Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1511/20.7BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:05/20/2021
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO DE RELATÓRIO DA JUNTA MÉDICA;
RECURSO HIERÁRQUICO NECESSÁRIO;
ERRO NOS PRESSUPOSTOS DE DIREITO;
ADMISSÃO A ESTÁGIO DE EMBARQUE NA MARINHA;
EXCLUSÃO DA MARINHA.
Sumário:I. Estando em causa aferir da legalidade de um ato que tem na sua base a aplicação de critérios que exigem e dependem de conhecimentos técnicos, próprios do foro da atividade médica, relativamente aos quais é mais dificultado o controlo jurisdicional, realizado em grande medida através da aferição do dever legal de fundamentação, para além da apreciação dos demais contornos que caracterizam o litígio, atinentes à relevância, absolutamente determinante, de realizar o mais completo e preciso diagnóstico clínico do Autor, por ser este a condicionar todo o demais desfecho da situação jurídica do Autor, é de entender enfermar o ato de homologação da Junta Médica de Revisão da Armada de falta de fundamentação.

II. O grau de exigência do dever de fundamentação varia consoante a natureza do ato ou da atividade impugnada, revestindo de particular acuidade a suficiência, congruência e cognoscibilidade da fundamentação, que permitam compreender as concretas razões de facto e de direito, no domínio da atividade discricionária, submetida a padrões de relativa indeterminabilidade ou a que seja dependente da aplicação de critérios técnicos, que não estritamente jurídicos, enquanto via para assegurar a sua respetiva impugnação contenciosa.

III. Fundamentar um ato consiste na indicação dos motivos, das razões de facto e de direito, importando que o destinatário entenda a que propósito aquele ato concreto foi praticado, em que medida afeta a sua esfera jurídica e em que medida pode atacá-lo contenciosamente.

IV. Embora o ato impugnado acolha na sua fundamentação o teor do parecer médico que considerou que o Autor apresenta uma incapacidade permanente para o desempenho de algumas funções relativas ao posto e classe, nomeadamente, todas as tarefas que impliquem esforços físicos de contacto, permanência em plataformas instáveis e/ou sujeitas a impactos (embarque), trabalhos em altura (riscos de queda) e o afastamento de cuidados médicos diferenciados próximos, não são apresentadas as respetivas razões ou factos concretos, que considere a situação clínica do Autor, nem especificados quaisquer exames ou outros elementos de diagnóstico que permitam sustentar concretamente cada uma das limitações ou incapacidade permanente do Autor indicados, nem em que medida cada um dos exames permita sustentar as conclusões afirmadas.

V. Não é possível sustentar o ato impugnado se apenas são formulados juízos conclusivos quer sobre a caracterização da doença do Autor ou as limitações que enfrenta, quer sobre os riscos que enfrenta, sem ser especificada a sua concreta situação médica ou clínica, quanto à doença de que padece ou as limitações que a mesma acarreta.

VI. Sem a invocação dos motivos concretos, alicerçados em factos ou em juízos médicos, não é possível concluir pela suficiência da motivação do parecer médico emitido pela JMRA, determinante da situação jurídica do Autor na Escola Naval.

VII. Não indicando o ato impugnado de exclusão do Autor da Escola Naval especificamente a norma legal em que se baseia para sustentar a exclusão, se na alínea c) ou na alínea d) do artigo 200.º, n.º 1 do REN, aprovado pela Portaria n.º 21/2014, de 31/01, constando expressamente do projeto de decisão notificado ao interessado para o exercício do direito de audiência prévia, a menção à alínea c), do n.º 1 do artigo 200.º, não é possível extrair da decisão final que a Entidade Demandada tenha efetivamente alicerçado o fundamento da exclusão na alínea d) do n.º 1 do artigo 200.º.

VIII. Nos termos dos artigos 91.º, 92.º, 93.º e 98.º do Decreto Regulamentar n.º 10/2015, de 31/07, a decisão sobre os pareceres da Junta de Saúde Naval é suscetível de recurso hierárquico, cabendo à Junta Médica de Revisão da Armada (JMRA) emitir parecer sobre o recurso, o qual é sujeito a homologação do Chefe do Estado-Maior da Armada.

IX. Sendo o recurso hierárquico necessário, por força do artigo 110.º, n.º 1 do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, aprovado pelo D.L. n.º 90/2015, de 29/05 e extraindo-se do artigo 189.º, n.º 1, do CPA, que as impugnações administrativas necessárias de atos administrativos suspendem os respetivos efeitos, o recurso hierárquico interposto pelo Autor, gozava de efeito suspensivo.

X. O caso em presença não permite configurar a verificação dos pressupostos para o aproveitamento do ato, nos termos do artigo 163.º, n.º 5 do CPA, não só considerando a natureza da matéria em causa, como também em decorrência do antecedente juízo de se julgar enfermado de falta de fundamentação o ato de homologação do parecer da Junta Médica de Revisão da Armada, determinante da sua respetiva anulação.

XI. Sendo alicerçada a decisão de exclusão do Autor da Escola Naval no facto de o aluno não ter realizado o estágio de embarque, sendo que tal circunstância de falta de realização do estágio se deve a isso estar impedido por força do parecer da Junta de Saúde Naval (depois mantido pelo parecer da Junta Médica de Revisão da Armada), sem este parecer se encontrar devidamente consolidado na ordem jurídica, não podem ser tomadas quaisquer decisões definitivas sobre a situação jurídica do ora Recorrido, no âmbito do curso em questão, nem sobre a permanência na Escola Naval.

XII. Considerando a sucessão de atos praticados pela Entidade Demandada e ora impugnados, não podem existir dúvidas de que certos atos são consequentes de outros, no sentido de dependerem da verificação de certos pressupostos, os quais, sendo postos em crise, afetam inelutavelmente os pressupostos de facto e/ou de direito dos atos deles dependentes.

XIII. No presente litígio o desfecho sobre o teor do parecer da Junta Médica de Revisão da Armada é absolutamente determinante para todo o desenvolvimento e definição da situação jurídica do Autor.

XIV. Incorre a sentença em nulidade decisória, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, d) do CPC ao julgar procedentes os pedidos principais e, ainda assim, conhecer do pedido subsidiário, formulado apenas no caso de o principal não proceder.

XV. Resulta prejudicado o conhecimento do fundamento do recurso invocado de erro de julgamento, em relação a pronúncia jurisdicional anulada, por nulidade decisória.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – RELATÓRIO

A Marinha Portuguesa e N........ e N........, devidamente identificados nos autos, inconformados, vieram, cada um por si, interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, datada de 12/09/2020, que no âmbito da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias instaurada por N........ e N........ contra a Marinha Portuguesa – Chefe de Estado-Maior da Armada, julgou parcialmente procedente a presente intimação, anulando o ato de homologação do resultado da junta médica de revisão proferido em 12/03/2020, o ato de exclusão do Autor da Escola Naval e o ato de indeferimento do pedido de realização de estágio de embarque, julgou prejudicado o conhecimento do pedido de reconhecimento do direito à realização de estágio de embarque, condenou a Entidade Demandada a emitir novo parecer e respetivo ato homologatório em sede de junta médica de revisão e nova decisão do incidente sobre o pedido de reconhecimento do direito à realização de estágio de embarque sem restrições e julgou improcedente o pedido de reconhecimento do direito à realização do estágio de embarque em terra ou numa unidade naval sem planeamento de navegação atribuído no período de estágio ou noutra unidade da Marinha.


