Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Subsecção Tributária Comum do Tribunal Central Administrativo Sul:
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I. RELATÓRIO
T......., S.A., com os demais sinais nos autos, veio impugnar a liquidação de IVA e juros compensatórios nº .........51, referente ao período 06T do ano de 2012, no montante de € 39.269,00.* Por sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, em 18 de Dezembro de 2023, foi julgada extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide.
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Inconformada com a decisão, veio a Impugnante apresentar o presente recuso, formulando as seguintes conclusões:
“CONCLUSÕES
I. O presente recurso vem interposto da douta decisão proferida nos autos que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide nos termos do artigo 277.º, alínea e) do CPC aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPPT.
II. A Recorrente não se pode conformar com tal entendimento por entender e sustentar que essa inutilidade se não verifica.
SENÃO VEJAMOS,
III. A Recorrente foi notificada da liquidação adicional em sede de IVA por referência ao período de tributação de 201206T e respetivos juros compensatórios – liquidação essa, efetuada a coberto do procedimento de inspeção tributária de que foi alvo.
IV. Por discordar com a liquidação ali efetuada, a Recorrente apresentou a competente impugnação judicial que originou os presentes autos e onde sinteticamente suscitou vários vícios a liquidação em crise, designadamente, (i) falta de notificação da eventual decisão do procedimento de inspeção – preterição de formalidades essenciais; (ii) falta de fundamentação da liquidação adicional; (iii) caducidade do direito à liquidação; (iv) impugnação da factualidade subjacente à liquidação adicional entre outras desconformidades como resultam abundantemente descritas na impugnação apresentada – pedindo, a final, a anulação da liquidação adicional de IVA e respetivos juros compensatórios.
V. Citada, veio a Administração Fiscal proceder à junção do PA do qual consta a informação elaborada pelos serviços onde além do mais consta a revogação do ato de liquidação adicional de IVA 201206T e respetivos juros compensatórios, porquanto, “não houve a notificação do RIT, nem, naturalmente, se procedeu à emissão das Notas de Liquidação; ocorreu um erro informático central, que viabilizou a emissão da liquidação em apreço; (…) corrigir esta situação, criada por um desajuste informático (…)”
VI. Atenta a informação prestada pela Administração Fiscal, veio a ser proferida sentença que julgou extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.
VII. Para escorar tal entendimento, a decisão em mérito considerou “Deste modo, ante a satisfação do pedido anulatório da Impugnante e da consequente remoção da ordem jurídica da liquidação adicional de IVA cuja anulação se mostra peticionada nos autos, tal obsta ao prosseguimento da demanda, conforme se adiantou, importando, consequentemente, a extinção da instância por impossibilidade superveniente do seu prosseguimento – cfr. art.º 277º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi art.º 2º, alínea e), do CPPT.”
VIII. Como é sabido a inutilidade superveniente da lide ocorre quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a solução do litígio deixe de ter todo o interesse e utilidade, conduzindo, por isso, à extinção da instância (art.º 287º, al. e), do Código de Processo Civil).
IX. A inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou se encontra fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio - José Lebre de Freitas, João Redinha, Rui Pinto, Código de Processo Civil anotado, vol 1, anotação 3 ao art. 287.º, pág. 512
X. No entanto, efeitos há que foram produzidos pela liquidação adicional (revogada) e que mantêm a sua vigência e produção dos seus efeitos ainda hoje na ordem jurídica em absoluta transgressão dos normativos reguladores da matéria em causa nos autos, violando de forma grosseira os direitos e interesses legalmente tutelados da Recorrente.
XI. Pois, apesar da anulação da liquidação adicional em crise, a verdade é que derivado dessa mesma liquidação foi instaurado o processo de execução fiscal tendente à cobrança coerciva do tributo o qual, supostamente, também ele anulado.
XII. No entanto, não podemos ignorar que apesar das anulações efetuadas, quer quanto à liquidação adicional, quer quanto ao processo de execução fiscal – ambas as situações produziram efeitos na ordem jurídica e afetaram a esfera jurídica da Recorrente.
XIII. Nesse circunstancialismo, a simples anulação da liquidação adicional sindicada não poderá por si só conduzir à extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, não sem antes, aquilatar dos efeitos produzidos pela mesma no decurso da sua vigência.
