Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2176/11.2BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:06/20/2024
Relator:ELIANA CRISTINA DE ALMEIDA PINTO
Descritores:INSTITUTO DO ABUSO DE DIREITO
PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
Sumário:I - Para caracterizar a ocorrência do nemo potest venire contra factum proprium é primordial a congregação de alguns requisitos: a) o factum proprium; b) a legítima confiança de outrem; c) a contradição ao factum proprium em sentido objetivo e d) a ocorrência de dano real ou potencial;
II - O primeiro requisito, o factum proprium é “derivado” de uma atitude humana inicial, que recusa ser juridicamente vinculante, visto que, se fosse mesmo uma conduta vinculante, seria desnecessária a investigação da confiança e seria feito uso automático das disposições legais aplicáveis. A vinculação aqui presente, só́ irá acontecer no instante em que a confiança alheia for provocada, assim sendo, o sujeito está obrigado a manter-se de acordo com o comportamento inicial, isto é, o factum proprium é a ação inicial que este agente, no futuro, virá a contrariar.
III - Para estarmos perante uma hipótese de venire contra factum proprium – e não apenas de qualquer outra forma de tutela da confiança –, terá de se poder afirmar a contrariedade direta entre o anterior e o atual comportamento. Será o caso, designadamente, quando a confiança foi dirigida a uma determinada situação jurídica, ou a uma conduta futura do agente que vem a ser contrariada pela sua posterior atitude.
IV - Quanto à contradição ao factum proprium em sentido objetivo é suposto que haja uma contradição concreta ao factum proprium, suficiente a gerar a confiança legítima, ou seja, quando exista uma contradição direta entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento do autor.
V - Tem de haver uma ligação com a boa-fé objetiva, a verdadeira e legítima confiança não deve ser averiguada em sintonia com a subjetividade de quem pratica a conduta, isto é, não é suficiente que o agente acredite que sua ação é certa, pois a mesma deve reger-se no âmbito da a boa-fé́ objetiva, no que se refere a sua conduta, impõe, a par dos deveres principais expressos no contrato, deveres anexos, como lealdade, probidade, auxilio no cumprimento da obrigação, dever de informação, de confiança, dentre outros.
VI - Por fim, na problematização relacionado ao dano real ou potencial, o que se visa impedir com o nemo potest venire contra factum proprium é que uma pessoa, que legitimamente confiou na conservação do sentido objetivo de um comportamento inicial, venha a sofrer um prejuízo a partir da ruptura desta confiança pela adoção de um comportamento contraditório.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção SOCIAL
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:
I – RELATÓRIO