*

Formula a Entidade Demandada, aqui Recorrente, nas respetivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem:

“A. Pela douta sentença recorrida, o Tribunal a quo começou por anular o ato de homologação do resultado da JMRA, por falta de fundamentação.

B. O Requerente alegou, e o Tribunal a quo decidiu, que a decisão da JMRA padece de falta de fundamentação, na medida em que, de acordo com o seu entendimento, essa decisão assenta unicamente em estatísticas e meras probabilidades que podem não ocorrer (pese embora descure que podem, também, verificar-se), não tendo as condições específicas e concretas do seu estado de saúde atual sido consideradas, sendo que, em qualquer dos casos, a sua incapacidade para a prática das tarefas aí descritas não resultaria minimamente justificada.

C. Porém, situações como aquela que se encontra em análise são tendencialmente caracterizadas por uma quantificação de risco probabilístico, na medida em que os médicos não podem garantir o que irá acontecer, mas podem presumir, com adequada margem de certeza, que em determinada situação concreta, e num certo contexto (v.g., atividade militar a bordo de navio), haverá um risco acrescido e uma maior probabilidade de agravamento do seu quadro clínico.

D. Ademais, e por se encontrar aqui em juízo a apreciação do resultado de uma junta médica, decorre da jurisprudência dominante na matéria que a apreciação feita pelas mesmas corresponde a uma atividade inserida no âmbito da chamada discricionariedade técnica, a qual se traduz na aplicação de princípios e critérios de natureza técnica, próprios das ciências médicas.

E. Nesta matéria, a jurisprudência tem entendido, de forma sólida, que só em casos extremos é que o juiz deverá imiscuir-se no exercício da discricionariedade técnica da Administração, anulando os correspondentes atos administrativos com fundamento em "erro manifesto de apreciação" (cfr., de entre outros, os Acórdãos do STA de 16.1.1986, processo n.º 20.919; de 22.3.1990, processo n.º 18.093; de 16.2.2000, processo n.º 38.862; e de 30.1.2002, processo n.º 47.657).

F. E, para que ocorra um erro manifesto, é indispensável que o ato administrativo “assente num juízo de técnica não jurídica tão grosseiramente erróneo que isso se torne evidente para qualquer leigo” (cfr. Acórdão do Colendo STA, de 31.5.2001, processo n.º 47.029).

G. Mas, no caso vertente, não se vislumbra, nem o Requerente logrou prová-lo, que tenha ocorrido um erro grosseiro ou manifesto que pudesse justificar a anulação do deliberado pela JMRA, ao que acresce ter o próprio Tribunal a quo reconhecido, na sentença ora recorrida, não ser possível “(…) aferir da eventual existência de um qualquer erro grosseiro ou manifesto (...)”.

H. Complementarmente, é notório que o ato administrativo judicialmente anulado, por assentar em vários pareceres médicos proferidos pelas juntas médicas da Armada, tem-se igualmente como devidamente fundamentado, porquanto um destinatário normal, face ao itinerário cognoscitivo e valorativo constante do ato em causa, fica em condições de saber o motivo por que se decidiu daquela forma.

I. Pelo exposto, o parecer da JMRA define de forma clara e suficiente a situação médica do Requerente e, partindo dessa situação concreta e do vasto conhecimento e experiência dos médicos que a compõem (incluindo o médico assistente indicado pelo próprio Requerente) sobre as exigências da carreira militar em geral, e das funções militares a bordo de unidades navais em especial, considerou, por unanimidade, e tendo por base pareceres médicos que ajudaram a suportar essa decisão, que a condição do Requerente, em conjugação com aquelas exigências, encerra riscos intoleráveis para a vida, saúde e integridade física da pessoa em causa, mas também, necessariamente, para a instituição – Marinha –, na medida em que uma eventual ocorrência a envolver o Requerente poderá condicionar, e mesmo colocar em risco, a segurança e a integridade de outras pessoas, de bens e equipamentos, e o cumprimento da própria missão da unidade naval em que se encontre a desempenhar funções.

J. Como tais razões constam do ato impugnado, entende-se que o mesmo não padece do alegado vício de falta de fundamentação, de tal modo que habilitou o Requerente a sindicá-lo em juízo sem qualquer dificuldade de interpretação, pelo que a sentença recorrida padece de erro de julgamento, por não ter apreciado corretamente a prova produzida e não ter aplicado adequadamente o direito aos factos.

K. A douta sentença recorrida decidiu ainda pela anulação do ato que excluiu o Requerente da EN, por entender ter havido violação do artigo 200.º, n.º 1, alínea c), do REN, e do artigo 189.º, n.º 1, do CPA, conjugadamente com os artigos 91.º, 92.º, 93.º e 98.º do Decreto Regulamentar n.º 10/2015, de 31 de julho, e artigo 110.º, n.º 1, do EMFAR, bem como pela anulação do ato de indeferimento do pedido de realização de estágio de embarque, por considerar, também aqui, ter existido o vício de falta de fundamentação,

L. E condenou a Recorrente a emitir novo parecer e respetivo ato homologatório em sede de JMRA, bem como a proferir uma decisão incidente sobre o pedido do Requerente de reconhecimento do direito à realização de estágio de embarque sem restrições, contendo a fundamentação legalmente exigida.

M. Todavia, face à factualidade dada como provada em juízo e ao direito aplicável, também neste âmbito a Recorrente não se conforma com o entendimento sufragado pelo Tribunal a quo.

N. Por motivos óbvios e já devidamente aclarados, o quadro clínico do Requerente, teve, necessariamente, impacto no seu percurso na EN, concretamente, nas decisões que levaram à sua exclusão daquele estabelecimento de ensino, bem como ao indeferimento do seu pedido de realização do estágio.

O. Deste modo, e numa perspetiva de salvaguarda da sua integridade física face a potenciais problemas que pudessem vir a ocorrer durante o estágio de embarque, o Requerente não realizou o referido estágio, e foi, por conseguinte, notificado, em 10.02.2020, da intenção de exclusão do curso «(…) por não ter realizado estágio de embarque, como aluno do 5º ano do curso “Jorge Álvares” da Escola Naval, considerando as condições de exclusão previstas na alínea c) do n.º 1 do artigo 200º da Portaria n.º 21/2014, de 31 de Janeiro, que publica em anexo o Regulamento da Escola Naval».

P. A alusão à alínea c) do n.º 1 do artigo 200.º do REN, por ser aplicável às situações em que os alunos são excluídos da frequência da EN por falta de aproveitamento escolar, foi por mero lapso de escrita citada pelo comandante da EN, porquanto, os casos de incapacidade, como sucede no presente caso, surgem contemplados na subsequente alínea d) do n.º 1 do mesmo preceito legal.

Q. Todavia, e não obstante o erro na citação da alínea c) do n.º 1 do artigo 200.º do REN, para efeitos de notificação ao Requerente da sua intenção de exclusão da EN, salienta-se que não é esse o ato que se encontra em causa e que foi judicialmente impugnado.

