Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1215/23.9BELSB
Secção:JUÍZA PRESIDENTE
Data do Acordão:08/21/2024
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
COMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO SOCIAL VS JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
DIREITO DE REGRESSO
DECRETO-LEI Nº 74-B/2023, DE 28/08
Sumário:
Votação:DECISÃO SINGULAR
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
DECISÃO

I- RELATÓRIO

O Senhor Juiz do Juízo Administrativo Social do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (doravante, também TAC de Lisboa) veio requerer junto deste Tribunal Central Administrativo (TCA) Sul, ao abrigo do disposto na alínea t) do nº1 do artigo 36º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), a resolução do conflito negativo de competência, em razão da matéria, suscitado entre si e o Senhor Juiz do Juízo Administrativo Comum do mesmo Tribunal, uma vez que ambos se atribuem mutuamente competência, negando a própria, para conhecer da ação administrativa que T …………………….. intentou no TAC de Lisboa contra a Ordem ………………...


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Chegados os autos a este TCA Sul, foi ordenado o cumprimento do disposto no artigo 112º, nº 1 do CPC; as partes nada disseram.

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Foi dada vista ao Exmo. Procurador-Geral Adjunto, conforme dispõe o artigo 112.º, n.º 2, do CPC, que emitiu pronúncia no sentido de a competência dever ser atribuída ao Juízo Administrativo Comum do TAC de Lisboa.

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- QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

A questão colocada consiste em determinar se a competência para decidir a presente ação, que deu entrada em juízo em 17 de abril de 2023, em que está em causa um litígio relacionado com o exercício do poder disciplinar, cabe ao Juízo Administrativo Comum do TAC de Lisboa ou ao Juízo Administrativo Social do mesmo Tribunal.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

- De facto

Para julgamento do presente conflito, são relevantes as seguintes ocorrências processuais:

1) Em 17/4/2023, T ……………………. intentou, no TAC de Lisboa, ação administrativa contra a Ordem dos ……………… com vista à impugnação do ato consubstanciado no Acórdão do Conselho Superior, de 29 de dezembro de 2022, que confirmou a condenação do Autor na pena disciplinar de Advertência, peticionando e concluindo do modo que segue:

“Em face do exposto, resta-nos concluir que, por determinar a aplicação de uma pena disciplinar ‒ in casu, a pena de advertência ‒ sem que se mostrassem verificados os elementos que integram e configuram o tipo disciplinar, o ato administrativo ora impugnado encontra-se eivado de vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de facto e de direito, por errada interpretação e aplicação da norma ínsita na alínea e) do n.º 1 do artigo 107.º do EOA de 2005, devendo, em consequência, o mesmo ser declarado nulo, por ofender o conteúdo essencial de um direito fundamental do autor, nos termos da alínea d) do número 2 do artigo 161.º do CPA, ou anulado, ao abrigo do disposto do artigo 169.º do CPA.

NESTES TERMOS,

E nos demais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada, e em consequência, ser declarado nulo ou anulado o ato praticado pela Entidade Demandada, consubstanciado no Acórdão do Conselho Superior, de 29 de dezembro de 2022, que confirmou a condenação do Autor na pena disciplinar de Advertência, determinando-se, consequentemente, o arquivamento do procedimento disciplinar sub judice”.

[cfr. P.I., SITAF]

2) Por decisão de 21/02/2024, o Senhor Juiz do Juízo Administrativo Comum do TAC de Lisboa, excecionou a incompetência em razão da matéria daquele tribunal e determinou a remessa dos autos ao Juízo Administrativo Social do mesmo Tribunal por entender ser esse o competente, aduzindo, para tanto, a fundamentação de direito que, de seguida, se transcreve nos trechos mais significativos. Assim:

“A competência material do juízo administrativo social abarca “todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;” (artigo 44.ºA, n.º 1, alínea b), do ETAF, na redação inicial).

Posteriormente, a competência material do juízo administrativo social foi enunciada nos seguintes moldes: “conhecer de todos os processos relativos a: i) Litígios emergentes do vínculo de emprego público, incluindo a sua formação; ii) Exercício do poder disciplinar; iii) Formas públicas ou privadas de previdência social; iv) Pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia salarial; v) Efetivação de responsabilidade civil emergente de atos ou de omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas referidas nas subalíneas anteriores; vi) Demais matérias que lhe sejam deferidas por lei.” (artigo 44.º, n.º 1, alínea b), do ETAF, na redação do DecretoLei n.º 74-B/2023, de 28 de agosto).

