Decisão Texto Integral: | Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:
I Relatório
L....., com os sinais nos autos, no âmbito da Ação impugnatória urgente que apresentou contra o Ministério da Administração Interna peticionou:
“a) A declaração de nulidade do despacho proferido pelo Diretor Nacional Adjunto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (“SEF”), em 27 de agosto de 2021, que considerou inadmissível o pedido de proteção internacional apresentado pelo Requerente e determinou a sua transferência para os Países Baixos;
b) A condenação do SEF a promover nova decisão, avocando a competência de análise do pedido de proteção internacional do Requerente;
c) A condenação do SEF à realização das diligências probatórias que entender necessárias.
Inconformado com a decisão proferida no TAC de Lisboa, em 5 de novembro de 2021, através da qual foi decidido julgar a Ação Improcedente, veio recorrer da decisão proferida.
Assim, em 25 de novembro de 2021, concluiu o seu Recurso L.....:
“1. O Recorrente saiu de seu país e possuí um pedido não analisado há mais de 6 (seis) anos;
2. Ele ingressou na Europa através da Espanha onde permaneceu por aproximadamente 2 (dois) meses;
3. Quando esteve nos Países Baixos ingressou com pedido de asilo, sem qualquer posição até o momento;
4. O Recorrente não vislumbrou outra alternativa, procurando meios para a sua subsistência em outro país-membro, fixando-se em Portugal,
5. Assim, o seu retorno aos Países Baixos decorrerá o seu retorno ao país de origem e por consequência sua vida ficará sob risco, não podendo uma formalidade prevalecer sobre o bem maior de todo ser humano, devendo ser concedido o asilo pretendido.
Nestes termos e nos demais de direito, e sempre com o mui douto suprimento V. Exa suprirá,
- que seja mantido o efeito suspensivo, impedindo, assim, qualquer ato em face do Recorrente, até o transito em julgado da presente ação;
- a r. sentença seja modificada, para declarar nulo o ato administrativo que determinou a transferência do pedido de proteção internacional aos Países Baixos,
- seja reconhecida a proteção pretendida, sendo assim concedido o asilo humanitário.”
Em 21 de dezembro de 2021 foi proferido Despacho de admissão do Recurso.
Não foram apresentadas contra-alegações de Recurso
Com dispensa de vistos prévios (art.º 36º, nº 2, do CPTA), cumpre decidir.
II - Questões a apreciar
Importa apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, o que se consubstancia na necessidade de verificar, se estão reunidos, como invocado, os pressupostos tendentes a ser deferido desde já o pedido de proteção internacional,
III – Fundamentação de Facto
O Tribunal a quo, considerou a seguinte matéria de facto relevante para a apreciação da questão controvertida, cujo teor infra se reproduz:
“1. L....., ora Requerente, é nacional da República Argelina Democrática e Popular – cfr. fls. 1 do PA, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas;
2. Nascido em Orão – cfr. fls. 1 do PA, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas;
3. No dia 29 de junho de 1987
– cfr. fls. 1 do PA, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas;
4. Em 27 de julho de 2021, o Requerente solicitou proteção internacional em Portugal – cfr. fls. 4 e ss. do PA, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas;
5. Por consulta ao sistema Eurodac – Fingerprint Form, o SEF verificou a existência de dados relativos ao Requerente, inseridos em Den Bosch (Países Baixos), em 13 de junho de 2019 – cfr. fls. 3 do PA, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas;
6. Em 12 de agosto de 2021, o Requerente prestou entrevista junto do SEF, tendo, nessa sequência, sido elaborado o seguinte auto de entrevista/transcrição:
(Dá-se por reproduzido Documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Art.º 663º nº 6 CPC)
– Cfr. fls. 29 e ss. do PA, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas;
7. Nesse mesmo dia, o SEF elaborou relatório e projeto de decisão, os quais têm o seguinte teor:
(Dá-se por reproduzido Documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Art.º 663º nº 6 CPC)
– cfr. fls. 36 e ss. do PA, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas;
8. Em 18 de agosto de 2021, o Requerente exerceu o seu direito de audiência prévia, alegando o seguinte:
(Dá-se por reproduzido Documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Art.º 663º nº 6 CPC)
– cfr. fls. 39 e ss. do PA, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas;
9. Em 19 de agosto de 2021, foi solicitado pelo SEF às autoridades dos países baixos a retoma a cargo do Requerente, ao abrigo do disposto no artigo 18.º n.º 1 al. b) do Regulamento (UE) n.º 604/2013 – cfr. fls. 43 e ss. do PA, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas;
10. Em 27 de agosto de 2021, as autoridades dos países baixos informaram as autoridades portuguesas de que aceitavam o pedido de retoma a cargo do Requerente – cfr. fls. 51 do PA, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas;
11. Em 27 de agosto de 2021, o SEF elaborou a informação n.º .../GAR/2021, a qual tem o seguinte teor:
(Dá-se por reproduzido Documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Art.º 663º nº 6 CPC)
– cfr. fls. 53 e ss. do PA, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas;
12. Em 27 de agosto de 2021, o Diretor Nacional Adjunto do SEF proferiu decisão com o seguinte teor:
(Dá-se por reproduzido Documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Art.º 663º nº 6 CPC)
– Cfr. fls. 60 do PA, para as quais se remete e que se dão por integralmente reproduzidas.