R. O ato impugnado é, relembra-se, pela decisão de exclusão (propriamente dita) do Requerente daquele estabelecimento de ensino.

S. E, na esteira do que antecede, esse ato foi dado a conhecer ao Requerente através de despacho datado de 28.02.2020 do comandante da EN, no qual ficou vertida a decisão de o excluir da EN, sendo então esse o ato que foi impugnado em tribunal,

T. Ato no qual ficou estabelecido que o motivo subjacente à tomada dessa decisão ficou a dever-se ao facto de o órgão competente para avaliar a condição física do Requerente, entenda-se, a JSN, se ter pronunciado “(…) pela incapacidade do ASP L....... para embarcar, atendendo às suas condições físicas e psíquicas, o que consequentemente impossibilitou a realização do respetivo estágio de embarque, condição necessária para concluir o mestrado integrado em ciências militares navais, especialidade em engenharia naval, ramo mecânica” (sublinhado nosso).

U. Como tal, carece de se trazer à colação que o real motivo pelo qual o Requerente não realizou o estágio de embarque foi por inaptidão física e não por falta de aproveitamento escolar, conforme atempadamente se corrigiu e deu a conhecer ao interessado por via do despacho que ditou a sua exclusão do referido estabelecimento de ensino, tendo a decisão do comandante da EN sido suportada em pareceres médicos que foram, a posteriori, reiterados, e confirmados, pela JMRA.

V. Assim sendo, o processo de exclusão do Requerente do curso da EN e o seu consequente abate ao corpo de alunos assentaram, efetivamente, no pressuposto da sua incapacidade física para a vida militar, declarada inicialmente pela JSN e posteriormente corroborada e fundamentada pela JMRA, e não na falta de aproveitamento escolar.

W. Deste modo, cumpre elucidar que, de facto, e tal como resulta do ponto 17. da factualidade dada como provada, o teor do ato refere expressamente a “incapacidade do ASP L....... para embarcar, atendendo às suas condições físicas e psíquicas, o que consequentemente impossibilitou a realização do respetivo estágio de embarque, condição necessária para concluir o mestrado”, o que, não obstante a menção genérica ao artigo 200.º do Regulamento da EN, é inequivocamente revelador de que o fundamento da exclusão do Requerente se reconduz, sem margem para dúvidas, à alínea d) do n.º 1 do mencionado artigo (sublinhado nosso).

X. E, pelo veiculado supra, constata-se que o ato do comandante da EN colocado em causa, que decidiu pela exclusão do Requerente daquele estabelecimento de ensino, não abriga, nessa medida, uma “errada escolha da norma aplicável” e não padece, portanto, do alegado vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito que lhe foi apontado no aresto recorrido.

Y. O Requerente veio arguir que a decisão do comandante da EN de o excluir daquele estabelecimento foi proferida quando o recurso hierárquico do resultado da junta médica ainda se encontrava pendente, recurso esse que tem efeitos suspensivos, nos termos do artigo 189.º, n.º 1, do CPA.

Z. Contrariamente ao entendimento plasmado na douta sentença recorrida, deverá ter-se por aplicável o princípio do aproveitamento do ato administrativo consagrado no artigo 163.º, n.º 5, do CPA, segundo o qual não se produz o efeito anulatório quando: (i) O conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível; ou (ii) Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo.

AA. E foi precisamente esta última situação que se verificou, porquanto se confirmou que, mesmo que o comandante da EN tivesse aguardado pela decisão da JMRA para tomar a decisão de excluir o Requerente, o conteúdo da decisão tomada não poderia ser outro.

BB. Pelo que o ato teria, sem margem para dúvidas, sido praticado exatamente com o mesmo conteúdo e visando a mesma finalidade, uma vez que a JMRA manteve o sentido do parecer da JSN.

CC. Deste modo, o vício em causa não produz o efeito anulatório, por aplicação do princípio do aproveitamento dos atos administrativos, consagrado na alínea c) do n.º 5 do artigo 163.º do CPA.

DD. Deve, portanto, concluir-se que tal anulação não iria alterar a decisão que foi dada a conhecer ao Requerente por parte do comandante da EN, pelo que a existência de tal vício não deve conduzir à anulação, por aplicação do princípio da inoperância dos vícios ou utile per inutile non vitiatur.

EE. É que, ainda que as formalidades essenciais tivessem sido escrupulosamente cumpridas, o sentido e conteúdo do ato seria exatamente o mesmo, o que faz com que o alegado vício, que, em regra, implicaria invalidade traduzida em anulabilidade, passe apenas a gerar uma mera irregularidade, devendo, por conseguinte, o ato permanecer na ordem jurídica tal e qual como se de um ato válido se tratasse.

FF. Por fim, na douta sentença recorrida determinou-se ainda a anulação do ato de indeferimento do pedido de realização de estágio de embarque, por se considerar também verificado o vício de falta de fundamentação.

GG. Igualmente se discorda deste segmento da sentença recorrida, dado que se esclarece que o embarque não foi realizado, tal como já foi anteriormente aclarado, por, numa fase inicial, persistirem dúvidas relativamente à condição física e psíquica do Requerente, e, numa fase posterior, por indicação médica da JSN nesse sentido (entretanto confirmada pela JMRA), motivo pelo qual, e por questões de segurança inerentes à sua integridade física, não lhe foi possível efetuar o referido embarque e, com isso, obter os 10 (dez) ECTS necessários à finalização do seu curso.

HH. Nestes termos, e conforme foi já elucidado, no caso em apreço não estamos, de facto, perante uma situação de falta de aproveitamento escolar, mas sim perante uma situação de incapacidade, que, por sua vez, remete para o artigo 204.º do REN, onde se dispõe que os alunos que, durante a frequência dos cursos, revelem falta de aptidão física ou outra incapacidade para a carreira a que se destinam são submetidos à apreciação da junta médica competente, mediante proposta do comandante, com a eventual consequência de abate por incapacidade para o serviço.

II. De resto, o conhecimento desta questão fica prejudicado pela solução a dar às questões que a antecedem, porquanto se constatou que, tendo a JMRA mantido a declaração de incapacidade do Requerente, então o mesmo nunca poderia vir a ser autorizado a realizar o estágio de embarque.

JJ. Tudo razões por que deve a douta sentença recorrida ser revogada, decidindo-se, a final, pela manutenção dos atos administrativos impugnados na ordem jurídica, com as legais consequências.”.

Pede que seja concedido provimento ao recurso e revogada a sentença recorrida, mantendo-se os atos administrativos impugnados na ordem jurídica.


*

O Autor, ora Recorrente, igualmente inconformado com a sentença, veio interpor recurso jurisdicional, em que formulou as seguintes conclusões:

“A - O presente recurso prende-se apenas com a decisão constante do ponto (vi) da sentença que julga “improcedente o pedido de reconhecimento do direito à realização estágio de embarque em terra ou numa unidade naval sem planeamento de navegação atribuído no período de estágio ou noutra unidade da Marinha e, consequentemente, absolvo a MARINHA PORTUGUESA – CHEFE DO ESTADO-MAIOR DA ARMADA ao mesmo.”