XIV. O que importará, a anulação, em igual medida, dos efeitos entretanto produzidos como o sejam, os atos insertos na normal tramitação do processo de execução fiscal ou até mesmo aqueles que foram despoletados pela liquidação adicional sindicada – os juros compensatórios.
XV. Daí que, ressalvado o respeito devido, a decisão em mérito ao não aquilatar de todas as circunstâncias e efeitos subsequentes ao ato de liquidação sindicado, enferma de nulidade nos termos do artigo 615.º, nº 1, alínea d) do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e) do CPC.
SEM PRESCINDIR,
XVI. mas ainda que assim não fosse, os fundamentos que estiveram subjacentes à revogação do despacho deviam ter sido descortinados em Tribunal.
XVII. Na verdade, não se mostra plausível que a Administração Tributária se escude num erro informático para se retratar de uma liquidação que sabe ser errada e cuja quantia apurada sabe não ser devida.
XVIII. Tanto assim é que o fundamento subjacente à anulação da liquidação supostamente não se aplica a outras liquidações de idêntica natureza e que emergem precisamente do mesmo facto – a mesma ação inspetiva.
XIX. Daí, sermos levados a questionar - se umas liquidações são anuladas, qual a razão das restantes não o serem?
XX. A esta questão a Administração Tributária não consegue dar resposta. POR OUTRO LADO,
XXI. Não será despiciendo referir que atento os fundamentos expostos na impugnação judicial aqui deduzida a mesma, assume-se como uma questão prejudicial à resolução do processo penal tributário.
XXII. Porquanto, relativamente ao mesmo período de tributação em discussão nos autos, contra o Impugnante foi instaurado processo-crime, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal e fraude fiscal, processo que corre termos no Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 5, Proc. nº 189/12.6TELSB.
XXIII. O despacho de acusação proferido naquele processo-crime estriba-se, quase que exclusivamente no relatório de inspeçaõ tributária de onde advém a liquidação adicional aqui em mérito.
XXIV. Ou seja, o ponto nevrálgico, quer do processo-crime, quer dos presentes autos de impugnação emerge da mesma situação fáctica – relatório de inspeção tributária.
XXV. E, como tal, existindo liquidação adicional, e sendo sindicada por via da impugnação judicial – tal implica, forçosamente, o escrutínio de toda a situação por banda do Tribunal não podendo, contudo, demitir-se de tal função.
XXVI. Porquanto, o desfecho dos presentes autos, pela prejudicialidade que assume relativamente ao processo-crime, inelutavelmente se haveriam de refletir neste.
XXVII. Daí que, ressalvado o respeito devido, andou mal o Tribunal a quo ao não julgar o mérito da causa, atenta a prejudicialidade dos presentes autos, nos termos e para os efeitos do artigo 47.º do RGIT.
SEM PRESCINDIR,
XXVIII. A interpretação desenvolvida na douta decisão recorrida à alínea e) do artigo 277.º do CPPT, quando interpretada no sentido do não conhecimento do mérito da causa, em decorrência de uma ulterior anulação da liquidação sindicada, no caso da mesma constituir causa prejudicial relativamente ao processo penal nos termos do artigo 47.º do RGIT, deve ser declarada inconstitucional por impedir o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, ínsito no artigo 20.º (acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva) e por violar os direitos de defesa artigo 32.º (garantias de processo criminal) ambos da Constituição da República Portuguesa – inconstitucionalidade que desde já se deixa aqui invocada, nos termos e para os efeitos do artigo 70.º, nº 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
TERMOS EM QUE, - Concedendo provimento ao recurso agora interposto e revogando a douta sentença recorrida, farão Vossas Excelências a habitual JUSTIÇA!
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A Recorrida, Fazenda Pública, devidamente notificada para o efeito, optou por não apresentar contra-alegações.
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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo, ofereceu aos autos o seu parecer no sentido da improcedência do recurso da impugnante.
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Foram colhidos os vistos legais.
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Delimitação do objeto do recurso
Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, em consonância com o disposto no art. 639º do CPC e art. 282º do CPPT, são as conclusões apresentadas pelo recorrente nas suas alegações de recurso, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer, ficando, deste modo, delimitado o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem.