IV - Do Direito
No que ao direito concerne, no que aqui releva, discorreu-se em 1ª instância:
“(...) Tal como decorre do sobredito, o Requerente vem impugnar o ato administrativo proferido pelo Diretor Nacional Adjunto do SEF, em 27 de agosto de 2021, que considerou inadmissível o seu pedido de proteção internacional e determinou a sua transferência para os Países Baixos.
(…)
Do vício de violação de lei, por erro quanto aos pressupostos de facto e de direito do ato:
Em primeiro lugar, o Requerente defendeu que o ato impugnado errou ao considerar que o mero decurso do prazo de duas semanas equivaleria a uma aceitação tácita do pedido de retoma a cargo do Requerente por parte das autoridades dos Países Baixos.
O Requerente partiu, assim, do pressuposto que o Reino dos Países Baixos não se pronunciou atempadamente acerca do pedido de retoma a cargo que lhe foi dirigido pelas autoridades portuguesas.
No entanto, tal como resulta da matéria de facto fixada, é patente que as autoridades do Reino dos Países Baixos aceitaram expressamente o pedido de retoma a cargo do Requerente – cfr. os pontos 9 e 10 da matéria de facto provada.
Por conseguinte, e sem necessidade de mais considerações, importa concluir que falecem os argumentos do Requerente quanto à alegada admissão tácita do pedido de retoma a cargo por parte das autoridades do Reino dos Países Baixos.
Do vício de deficit instrutório:
Para além disso, no entendimento do Requerente, o ato impugnado incorre em deficit de instrução no que concerne aos factos essenciais relativos à decisão de transferência, violando o artigo 58.º do CPA. Vejamos.
Como já se aventou, de acordo com o Regulamento Dublin, os pedidos de proteção internacional devem ser analisados por um único Estado-Membro, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável – cfr. artigos 1.º e 3.º n.º 1, in fine, do Regulamento.
É indisputável, no caso sub judicio, que o SEF julgou inadmissível o pedido efetuado pelo Requerente, determinando que os Países Baixos são o Estado-Membro responsável pela apreciação do pedido de proteção internacional ora sob apreciação.
Neste conspecto, o Requerente não refutou, por qualquer modo, que, de acordo com os critérios vertidos no Regulamento Dublin, o Reino dos Países Baixos seja, efetivamente, o Estado-Membro responsável pela apreciação do pedido de proteção internacional.
De resto, tal como deflui da matéria de facto fixada (cfr. os pontos 9 e 10), as autoridades do Reino dos Países Baixos aceitaram expressamente o pedido de retoma a cargo do Requerente.
Perante o ato impugnado, que julgou inadmissível o pedido de proteção internacional formulado perante as autoridades portuguesas e determinou a sua transferência para o referido Estado-Membro, o Requerente invoca, na petição inicial deduzida em juízo, que:
A decisão se mostra “totalmente omissa relativamente à situação atual dos refugiados”;
O SEF “não pode ignorar a situação do Requerente que se vê compelido a mais uma vez modificar toda a sua vida, mesmo declarando aqui possuir amigos e relações para conseguir reiniciá-la com o mínimo de dignidade”;
Que “vemos atualmente (…) um endurecimento das políticas e práticas sobre os refugiados, que tem resultado numa vida indigna por aqueles que somente visam exatamente o contrário: DIGNIDADE”;
E que a “forte pressão migratória pode, em determinadas circunstâncias, exigir adaptações à tramitação normal dos procedimentos, que podem passar por uma repartição de esforços entre todos os Estados-Membros, sob pena de se deixar os Estados com fronteiras externas impossibilitado de cumprir as suas obrigações de respeito pelos direitos procedimentais, como acontece no caso em apreço que, por se encontrar com tais dificuldades, coloca em causa direitos, liberdades e garantias do Requerente de proteção internacional”;
Conclui que “o ato impugnado incorre em deficit de instrução, no que concerne aos factos essenciais à decisão de transferência e por conseguinte, à decisão de (in)admissibilidade do pedido de proteção internacional, devendo ser anulada por deficit instrutório, nos termos dos artigos 58.º e 163., nº 1, do Código de Processo Administrativo”.