B - Esta decisão diz respeito ao pedido subsidiário feito na petição inicial e que seria de ter em conta apenas “no caso de se manter a decisão da Junta Médica de Revisão” (sic), decisão essa que foi agora anulada por falta de fundamentação, mas o tribunal entendeu decidir o pedido subsidiário, mesmo após ter julgado procedente o pedido principal, sobre um pedido formulado subsidiariamente pelo autor e apenas no caso de o pedido principal improceder.

C - O autor não aceita esta decisão, não só porque é nula, por excesso de pronúncia, mas também porque não é adequada à situação, como se verá de seguida, para além de que ainda não há qualquer acto que a motive, dado que a decisão da Junta Médica de Revisão foi anulada e por isso apresenta o presente recurso também com vista à sua revogação.

D – Quanto à nulidade de tal decisão, o pedido de realização de estágio em unidade naval sem planeamento de navegação ou em terra feito pelo autor, surge, apenas e só, “no caso de se manter a decisão da Junta Médica de Revisão”, o que não se verificou no caso concreto.

E - Na verdade, a sentença anulou o acto de homologação do resultado da Junta Médica de Revisão, que era um dos pedidos principais, de cuja improcedência dependia então a consideração do pedido de realização do estágio em unidade naval sem planeamento de navegação ou em terra, estando-lhe, pois, vedada a possibilidade de decidir pedidos subsidiários, uma vez que foi concedido o pedido formulado a título principal.

F - Isto mesmo diz o nº. 1 do artigo 554.º do Cód. Proc. Civil, aqui aplicável supletivamente por força do artigo 1º do CPTA, bem como a mais recente jurisprudência dos tribunais administrativos de que é exemplo o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 15.05.2020, proferido no processo nº.00111/11.7BEVIS, publicado em www.dgsi.pt, onde se lê: "(...) ao ignorar essa ordem de preferência manifestada pelo autor na petição inicial quanto aos pedidos que formulou e ao conhecer dos pedidos subsidiários por ele deduzidos sem que tivesse absolvido da instância ou do pedido o réu quanto ao pedido principal ou dos pedidos subsidiários anteriores, o tribunal incorreu em nulidade da decisão que proferiu, quanto a esses pedidos subsidiários de que conheceu, por excesso de pronúncia, na medida em que se pronunciou sobre questão (causa de pedir, pedido e eventuais exceções e contraexceções opostas àqueles) de que não podia conhecer, por não lhe ter sido submetido pelas partes o respetivo julgamento sem que o pedido principal ou os pedidos subsidiários anteriores tivessem sido julgados improcedentes por decisão de mérito ou processual (absolvição da instância) e sem que pudesse conhecer oficiosamente dos mesmos (art. 668º, n.º 1, al. d) do CPC) Acs. TCS. de 05/06/2019, Proc. 1614/13.4TBELRS; STJ de 29/06/2017, Proc. 825/15.2T8LRA.C1.S1 e de 11/12/2012, Proc. 971/11.TBCTB.C1, in base de dados da DGSI." e ainda a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre esta matéria: veja-se o Acórdão proferido em 29-06-2017, no processo 825/15.2T8LRA.C1.S1, onde se lê: I. Com a formulação de um pedido principal e um pedido subsidiário, o autor declara uma preferência pelo primeiro, devendo o tribunal apreciar essa pretensão jurisdicional e apenas passar à apreciação do pedido subsidiário, no caso do pedido principal improceder.

G - Deste modo, a sentença de que ora se recorre é nula quanto ao ponto (vi), nos termos do disposto no artigo 615º nº. 1 al. d) do Cód. Proc. Civil, aqui aplicável supletivamente por força do artigo 1º do CPTA, na medida em que conheceu “de questões de que não podia tomar conhecimento”, por terem sido pedidas a título subsidiário e o pedido principal ter sido julgado procedente, violando assim o artigo 554º do Cód. Proc. Civil acima citado.

H - Aliás, nem se compreende, como é que a sentença, por um lado, no ponto (iv), declara “prejudicado o conhecimento do pedido de reconhecimento do direito à realização de estágio de embarque sem restrições” por entender que, com a emissão de novo parecer da Junta Médica de Revisão, a Marinha deve decidir sobre a possibilidade de o autor fazer o estágio de embarque sem restrições e depois, por outro lado, se pronuncia sobre a impossibilidade de um eventual estágio sem navegação, quando as condições do estágio a realizar dependem do novo parecer da Junta Médica de Revisão e da nova decisão da Marinha quanto ao estágio; é que se o ponto (iv) ficou prejudicado, por maioria de razão também devia ter ficado prejudicado o ponto (vi), até porque, além do mais, era um pedido subsidiário.

I - Por isso, com os fundamentos acima expostos, deve ser considerada procedente a invocada nulidade da decisão do ponto (vi) da sentença, por consubstanciar o conhecimento de uma questão que o tribunal não podia conhecer, nos termos do artº. 615º., nº. 1, al. d) 2ª. parte do Cod. Proc. Civil, pelo que, deve ser anulada nessa parte a decisão contida na sentença proferida nos presentes autos.

J - No entanto e por cautela, o recorrente pronuncia-se sobre conteúdo da decisão do ponto (vi), manifestando estranheza sobre o facto de o Tribunal não aceitar que um estágio de embarque se possa fazer sem planeamento de navegação, mesmo tendo como objectivo primacial:

- “Desenvolver as competências técnico-militares e de liderança em contexto real_de trabalho (navio operacional) …

- “Proporcionar aos aspirantes um conhecimento directo dos problemas de organização e de chefia”

- “Praticar os ensinamentos adquiridos durante o curso, a fim de os adaptar gradualmente ao desempenho das funções e às responsabilidades que cabem aos subalternos da classe de Engenheiros Navais do ramo de Mecânica.

- “Adquirir capacidades e perícias em diferentes áreas designadamente R.H. e material” e

- “Desenvolver competências não-técnicas de natureza pessoal, intelectual e social”, sendo que

- “O estágio não será validado se não forem realizadas as tarefas consideradas nucleares

K - Percorrendo o texto selecionado, que é parte do plano de estágio junto a fls 280-285 dos autos no SITAF, tal como é mencionado no ponto 8 dos factos provados, documento de que o autor só teve conhecimento quando foi junto aos autos, e tendo em conta a informação dada pela Marinha, no seu requerimento de 27-10-2020, ponto 2 de que “… o tempo efetivo de navegação depende da tipologia dos navios e das missões atribuídas nos referidos períodos, e bem assim de casos de força maior ou fortuitos (v.g. avarias, intempéries, etc) que possam eventualmente surgir.” e tendo ainda em conta que houve aspirantes que navegaram 4 dias no seu estágio de embarque de, pelo menos, 7 semanas, não se compreende como é que o tribunal chegou à conclusão de que fazer o estágio em navio atracado põe em causa a formação dos aspirantes do ramo de mecânica durante o período de estágio.

L – Questiona-se: Então se os aspirantes forem fazer o estágio num navio que sofre avaria grave e, por isso, não vai navegar? Ou se há mau tempo que impede de navegar? Ou se não há missões planeadas para esse navio? Significa isto que o seu estágio não é válido? Não haverá formas de aprender técnicas de navegação por simuladores? Navegar durante 4 dias fará a grande diferença na sua formação? Sobretudo na especialidade de engenharia ramo mecânica?