A........, devidamente identificado nos autos, veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que, no âmbito da Ação Administrativa Especial, improcedeu totalmente a sua pretensão de anulação do despacho do diretor-Geral dos Recursos Humanos da Educação, de 14 de abril de 2011, por entender tratar-se de uma situação de abuso de direito, por falta de audiência prévia.
***
Formula o aqui Recorrente, nas respetivas alegações de recurso, as seguintes conclusões que infra e na íntegra se reproduzem:
“...
1) No dia.04.2011 o Director-Geral dos Recursos Humanos da Educação proferiu despacho que determinou a nulidade da nomeação definitiva do Autor e a sua imediata cessação de funções docentes.
2) Nos presentes autos o A. peticiona a anulação desse acto, fundamentando o seu pedido no facto do acto administrativo em crise consubstanciar uma situação de abuso de direito; por falta de observância do dever de informação Prévia do Interessado relativa ao início do processo administrativo; por falta de observância do dever de Audiência Prévia do Interessado antes de ter sido tomada a decisão ora em crise e/ou pela inobservância do dever de fundamentação conveniente do mesmo acto.
3) Por sentença proferida pelo douto tribunal a quo, a acção foi julgada improcedente, por não provada, com o que não pode o recorrente conformar-se, pelos fundamentos infra:
1. DO ABUSO DE DIREITO NA MODALIDADE DE VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM:
4) Entende o tribunal a quo que no caso dos autos não se verifica qualquer abuso de direito por banda da Administração recorrida pois, não só o A. não identificou o direito alegadamente exercido pela R. de forma abusiva, como estamos perante um acto praticado no exercício de poderes vinculados, submetidos ao princípio da legalidade;
5) Sendo o abuso de direito de conhecimento oficioso, i.e., que mesmo não invocado deve ser apreciado pelo tribunal, por maioria de razão e lógica jurídica não se vê como, sendo invocado, se possa exigir como condição da sua apreciação e procedência, a identificação do direito exercido de forma abusiva pela administração recorrida,
6) É entendimento da jurisprudência, tem vindo a ser colocada a possibilidade de aplicação do instituto do abuso do direito “em caso de actos praticados também no exercício de poderes vinculados.
No acórdão da Secção do Contencioso Tributário do STA, de 17/05/2000, recurso n.o 024382 (Ap. DR, de 23/12/2002, Vol. II, Maio, pp. 1940 a 1946), reconheceu-se, aliás (ainda antes da entrada em vigor do CPPT), a vigência deste princípio no procedimento tributário por aplicação directa das normas constitucionais que consagram quer o princípio da boa-fé quer o da protecção da confiança, que o Tribunal Constitucional sempre tem considerado ínsito na ideia de Estado de Direito Democrático (artigo 2.o da CRP).
E, na verdade, dado que «... o texto do art. 266o da C.R.P. não deixa entrever qualquer restrição à sua aplicação a qualquer tipo de actividade administrativa (...) em princípio, dever-se-á fazer tal aplicação, se não se demonstrar a sua inviabilidade» (Diogo Leite de Campos e outros, loc. cit.,pag. 250), sendo que também Jorge Miranda e Rui Medeiros «referem que o princípio permite afastar soluções legais expressas que conduzam, em concreto, a uma violação da boa-fé». (Constituição da República Anotada, tomo III, pag. 575).” Ac TCAN de 10.03.2016, proc. 00101/2002.TFPRT.21,
7) Conforme os factos carreados para os autos pelo aqui recorrente e dados como provados pelo tribunal a quo, o Autor sempre esteve convencido que detinha as habilitações legalmente exigidas para o exercício da docência e subsequente nomeação para o lugar de professor de quadro, e o réu reconhece-o;
8) Mais: por um período de tempo de, pelo menos, 13 anos, a tutela teve na sua posse os documentos e elementos relativos às habilitações do A. com base nos quais tomou a decisão impugnada, sem que os tenha questionado e mantendo o A. ao seu serviço.
9) Criou assim neste a convicção de que tudo estava conforme as exigências legais, uma situação de confiança, plenamente justificada,