No preâmbulo deste último diploma indica-se que: “Ao nível da primeira instância, e face às interpretações divergentes que se têm verificado relativamente ao âmbito da competência dos juízos administrativos sociais e dos juízos de contratos públicos, e que conduziram a diversos conflitos negativos de competência, clarifica-se o sentido das normas previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF.”

Na mesma senda se dispunha, na lei de autorização legislativa que habilitou à prolação daquele Decreto-Lei n.º 74-B/2023, que a autorização tem como fito, entre o mais:

“e) Clarificar as competências dos juízos administrativos sociais nas matérias relativas a vínculos de emprego público, nomeadamente as respeitantes ao exercício do poder disciplinar e efetivação de responsabilidade civil, e dos juízos de contratos públicos, concretizando os tipos contratuais abrangidos;” (artigo 2.º, da Lei n.º 34/2023, de 19 de julho).

Assim, a alteração na redação da alínea b), do n.º 1, do artigo 44.º-A, do ETAF, não visou proceder a uma alteração substantiva do seu âmbito de aplicação, mas tão só clarificar o que dela já constava desde a sua redação inicial.

Entendimento diverso conduziria à inconstitucionalidade orgânica da norma em apreço, por não ter sido dimanada ao abrigo da competente autorização da Assembleia da República.

O legislador – como expressamente assume na Lei de autorização legislativa e no preâmbulo do Decreto-Lei autorizado – visou facilitar a interpretação do âmbito dos litígios a julgar pelo juízo social, com vista a uma mais harmoniosa aplicação do preceito e para um melhor funcionamento da especialização da jurisdição administrativa.

A competência material do juízo administrativo comum é residual, no sentido de nele se incluir toda a matéria que não esteja atribuída a outros juízos de competência especializada (artigo 44.º-A, n.º 1, alínea a), do ETAF).

No caso dos autos, está em causa a aplicação de uma pena de advertência, no exercício do poder disciplinar, o que se insere no âmbito de competência do juízo administrativo social”.

[cfr. decisão no SITAF]

3º) Uma vez ali chegados, o Senhor Juiz a quem os presentes autos foram distribuídos proferiu sentença, com data de 13/05/24, a declarar-se igualmente incompetente em razão da matéria para dirimir o litígio que lhe foi submetido, devolvendo a competência ao tribunal remetente. Dessa decisão, extrai-se o seguinte trecho:

“Porém, e com o devido respeito, o DL 74-B/2023, de 28 de Agosto, não tem natureza interpretativa e, ainda que o tivesse, o caso dos procedimentos disciplinares é paradigmático das alterações inovatórias às normas de competência previstas no artigo 44.º-A do ETAF.

De facto, os procedimentos disciplinares qua tale nunca foram da competência do Juízo Administrativo Social, como facilmente se retira da simples leitura do disposto no artigo 44.º-A do ETAF, na sua redacção inicial.

O que sucedia era que, de forma indirecta e porque o Juízo Administrativo Social era o juízo competente para os litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas, sê-loia também para os procedimentos disciplinares que surgissem no âmbito daquele vínculo.

Ora, a redacção actual, dada pelo DL 74-B/2023, passa, inovatoriamente, a atribuir competência ao Juízo Administrativo Social para conhecer dos processos relativos ao exercício do poder disciplinar, em geral e não apenas os emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas (agora também restringindo ao vínculo de emprego público).

E sendo inovatória e na ausência de norma expressa em contrário, impera a regra prevista no artigo 5.º, n.º 1, do ETAF, segundo a qual a competência se fixa no momento da propositura da acção, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente (cf., também, o artigo 38.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - Lei da Organização do Sistema Judiciário).

Aliás, sendo as alterações ao ETAF da reserva relativa da Assembleia da República [cf. artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da CRP], para além do carácter interpretativo dever resultar de norma expressa, não estando no âmbito da lei autorizadora que deu origem ao DL 74-B/2023, só por lei da Assembleia da República ou por nova autorização para emissão de decreto-lei que o previsse, poderia tal suceder.

