Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:640/16.6BEBJA
Secção:CT
Data do Acordão:04/24/2024
Relator:ÂNGELA CERDEIRA
Descritores:DESCRITORES:
DEPOIMENTO TESTEMUNHAL
IMPEDIMENTO
NOÇÃO DE PARTE
CÔNJUGE
Sumário:I - Nos termos do artigo 496º do Código de Processo Civil, estão impedidos de depor como testemunhas os que na causa possam depor como partes.
II - Partes são as pessoas que requerem e as pessoas contra quem se requer a providência judiciária. Esta noção formal de parte abstrai dos titulares da relação material controvertida, centrando-se na relação processual.
III – O cônjuge do Impugnante, que não é parte nos autos, não pode qualificar-se como comparte do Impugnante.
IV – Por essa razão não pode prestar declarações de parte, atento o disposto no artigo 466º do C.P.C., pelo que pode ser ouvido como testemunha, nos termos do artigo 496º do C.P.C.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I – RELATÓRIO

A ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, inconformada, interpôs recurso do despacho interlocutório proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja (TAF de Beja) datado de 25 de Setembro de 2019, que designou dia para audição da indicada testemunha J......., no presente processo de impugnação judicial deduzido por A........, contra as liquidações de IRS e juros compensatórios com os nºs ……35 e …..30 no valor total € 10.502,54, referentes aos anos de 2009 e 2010.

Alegou, tendo apresentado conclusões, como se segue:

A-Aos anos dos fatos tributários, determinava o Código de IRS, que este imposto incidia sobre o conjunto dos rendimentos das pessoas que compõem o agregado familiar, considerando-se sujeitos passivos aqueles a quem incumbe a sua direcção;

B-Sendo que de harmonia com o nº 2 do artigo 1671 do CC, a direcção da família pertence a ambos os cônjuges, resultando ainda da alínea d) do nº 1 do artigo 1691, igualmente do Código Civil, uma presunção de comunhão, elidível é certo, nos proveitos da actividade comercial,

C-De onde, e sempre com o devido respeito, não tendo tal presunção sido elidida, os rendimentos da actividade comercial desenvolvida pelo cônjuge marido, são proveitos comuns do casal, fato confirmado pelo autor, em declarações de parte, a pergunta colocada pela Representação da Fazenda Pública.

D-Perante tal cenário, dúvidas inexistem que a indicada testemunha J......., enquanto cônjuge do autor, é também sujeito passivo da relação tributária controvertida, de onde resulta evidente interesse direto na resolução do litígio,

E-De onde, não estão reunidas condições para intervir no mesmo enquanto testemunha, não podendo, por essa razão subsistir o despacho ora sob recurso,

F-Impondo-se, por essa razão, a sua revogação e substituição por outro, que apenas admita a intervenção no processo, da cônjuge do autor, enquanto parte interessada e como tal, na qualidade de declarações de parte, o que desde já, e sempre com o devido respeito, se peticiona.

Contra-alegou o Recorrido, tendo concluído:

a) O objecto do recurso, conforme alegado, delimitado e resumido em conclusões, pela recorrente e impugnada AT, será a questão a decidir, apenas de saber se a mulher do Impugnante poderá prestar declarações como testemunha, ou se assim não for, o deverá ou poderá fazer por via de declarações de parte.

b) A AT impugnada e ora recorrente agiu legal e processualmente sempre apenas contra o sujeito passivo, ou seja, o Impugnante.

c) Na sequência da Petição Inicial do Impugnante, notificada à impugnada e ora recorrente AT, a qual esta contestou, nunca esta veio a deduzir nos termos e prazos legais, defesa por excepção, invocando a eventual preterição de litisconsórcio activo ou passivo por parte do impugnante.

d) A qualidade de parte afere-se em função da legitimidade processual no interesse em demandar e no interesse em contradizer, relação essa que desde a fase da inspeção tributária realizada, depois na fase graciosa, e agora na fase contenciosa, se estabeleceu sempre entre os sujeitos processuais sujeito passivo fiscal, ora Impugnante recorrido e a A.T.- Autoridade Tributária, impugnada e ora recorrente.

