Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1478/17.9BELRS-S1
Secção:CT
Data do Acordão:09/30/2025
Relator:FILIPE CARVALHO DAS NEVES
Descritores:RECLAMAÇÃO DA NOTA DISCRIMINATIVA E JUSTIFICATIVA DAS CUSTAS DE PARTE
FALTA DE DEPÓSITO DA TOTALIDADE DO VALOR DA NOTA
Sumário:I – É organicamente inconstitucional a norma constante do n.º 2 do art.º 33.º da Portaria n.º 419-A/2009, de 17/04, na redação dada pela Portaria n.º 82/2012, de 29/03, por violação da reserva de competência da Assembleia da República em matéria de direitos, liberdades e garantias, constante do art.º 165.º, n.º 1, alínea b), em conjugação com o art.º 20.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa, por ter imposto o depósito da totalidade das custas de parte para se poder reclamar da nota justificativa apresentada, sem habilitação legal específica para o efeito.
II – Por essa razão, não há fundamento legal para que seja exigido o depósito do valor constante da nota discriminativa e justificativa de custas de parte apresentada no decurso da vigência da sobredita norma, tal como sucede in casu.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

A Fazenda Pública veio apresentar recurso jurisdicional do despacho de 27/03/2025 proferido pelo Tribunal Tributário de Lisboa («TTL») que decidiu não conhecer da reclamação da nota discriminativa e justificativa de custas de parte que foi apresentada em 15/01/2018.


A Recorrente apresentou alegações, rematadas com as seguintes conclusões:

«a) Vem o presente recurso interposto da decisão proferida após reclamação da nota discriminativa e justificativa, onde se decidiu não conhecer da referida reclamação.
b) A FP não pode concordar com tal decisão e nas razões que foram apresentadas para a justificar, tendo o tribunal, na sua perspetiva, errado quanto ao direito aplicável ao caso, nomeadamente, no que concerne aos art.ºs 15.º e 26.º - A, ambos do RCP, ao artigo 33.º da Portaria n.º 419.º - A/2009 de 17/04 e n.º 1 do art.º 282.º da CRP.
c) Da consulta dos autos, é possível estabilizar i) que reclamação da nota discriminativa e justificativa das custas de parte foi apresentada em 15.01.2018, onde é solicitado o pagamento da quantia de € 28.276,15 e que ii) a FP não procedeu ao pagamento da taxa de justiça, nem ao depósito da totalidade do valor da nota, nem foi notificada para proceder ao pagamento da taxa de justiça, acrescida de multa.
d) A FP entende que, pela apresentação da reclamação da nota discriminativa e justificativa das custas de parte, é devido o correspondente pagamento da taxa de justiça, como incidente
autónomo, no entanto, diverge quanto à oportunidade do seu pagamento.
e) Nos termos do n.º 1 do art.º 14.º do RCP, o regime regra é de que o pagamento da taxa de justiça é realizado até ao momento em que é entregue a peça processual.
f) No entanto, nos termos da al. a) do n.º 1 do art.º 15.º do RCP, estão dispensados do pagamento prévio da taxa de justiça diversas entidades, onde se incluem a Autoridade Tributária e Aduaneira.
g) Não havendo qualquer diferenciação na lei, pelo facto de se tratar de um “incidente implementado fora do processo”, como parece fazer entender o Tribunal a quo.
h) Pelo que, a decisão viola a al. a) do n.º 1 do art.º 15.º do RCP, porquanto, não é legítimo a exigência do pagamento antecipado da taxa de justiça à FP ou, pelo menos deveria ter sido notificada para pagar a referida taxa, acrescida da eventual multa devida, o que não sucedeu.
i) À data em que foi apresentada a reclamação da nota discriminativa e justificativa [15.01.2018], não estava em vigor o art.º 26.º - A do RCP [que só foi aditado pela Lei n.º 27/2019 de 28 de março], pois estava em vigor o art.º 33.º da Portaria n.º 419 – A 2009 de 17 de abril, na redação dada pela Portaria n.º 82/2012, de 29/03.
j) Norma, cuja redação, que foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 280/2017, de 3 de Julho de 2017, proferido no âmbito do processo n.º 108/17, inconstitucionalidade orgânica que também padece a norma repristinada e que se invoca, com todos os efeitos legais.
k) Ou seja, padecendo a norma repristinada do mesmo vício [violação de reserva de competência legislativa da Assembleia da República], os Tribunais Superiores têm entendido que a mesma deve ser desaplicada.
l) Pelo que, não poderia o Tribunal a quo aplicar, in casu, o n.º 2 do art.º 26.º - A [que veio substituir o art.º 33.º da portaria n.º 419-A/2009, de 17 de abril, sanando a falta de competência legislativa já que a referida norma foi introduzida por diploma da Assembleia da Republica, a Lei n.º 27/2019 de 28 de março], já que a mesma não estava em vigor à data da apresentação da nota [nem se socorrer da jurisprudência que vingou após a entrada em vigor da mesma].
m) De todo o exposto, entende a FP que a decisão aqui em escrutínio deverá ser revogada e substituída por decisão que admita a referida reclamação e que determine a baixa dos autos com vista à subsequente tramitação [pronúncia sobre os fundamentos da reclamação propriamente dita].».