De resto, e precisamente pelo que se disse, é que aquando da criação dos juízos especializados, pela primeira vez, o Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro, previa expressamente, no seu artigo 11.º, a transição para os novos juízos dos processos pendentes

Tal como, agora com a criação das subsecções especializadas nos tribunais centrais administrativos, o DL 74-B/2023 veio reger de forma expressa, no seu artigo 7.º, n.º 4, sobre a transição dos processos pendentes para aquelas subsecções.

Se o legislador - desde logo a Assembleia da República, por ser matéria da sua competência relativamente reservada - quisesse, de facto, que os processos voltassem a sofrer do pingue-pongue entre juízos pela mera alteração da competência agora introduzida pelo DL 74-B/2023, tê-lo-ia declarado de forma expressa, sendo, ademais e como se demonstrou, obrigatório fazê-lo, por forma a afastar o estatuído no artigo 5.º do ETAF [cf., Jorge Guerreiro de Morais, Da competência material dos juízos administrativos especializados – Notas sobre o Decreto-Lei n.º 74-B/2023, de 28 de Agosto, in Julgar Online, Janeiro de 2024: https://julgar.pt/da-competencia-material-dos-juizos-administrativos-especializados-notas-sobre-odecreto-lei-n-o-74-b2023-de-28-de-agosto/]”.

[cfr. sentença SITAF]

4º) Após o trânsito das decisões em conflito os autos foram remetidos ao TCA Sul em 24/06/2024.

[cfr. consulta ao SITAF].


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- De direito

A questão trazida a juízo é idêntica à que foi objeto da decisão deste Tribunal Superior, proferida em 15 de julho de 2024, no âmbito do processo nº 1829/17.6BELSB, bem como às decisões prolatadas nos processo nº 2462/16.5BELRS, de 22 de abril de 2024, nº165/21.8BELRS e 716/22.0BESNT, ambas de 26 de abril de 2024 (disponíveis in http://www.dgsi.pt/jtcae.), nas quais, à semelhança do que ocorre no caso dos autos, também cabia apreciar e decidir qual o Juízo administrativo materialmente competente para tramitar e, a final, proferir sentença numa ação relativa ao exercício do poder disciplinar que deu entrada em juízo em data anterior à publicação e entrada em vigor das alterações ao artigo 44º-A do ETAF, introduzidas pelo Decreto-Lei nº74-B/2023: se o Juízo Administrativo Social do TAC de Lisboa ou se o Juízo Administrativo Comum do mesmo Tribunal.

Considerando, por um lado, que no caso em apreço o autor deu entrada no TAC de Lisboa da presente ação administrativa no dia 17/04/23 e, por outro lado, que os Senhores Magistrados em conflito não apontam razões que justifiquem que nos afastemos da posição por nós assumida no âmbito do processo nº1829/17.6BELSB, passamos a transcrevê-la na parte relevante ( a qual deve ser lida com as devidas adaptações).

Ali se disse:

“(…)Nos termos do artigo 36º, nº1, alínea t) do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respectivo tribunal central administrativo”, sendo que no âmbito do contencioso administrativo os conflitos de competência jurisdicional encontram-se regulados nos artigos 135º a 139º do CPTA.

Estabelece-se no nº 1 do artigo 135º do CPTA que a resolução dos conflitos “entre tribunais da jurisdição administrativa e fiscal ou entre órgãos administrativos” segue o regime da ação administrativa, com as especialidades resultantes das diversas alíneas deste preceito, aplicando-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto na lei processual civil (cfr. artigos 109º e segs. do CPC).

Por sua vez, o artigo 136º do mesmo diploma estatui que “a resolução dos conflitos pode ser requerida por qualquer interessado e pelo Ministério Público no prazo de um ano contado da data em que se torne inimpugnável a última das decisões”. Este preceito corresponde ao artigo 111º do CPC, que dispõe o seguinte: “1 – Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir. 2 – A resolução do conflito pode igualmente ser suscitada por qualquer das partes ou pelo Ministério Público, mediante requerimento dirigido ao presidente do tribunal competente para decidir”.