Com efeito, o Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, assegura que ninguém deve ser enviado para um local onde possa ser sujeito a tratamento desumano ou degradante.
Concretamente, para obstar à transferência de requerentes de proteção internacional, é necessário verificar a existência de motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia – cfr. o artigo 3.º n.º 2 2.º parágrafo do Regulamento.
A respeito da concretização dos conceitos acima expressos, compulsa-se o Ac. do Tribunal de Justiça (Grande Secção), de 19 de março de 2019, proferido no processo n.º C-163/17 (ECLI EU:C:2019:218), disponível em www.curia.europa.eu, que, em sede prejudicial, visou a interpretação do artigo 3.º n.º 2 e do artigo 29.º n.ºs 1 e 2 do Regulamento, bem como do artigo 4.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
(…)
E, só na situação de não haver outro Estado-Membro responsável, é que a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional recairá, então, sobre o Estado-Membro em que o pedido tenha sido formulado.
Finalmente, há que acrescentar que, em conformidade com o princípio da confiança mútua, existe a presunção de que o tratamento dado aos beneficiários de proteção internacional em cada Estado-Membro se mostra conforme às exigências da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, da Convenção de Genebra e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos – presunção que pode, naturalmente, ser ilidida.
(…)
As questões que se colocam consubstanciam-se em saber se, face aos dados conhecidos, a cláusula de salvaguarda prevista no artigo 3.º n.º 2 2.º parágrafo do Regulamento Dublin poderia obstar à transferência do Requerente para os Países Baixos?
Se, para o efeito, o SEF estava obrigado a proceder à averiguação das circunstâncias concretas relativas aos tratamentos considerados desumanos ou degradantes, por forma a ponderar o risco das condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional?
Salvo o devido respeito por entendimento diverso, as respostas a tais questões deverão ser negativas.
(…)
No caso dos autos, não existem quaisquer elementos objetivos, fiáveis, precisos e devidamente atualizados, por referência ao nível de proteção dos direitos fundamentais garantido pelo direito da União Europeia, que impliquem assumir a existência de falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento do Requerente no Reino dos Países Baixos, no sentido já patenteado pelo Ac. do Tribunal de Justiça (Grande Secção), de 19 de março de 2019, proferido no processo n.º C-163/17 (ECLI EU:C:2019:218).
O artigo 58.º do CPA consagra que o responsável pela direção do procedimento e os outros órgãos que participem na instrução podem, mesmo que o procedimento seja instaurado por iniciativa dos interessados, proceder a quaisquer diligências que se revelem adequadas e necessárias à preparação de uma decisão legal e justa, ainda que respeitantes a matérias não mencionadas nos requerimentos ou nas respostas dos interessados.
O vício de falta do dever de instrução do SEF apenas poderia relevar caso o Requerente tivesse invocado que o seu regresso aos Países Baixos implicaria, para si, uma situação de privação material extrema ou tal investigação se revelasse adequada e necessária à decisão (que, atendendo à globalidade dos dados conhecidos, não releva); só nesse caso se impunha à Entidade Requerida que procedesse à recolha dos referidos elementos instrutórios adicionais, averiguando acerca da existência de falhas sistémicas.
Com efeito, a instrução dos procedimentos administrativos importa o apuramento dos factos que se mostrem pertinentes para a concreta decisão a tomar: se a aplicação do disposto no artigo 3.º n.º 2 2.º parágrafo implica que se reconheça que o Requerente quedaria em situação de privação material extrema caso a transferência fosse executada e, simultaneamente, se o Requerente invoca factos que permitem concluir pela inexistência de quaisquer indícios de tal situação, então não estava a Entidade Requerida obrigada a proceder a ulteriores diligências instrutórias para aquele efeito.
O Requerente, que, antes de apresentar pedido de proteção internacional no Reino dos Países Baixos, até já havia estado em Espanha e em França, não pode agora escolher Portugal para efeitos de (re)apreciação de tal pedido, uma vez que um dos propósitos do Regulamento de Dublin é, justamente, o de impedir o asylum shopping.