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A Exma. Magistrada do Ministério Público («EMMP») pronunciou-se no sentido da procedência do recurso jurisdicional.
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Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul para decisão.

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II – DO OBJECTO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações (cf. art.º 635.º, n.º 4 e art.º 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil («CPC») - ex vi art.º 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário - «CPPT»), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente.

Assim, delimitado o objeto do recurso pelas conclusões das alegações da Recorrente, importa decidir se deve ser revogado o despacho de 27/03/2025 proferido pelo TTL que decidiu não conhecer da reclamação da nota discriminativa e justificativa de custas de parte que foi apresentada em 15/01/2018, com fundamento em erro de julgamento na aplicação e interpretação do direito

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III. FUNDAMENTAÇÃO

III.A - De facto

Embora não tenham sido fixados factos no despacho recorrido, entende-se ser útil elencar as seguintes vicissitudes processuais, dado o seu relevo para a decisão do presente recurso:


A. Em 15/01/2018 foi deduzida pela Recorrente reclamação da nota discriminativa e justificativa das custas de parte apresentada pela C…, S.A., na qual, além do mais, é solicitado o pagamento da quantia de € 28.276,15 – cf. informação que se extrai da plataforma Magistratus;

B. A Recorrente não procedeu ao pagamento de taxa de justiça referente à apresentação da reclamação indicada no ponto A. supra, nem realizou o depósito da totalidade do valor da nota discriminativa e justificativa de custas de parte – cf. informação que se extrai da plataforma Magistratus;

C. O Tribunal a quo não convidou a Recorrente a proceder ao pagamento da taxa de justiça, acrescida de multa, relativamente à apresentação da reclamação indicada no ponto A. supra – cf. informação que se extrai da plataforma Magistratus;

D. Em 27/03/2025 foi proferido despacho pelo TTL relativamente à reclamação referida no ponto A. supra, no qual, além do mais, consta o seguinte:
«(…)
Dispõe o n.º 2 do art.º 26.º- A do Regulamento das Custas Processuais, aditado pelo artigo 5.º da Lei n.º 27/2019, de 28/03, transpondo integralmente o que constava no artigo 33.º da Portaria n.º 419- A/2009, de 17 de abril que “[a] reclamação da nota justificativa está sujeita ao depósito da totalidade do valor da nota”.
Ora, a reclamação da nota discriminativa e justificativa de custas de parte é uma reclamação similar à prevista no artigo 31.º do RCP, configurando- se como incidente implementado fora do processo que o justificou, posterior à decisão final, enquadrável, para efeito de pagamento da taxa de justiça, no n.º 4 do artigo 7.º daquele diploma – neste sentido, vide Salvador da Costa, As Custas Processuais, Análise e Comentário, Almedina, 8.ª edição, 2022, pág. 178.
Nestes termos, a parte que reclama, não só tem de efetuar o pagamento da taxa de justiça devida pelo incidente, como tem de efetuar o depósito da totalidade do valor da nota que, caso não seja prévio, deve ser pelo menos contemporâneo da apresentação da reclamação.
No caso vertente, a Representação da Fazenda Pública não procedeu a tal depósito, circunstância de que depende o conhecimento da reclamação
(…)» - cf. documento com a ref.ª 008083215 que consta da plataforma Magistratus.
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III.B De Direito

Insurge-se a Recorrente contra o despacho recorrido por, alegadamente, padecer de erro de julgamento na aplicação e interpretação do direito, invocando, além do mais, que «(…) nos termos da al. a) do n.º 1 do art.º 15.º do RCP, estão dispensados do pagamento prévio da taxa de justiça diversas entidades, onde se incluem a Autoridade Tributária e Aduaneira.» e que «À data em que foi apresentada a reclamação da nota discriminativa e justificativa [15.01.2018], não estava em vigor o art.º 26.º - A do RCP [que só foi aditado pela Lei n.º 27/2019 de 28 de março], pois estava em vigor o art.º 33.º da Portaria n.º 419 – A 2009 de 17 de abril, na redação dada pela Portaria n.º 82/2012, de 29/03.», a qual «(…) foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 280/2017, de 3 de Julho de 2017, proferido no âmbito do processo n.º 108/17, inconstitucionalidade orgânica que também padece a norma repristinada e que se invoca, com todos os efeitos legais».

