legislador pretendeu que o Juiz, no âmbito do seu dever de gestão processual, praticasse todos os atos necessários a concretizar a possibilidade de as partes influenciarem a composição do litígio (preocupação com a tramitação do processo); por outro, o legislador quis evitar a prolação de decisões-surpresa (preocupação com o próprio conteúdo da decisão).
4 - A decisão-surpresa é uma decisão que, em violação da segunda parte do n.º 3 do artigo 3.º do CPC – isto é, sem contraditório -, compõe o litígio através de uma terceira via suscitada pelo Juiz, diferente das apresentadas pelo Autor e pelo Réu.
5 - No momento em que é proferida sentença que, sem contraditório, compõe o litígio através de uma terceira via suscitada pelo Juiz, ela emerge viciada no seu conteúdo e gera, simultaneamente, uma nulidade processual, pois antes desta decisão ser proferida com violação da segunda parte do n.º 3 do artigo 3.º do CPC nenhum desvio ao rito processual houve, já que imediatamente antes da prolação da decisão que adota a terceira via inexiste qualquer omissão, uma vez que o contraditório ainda poderia ser assegurado.
6 - O recurso previsto no artigo 627.º, n.º 1, do CPC, sem necessidade de convocação do regime do artigo 615.º do CPC, é o meio processual adequado para impugnar a decisão-surpresa com fundamento quer no erro de julgamento relacionado com o conteúdo da sentença, quer no vício relacionado com a ofensa à lei do processo.
7 - A sentença proferida em 27 de fevereiro de 2024 que, além do mais, fixou 49 factos como provados (alíneas B) a XX) do probatório) com base em 49 documentos juntos aos autos por determinação da Juíza, antes de decorrido o prazo de 10 dias para a Recorrente se poder conformar ou impugnar a veracidade da letra ou da assinatura de cada um deles, não só se encontra viciada, nesta parte, quanto ao seu conteúdo, por violação do princípio do contraditório, como afetou o rito processual, na medida em que ofendeu a lei adjetiva ao ser proferida antes de ser dado o despacho de admissão dos documentos, de ser encerrada a reaberta fase de instrução, de as partes terem sido convidadas a pronunciar-se sobre as alterações que tais documentos podem ter introduzido à matéria de facto e de direito, e de ter sido aberta vista ao Ministério Público para o mesmo efeito.
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Termos em que se acorda conceder provimento ao presente recurso, revogar a sentença e, declarando verificada a nulidade processual, ordenar a baixa dos autos à primeira instância para que aí se diligencie no sentido de ser observado o rito processual imposto por lei até se chegar ao momento em que a lei admite que seja proferida sentença, designadamente com a prolação, por escrito, do despacho que reabra a instrução e solicite a junção dos documentos, do despacho de admissão dos mesmos, do despacho que encerre a reaberta fase de instrução, do despacho que convide as partes a pronunciarem-se sobre as alterações que tais documentos podem ter introduzido à matéria de facto e de direito, e do despacho que abra vista ao Ministério Público para o mesmo efeito.
Sem custas neste TCA Sul.
Lisboa, 7 de novembro de 2024
Tiago Brandão de Pinho (relator) – Jorge Cortês - Sara Diegas Loureiro
(assinaturas eletrónicas no cabeçalho da primeira página)