Do vício de violação de lei, por violação do princípio da não expulsão:
Para além do vício de deficit instrutório, e na sua decorrência, o Requerente alegou também, de forma pouco substanciada, que o “presente caso deverá ser analisado sob a ótica do previsto no artigo 33, n. 1, 1 parte, da Convenção de genebra de 1951, observando-se assim o Princípio da Não Expulsão, evitando-se, assim o retorno ao seu país de origem” e que as alternativas devem ser analisadas “em consonância com o princípio da não repulsão, consoante o disposto no artigo 3 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, dos artigos 1, 3, 18 e 19, n. 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e do artigo 78 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, pelo que a decisão em causa viola tais disposições normativas, não restando dúvidas de que, ao ser deslocado para os Países Baixos, será colocado numa situação de tratamento desumano e degradante, na medida em que não há capacidade para continuar a acolher requerente de proteção internacional.”
No entanto, e na sequência do que já se referiu a propósito da questão do deficit instrutório, para cuja fundamentação se remete, é de rejeitar que o Requerente fique em situação de tratamento desumano ou degradante caso regresse ao Reino dos Países Baixos; assim como é de rejeitar que o Requerente venha a ser reenviado para o seu país de origem, em violação do princípio da não expulsão (não sendo esse, sequer, o sentido do ato praticado pelo Diretor Nacional Adjunto do SEF, de 27 de agosto de 2021, que ora surge impugnado).
Reitera-se que o Requerente não provou que ocorram falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes no Reino dos Países Baixos que impliquem, para si, o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; e não só não existe qualquer indício nesse sentido, como o Requerente até deu conta de que, enquanto permaneceu em tal Estado-Membro, recebia uma semanada e lhe iriam ser proporcionadas aulas de neerlandês; sendo transferido para os Países Baixos, o Requerente verá, assim, apreciado o seu pedido de proteção internacional.
Em face do exposto, e sem a necessidade de mais amplos desenvolvimentos, conclui-se que o ato impugnado não padece de vício de violação de lei por ofensa ao princípio da não expulsão, nem aos artigos 33.º n.º 1 1.ª parte da Convenção de Genebra de 1951, 3.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 1.º, 3.º, 18.º e 19.º n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e 78.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
Da aplicação da cláusula de soberania:
Por fim, o Requerente alegou que, com base nos princípios gerais do direito, e num espirito de solidariedade, o Estado Português pode avocar a sua competência soberana para analisar o mérito do pedido de asilo, tal como previsto no artigo 17.º do Regulamento Dublin.
A este respeito cabe referir que, efetivamente, nos termos do artigo 17.º n.º 1 do Regulamento, em derrogação do artigo 3.º, n.º 1, cada Estado-Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento.
No entanto, como é manifesto (veja-se a epígrafe do mencionado artigo 17º), uma tal faculdade insere-se no âmbito da margem de livre decisão da Administração, não podendo ser sindicada pelos tribunais administrativos.
No caso concreto, nem mesmo atendendo aos princípios da proporcionalidade, da não expulsão, ou a outros princípios gerais do direito, conforme invocado pelo Requerente, se pode considerar que o Estado Português está juridicamente vinculado a aplicar a mencionada cláusula de soberania.
Sendo que, por força do princípio da separação e interdependência dos poderes do Estado, aos tribunais administrativos cabe, apenas, julgar do cumprimento das normas e dos princípios jurídicos que vinculam a Administração, mas não da conveniência ou da oportunidade da sua atuação – cfr. artigo 3.º n.º 1 do CPTA.
Razão pela qual, a não aplicação pelo Estado português da cláusula discricionária ínsita no artigo 17.º do Regulamento Dublin não inquina a validade do ato administrativo impugnado e não pode ser sindicada por este Tribunal.
Em sentido coincidente com a fundamentação acima esgrimida, respiga-se o sumário do Ac. do TCA Sul, de 21-02-2019, proferido no processo n.º 1740/18.3BELSB, disponível em www.dgsi.pt, no qual se propugna o seguinte entendimento:
“I - Aceite a responsabilidade pela apreciação do pedido de proteção internacional do cidadão estrangeiro pelas autoridades de Itália, à Entidade portuguesa demandada apenas compete, proferir decisão de inadmissibilidade do pedido e, após notificação, assegurar a execução da transferência para esse país [cfr. o disposto nos artigos 37º, nº 2 e 38º da Lei do Asilo].