10) Foi criada uma expectativa no Autor, que gerou por sua vez um investimento de confiança do mesmo e que foi frustrada em 2011, quando o Réu adoptou uma conduta totalmente incompatível e contraditória com a tida durante os 13 anos que, entretanto, decorreram em violação do princípio da boa fé,
11) Ponderados os princípios da justiça e da tutela da confiança, resta concluir que a actuação do Ministério recorrido, na medida em que traduz o exercício de uma posição em contradição com o comportamento assumido anteriormente, integra uma situação de "venire contra factum proprium" pelo que se impõe a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por uma decisão que declare procedente o pedido anulatório do acto do DGRHE aqui em crise,
2. DA INOBSERVÂNCIA DO DEVER DE PRÉVIA INFORMAÇÃO:
12) Defende a decisão recorrida que o dever de informação prévia alegado pelo A. não tem base legal, o que é falso.
13) Aquele dever tinha, à data dos factos dos autos e da propositura da presente acção, base legal no n.º 1 do artigo 55.º do CPA, que impõe à Administração a obrigação de comunicação aos interessados do inicio oficioso do procedimento, numa “manifestação do direito que assiste ao cidadão em participar no procedimento administrativo” “a fim deste poder prontamente reagir, chamando à atenção para a ilegalidade que dessa iniciativa possa advir e coligir elementos que lhe permitam mais tarde enformar a adequada defesa” (vide CPA anotado e comentado de José Manuel Santos Botelho ..., 3.ª edição, 1996, Almedina, anotações ao artigo 55.º, pág, 242), que só em casos excepcionais pode ser afastada.
14) Só nos casos previstos no n.º 2 daquele preceito é que a Administração está dispensada do cumprimento daquele dever que constitui um princípio estruturante do procedimento administrativo, sendo que nenhum deles se verifica no caso dos autos, pelo que a formalidade em causa foi ilegalmente omitida.
3. DA ANULABILIDADE DO ACTO POR PRETERIÇÃO DO DIREITO DE AUDIÊNCIA DE INTERESSADOS:
15) Entende o tribunal a quo que pode recusar o efeito invalidante decorrente da omissão daquela formalidade, mas assim não é:
16) A Administração recorrida tinha que cumprir o ónus de alegação e prova que sobre si recaía, da verificação de uma das seguintes circunstâncias: ou que o contraditório já se encontrava assegurado, ou que nada havia sobre o que o A. se pudesse pronunciar, ou que a intervenção do A. e junção de elementos e documentos por este em nada poderiam influenciar a decisão da administração, porém não conseguiu cumprir;
17) E não se diga que facto do Ministério recorrido ter notificado o A. para apresentar certificado comprovativo de conclusão do ensino superior e ter permitido que o A. voluntariamente apresentasse uma exposição escrita configura o exercício da audiência prévia ou preenche alguma das alíneas do artigo 103.º do CPA.
18) A notificação para apresentar documentos mais não é do que um acto da instrução de processo, previsto no artigo 89.º do CPA e a possibilidade de apresentar uma exposição escrita no decurso do processo, sem que conhecesse o fim do procedimento, os factos vertidos no mesmo e o projecto de decisão da administração, mais não é do que a concretização do previsto no artigo 59.º do CPA.
19) A Ré recorrida violou os direitos de defesa do interessado, que viu vedada a possibilidade de, conhecendo os factos e decisão a tomar pela administração, carrear factos relevantes para a tomada de decisão da Administração, numa clara e distinta violação do principio do contraditório e do principio da participação constitucionalmente consagrado, o que, nos termos do artigo 135.º do CPA, afecta a validade do acto, impondo a sua anulação.
4. DA INOBSERVÂNCIA DO DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO:
20) A Administração Pública tem o dever de fundamentar os actos que pratica, tal como previsto nos artigos 124.º e 125.º do CPA em vigor à data dos factos e da propositura da presente acção.