M - Por outro lado, o tribunal indeferiu genericamente estágios a bordo sem navegação e estágios em terra, que são situações diferentes como consta no artigo 88º do Regulamento da Escola Naval, sem talvez compreender o que se poderia alcançar em cada um deles, constatando-se que, afinal, fez falta a produção de prova testemunhal quanto a esta matéria, pela qual o tribunal tomaria conhecimento da dinâmica que envolve as funções dos engenheiros navais do ramo de mecânica, mencionadas e enquadradas nos artigos 136º, 137º e 140º da petição inicial e pela qual verificaria se efectivamente o estágio de embarque podia ou não ser substituído por outro tipo de estágio.

N – É que não chega ter em conta apenas o que a requerida diz sobre este assunto (que tais estágios nunca foram feitos de outra maneira; que nunca houve outra alternativa); interessava realmente verificar se havia ou não a possibilidade de uma alternativa que cumprisse todos os objectivos de um estágio de embarque, sem pôr em causa a formação completa que se exige a um engenheiro naval de ramo de mecânica e para isso tinha de se conhecer a realidade que envolve estes profissionais da Marinha!

O - Na verdade, há engenheiros desse ramo na Marinha a desempenhar funções cujo exercício não implica qualquer navegação, o que, a ser provado, sustentaria a aplicação da solução do estágio a bordo sem planeamento ou em terra, pois os conhecimentos específicos que lhes são exigidos pouco têm a ver com a situação efectiva de navegação; bem como há engenheiros que trabalham em terra, na reparação e limitação de avarias dos navios atracados ou a navegar, na gestão de material, sendo também certo que se tal departamento (nomeadamente a Direcção de Navios) não fosse de enorme utilidade e eficácia, certamente que não existiria, mas é aqui que é feita a actividade nuclear da especialidade no que respeita à manutenção dos navios.

P - Está em causa um estágio que vale 10 ECTS para concluir um curso de 300ECTS, curso esse que formou profissionais que na sua actividade profissional não navegam e, se tivesse havido produção de prova testemunhal, o tribunal teria ficado a conhecer toda esta dinâmica e constataria que um estágio sem navegar não põe em causa a ampliação e aplicação de conhecimentos necessários ao desempenho de funções de engenheiro, pelo que, a falta de produção de prova sobre este ponto inquina esta decisão de défice instrutório, dado que é tomada sem ter pleno conhecimento da situação concreta.

Q – Além disso a própria requerida criou alguma confusão ao minimizar as competências específicas da classe do autor, pois diz que houve aspirantes que navegaram 4 dias durante o estágio, sem especificar a sua classe, o que permite especular que até possam ser aspirantes da classe de marinha, sendo que, esses sim, quando forem oficiais, têm a seu cargo a “direcção, inspecção e execução de actividades relativas à navegação, hidrografia, oceanografia, farolagem e balizagem”, nos termos do disposto no artigo 204º al. a) ponto vii), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFA), aprovado pelo Decreto-lei 90/2015 de 29 de Maio, e se, eventualmente, aspirantes de classe Marinha navegaram apenas 4 dias, quando a navegação faz parte das suas competências específicas, muito menos necessário será navegar num estágio de um engenheiro.

R - Mas para verificarmos que o acima alegado também resulta da lei, vejamos quais as funções relacionadas com navegação que o Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFA) atribui à classe de engenheiros navais no artigo 204º al. b) desse mesmo Estatuto (classe de engenheiros navais), que foi mencionado a este propósito no artigo 140º da petição inicial, onde consta apenas no ponto “xii) Exercício de funções no âmbito das atividades relativas à navegação, hidrografia, oceanografia, farolagem e balizagem e do sistema de autoridade marítima, que requeiram a qualificação técnico-profissional da classe;” ou seja, as funções dos engenheiros em actividades de navegação só são necessárias apenas na medida em querequeiram a qualificação técnico- profissional da classe”, o que já não acontece com os oficiais da classe de marinha, como acima vimos.

S - Ora, partindo do princípio de que um dos objectivos do estágio é “Praticar os ensinamentos adquiridos durante o curso, a fim de os adaptar gradualmente ao desempenho das funções e às responsabilidades que cabem aos subalternos da classe de Engenheiros Navais do ramo de Mecânica”, parece que um estágio sem navegação pode atingir estes objectivos, mesmo sem essa componente ou com essa componente muito mitigada.

T - Só que, para o tribunal, parece que um navio que não navegue não está operacional; mas não é assim, pois é do conhecimento comum que um navio quando está atracado não está “fechado”, continua operacional, apenas não navega mas continua a ter actividade interna: continua a ter a sua guarnição activa (pessoal que nele trabalha) e a desempenhar as suas funções, sendo necessário organizar e fiscalizar o seu trabalho; as máquinas avariam-se e têm de reparar- se, sendo necessário proceder à sua manutenção; é necessário fazer uma gestão do material e do pessoal que trabalha nos diversos sectores do navio (e quanto maior este for, maiores problemas terá, mesmo atracado); há ocorrências entre pessoal, que por vezes exigem processos averiguações e processos disciplinares; enfim, há lugar a toda a actividade que faz parte das funções dos engenheiros (vejam-se as alíneas do artigo 204º al. b) do EMFA acima citado) e que pode e deve ser aprendida mesmo com o navio sem navegar, que continua operacional!

U - Voltando ao estágio do autor, é verdade que o plano de estágio (documento mencionado no ponto 8 dos factos provados) apresenta depois em detalhe as actividades que se devem fazer no estágio mas, se tomarmos atenção cada ponto específico, verifica-se que o que se pretende é que os aspirantes tenham um conhecimento geral, ainda que teórico, sobre os trabalhos e funções que se realizam num navio e não que obrigatoriamente tenham executado todas aquelas funções; se houve aspirantes que realizaram, durante o estágio, 4 dias de navegação (e nem conhecemos de que classe eram estes aspirantes!!) e o resultado foi terem obtido aproveitamento no estágio, isto não pode significar que tenham realizado em 4 dias todas as tarefas do plano que se referem a navegação, porque isso parece ser impossível, para além de que, por exemplo, não podem ter aprendido, na prática, os procedimentos de navegação com mau tempo (ponto 2.3 do plano) se durante esses 4 dias o tempo esteve bom!

V - Porém, isto não significa que os aspirantes que navegaram só durante 4 dias, nos restantes dias em que certamente estiveram atracados, não tenham aprendido e praticado todos os conhecimentos relativos às suas funções, dado que certamente, se eram da especialidade de engenheiros – o que não se sabe –, exerceram funções ligadas ao oficial de dia (em navio atracado e fundeado - ponto 1 do plano); actividades de oficial de quarto à ponte (aqui só em navio fundeado – ponto 2 do plano); actividades de imediato/serviços gerais (sem especificação – ponto 3 do plano) e, sobretudo, terão de ter realizado actividades do departamento de propulsão e energia, (ponto 4), estas sim específicas da sua classe; senão como é que tiveram aproveitamento no seu estágio?!