E, apesar do citado artigo 136º do CPTA manter a redação originária, acima transcrita, afigura-se-nos que a mesma não afasta a aplicação da norma do nº 1 do artigo 111º do CPC, a qual deve ser também aplicada no contencioso administrativo, com as devidas adaptações, por força do citado artigo 135º do CPTA.

Tenha-se presente que o âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria – artigo 13º do CPTA.

Continuando, sob a epígrafe “Conflito de jurisdição e conflito de competência” estatui o artigo 109º do CPC, aqui aplicável “ex vi” artigo 135º do CPTA, que:

“1 – Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.

2 – Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.

3 – Não há conflito enquanto forem susceptíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência”.

Vejamos, então, repetindo que a questão que nos é agora trazida a juízo coloca-se por via da alteração ao artigo 44º-A, do ETAF, operada pelo Decreto-Lei nº74-B/2023, de 28/08, mais precisamente no que respeita à competência que é atribuída ao Juízo Administrativo Social para julgar as causas relativas ao exercício do poder disciplinar, a qual se mostra contemplada em ii), da alínea b),do nº1, do citado preceito.

De acordo com a nova redação dada à alínea b), do nº1 do artigo 44º-A, do ETAF, introduzida pelo Decreto-Lei nº74-B/2023, de 28/08:

“1 - Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

(…)

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a:

i) Litígios emergentes do vínculo de emprego público, incluindo a sua formação;

ii) Exercício do poder disciplinar;

iii) Formas públicas ou privadas de previdência social;

iv) Pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial;

v) Efetivação de responsabilidade civil emergente de atos ou de omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas referidas nas subalíneas anteriores;

vi) Demais matérias que lhe sejam deferidas por lei” (sublinhado nosso).

Por sua vez, na redação anterior, decorrente da Lei nº114/2019, de 12/9, o artigo 44.º-A, do ETAF dispunha, sob a epígrafe “Competência dos juízos administrativos especializados”, o seguinte, no que para aqui releva:

“1 - Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

(…)

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei”.

Ou seja, à luz da redação do artigo 44º-A do ETAF, introduzida pela Lei nº114/2019, de 12/9, e no que aqui releva, apenas integravam a competência do juízo administrativo social as causas relativas ao exercício do poder disciplinar que emergissem do vínculo de trabalho em funções públicas.

Ora, o legislador de 2023 (leia-se, o Decreto-Lei nº74-B/2023, de 28/08) incluiu - como decorre da norma supra transcrita - no âmbito da esfera de competência do juízo administrativo social, todos os litígios relacionados com o exercício do poder disciplinar (em geral e não apenas os emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas).

Disso deu conta o preâmbulo do aludido diploma quando refere que “Ainda no que toca ao juízo administrativo social, cabe também realçar a expressa inclusão, no âmbito da respetiva esfera de competência, dos litígios relacionados com o exercício do poder disciplinar e, bem assim, com a efetivação da responsabilidade civil emergente de atos ou omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas identificadas nas diversas subalíneas da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF. (…).”( sublinhado nosso).

Como deixámos evidenciado, a questão que aqui se coloca e que fundamenta a divergência subjacente às decisões em conflito, está em saber se a apontada alteração, introduzida pelo Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, ao citado artigo 44º-A do ETAF, tem natureza interpretativa (como defende a Senhora Juíza do Juízo Comum) ou inovatória (como defende o Senhor Juiz do Juízo Social). Dito de outro modo, importa saber se a alteração verificada é imediatamente aplicada a todos os processos relativos ao exercício do poder disciplinar, aí se incluindo os instaurados antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, ou se, diferentemente, apenas se aplica às ações entradas em juízo a partir de 29 de Agosto de 2023 (cfr. artigo 9º do citado diploma).

Dispõe o artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil (CC), que “a lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transação, ainda que não homologada, ou por atos de análoga natureza”.

Comecemos por caracterizar brevemente as leis interpretativas.

Dos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, pode dizer-se que são de natureza interpretativa aquelas leis que, sobre pontos ou questões em que as regras jurídicas aplicáveis são incertas ou o seu sentido controvertido, vêm consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adotado. Com efeito, tem-se entendido que a “razão pela qual a lei interpretativa se aplica a factos e situações anteriores reside fundamentalmente em que ela, vindo consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da LA com que os interessados podiam e deviam contar, não é susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas” (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, nº 465/19.7 YRLSB 7).