21) Tal regra geral de fundamentação dos actos administrativos impõe-se para que ao interessado seja dado a conhecer o íter cognitivo e volitivo da Administração e permitir a respectiva defesa, oscilando o grau de exigência da fundamentação consoante a natureza do acto administrativo, mas o acto impugnado nos presentes autos não revela o itinerário valorativo cognitivo percorrido pela entidade decidente, limitando-se à emissão de meros juízos conclusivos, o que viola o disposto nos supra citados artigos 124º e 125º do CPA mas também o n.º 3 do artigo 268º da Constituição da República Portuguesa,
Pede provimento do recurso, revogando-se a sentença recorrida.
...”.
***
O MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, notificado, apresentou contra-alegações, pronunciando-se sobre os fundamentos do recurso, com conclusões, alegando, em síntese:
1) O Recorrente não concretiza os vícios imputados à sentença, limitando a utilizar a mesma argumentação já expendida na petição inicial e em sede de alegações, violando, assim, o disposto no n.º 2 do artigo 144.º do CPTA,
2) Em todo o caso, andou bem a sentença recorrida ao considerar improcedentes os vícios imputados ao despacho de 14/04/2011 e ao absolver o Recorrido de todos os pedidos, não tendo o recorrente impugnado a matéria de facto,
3) Resulta do probatório que o Recorrente declarou no boletim do concurso de ingresso na carreira docente realizado em 1997/1998 ser portador da seguinte habilitação profissional: Exame de Estado concluído em 14/04/1973, o Curso de Formação de Montador Eletricista com exame de aptidão profissional de 13 valores – 2.º ano do Curso Eletrotecnia e Máquinas (cf. al. K) a N) do probatório e folha 5 do PA),
4) E, que, no boletim do concurso, no ponto 4, declarou que era, à data, professor profissionalizado (cf. al. 0) do probatório e folha 5 do PA),
5) De acordo com o Despacho Normativo n.º 32/84 de 9/02/1984, são habilitações próprias para a docência no grupo 12.o B ter o curso de Electrotecnia e Máquinas dos ex-institutos industriais equiparado a bacharelato em Engenharia, desde que os respetivos titulares comprovem possuir o curso geral de eletricidade, com aprovação na disciplina de Oficinas de Eletricidade,
6) O Recorrente não era portador daquele curso, conforme se veio a comprovar, nem de qualquer outro quer conferisse habilitação própria para a docência daquele grupo disciplinar e também não era docente profissionalizado,
7) O requisito habilitacional é um requisito essencial à candidatura ao lugar de quadro, pelo que, o não preenchimento do mesmo implica a sua nulidade e, consequentemente, a nulidade da sua graduação e nomeação em conformidade com o disposto no artigo 133.º do CPA.
8) O Recorrente frequentou, mas não completou, o referido curso de Electrotecnia e Máquinas e também não comprovou aprovação na disciplina de Oficinas de Eletricidade como estipulava o mapa anexo ao Despacho Normativo n.º 32/84, de 9 de 9 de normativo.
9) O aviso constante de página 879 do Boletim Oficial de Moçambique, de 14 de abril de 1973, junto ao seu processo individual, não se encontrava em conformidade com o original,
10) O original não se reporta ao concurso de mestre de Oficinas de Eletricidade, mas sim ao concurso de habilitação para mestres a Oficina de Serralharia e também não menciona o nome do Recorrente,
11) O ato de nomeação do Recorrente, na sequência do concurso de pessoal docente realizado para o ano de 1997/1998, é nulo, dado que a sua prática careceu da existência de um elemento essencial, no caso, as habilitações legalmente exigíveis para a docência.
12) De acordo com o n.º 2 do artigo 134.º do CPA que a nulidade pode ser declarada a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo.
13) No procedimento de recrutamento e seleção de pessoal, como é o caso, a Administração exerce, fundamentalmente, um poder vinculado, já que terá de obedecer a critérios legais previamente estabelecidos e publicitados, no caso os requisitos habilitacionais para a docência, o que fez no caso em apreço,