W - Ao longo de todo o curso, os alunos da Escola Naval tiveram muitas actividades em navegação como viagens de instrução, embarques de fim de semana e estágios, em que os alunos acompanharam e participaram na vida de um navio operacional, tal como foi alegado pelo autor no artigo 132º da petição inicial, embora com relevância na sua situação concreta; por isso, no estágio de embarque do 5º ano, o que é relevante, de acordo com o plano mencionado no ponto 8 dos factos provados, é que o seu âmbito respeite mais em concreto a funções específicas da Classe, por se tratar de um estágio de índole mais profissional.

X - No caso dos alunos do ramo de mecânica, tendo em conta as específicas funções que irão desempenhar no futuro, que constam do já citado artigo 204º al.b) do EMFA (nomeadamente nos pontos i), ii), iii), iv), v), xii) e xiii)); tendo em conta o plano de estágio desta especialidade, nomeadamente no seu ponto 4 (que parece conter as actividades nucleares, respeitante ao departamento de propulsão e energia, devendo os alunos “ter um conhecimento ou desempenho suficiente” sobre os diversos pontos ali mencionados), dúvidas não há de que navegar não parece ser a actividade nuclear para este estágio, como não o foi para os aspirantes que navegaram apenas 4 dias (fossem de que classe fossem).

Y - Se o autor fosse colocado num navio operacional que não navegasse, ou navegasse durante 4 dias (foi isto que se sugeriu no último requerimento apresentado pelo autor e não que o estágio tivesse a duração de 4 dias, como diz a sentença), o certo é que, durante as 7 semanas que ali passaria, exerceria funções e faria trabalhos (acompanhamento de manutenção de máquinas, de reparação de avarias, de gestão do material, de gestão do pessoal do departamento, para além de poder acompanhar todas as demais actividades dos outros departamentos existentes no navio) pelos quais iria adquirir as competências "adequadas ao futuro desempenho do cargo de oficial subalternos a bordo de navios de guerra" – como o adquiriram os aspirantes que navegaram durante 4 dias no seu estágio - alcançando os objectivos pretendidos com este estágio: - iria aprender a lidar com problemas de organização e de chefia, - praticaria ensinamentos relacionados com as funções e responsabilidades que cabem aos oficiais subalternos da sua classe; - adquiriria capacidades e perícias em diferentes áreas nomeadamente recursos humanos e de material e - desenvolveria competências não técnicas de natureza pessoal, intelectual e social.

Z - É em face deste cenário, que foi em parte alegado pelo autor nos artigos da petição inicial que mencionou (e que, na altura, tencionava fazer prova sobre o alegado), que em parte se retira dos documentos juntos ao processo e que também se retira da lei, que se tem de avaliar se navegar é assim uma actividade nuclear deste estágio, o que parece que não é.

AA - Porém, para o Tribunal, a navegação tornou-se pedra angular para não reconhecer ao autor o direito de fazer um estágio de embarque, em termos muito semelhantes aos dos aspirantes que apenas navegaram 4 dias em 7 semanas, porque o mesmo foi impedido de ter “permanência em plataformas instáveis e/ou sujeitas a impactos (embarque)” pela decisão da Junta Médica anulada (por isso foi um pedido subsidiário que pressupunha a mencionada incapacidade), prejudicando desta forma o seu direito fundamental de concluir o seu curso de mestrado integrado!

BB - Por isso se recorre de tal decisão que, para além de ser uma nulidade processual, por conhecer uma questão que não poderia conhecer por ser um pedido subsidiário, é uma decisão carecida de base legal e até precipitada, que não se fundamenta nem nas alegações das partes, nem nos documentos que constam dos autos e nem na lei aplicável a este caso concreto, pelo que se pede a este tribunal superior que, caso não declare a nulidade do conhecimento e decisão da questão do ponto (vi) do segmento decisório da sentença ora recorrida, conforme a nulidade atrás arguida - o que apenas se considera como hipótese de raciocínio - revogue o ponto (vi) da sentença ora impugnada, por não atender às normas constantes do EMFA (artigo 204º), do plano de estágio de embarque (documento de fls 280-285 dos autos no SITAF) e do Regulamento da Escola Naval (artigo 88º) tendo em vista o direito de o autor poder concluir o seu curso, tudo nos termos acima expostos (…)”.


*

O Autor, ora Recorrido, veio contra-alegar o recurso interposto pela Entidade Demandada, para o que concluiu do seguinte modo:

“A - Insurge-se a recorrente Marinha Portuguesa contra a sentença que decidiu, entre outras questões, anular o acto de homologação do resultado da JMRA, por falta de fundamentação; anular o acto que excluiu o requerente da Escola Naval, por violação de normas; anular o acto de indeferimento do pedido de realização de estágio, por falta de fundamentação e condenar a recorrente a proferir novo parecer e respectivo acto homologatório, bem como nova decisão sobre o pedido de reconhecimento do direito à realização de estágio de embarque sem restrições, todo os actos devidamente fundamentados, só que o recorrido não pode de todo concordar com tal posição.

B – No que respeita à anulação do acto homologatório do resultado da JMRA, primeiro diz a recorrente que esta decisão incorre em erro de julgamento, na medida em que, no seu entender, esse acto agora anulado está devidamente fundamentado, porque a situação concreta do requerente tem de ser analisada numa perspectiva de “quantificação de risco probabilístico”, existente no contexto de “actividade militar a bordo do navio”, baseando-se em pareceres médicos que desaconselharam que o requerente continuasse a vida militar e, segundo, diz que o parecer da JMAR não pode ser posto em causa pelo tribunal por se estar no âmbito da discricionariedade técnica e não se ter demonstrado que houvesse erro grosseiro.

C - Quanto à falta de fundamentação, refere-se que, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 91.º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 90/2015, de 29 de Maio, as juntas médicas são meios de apreciação da “aptidão física e psíquica do militar” e, tratando-se da Marinha Portuguesa, são as juntas médicas da Armada os “órgãos técnicos de consulta” destinados a pronunciar-se sobre tal aptidão, nas quais se incluem a Junta de Saúde Naval e a Junta Médica de Revisão da Armada – cfr. artigo 74.º, n.ºs 1 e 2, alíneas c) e d), daquele diploma – sendo que esta emite parecer sobre o recurso relativo à decisão do CEMA baseada no parecer emitido pela Junta de Saúde Naval - cfr. artigos 88.º, alínea a), 89.º, n.º 1, 94.º, alínea a), e 95.º, n.º 1, do Decreto Regulamentar n.º 10/2015, de 31 de Julho, que aprova a orgânica da Marinha.

D - Tanto a Junta de Saúde Naval (JSN) como a Junta Médica de Revisão da Armada (JMRA) são órgãos colegiais de natureza consultiva que emitem pareceres nos quais é apreciada “a aptidão física e psíquica para o exercício das funções relativas ao posto, classe e ou categoria profissional.”, ensinando FREITAS DO AMARAL - in “Curso de Direito Administrativo”, volume II, Almedina, 2001, pp. 269 e ss. - que os “pareceres” são “actos opinativos elaborados por peritos especializados em certos ramos do saber ou por órgãos colegiais de natureza consultiva”, contendo “o seu ponto de vista acerca de uma questão técnica ou jurídica”; são “pronúncias administrativas que não envolvem uma decisão de autoridade, antes são auxiliares relativamente a actos administrativos decisórios.”