Sustenta a EMMP junto deste Tribunal que tem razão a Recorrente, e que, por isso, o despacho recorrido não pode ser mantido na ordem jurídica.

Apreciemos.

Adiantando, desde já, a nossa posição, entendemos que tem razão a Recorrente.
Senão vejamos.

Em primeiro lugar, como bem aponta a Recorrente, a decisão sub judice viola, desde logo, o disposto na al. a) do n.º 1 do art.º 15.º do Regulamento das Custas Processuais («RCP»), que estabelece que:
«1 - Ficam dispensados do pagamento prévio da taxa de justiça:
a) O Estado, incluindo os seus serviços e organismos ainda que personalizados, as Regiões Autónomas e as autarquias locais, quando demandem ou sejam demandados nos tribunais administrativos ou tributários, salvo em matéria administrativa contratual e pré-contratual e relativas às relações laborais com os funcionários, agentes e trabalhadores do Estado;».

Assim sendo, evidente é a conclusão que a Recorrente não estava obrigada ao pagamento prévio de taxa de justiça em relação ao ato processual que foi praticado.

Depois, porque também como bem se aponta nas conclusões do recurso jurisdicional apresentado, considerando o Tribunal a quo que era in casu devida taxa de justiça, deveria, em homenagem aos mais elementares princípios de boa gestão processual, ter convidado a Recorrente a suprir essa falha, o que também não sucedeu (cf. ponto B. dos factos assentes).

Em terceiro e último lugar, porque, como também é avançado com acerto nas conclusões recursivas, à data em que foi apresentada a nota discriminativa e justificativa de custas de parte e a respetiva reclamação (15/01/2018 – cf. ponto A. dos factos assentes) não estava em vigor o art.º 26.º-A, n.º2 do RCP (que foi aditado pela Lei n.º 27/2019, de 28/03), mas antes o art.º 33.º, n.º 2 da Portaria n.º 419-A/2009, de 17/04, na redação dada pela Portaria n.º 82/2012, de 29/03, pelo que é à luz do regime ínsito nesta norma que esta questão deve ser dilucidada (cf. art.º 12.º do Código Civil).

Preceituava esta norma que, no que para o que agora releva:
«Artigo 33.º
1 - A reclamação da nota justificativa é apresentada no prazo de 10 dias, após notificação à contraparte, devendo ser decidida pelo juiz em igual prazo e notificada às partes.
2 - A reclamação da nota justificativa está sujeita ao depósito da totalidade do valor da nota.

(…)».

E este art.º 33.º, n.º 2 da Portaria n.º 419-A/2009, de 17/04, foi declarado inconstitucional com força obrigatória geral pelo Tribunal Constitucional («TC») no acórdão n.º 280/2017, de 30/06, por violação da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, constante do art.º 165.º, n.º 1, alínea b), em conjugação com o n.º 1 do art.º 20.º, ambos da Constituição da República Portuguesa («CRP»).

Diga-se que, de igual forma, também o acórdão do TC n.º 828/2024, de 04/12, julgou inconstitucional a norma constante do n.º 2 do art.º 26.º-A do RCP, aditada pela Lei n.º 27/2019, de 28/03, na interpretação segundo a qual pode ser decidido o indeferimento da apreciação da reclamação da nota de custas de parte com o único fundamento de não ter sido efetuado o depósito do valor dessa nota por parte do reclamante, por violação do direito de acesso à justiça e aos tribunais, consagrado no n.º 1 do art.º 20.º, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente do n.º 2 do art.º 18.º, ambos da CRP.

Pelo que, não poderia o Tribunal a quo, por um lado, fundar a sua decisão no estabelecido no art.º 33.º, n.º 2 da Portaria n.º 419-A/2009, de 17/04, e, por outro, também não poderia convocar o disposto no n.º 2 do art.º 26.º-A do RCP, já que não estava em vigor à data da apresentação da reclamação da nota discriminativa e justificativa de custas de parte e o TC já julgou esta norma inconstitucional na dimensão em causa nos presentes autos.

Resulta, assim, do que vem de ser dito, e sem necessidade de mais nos alongarmos, que procedem as conclusões recursórias, pelo que o recurso merece provimento, o que de seguida se decidirá.
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IV- DECISÃO

Termos em que acordam, em conferência, os Juízes da Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido.

Sem custas.

Registe e notifique.

Lisboa, 30 de setembro de 2025

(Filipe Carvalho das Neves)

(Luísa Soares)

(Isabel Vaz Fernandes)