14) Agindo a Administração vinculadamente, não pode deixar de aplicar a lei, impõe-se-lhe que decida de harmonia com as normas prescritas e atinentes (artigo 3.º do CPA) e, nessa conformidade, eliminado da ordem jurídica os atos administrativos contrários aquelas normas.
15) Não procede o abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium porquanto não se encontram preenchidos os respetivos requisitos;
16) Por inexistir qualquer factum proprium que viesse a ser contrariado no futuro, logo também não poderia ter o Recorrente feito confiança em algo que nuca existiu,
17) Também não houve investimento do Recorrente baseado nessa confiança de que a colocação perduraria ainda que se viesse a comprovar a falta de requisitos habilitacionais do Recorrente,
18) Conforme evidenciado o Recorrente concluiu a sua carreira docente com as mesmas habilitações com que a iniciou, inexistindo qualquer documento que ateste quaisquer habilitações profissionais para a docência,
19) Se houve alguém lesado com a nomeação do Recorrente foi o Recorrido que, durante todo o tempo em que durou aquele vínculo jurídico, foi-lhe pagando remunerações e abonos muito superiores àquelas que um trabalhador com as suas habilitações académicas e profissionais pode almejar,
20) No procedimento que levou a emissão do despacho proferido a 14/03/2011 foram cumpridos pelo Recorrido todas as formalidades legalmente previstas nos artigos 55.º, 59.º, 124.º e 125.º do CPA, conforme já evidenciado.
21) Mas, ainda que assim não fosse, o que apenas se admite por mero dever de patrocínio, apurada a falta de qualificação profissional do Recorrente, a Administração tinha o dever de declarar a nulidade da sua colocação,
22) Ora, tem entendido a jurisprudência que, estando em causa atos não admitam outra decisão possível, por se tratarem de atos vinculados, a preterição de determinadas formalidades, designadamente, a falta de audiência prévia, a falta de fundamentação ou outra não considerada essencial e cujo desvalor seja a anulabilidade, não se produz o efeito anulatório por força da aplicação do princípio do aproveitamento dos atos administrativos,
23) Quanto ao pedido de indemnização por danos patrimoniais, o Recorrente não logrou comprovar ter preenchido os requisitos da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas.
24) Ficou demonstrado que a Recorrido agiu no estrito cumprimento da Lei pelo que não existe qualquer atuação ilícita por parte da Administração.
25) Quanto ao requisito dano, o Recorrente também não comprovou que, in casu, aqueles tivesse ocorrido, havendo mesmo contradição entre os documentos juntos aos autos e a própria PI, sendo certo que não ficaram provados quaisquer danos patrimoniais ou não patrimoniais,
26) Já foram pagos ao Recorrente pelo Recorrido todas as remunerações, abonos e subsídios referentes ao último período de execução do contrato conforme resulta do PA, encontrando-se o Recorrente já aposentado,
27) Também não logrou o Recorrente estabelecer o nexo de causalidade entre os hipotéticos danos e a atuação da Recorrido.
28) Resta, portanto, denunciar a improcedência do manifestamente exorbitante pedido indemnizatório formulado, porquanto não resultam demonstrados quaisquer danos merecedores de tutela jurídica, nos termos regulados no artigo 496.º, n.º 1 do Código Civil.
Com efeito, perante tudo o explanado, deve ser mantida a decisão recorrida.
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Foi notificado o Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA.
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Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.
Segundo as conclusões do recurso, as questões suscitadas resumem-se, em suma, em determinar se a sentença recorrida padece de erro de julgamento por a o ato impugnado padecer de abuso de direito, por falta de informação prévia, falta de fundamentação e violação do direito de audiência prévia, e se, por essa razão, deve ser revogada e substituída por outra que proceda a ação.
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III – FUNDAMENTOS