E - No caso concreto, a Marinha Portuguesa admite que os seus médicos presumiram um risco acrescido e uma probabilidade de agravamento de um quadro clínico, para depois concluir pela incapacidade do requerente aqui recorrido; só que a incapacidade não pode assentar em presunções, que não são juízos técnicos mas ilações (artigo 349º do Cód. Civil) devendo, antes, assentar em factos individuais e concretos que, depois de serem avaliados por um juízo técnico, permitam aferir da aptidão actuale não futura, baseada em estatísticas e probabilidadespara o exercício de certas e determinadas funções, sendo esta a finalidade das juntas médicas mas que neste caso não foi cumprida.

F - Nunca foi afirmado pelas juntas médicas da Marinha que o requerente padecia de doença ou tinha sequelas que o incapacitassem; apenas foi dito que corria o risco de vir a padecer, fundamentando-se tal afirmação com estatísticas: afirma-se que tem um risco acrescido de epilepsia (mesmo sem ter tido uma única crise convulsiva) e tem hidrocefalia crónica só porque lhe foi aplicado um shunt (derivação ventrículo-peritoneal) numa fase aguda da sua recuperação.

G - Só que isto não corresponde à verdadeira situação do requerente dado que, resulta dos factos provados considerados na sentença sob os números 25, 28, 29, 30 e 31, que diversos médicos, neurologistas e neurocirurgião, observaram o requerente e analisaram os diversos relatórios de exames médicos, concluindo, a final, que o requerente não sofre de epilepsia, nem tem um risco elevado de vir a sofrer, e não sofre de hidrocefalia, muito menos crónica, sendo que a Marinha Portuguesa não se pronunciou sequer sobre estes relatórios de médicos da especialidade, nem concretamente sobre os exames médicos feitos ao requerente, por isso não avaliou a situação concreta do requerente nem a sua aptidão actual – e não futura – para o exercício de certas e determinadas funções, como lhe competia.

H - Daí que, que se concorde que a sentença tenha julgado o acto de homologação da JMRA carecido de fundamentação, porque as razões invocadas pela Marinha Portuguesa para sustentar a incapacidade do requerente não são claras; não identificam as suas restrições concretas para o desempenho das funções; imputam ao requerente um risco de epilepsia assente em meras estatísticas, não em dados clínicos referentes ao próprio; e imputam ao requerente hidrocefalia crónica, só porque tem colocado um shunt, sem cuidar de verificar se o mesmo é necessário, pelo que não se pode ter por fundamentada a incapacidade declarada ao requerente.

I - Aliás, a sentença vai ao encontro do que a mais recente jurisprudência dos tribunais superiores tem decidido relativamente à fundamentação dos pareceres de juntas médicas, conforme os acórdãos já citados pelo requerente na petição inicial, nomeadamente, o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 07.03.2002 (processo n.º 48335), in www.dgsi.pt, (“Estamos perante um juízo pericial complexo, expresso numa linguagem ultrassintética, precisa, técnica, como é próprio da histórias clínicas, envolvendo um diagnóstico e prognóstico baseados em elementos objectivos observados, intervindo, na conclusão, certamente alguns elementos subjectivos. Sendo a fundamentação variável em função de cada tipo de acto praticado, estando-se em face de um acto determinado por observação médica, em cujo parecer/conclusão se alicerça, teremos que julgar suficiente a fundamentação que, em tais pareceres se baseie, se os mesmos tiverem um carácter, o mais objectivamente possível, de acordo com as regras científicas aceites no caso em análise.”) e o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 06.06.2019 (processo n.º 2788/17.0BELSB), in www.dgsi.pt: (“Estes exames de avaliação ou de apreciação médica, devem apresentar-se, na maioria das vezes, sob a forma de um relatório ou parecer onde se descreve o resultado do ou dos exames efectuados e se interpreta esses mesmos resultados, elaborando-se uma conclusão devidamente fundamentada. Por conclusão devidamente fundamentada deverá entender-se a conclusão relativa aos diversos actos de avaliação médica, que contêm um esclarecimento concreto suficientemente apto para sustentar a decisão médica final, não podendo assentar em meros juízos conclusivos, sob pena de ficar prejudicada a compreensão da sua motivação. (…) Neste sentido, a fundamentação nos pareceres médicos, devem, sob pena de sofrerem de desvalor jurídico de anulabilidade, apresentar uma descrição clara, objetiva, pormenorizada e sistematizada das observações feitas e a indicação das fontes da informação; os conceitos usados devem ser definidos e os tempos verbais adequados à realidade do caso e rigor das informações, sendo que a medida e interpretação do dano deve ser isenta e imparcial, identificando-se os tipos/métodos de instrumentos utilizados (ex: escalas, tabelas, exames, etc.). Para mais acresce o facto, de que a função da junta médica, é saber dar resposta ao objectivo da avaliação, de forma imparcial e objectiva, e traduzir a complexidade da sua arte médica por palavras simples para que a possam apreciar sobre bases concretas, de modo a que a decisão administrativa final seja perceptível.”)

J - Assim, não é por assentar em pareceres médicos proferidos pelas juntas médicas da Armada que o acto homologatório se tem, por si só, como fundamentado, mesmo que os pareceres não avaliem a situação concreta do requerente; tal como também não é pelo facto de o parecer da JMRA ter sido tomado por unanimidade dos elementos (onde estava uma neurologista e um neurocirurgião - por sinal de aspecto bem mais jovem do que qualquer dos médicos civis consultados pelo requerente – e onde o médico assistente indicado pelo requerente, subscritor do relatório mencionado no ponto 5 dos factos assentes, não participou na tomada de decisão, com a qual aliás nunca concordou, ao contrário do que a recorrente quer fazer crer nos pontos 25º e 49º das suas alegações – conclusão I), que dá consistência à eventual fundamentação “clara e suficiente” do respectivo parecer, porque, na verdade, da especialidade médica envolvida, foi maior o número dos médicos que concluiu pela ausência de limitações físicas do requerente para o exercício das funções da sua classe e posto de engenheiro naval ramo de mecânica.

K - Por outro lado, é a própria Marinha Portuguesa que reconhece que, “(…) o Requerente, aquando do momento do exame JMRA se encontrava alegadamente bem e sem sintomas aparentes do acidente sofrido” e que tal “nada contradiz o facto de o mesmo ser detentor de um quadro particularmente delicado, que pode vir a reduzir com significativa margem de probabilidade, a sua capacidade laboral no exercício da profissão militar (…)” (ponto 53º das alegações), mas depois não concretiza quais “… as limitações que caracterizam o quadro clínico do Requerente, (que) indubitavelmente, se poderão vir a reflectir na sua actividade laboral…” e, sem essa concretização, não se compreendem as razões para, em concreto, o requerente ter limitações na actividade de engenheiro naval ramo mecânica, seja em situações de embarque, de stress, desgaste físico e psíquico ou qualquer outro!

L - Tal como se deixou plasmado na petição inicial, ainda hoje o requerente desconhece que problemas de saúde terá que o impedem de embarcar, mas … já não de mergulhar! (Cfr. Doc. 35 junto com a petição inicial), sendo, pois, bem patente a falta de fundamentação adequada da decisão que homologou o parecer da JMRA, que declarou que o requerente tem incapacidade para embarcar, motivo pelo qual foi tal acto anulado – e bem – pela sentença e que, por isso mesmo se deve manter.