“Não é preciso que a lei venha consagrar uma das correntes jurisprudenciais anteriores ou uma forte corrente jurisprudencial anterior. Tanto mais que a lei interpretativa surge muitas vezes antes que tais correntes jurisprudenciais se cheguem a formar. Mas, se é este o caso, e se entretanto se formou uma corrente jurisprudencial uniforme que tomou praticamente certo o sentido da norma antiga, então a lei nova que venha consagrar uma interpretação diferente da mesma norma já não pode ser considerada realmente interpretativa (embora o seja porventura por determinação do legislador), mas inovadora” – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 14/2013 de 12/11/13.

Como ensina Batista Machado, para que uma lei nova (LN) possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adotar a solução que a LN vem consagrar, então esta é decididamente inovadora – cfr. Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1991, pp. 345-347

Ainda a propósito do conceito de lei interpretativa, ensina Santos Justo que a lei interpretativa realiza uma interpretação autêntica, querendo isto dizer que, “o legislador interpreta uma lei (LA) através duma nova lei (LN). Para que estejamos em face de uma lei interpretativa é necessário que sejam satisfeitos alguns requisitos: “1. tempo: a lei interpretativa (LN) deve ser posterior à lei interpretada (LA); 2. finalidade: a lei interpretativa deve interpretar a LA, cuja solução, que oferece, se apresenta controvertida ou incerta; 3. fonte: a lei interpretativa não deve ser hierarquicamente inferior à lei interpretada” (Cfr. A. Santos Justo, Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, 2012, p. 390).

Vejamos, então, se podemos afirmar o caráter interpretativo da LN [o Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, na parte em que alterou o artigo 44º-A no segmento que aqui nos ocupa – nº1, alínea b), ii)], ou seja, vejamos se a LN passa no teste que nos permitirá saber se a mesma é interpretativa.

Em primeiro lugar, importa saber se há uma declaração expressa contida no texto do diploma nesse sentido. E aqui, percorrido o texto do Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, a resposta é negativa.

Tem igualmente significado a afirmação expressa do carácter interpretativo constante do preâmbulo do diploma. Aí, tal afirmação também não se mostra feita.

Por último, se o diploma nada determinar, o carácter interpretativo pode resultar ainda do texto (e até em conjugação com o teor do seu preâmbulo) quando for manifesta a referência (tácita) da nova fonte a uma situação normativa duvidosa preexistente. Também aqui, a resposta terá que ser negativa.

É verdade, e este Tribunal não o desconsidera, que, como evidencia a Mma. Juíza do Juízo Administrativo Comum, do preâmbulo do DL nº 74-B/2023, de 28/08, consta, além do mais, a propósito da competência dos juízos administrativos sociais, a referência a “interpretações divergentes” e “clarificação”. Com efeito, aí se lê, no que para aqui interessa, o seguinte:

“Ao nível da primeira instância, e face às interpretações divergentes que se têm verificado relativamente ao âmbito da competência dos juízos administrativos sociais e dos juízos de contratos públicos, e que conduziram a diversos conflitos negativos de competência, clarifica-se o sentido das normas previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF.

Assim, no que toca ao juízo administrativo social, prevê-se que a respetiva competência abrange os processos relativos a litígios emergentes de qualquer tipo de vínculo de emprego público, ao invés de se circunscrever unicamente aos litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas, conforme resultava da versão originária da alínea b) do n.º 1 do referido artigo 44.º-A. Da mesma forma, o conceito de «formas públicas ou privadas de proteção social», originariamente empregue na redação inicial da norma delimitadora da competência do juízo administrativo social, é agora substituído pela noção, mais restrita e mais rigorosa, de «formas públicas ou privadas de previdência social». Neste sentido, clarifica-se que o juízo administrativo social não é o juízo comum de todos os litígios relacionados com questões de proteção social que cabem no âmbito da jurisdição administrativa, mas apenas dos litígios respeitantes a questões relacionadas com o sistema previdencial, refletindo assim, de forma mais fiel, aquela que era a intenção originária do legislador da Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro.