III.1. DE FACTO
Por não ter sido objeto de impugnação, nem ser caso de alteração da matéria de facto, remete-se para os factos dados como assentes pela sentença recorrida, nos termos do n.º 6 do artigo 663.º do CPC.

III.2. DE DIREITO

Considerada a factualidade fixada, importa, agora, entrar na análise dos fundamentos do recurso, segundo a sua ordem de precedência.
Vejamos.

A) Quanto ao abuso de direito

Fundamenta a decisão recorrida que o abuso e direito está regulado no artigo 334.º do CC e determina que “... é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Como bem refere o R., o A. limita-se a alegar a existência de uma situação de abuso de direito, sem mencionar qual o direito que o R. exerceu ilegalmente...”. Prossegue fundamentação, referindo que “...as normas que regulavam as habilitações para a docência, à data da candidatura, eram as seguintes: o Despacho Normativo n.º 32/84, de 9 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pelo Despacho Normativo n.º 112/84, de 28 de Maio, o Despacho Normativo n.º 23/85, de 8 de Abril, o Despacho Normativo n.º 11-A/86, de 12 de Fevereiro, rectificado por declaração publicada no Diário da República, I.ª Série, de 30 de Abril de 1986; o Despacho Normativo n.º 6-A/90, de 31 de Janeiro; o Despacho Normativo n.º 1-A/95, de 6 de Janeiro; o Despacho Normativo n.º 52/96, de 9 de Dezembro; o Despacho Normativo n.º 7/97, de 7 de Fevereiro e o Despacho Normativo n.º 15/1997, de 31 de Março. Do primeiro diploma referido resulta que apenas se prevêem habilitações próprias para o grupo de recrutamento 12.ºB – Electrotecnia (mapa a que se refere o ponto 1). No mapa constante daquele diploma determina-se que o Curso de Electrotecnia e Máquinas dos ex-institutos industriais, era equiparado a bacharelato em Engenharia, e conferia, aos seus portadores, habilitação própria para a leccionação no referido grupo, desde que, os mesmos, possuíssem o curso geral de electricidade, com aprovação na disciplina de Oficinas de Electricidade. Decorre da matéria de facto provada que o A. frequentou, sem, no entanto, completar o referido curso. Acresce que, ao contrário do que o A. pretendeu comprovar, é manifesto que o aviso constante da página 879 do Boletim Oficial de Moçambique, de 14 de Abril de 1973, não se reporta ao concurso de mestre de Oficinas de Electricidade mas antes a um concurso de habilitação para mestres a Oficina de Serralharia, onde não está incluído o nome do A.. Ou seja, a informação prestada pelo A. no boletim de candidatura ao concurso de pessoal docente para o ano lectivo de 1997/1998 não corresponde à sua situação de facto, uma vez que o A. não era profissionalizado, não preenchendo, assim, um dos requisitos legalmente exigidos para a nomeação...”. Conclui pela inexistência de qualquer abuso de direito, decidindo a tal propósito que “... O R. não poderia ter outra actuação, pois, a partir do conhecimento da ilegalidade cometida, impunha-se a declaração de nulidade do acto ora impugnado, já que a administração está vinculada ao princípio da legalidade...”.
O recorrente, por seu turno, defende que o autor, aqui recorrente, esteve sempre convencido de que reunia os requisitos habilitacionais exigidos para o exercício da docência, para que contribuiu o facto de ter estado 13 anos a lecionar sem que a tutela o questionasse, pelo que criou a convicção de que nada impediria a sua nomeação. Defendeu que a sua expectativa de que tinha condições para a docência originou um investimento de confiança que foi frustrado em 2011 ao ver o recorrido adotar um comportamento totalmente oposto aos que usou nos 13 anos anteriores.
Contudo, tal alegação nada tem a ver com o instituto “Venire Contra Factum Proprium” que veda comportamentos contraditórios, enquanto desacordos entre duas condutas do mesmo agente.
Melhor explicando, trata-se de instituto onde o sujeito, em momento anterior, pratica determinada conduta e, mais tarde atua contra as suas anteriores decisões e comportamentos, aderindo a um comportamento que não é compatível com o anteriormente exposto.
Ora, para caracterizar a ocorrência do nemo potest venire contra factum proprium é primordial a congregação de alguns requisitos:
I- o factum proprium;
II- a legítima confiança de outrem;
III- a contradição ao factum proprium em sentido objetivo e
IV- a ocorrência de dano real ou potencial
O primeiro requisito, o factum proprium é “derivado” de uma atitude humana inicial, que recusa ser juridicamente vinculante, visto que, se fosse mesmo uma conduta vinculante, seria desnecessária a investigação da confiança e seria feito uso automático das disposições legais aplicáveis. A vinculação aqui presente, só́ irá acontecer no instante em que a confiança alheia for provocada, assim sendo, o sujeito está obrigado a manter-se de acordo com o comportamento inicial, isto é, o factum proprium é a ação inicial que este agente, no futuro, virá a contrariar.
Aliás, para estarmos perante uma hipótese de venire contra factum propriume não apenas de qualquer outra forma de tutela da confiança –, terá de se poder afirmar a contrariedade direta entre o anterior e o atual comportamento. Será o caso, designadamente, quando a confiança foi dirigida a uma determinada situação jurídica, ou a uma conduta futura do agente que vem a ser contrariada pela sua posterior atitude(1).