e) A presente fase contenciosa judicial, é uma nova fase processual, independente e autónoma das restantes, correspondendo a uma nova diferente instância, autónoma e independente, que não a da liquidação tributária, nem a da reclamação graciosa, mas sim a da impugnação contenciosa, pelo que deverá ser neste âmbito e com estes sujeitos processuais, como tal definidos a seu tempo pelo impugnante e impugnada em função do interesse em agir e do interesse em contradizer, que a instância se deverá considerar devidamente estabilizada.

f) Bem decidiu a Mma. Senhora Juíza no douto despacho interlocutório proferido e que é objecto do presente recurso, pois efectivamente, as liquidações oficiosas que se mostram impugnadas decorrem da atividade empresarial do Impugnante e ora recorrido pelo qual se mostra enquadrado na categoria B de IRS,

g) Em momento algum do processo, nomeadamente desde a fase inspetiva até à fase judicial existe qualquer alegação no sentido de que tais rendimentos sejam comuns à referida testemunha e cônjuge do impugnante contribuinte A.........

h) Bem andou o tribunal a quo, ao presumir que se tratam de rendimentos exclusivos da própria atividade do impugnante recorrido, não comunicáveis ao seu cônjuge, concluindo, e bem, que da análise preparatória dos processos, resulta evidente para o Tribunal que o interesse em demandar em qualquer um deles é único e exclusivo do Impugnante e ora recorrido.

i) Não sendo a referida testemunha parte no processo, nunca se poderá colocar a questão do seu depoimento testemunhal ser substituído por declaração de parte, uma vez que não detém essa qualidade ou estatuto processual, sendo as declarações de parte exclusivas para as partes, ou seja os autores e réus.

j) Considera o Impugnante não caber qualquer razão à A.T. impugnada e ora recorrente pelo que deve improceder totalmente o recurso.

Nestes Termos,

E nos mais de Direito doutamente supridos e aplicados, deve improceder o recurso, devendo ser mantida a douta decisão interlocutória proferida, e a acção prosseguir com produção de prova, sendo a referida testemunha J......., ouvida nessa qualidade.

O DIGNO MAGISTRADO DO MINISTÉRIO PÚBLICO (DMMP) neste TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.


***

Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O despacho recorrido apresenta o seguinte teor [cfr. fls. 493/494 do processo eletrónico]:

““Decorreu, da breve identificação da testemunha arrolada em todos os processos de impugnação e hoje presente neste Tribunal que a mesma tem por nome J....... e que é casada com o Impugnante há 29 anos.

Vem pedida pela Representação da Fazenda Pública a tomada de declarações à mesma enquanto parte, e não testemunha designadamente no âmbito do processo que versa sobre IRS, atenta aquela qualidade de cônjuge do Impugnante.

Sucede que, as liquidações oficiosas que se mostram impugnadas decorrem da atividade empresarial do Impugnante pelo qual se mostra enquadrado na categoria B de IRS.

Em momento algum do processo, nomeadamente desde a fase inspetiva até à fase judicial existe alegação no sentido de que tais rendimentos sejam comuns ao cônjuge do contribuinte A.........

Posto isto, impõe-se ao Tribunal presumir que se tratam de rendimentos exclusivos da sua própria atividade, não comunicáveis ao seu cônjuge.

Face ao exposto, da análise preparatória dos processos, resulta evidente para o Tribunal que o interesse em demandar em qualquer um deles é único e exclusivo do Impugnante”.

III – APRECIAÇÃO DO RECURSO

O despacho judicial ora recorrido admitiu, como meio de prova, a inquirição da testemunha J......., arrolada pelo Impugnante, pese embora a oposição manifestada pela Fazenda Pública, alegando para o efeito que a referida testemunha é cônjuge do Impugnante e “tendo em consideração que estamos perante processos de rendimento sobre pessoas singulares e também de IVA entende a Representação da Fazenda Pública que a intervenção da Sr.ª J....... não poderá ser na qualidade de testemunha, mas sim e se assim o Tribunal o entender a titulo de declarações de parte.”.