No caso que aqui nos ocupa, as questões a decidir consistem em saber:
a) Se a sentença recorrida sofre de nulidade, nos termos do art. 615.º n.º 1 d) do CPC, ao não ter “aquilatado de todas as circunstâncias e efeitos subsequentes ao acto de liquidação” (conclusões VII a XV);
b) Se há erro de julgamento por, existindo uma liquidação adicional, haver prejudicialidade dos presentes autos, nos termos do art. 47.º do RGIT, em relação ao processo-crime, a implicar a apreciação do mérito, “porquanto o despacho dos presentes autos se reflecte em tal processo-crime” (conclusões XXI a XXVII);
c) Se a interpretação feita da al. e) do art. 277.º do CPC, no sentido do não conhecimento do mérito da causa na sequência duma ulterior anulação da liquidação, no caso da mesma constituir causa prejudicial relativamente ao processo penal, nos termos do art. 47.º do RGIT, deve ser declarada inconstitucional, por impedir o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (art. 20.º da CRP) e por violar os direitos de defesa (art. 32.º da CRP) (conclusão XXVIII).
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II – FUNDAMENTAÇÃO
- De facto
A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
“Com interesse para a decisão a proferir mostram-se assentes os seguintes factos:
A) Em 11/10/2022 foi emitida a liquidação de IVA e juros compensatórios n.º .........51, em nome da Impugnante, referente ao período 201206T no montante a pagar de €39.269,84 – cf. DOC. n.º 1, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, junto com a petição inicial (PI) a fls. 74 do SITAF;
B) Em 11/10/2022 foi emitida a liquidação de juros compensatórios n.º .........04, em nome da Impugnante, referente ao período de 17/08/2012 a 19/12/2016, no montante de €6.825,42 – cf. DOC. n.º 1 junto com a PI a fls. 75 do SITAF;
C) Em 06/01/2023 foi apresentada a petição inicial que deu origem aos presentes autos – cf. comprovativo e petição inicial a fls. 1-73 do SITAF;
D) Em 28/02/2023 foi prestada informação pela Direção de Finanças do Porto na qual se pode ler: «(…) “(texto integral no original; imagem)”
(…)”
(cf. informação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, constante do PAT apenso aos autos a fls. 180-182 do SITAF)
E) Em 02/05/2023 foi prestada informação pela Direção de Finanças de Leiria na qual pode se concluiu que: «(…)
(…)» (cf. informação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, constante do PAT apenso aos autos a fls. 187-189 do SITAF);
F) Em 08/05/2023 foi proferido despacho sobre a informação referida na alínea anterior pelo Diretor Adjunto da Direção de Finanças de Leiria com o seguinte teor: «Concordo. Anulo as liquidações nos termos e com os fundamentos da informação que antecede.» - cf. despacho constante do PAT apenso aos autos a fls. 187 do SITAF;
G) Em 18/05/2023 foi enviado à Impugnante o ofício n.º DJT-4019-2023 no qual pode ler-se:“(Texto integral no original; imagem)” (cf. ofício e documentos anexos, bem como o registo CTT constante do PAT apenso aos autos a fls. 191-196 do SITAF);
H) Em 24/05/2023 foi anulada a liquidação adicional de IVA e juros compensatórios n.º .........51, referente ao período 06T do ano de 2012, no montante de €39.269,84 – cf. DOC. n.º 1 junto com a contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, a fls. 173-176 do SITAF.”
*** A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte:
“Inexistem quaisquer outros factos com relevância para a decisão a proferir.”
*** III . Da Fundamentação De Direito
A recorrente começa por arguir a nulidade da decisão recorrida por entender que o Tribunal a quo não aquilatou de todas as circunstâncias e efeitos subsequentes ao acto de liquidação sindicado, considerando, nos termos do art. 615º, nº 1, al. d) do Código de Processo Civil (doravante CPC), que o juiz deixou de se pronunciar sobre todas as questões sobre as quais deveria emitir pronúncia. Ancora esta sua posição na alegação de que existem efeitos que foram produzidos pela liquidação adicional, entretanto revogada, que se mantêm em vigor na ordem jurídica em absoluta transgressão dos normativos reguladores da matéria em causa nos autos, violando de forma grosseira os direitos e interesses legalmente tutelados da Recorrente, pelo que se impõe a sua anulação. Mais defende que o processo de execução fiscal produziu efeitos que a sua anulação não apaga.