II - Só não seria assim se, tal como resulta do §2º do nº 2 do artigo 3º do Regulamento nº 604/2013, existissem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes no Estado-Membro, inicialmente designado responsável, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
III - O Tribunal de Justiça da U.E. tem reconhecido a possibilidade de análise dos pedidos por outros Estados-Membros, em conformidade com regras de solidariedade [cf. art. 80º do Tratado], mas o exercício de tal opção inscreve-se numa área de “discricionariedade” administrativa, ou mesmo de opção política, que, por natureza da separação de poderes, escapa ao controlo jurisdicional.”
Com base no exposto, será de julgar a presente impugnação improcedente, mantendo-se o ato impugnado no ordenamento jurídico.”
Vejamos:
Em síntese, veio na presente Ação peticionada predominantemente “A declaração de nulidade do despacho proferido pelo Diretor Nacional Adjunto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (“SEF”), em 27 de agosto de 2021, que considerou inadmissível o pedido de proteção internacional apresentado pelo Requerente e determinou a sua transferência para os Países Baixos;
Correspondentemente, foi decidido em 1ª Instância, julgar “a presente ação, intentada por L....., ora Requerente, improcedente (…)”.
Em qualquer caso, é incontornável e resulta de modo claro do discurso fundamentador da decisão aqui recorrida, que os factos em presença apontam no sentido de a instrução do processo dever ser feita nos Países Baixos e não em Portugal.
Com efeito, tendo sido verificada a existência de dados relativos ao Requerente, inseridos em Den Bosch (Países Baixos) em 13 de junho de 2019, em 19 de agosto de 2021 o SEF solicitou às autoridades dos Países Baixos a retoma a cargo do Requerente, ao abrigo do disposto no artigo 18.º n.º 1 al. b) do Regulamento (UE) n.º 604/2013.
Refere-se no referido normativo:
“1. O Estado-Membro responsável por força do presente regulamento é obrigado a:
(…)
b) Retomar a cargo, nas condições previstas nos artigos 23.º, 24.º, 25.º e 29.º, o requerente cujo pedido esteja a ser analisado e que tenha apresentado um pedido noutro Estado-Membro, ou que se encontre no território de outro Estado-Membro sem possuir um título de residência”.
Consequentemente, em 27 de agosto de 2021, as autoridades dos Países Baixos informaram as autoridades portuguesas de que aceitavam o pedido de retoma a cargo do Requerente.
Com efeito, “Quando haja lugar à determinação do Estado responsável pela análise de um pedido de proteção internacional é organizado um procedimento especial regulado no presente capítulo” [artigo 36.º da Lei n.º 27/2008, de 20 de Junho], o que determina que, “Quando se considere que a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional pertence a outro Estado membro, de acordo com o previsto no Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, o SEF solicita às respetivas autoridades a sua tomada ou retoma a cargo” [artigo 37.º da Lei n.º 27/2008].
Assim, é claro e resulta da Lei que, tendo as Autoridades dos Países Baixos “aceite o pedido de retoma do Autor melhor identificado na alínea antecedente, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 18.º do Regulamento n.º 604/2013 do Conselho de 26 de junho” a este Estado compete a instrução do procedimento.
Só não seria assim se, tal como resulta do §2º do nº 2 do artigo 3º do Regulamento nº 604/2013, existissem motivos válidos para crer que haveria falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes no Estado-Membro, inicialmente designado responsável, que implicassem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, sendo que tais falhas não estão demonstradas nos autos.
Aliás, o Tribunal de Justiça da U.E. tem reconhecido a possibilidade de análise dos pedidos por outros Estados-Membros, em conformidade com regras de solidariedade [cf. art. 80º do Tratado], mas o exercício de tal opção inscreve-se numa área [discricionariedade administrativa ou mesmo de opção política] que escapa ao controlo jurisdicional.
Assim, sempre inexistiriam motivos sérios para Portugal excecionar o que resulta das citadas normas gerais imperativas.
Decorre assim do demonstrado, que o Estado Português estava até impedido de realizar a necessária instrução do procedimento, sob pena de subverter todo o procedimento e regras estabelecidas, salvo se, como se disse, verificasse a existência de “sérios indícios de falhas sistémicas no procedimento de asilo” o que não ocorre.
V - DECISÃO
Deste modo, em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Sul, negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem Custas
Lisboa, 17 de fevereiro de 2022
Frederico de Frias Macedo Branco
Alda Nunes
Lina Costa |