Vejamos.

Nos termos do disposto no artigo 496º do CPC estão impedidos de depor como testemunhas os que na causa possam depor como partes.

Entende a Recorrente que o cônjuge do Impugnante apenas pode ser ouvido como parte, se o Tribunal assim o entender, e não como testemunha.

Na perspectiva da Recorrente, os rendimentos da actividade comercial desenvolvida pelo cônjuge marido, são proveitos comuns do casal, facto confirmado pelo autor, e perante tal cenário, dúvidas inexistem que a indicada testemunha J......., enquanto cônjuge do autor, é também sujeito passivo da relação tributária controvertida, de onde resulta evidente interesse direto na resolução do litígio, pelo que não estão reunidas condições para intervir no mesmo enquanto testemunha, não podendo, por essa razão subsistir o despacho ora sob recurso.

Vejamos se lhe assiste razão.

A propósito do conceito de parte e seu interesse, diz-nos Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol II, pág. 99: “Depois, essa noção assume ainda relevo no que respeita a saber quem pode depor como parte e como testemunha. A lei pretende que todas as pessoas que tenham conhecimento de algo relacionado com o processo e susceptível de influir na decisão final, sejam ouvidas ou como partes ou como testemunhas. Ora, sê-lo-ão nesta última qualidade, entre outras, as pessoas que, podendo ser parte na causa, o não são.”

Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., pág. 107, dão-nos a noção de parte como “a pessoa pela qual e contra a qual é requerida através da acção a providência judiciária”, salientando que “[é] entre as partes identificadas na petição, sejam elas ou não os titulares da relação litigada, que se estabelece a relação processual. (…) E é (…) em relação a elas que se há-de determinar quem pode ou não pode depor como parte ou como testemunha (…)”.

Partes são, pois, as pessoas que requerem e as pessoas contra quem se requer a providência judiciária a que tende a acção. Esta noção formal de parte abstrai dos titulares da relação material controvertida centrando-se na relação processual – cfr., neste sentido, o acórdão da Relação de Coimbra, de 28.01.2014, processo nº 404/12.6TBCNT-C.C1, disponível em www.dgsi.pt.

No caso dos autos, o cônjuge do Impugnante, ora Recorrido, não se apresenta como sujeito processual na acção, não podendo qualificar-se como comparte do Impugnante, independentemente da sua posição na relação jurídica tributária controvertida.

Em consequência, não pode o referido cônjuge prestar declarações de parte, nos termos do artigo 466º do C.P.C., contrariamente ao que defende a Recorrente, podendo isso sim ser ouvido como testemunha, conforme o disposto no artigo 496º do C.P.C. “a contrario sensu”.

O argumento de que a referida testemunha tem um interesse directo na decisão da causa não a impede de depor, antes constitui um elemento para o Tribunal avaliar a força probatória do depoimento.

Assim, são julgadas improcedentes as conclusões do recurso, devendo ser negado provimento à apelação e mantido o despacho recorrido.

Conclusões/Sumário:

I - Nos termos do artigo 496º do Código de Processo Civil, estão impedidos de depor como testemunhas os que na causa possam depor como partes.

II - Partes são as pessoas que requerem e as pessoas contra quem se requer a providência judiciária. Esta noção formal de parte abstrai dos titulares da relação material controvertida, centrando-se na relação processual.

III – O cônjuge do Impugnante, que não é parte nos autos, não pode qualificar-se como comparte do Impugnante.

IV – Por essa razão não pode prestar declarações de parte, atento o disposto no artigo 466º do C.P.C., pelo que pode ser ouvido como testemunha, nos termos do artigo 496º do C.P.C.

IV. DECISÃO

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário Comum deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, mantendo-se o despacho recorrido.

Custas pela Recorrente.

D.N.

Lisboa, 24 de Abril de 2024


(Ângela Cerdeira)

(Isabel Silva)

(Cristina Coelho da Silva)