Apreciando.
As causas de nulidade da sentença encontram-se taxativamente enumeradas no artigo 615º do CPC, dispondo-se no mesmo que, para além das demais situações elencadas, é nula a sentença quando deixe de conhecer pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
As nulidades das decisões não incluem o erro de julgamento, seja ele de facto ou de Direito (neste sentido, entre muitos outros, o acórdão STJ, de 9.4.2019, Procº nº 4148/16.1T8BRG.G1.S1., in www.dgsi.pt). Deste modo, podemos afirmar que as nulidades das sentenças mais não são do que vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal. Estamos perante vícios de formação ou actividade que afectam a regularidade do silogismo judiciário da própria decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito. Já, pelo contrário, o erro de julgamento (error in judicando) que resulta duma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error júris), de forma que o decidido esteja em desconformidade com a lei.
Como ensinava o Prof. José Alberto Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1981, Vol. V, págs. 124, 125, o magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos. Já quando na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional comete um erro de actividade. Os erros da primeira categoria são de carácter substancial: afectam o fundo ou o efeito da decisão; os segundos são de carácter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua actividade.
Podemos, deste modo, afirmar que as causas de nulidade da decisão elencadas no artigo 615º do Código de Processo Civil visam o erro na construção do silogismo judiciário, nunca estando subjacente às mesmas quaisquer razões de fundo, essas sim, que conduziriam a erro de julgamento.
Concluindo, o erro de julgamento, a injustiça da decisão e a não conformidade da mesma com o direito aplicável, não constituem nulidades da sentença, mas sim erros de julgamento (neste sentido podemos ver Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, 1985, pág. 686).
Em consequência, as nulidades das sentenças ditam a sua anulação, já as suas ilegalidades conduzem à revogação das mesmas (ex vi acórdão STJ de 17/10/2017, tirado no procº nº 1204/12.9TVLSB.L1.S1.).
No que respeita à nulidade da sentença constante da mencionada al. d) do art. 615º do CPC, tem sido entendimento unanime do Supremo Tribunal de Justiça, designadamente nos seus acórdãos de 30/05/2023, prolatado no processo n.º 45/18.4YFLSB e de 09/01/2024, proferido no processo 21/21.0YFLSB, ambos da Secção de Contencioso, a cuja fundamentação aderimos, que:
“A omissão de pronúncia e o excesso de pronúncia reconduzem-se, por sua vez, à inobservância dos estritos limites do poder cognitivo do tribunal.
A decisão queda-se aquém ou foi além do thema decidendum ao qual o tribunal estava adstrito, consubstanciando-se no uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se ter deixado por tratar de questões que deveria conhecer (no caso da omissão de pronúncia) ou por se ter abordado e decidido questões de que não se podia conhecer (no caso de excesso de pronúncia).
A respeito da omissão de pronúncia, deve-se adicionalmente notar que os fundamentos (de facto ou direito) apresentados pelas partes para defender a sua posição, os raciocínios, argumentos, razões, considerações ou pressupostos - que, podem, na terminologia corrente, ser tidos como “questões” - não integram matéria que deva ser objecto de pronúncia judicial. Na verdade, a actividade judicativa deve apenas incidir sobre os «(…) fundamentos autónomos da acção que, como tal, podem conduzir à procedência do pedido ou pedidos e as que tenham sido alegadas pela defesa como facto extintivo, impeditivo ou modificativo do direito que o autor se pretende arrogar (…)», neles se consubstanciando a noção de “questões” à volta das quais gravita a referida infracção processual.(…)”
Para aferirmos da existência ou não de nulidade da sentença temos ainda de tomar em consideração a natureza e os fundamentos da impugnação judicial.