Quanto à contradição ao factum proprium em sentido objetivo é suposto que haja uma contradição concreta ao factum proprium, suficiente a gerar a confiança legítima, ou seja, quando exista uma contradição direta entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento do autor. Tem de haver uma ligação com a boa-fé objetiva, a verdadeira e legítima confiança não deve ser averiguada em sintonia com a subjetividade de quem pratica a conduta, isto é, não é suficiente que o agente acredite que sua ação é certa, pois a mesma deve reger-se no âmbito da a boa-fé́ objetiva, no que se refere a sua conduta, impõe, a par dos deveres principais expressos no contrato, deveres anexos, como lealdade, probidade, auxilio no cumprimento da obrigação, dever de informação, de confiança, dentre outros.
Por fim, na problematização relacionado ao dano real ou potencial, o que se visa impedir com o nemo potest venire contra factum proprium é que uma pessoa, que legitimamente confiou na conservação do sentido objetivo de um comportamento inicial, venha a sofrer um prejuízo a partir da ruptura desta confiança pela adoção de um comportamento contraditório. Disto se extrai que a aplicação do princípio de proibição do comportamento contraditório somente se justifica na presença de um dano, ou de uma ameaça de dano, a outrem. tem que existir um dano real ou potencial, para que se aplique o venire contra factum proprium.
Contudo, apesar de provado que o recorrente desde 1971/76 ter exercido funções docentes em moçambique (facto provado A)) e de ter sido docente em 1976/77 na Escola preparatória D Lopo Vaz Sampaio (facto provado D), bem como, em 1977/78, na Escola Secundária de Loures, em 1978/79, na Escola Secundária Afonso Domingues (factos provados E), F)), ou, apesar de ter sido contratado em 1982/84, como docente na Escola Secundária Marquês de Pombal (facto provado G)), de, em 1996/97, ter sido contratado como professor provisório contratado na Escola 2,3 João Gonçalves Zarco (facto provado H)), de, em 1996/97 ter sido contratado professor do quadro de nomeação definitiva na Escola Secundária de Camões, tendo aí lecionado até 2010 (facto provado I)), a verdade é que, quando pretendeu concorrer ao concurso de recrutamento de pessoal docente para o ano de 1997/98, declarando possuir como habilitações para a docência a realização de um exame em Moçambique como professor de eletricidade, indicando na candidatura deter habilitação profissional de montador eletricista (factos provados J) e M)) e declara deter o 2.º ano do curso de eletrotecnia e máquinas no Instituto Industrial e Comercial (facto provado N)), o que consta de ficha preenchida pelo docente e reenviada para a Direção-Geral da Administração Educativa (factos provados U) e V)).
A recorrida, entidade demandada na ação, decidiu não ter sido demonstrado pelo autor, aqui recorrente, possuir a habilitação académica de grau superior nos termos do Despacho 138/MEC/87, de 8 de junho (facto provado X)), razão pela qual decidiu não poder o recorrente concorrer para lecionação do grupo a que concorreu, declarando a nulidade da sua nomeação (facto provado EE)).
Portanto, o recorrente assenta a alegação do abuso de direito no facto de ter lecionado durante muitos anos sem que o recorrido tivesse identificado qualquer ilegalidade, gerando a convicção de que estava em situação de legalidade.
Mas sem razão, desde logo porque falham os pressupostos da legítima confiança de outrem, porquanto, para que estejamos numa situação de venire contra factum proprium, terá de se poder afirmar a contrariedade direta entre o anterior e o atual comportamento.
Por outro lado, para existir contradição ao factum proprium em sentido objetivo é suposto que haja uma contradição concreta ao factum proprium, suficiente a gerar a confiança legítima, ou seja, quando exista uma contradição direta entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento do autor.
Ora, o que sucedeu, no caso dos autos, foi apenas a existência de um histórico de docência na Província de Moçambique, que se manteve após o 24 de abril de 1975, um início de exercício de funções docentes já em Portugal pós-25 de abril, como professor provisório, em 1976/77, e em 1977/78 como professor efetivo no grupo 12.º B eletrotecnia.
Ora, além dos comportamentos omissivos no que diz respeito à verificação, em cada momento concursal, das reais habilitações do recorrente, tal comportamento, não se justificando, não é suficiente para retirar a convicção de uma confiança legítima quanto ao seu conteúdo, uma vez que se trata de professor que veio das ex-colónicas, com o fornecimento de documentos de difícil percepção, estando provado que a cópia do boletim oficial de Moçambique que consta dos arquivos da entidade recorrida está um aviso com o nome do recorrente como tendo sido aprovado com 12 valores no curso de habilitação de mestre de oficina de eletricidade do ensino industrial, o que não demonstra ser titular de uma qualquer profissionalização (facto provado EE)), bem como releva o facto de ter sido o próprio recorrente, autor na ação, a indicar possuir habilitação profissional, quando não tinha, ou seja, contribuindo para que a tarefa do Ministério da Educação fosse mais difícil.
É manifestamente exagerado retirar da não perceção atempada da nulidade dos contratos que foram sendo celebrados com o recorrente a conclusão de que o recorrido, com comportamentos seus de não identificação atempada da ilegalidade pudesse ser suficiente para gerar a confiança legítima do recorrente.
Coisa diferente seria se o recorrente apresentasse ofícios da recorrida a declarar e a aceitar a sua situação como profissionalizante, de modo claro e taxativo, mantendo essa aceitação expressa durante anos. Nada disso ocorreu.
Aliás, a interpretar-se como o recorrente, nunca haveria a possibilidade de declarar a nulidade de atos pelas entidades administrativas, porque elas configurariam sempre situações de abuso de direito.
Improcede, por isso, o abuso de direito suscitado, mas com diferente fundamentação.