Ainda no que toca ao juízo administrativo social, cabe também realçar a expressa inclusão, no âmbito da respetiva esfera de competência, dos litígios relacionados com o exercício do poder disciplinar e, bem assim, com a efetivação da responsabilidade civil emergente de atos ou omissões ocorridos no âmbito das relações jurídicas identificadas nas diversas subalíneas da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF. (…)” (sublinhado nosso)

Ora, a leitura integral deste trecho do preâmbulo, face ao conhecimento das interpretações divergentes antes verificadas, permite-nos concluir que a clarificação do âmbito da competência do juízo administrativo social diz respeito aos litígios relativos a questões de proteção social (vide, entre outras, a Decisão do Presidente do TCA, de 01/07/22, no processo nº 196/21.8 BESNT).

No mais, e no que para aqui importa – processos relativos ao exercício do poder disciplinar - se atentarmos na asserção “Ainda no que toca ao juízo administrativo social, cabe também realçar a expressa inclusão, no âmbito da respetiva esfera de competência, dos litígios relacionados com o exercício do poder disciplinar”, somos levados a concluir que o legislador de 2023, através do DL 74-B/2023, de 28 de agosto, entendeu, inovadoramente, que o Juízo Administrativo Social era o juízo mais preparado para o julgamento de todos os litígios relativos ao exercício do poder disciplinar e não apenas ao exercício daquele poder, no âmbito de um vínculo de trabalho em funções públicas. Daí, entende-se, o legislador ter consagrado a autonomização do conhecimento dos processos relativos ao exercício do poder disciplinar.

De resto, até ao DL 74-B/2023, não cremos que tenha havido “interpretações divergentes” sobre o âmbito das competência, entre os juízos administrativos comuns e sociais, quanto aos processos relativos ao exercício do poder disciplinar, pois era pacífico, na redação do artigo 44º-A de 219, que ao juízo administrativo social só competia apreciar e decidir as causas relativas ao exercício do poder disciplinar que decorressem do vínculo de trabalho em funções públicas; todos os demais processos relativos ao exercício do poder disciplinar eram da competência do Juízo Administrativo Comum.

Diga-se, ainda, quanto à “aplicação no tempo” do DL 74-B/2023, de 28/08, que o artigo 8º de tal diploma previu expressamente a aplicação aos processos pendentes das alterações respeitantes à “alínea b) do artigo 26.º do ETAF e ao artigo 280.º do CPPT” e, bem assim, a norma revogatória contida na “alínea a) do artigo 6º” (o nº 2 do artigo 83º do Regime Geral das Infrações Tributárias).

Face a tudo quanto ficou exposto, não se vê qualquer razão para reconhecer natureza interpretativa à nova redação do artigo 44º-A, nº1, alínea b), do Decreto-Lei nº 74-B/2023, de 28/8, nos termos que aqui fomos chamados a apreciar, antes – isso, sim – natureza inovatória.

Resta convocar para aqui o estatuído do 5º do ETAF, nos termos do qual “A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente”, de conteúdo análogo ao artigo 38.º da Lei da Organização e Funcionamento do Sistema Judiciário que dispõe no seu nº1 que “A competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente.”

(…)”.

Em face do exposto e tendo presente que, no caso que dos autos, a ação administrativa deu entrada em juízo no dia 17 de abril de 2023, conclui-se que a competência material para apreciar a natureza da relação em conflito, não cabe ao juízo de administrativo social do TAC de Lisboa mas sim ao juízo administrativo comum do mesmo Tribunal - artigo 5º do ETAF, alínea b) do nº 1 do artigo 44º-A do ETAF, na redação dada pela Lei nº 114/2019, de 12/9 e artigo 2º, nº1, alínea a) do DL nº 174/2019, de 13/12 (criação de juízos de competência especializada/ ETAF), conjugado com a alínea a) do artigo 1º da Portaria nº 121/2020, de 22/5 (Entrada em Funcionamento dos Juízos Especializados dos Tribunais Administrativos e Fiscais).


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III - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se o presente conflito pela atribuição de competência para a tramitação e decisão do processo ao Juízo administrativo comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

Sem tributação.

Notifique.

Lisboa, 21/08/24


A Presidente do TCA Sul

(Catarina Almeida e Sousa)