Em sede tributária, o processo de Impugnação Judicial tem uma natureza muito idêntica ao recurso contencioso de anulação anteriormente previsto na LPTA. Ali, como aqui, o objecto desta impugnação judicial é apenas a declaração de invalidade ou anulação dos actos recorrido em função da apreciação efectuada sobre a legalidade dos mesmos. Em consequência, o Tribunal ou anula o acto ou declara a sua inexistência ou, ainda, declara a sua conformidade com a lei, mantendo-o na ordem jurídica. Não pode nunca o Tribunal determinar a condenação da ATA à prática de actos que considere devidos, como acontece no âmbito do Código de Processo dos Tribunais Administrativos (doravante CPTA).
Neste mesmo sentido podemos ver Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e Processo Tributário, Anotado e Comentado, 6.ª Edição, Vol. II, em anotação ao art. 124º, a fls. 325, afirma “No processo de impugnação judicial, de cariz objectivista, tendo por objecto um acto cuja legalidade se pretende apurar, pode ser cumulados com o pedido de anulação pedidos de pagamento de juros indemnizatórios e de indemnização por garantia indevida, que podem ser consequências da anulação, mas não pode ser regulada a situação jurídica substantiva subjacente ao acto impugnado. Isto é, o tribunal, no caso de constatar uma ilegalidade de que enferma o acto impugnado, procede à dedaração da sua invalidade jurídica (por inexistência, nulidade ou anulabilidade), podendo condenar a Fazenda Pública em juros e em indemnização por garantia indevida, mas não pode proceder à regulação jurídica substantiva subjacente ao acto impugnado, tendo de deixar para a administração a tarefa de proceder à «reconstituição legalidade do acto ou situação objecto do litígio» (art. 100.º da LGT), embora possa posteriormente, em caso de litígio sobre a forma de concretizar esta reconstituição, determinar em processo de execução de julgado os actos que devem ser praticados para ser atingido este objectivo.”
Significa isto que, estando nós perante um processo de mera anulação de actos tributários, apenas se pode considerar que ocorra a arguida nulidade da sentença por omissão de pronuncia quando a sentença deixe de se pronunciar sobre algum dos vícios assacados ao acto de liquidação, ou outros, que por força de lei, sejam do conhecimento oficioso.
Baixando ao caso que aqui nos ocupa, verificamos que a Recorrente deduziu uma Impugnação Judicial contra o acto de liquidação de IVA referente ao mês de Junho de 2012, imputando-lhe vários vícios de natureza formal e substancial, sendo que a liquidação veio a ser objecto de revogação por parte da Fazenda Pública.
A sentença recorrida julgou extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide em face da constatação da anulação oficiosa, por parte da AT, das liquidações de IVA e de juros compensatórios impugnadas, com os seguintes fundamentos:
“A extinção da instância por impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide verifica-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor/requerente não se pode manter, face ao desaparecimento dos sujeitos ou 5 do objeto do processo ou por se encontrar satisfeita a pretensão requerida.
Ora, regressando aos presentes autos verifica-se que a Impugnada suscitou, na contestação apresentada em 31/10/2023, a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, por ter sido anulada a liquidação impugnada no âmbito do procedimento de revisão oficiosa n.º ……93.
Neste domínio advém dos factos fixados nas alíneas D), E) e F) do probatório que efetivamente a liquidação impugnada nos presentes autos, em relação à qual a Impugnante formulou o pedido de anulação, foi anulada em cumprimento do despacho proferido pelo Diretor Adjunto da Direção de Finanças de Leiria em 08/05/2023.
E, sendo assim, tendo sido eliminada do ordenamento jurídico a liquidação impugnada cuja anulação a Impugnante pediu a este Tribunal dúvidas não subsistem em como se perdeu o objeto da presente ação de impugnação judicial não merecendo acolhimento nos presentes os argumentos esgrimidos pela Impugnante no sentido de se proceder à apreciação do mérito da ação.
Com efeito, na eventualidade de ser emitida nova liquidação poderá a Impugnante acionar os mecanismos administrativos e judiciais previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), a saber, a reclamação graciosa, o recurso hierárquico e a impugnação judicial, cf. artigos 68.º e seguintes, 76.º e seguintes e 97.º, n.º 1, alínea a), 99.º e 102.º do CPPT.
Por seu turno, no que se refere ao processo que “corre termos no Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 5, Proc. nº 189/12.6TELSB” trata-se de matéria a dirimir naquela jurisdição, cf. artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Termos em que, perdendo-se o objeto do processo, impõe-se declarar a inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC, aplicável ex vi artigo 2.º, alínea e), do CPPT.”