B) Da inobservância do dever de prévia informação e direito de audiência prévia

Decide a sentença recorrida que “... a audiência dos interessados, como figura geral do procedimento administrativo decisório de 1º grau, representa o cumprimento da directiva constitucional de "participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito" (art. 267º, nº 5 da CRP), a audiência dos interessados, como figura geral do procedimento administrativo decisório de 1º grau, representa o cumprimento da directiva constitucional de "participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações que lhes disserem respeito" (art. 267º, nº 5 da CRP)...”. E que “... Ora, como o STA tem reiteradamente decidido, “sempre que exista a possibilidade de os interessados, através da audiência prévia, influírem na determinação do sentido da decisão final, não haverá que retirar efeitos invalidantes ao vício de preterição da referida formalidade” (Ac. de 28.11.2001 – Rec. 46.586). Todavia, no caso em apreço, o acto de declaração de nulidade da nomeação do A. é um acto vinculado e não discricionário. Com efeito, o tribunal só pode recusar efeito invalidante à omissão da formalidade prevista no art° 100º do CPA, se o acto tiver sido praticado no exercício de poderes vinculados e se puder concluir, com inteira segurança, num juízo de prognose póstuma, que a decisão administrativa impugnada era a única concretamente possível. Afirmou-se, a tal propósito, no Ac. do Pleno de 23.05.2006 – Rec. 1618/02: “Por isso, só se admite que o tribunal administrativo deixe de decretar a anulação do acto que não deu prévio cumprimento ao dever de audiência, aproveitando-o, quando ele, de tão impregnado de vinculação legal, não consente nenhuma outra solução (de facto e de direito) a não ser a que foi consagrada, isto é, quando esta se imponha com carácter de absoluta inevitabilidade: um tipo legal que deixe margem de discricionariedade, dificuldades na interpretação da lei ou na fixação dos pressupostos de facto, tudo são circunstâncias que comprometem o aproveitamento do acto pelo tribunal.”...”.
E o Tribunal ad quem, sem necessidade de adicionar fundamentação, por ter sido clara a assumida pelo Tribunal de 1.ª instância, entende inexistirem razões para censurar o decidido, pelo que se mantem a improcedência do vício suscitado.

C) Da falta de fundamentação

Sobre o assunto, foi decidido que “... Ora, elencados os factos provados, alíneas EE) e FF), verifica-se que a decisão impugnada teve por base a informação que faz parte integrante daquela, cuja fundamentação é perfeitamente perceptível para o destinatário normal, e que assenta no facto de o A. não ter a habilitação exigida para a nomeação no concurso de professores...”.
O Tribunal ad quem subscreve o decidido, acrescentando que a fundamentação por remissão obriga a que a informação, parecer ou proposta para que se remete contenha as razões de facto e de direito, ainda que de forma sucinta, mas de modo a que se perceba por que se decidiu naquele sentido. E isso foi respeitado nos autos (facto provado EE)).
Improcede o erro de julgamento também quanto a este fundamento.
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Em consequência, será de negar provimento ao recurso, por não provados os seus fundamentos e em manter a sentença recorrida, com a fundamentação antecedente.
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IV – DISPOSITIVO

Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, por não provados os seus fundamentos e em manter a sentença recorrida, com a fundamentação antecedente.
Custas pelo Recorrente.
Registe e Notifique.

Lisboa, dia 20 de junho de 2024
O Coletivo,
(Eliana de Almeida Pinto - Relatora)

(Teresa Caiado – 1.º adjunta)

(Frederico Branco– 2.º adjunto)


(1)MOTA PINTO, Paulo. Boletim da Faculdade de Direito: Volume Comemorativo. Universidade de Coimbra, 2002. p. 36.