Sendo certo, como já afirmámos acima, que o processo de Impugnação Judicial, previsto no art. 99º do CPPT, visa apenas a anulação ou declaração de inexistência ou nulidade de actos tributários (vide art. 124º do mesmo diploma legal), e, como tal, possui um caracter objectivista, anulado que esteja esta acto a Impugnação Judicial perde o seu objecto, uma vez que este meio processual não pode servir para regular a situação jurídica subjacente.
Na verdade, e muito embora na Impugnação Judicial se possam cumular pedidos de indemnização por garantia prestada indevidamente ou de pagamento de juros indemnizatórios por pagamento indevido do tributo, nunca se pode obter com o mesmo uma decisão que condene a AT à prática dum acto tributário com um determinado conteúdo, ou que se abstenha de praticar um determinado acto com um conteúdo determinado.
Nem se diga que a “plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei” prevista no art. 100º da Lei Geral Tributária, tem como corolário essa condenação da ATA. Efectivamente, necessidade de reconstituição da situação que existiria se o acto considerado ilegal no âmbito do processo de Impugnação Judicial, apenas pode exigir a intervenção do Tribunal em sede de processo de execução de julgados (art. 146º do CPPT) para determinar que actos devem ser praticados para atingir o objectivo.
Finalmente, cabe ainda referir que mesmo que o acto não tivesse sido revogado, a sentença que viesse a ser proferida (caso fosse no sentido da procedência da Impugnação Judicial) se limitaria a anular, declarar nulo ou inexistente o acto, competindo, em primeira linha, à AT praticar os actos necessários à reconstituição da situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado, designadamente a anulação do processo executivo.
Daqui decorre que não existindo já qualquer acto passível de anulação (único objecto da Impugnação Judicial) por o mesmo ter sido revogado pela AT, a declaração de inutilidade superveniente da lide era a única decisão possível. Nunca se poderia considerar existir uma situação de omissão de pronúncia por parte do Tribunal como se encontra configurada na alínea d) do nº 1 do art. 615º do CPC, pelo que a sentença recorrida não enferma do vício que lhe é dirigido, pelo que o presente recurso terá de ser julgado improcedente.
Alega ainda a Recorrente que, por haver prejudicialidade dos presentes autos, nos termos do disposto no art. 47º do RGIT no que tange ao processo criminal pendente, o desfecho da presente acção terá reflexos no mencionado processo.
Vejamos, então.
Determina o art. 47º do RGIT, sob a epígrafe “Suspensão do processo penal tributário” o seguinte:
“1 - Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças.
2 - Se o processo penal tributário for suspenso, nos termos do número anterior, o processo que deu causa à suspensão tem prioridade sobre todos os outros da mesma espécie.”
Se bem entendemos a posição da Recorrente, esta defende que estando a discutir-se, nestes autos de impugnação, a situação tributária de cuja definição depende a qualificação dos factos a si imputados num processo criminal, o tribunal teria de apreciar o mérito da impugnação, mesmo que o acto tivesse sido revogado pela ATA.
Mas sem razão.
Desde logo, como se esclareceu acima, não é possível apreciar em sede desta concreta impugnação judicial, a legalidade dum acto que desapareceu da ordem jurídica. Estando nós perante um contencioso de mera anulação, inexistindo acto de liquidação, por o mesmo ter sido objecto de revogação pela entidade que o havia praticado, a impugnação judicial deixa de ter qualquer objecto pelo que nada haveria para anular, declarar nulo ou inexistente.
Por outro lado, o artigo 47º do RGIT obriga, à suspensão do processo-crime sempre que se discuta na impugnação judicial uma situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, como facilmente decorre do nº 1 do preceito supra transcrito.
Ora, como resulta da informação transcrita no ponto D do probatório, no caso dos autos, foi opção dos serviços da AT, em virtude de o direito à liquidação se encontrar suspenso, ao abrigo do disposto nº 5 do art. 45º da LGT, ficar a aguardar pelo desfecho do processo criminal por forma a ali apurar da existência de emissão e utilização de facturação falsa, sendo que só após essa conclusão, se avançaria com as liquidações adicionais de IVA.
Também por esse motivo, não foi a aqui Recorrente notificada do Relatório Final da inspecção.
Ou seja, no caso dos autos, a instauração de inquérito criminal por crime fiscal de fraude fiscal, previsto e punido nos termos do disposto no art. 103º do RGIT, não está dependente da qualificação jurídica de factos tributários, mas sim da situação inversa.
Na verdade, resulta da referida informação, a necessidade de emitir ou não liquidações correctivas de IVA, está dependente de em sede de processo criminal, se considerar que as facturas em questão são ou não falsas.
Assim sendo, nenhuma aplicação tem ao caso dos autos o mencionado art. 47º do RGIT, ao caso concreto, pelo que improcedente também terá de ser julgado o presente recurso, nesta parte, não enfermando a sentença recorrida do erro de julgamento que lhe vem imputado.
Finalmente, argui a Recorrente a existência de erro de julgamento uma vez que a interpretação efectuada pelo Tribunal a quo da alínea e) do art. 277º do CPC, no sentido do não conhecimento do mérito da causa em decorrência de uma ulterior anulação da liquidação, no caso de a mesma constituir causa prejudicial relativamente ao processo penal, nos termos do mencionado art. 47º do RGIT, deve ser declarada inconstitucional, por impedir o acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (art. 20º da Constituição da República Portuguesa – doravante CRP) e por violar os direitos de defesa (art. 32º da CRP).
Tudo o que foi anteriormente afirmámos faz antever o insucesso do presente recurso, nesta parte.
Na verdade, como se afirmou, no caso dos autos, a Autoridade Tributária fez depender a existência, ou não, de liquidações correctivas/adicionais, da conclusão a que se chegar no processo penal sobre a veracidade das facturas emitidas e/ou contabilizadas pelos diversos arguidos no processo criminal, dos quais a aqui Recorrente faz parte.
Significa isto que a AT não irá proceder a qualquer liquidação antes de se ter concluído pela veracidade das facturas e não o contrário. Ou seja, no caso dos autos, a AT não quis avançar com as liquidações antes de ter uma decisão definitiva, em sede de processo criminal, sobre as referidas facturas, pelo que nenhuma aplicação tem o referido art. 47º do RGIT.
Acresce que, quando as liquidações vierem a ser emitidas, se vierem a ser emitidas, a aqui Recorrente terá a possibilidade de lançar mão de Impugnação Judicial, nos termos do disposto no art. 99º do CPPT, por forma a obter uma anulação, declaração de nulidade ou de inexistência do acto de liquidação, pelo que em nada fica beliscado o seu direito à tutela jurisdicional efectiva consagrado no art. 20º da CRP.
Também não se vislumbra como tal situação possa vir a coartar os seus direitos de defesa, reconhecido no art. 32º da mesma lei fundamental.
Desde logo, a Recorrente não concretiza nem densifica em que medida tais direitos lhe possam ser diminuídos.
Por outro lado, não se vislumbra como a Recorrente poderá ver limitado o seu direito de lançar mão de todos os meios de defesa legalmente estabelecidos, por forma a demonstrar a eventual ilegalidade de que possa padecer a liquidação que vir a recorrer.
Concluímos, deste modo, que também por aqui, a sentença recorrida não se encontra ferida de erro de julgamento, por ter efectuado uma interpretação da alínea e) do art. 277º do CPC desconforme com a Constituição, pelo que improcedente terá também de ser julgado o presente recurso.
Assim e sem necessidade de maiores considerações, improcedente terá de ser julgado o presente recurso por a sentença recorrida não enfermar de qualquer nulidade, nem de erro de julgamento em nenhum dos segmentos invocados pela Recorrida, pelo se deverá manter. * CUSTAS
No que diz respeito à responsabilidade pelas custas do presente Recurso, atendendo o total decaimento da recorrente, as custas do recurso são da sua responsabilidade. [cfr. art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT].
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III- Decisão
Face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes da 1ª Subsecção do Contencioso Tributário Comum deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao presente recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 16 de Maio de 2024
Cristina Coelho da Silva (Relatora)
Teresa Costa Alemão
Maria da Luz Cardoso |