M – Ainda sobre o controlo judicial do acto homologatório do parecer da junta médica, diz depois a recorrente Marinha Portuguesa que, nos encontramos no âmbito da discricionariedade técnica da administração que, por envolver conhecimentos técnicos e especializados, só em casos-limite, nomeadamente em caso de erro grosseiro de apreciação, pode ser fiscalizada pelo tribunal, acrescentando que o requerente não conseguiu provar que, no caso concreto, tenha havido avaliação técnica tão grosseiramente errónea que até para o cidadão comum tal seria evidente

N - Embora a Junta de Saúde Naval e a Junta Médica de Revisão da Armada sejam órgãos competentes para emitir pareceres de apreciação sobre “a aptidão física e psíquica para o exercício das funções relativas ao posto, classe e ou categoria profissional.”, tal não significa que essa apreciação seja insindicável, tal como tem vindo a ser considerado pela jurisprudência e doutrina recentes (mencionadas na petição inicial para a qual se remete) de que são exemplos os mais recentes acórdãos: Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 29.10.2020 (processo n.º 035/12.0BECBR) (é “errada” a ideia “(…) de que a Administração possui uma prerrogativa de apreciação da prova produzida em procedimento administrativo que consideram ser praticamente exclusiva e absoluta, apenas restando aos tribunais um papel residual e secundário para os casos extremos de erros grosseiros. Mas não é manifestamente assim. Um dos fundamentos de uma decisão justa é ela assentar, na medida do possível, nos factos tal como eles ocorreram na realidade. Ora, para alcançar essa verdade dos factos, os tribunais têm de dedicar tempo e cuidado à reconstituição dos factos objecto do processo, não devendo aderir acriticamente à versão da realidade dos factos de uma ou de outra das partes, ainda que uma delas seja a Administração. É que, se é verdade que o artigo 607.º, n.º 5, do CPC (aqui aplicável ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA) consagra o princípio da livre a apreciação da prova, não há como interpretar este princípio como conferindo ao julgador uma liberdade ilimitada de apreciação da prova, a qual incluiria a decisão de, pura e simplesmente, não a controlar – bastando, desde logo, para chegar a esta conclusão a leitura integral do mencionado n.º 5 –; e, sobretudo, não há que confundir este princípio com o exercício de poderes discricionários por parte da Administração.”) e Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 30.10.2020, (processo nº. 01303/16.8BEBRG) (I- Os juízos médicos realizados pelas juntas médicas de verificação de incapacidades e pelas comissões de recurso, são o resultado de uma avaliação técnica efetuada por elementos dotados de formação especializada. II- Não está vedado ao Tribunal a consideração da informação médica vertida no relatório pericial elaborado pelo INMLCF, que conclui de forma diferente da avaliação efetuada pela Comissão de Recursos, conquanto se trata de substituir um juízo médico por outro, e não do Tribunal se substituir aos peritos médicos. III- O monopólio da verdade médica não é exclusivo das juntas médicas, não se descortinando na lei nada que limite a liberdade de apreciação e valoração das provas só por estar em causa uma deliberação de uma junta médica, da mesma forma que a lei não exige qualquer formalidade especial para se provar um facto contrário ao que foi considerado pela junta médica.) (sublinhado nosso)

O - Ora, para se levar a cabo a reapreciação da avaliação médica realizada pela Marinha, o parecer da respectiva junta médica tem de ser susceptível de sindicância judicial, de modo a aferir se o mesmo padece de erro de apreciação, sob pena de denegação de justiça, o que pressupõe a realização de diligências instrutórias, nomeadamente de prova pericial, feita por médicos com igual competência, dado que a apreciação da aptidão física e psíquica para o exercício de funções se insere na chamada discricionariedade técnica.

P - Nos presentes autos, tal prova só não foi produzida porquanto, como decorre do despacho que antecede a sentença proferida, o conhecimento do invocado erro de apreciação constante da junta médica ficou prejudicado pela procedência do vício de falta de fundamentação; tal como, por outro lado, também não corresponde à verdade que o Tribunal a quo tenha reconhecido, na sentença, não ser possível aferir da existência de um qualquer erro, desde logo porque nem sequer é possível aferir da existência de erro grosseiro sem uma adequada fundamentação, que o tribunal entendeu – e bem – que não estava presente no acto de homologação, o que é bem diferente daquilo que a Marinha Portuguesa pretende retirar do que foi decidido.

Q - Porém, tendo em conta os relatórios médicos que foram juntos, é notório que, para concluir pela incapacidade do requerente, a Marinha Portuguesa partiu de pressupostos errados quanto ao seu estado de saúde, pois considerou que o mesmo tinha um risco acrescido de epilepsia e padecia de hidrocefalia crónica, o que, não resulta nem tem fundamento nos relatórios médicos juntos, pelo que a conclusão a que a Marinha Portuguesa chegou é, inevitavelmente, errada, o que poderá ser confirmado com uma perícia médica.

Assim, nada há a apontar à decisão que anulou o acto homologatório do resultado da JMRA que, pela sua legalidade, se deve manter.

R - Quanto à anulação do acto de exclusão da Escola Naval, a recorrente Marinha Portuguesa levanta sobretudo duas questões relacionadas com o fundamento do acto de exclusão da EN (considera que é a incapacidade do requerente e não a falta de aproveitamento escolar) e com a aplicação do princípio do aproveitamento do acto administrativo, para evitar o efeito anulatório por violação das normas relativas ao efeito suspensivo do recurso hierárquico.

S - No que respeita ao fundamento do acto de exclusão da Escola Naval, resulta da sentença, nomeadamente dos factos provados indicados sobre os números 13, 14 e 17, que a Escola Naval em 10/02/2020 notificou o requerente do despacho do seu Comandante com a intenção de excluir o requerente daquele estabelecimento de ensino “por não ter realizado estágio de embarque, como aluno do 5º ano do curso “Jorge Álvares” da Escola Naval, considerando as condições de exclusão previstas na alínea c) do artigo 200º da Portaria nº. 21/2014 de 31 de Janeiro, que publica em anexo o Regulamento da Escola Naval…”; após o exercício de audiência de interessados pelo requerente (ponto 14 dos factos provados), o requerente é notificado em 28/02/2020 de novo despacho do Comandante da EN (ponto 17 dos factos provados) que diz expressamente que mantém a exclusão do requerente, nos termos do artigo 200º da Portaria anteriormente mencionada (sem indicar alínea) mas referindo que o resultado da Junta médica impossibilitou a realização do estágio de embarque “condição necessária para concluir o mestrado”.

T - Resulta da leitura destes dois despachos que o fundamento invocado para a decisão de exclusão do requerente da EN é a falta de aproveitamento escolar por não ter realizado o estágio de embarque e foi sempre este fundamento para a exclusão que foi comunicado ao requerente, que com ele não concordou, motivo pelo qual o requerente informou, quer o Director de Ensino, quer o seu Comandante de Companhia, quer o Comandante do Corpo de Alunos que ia interpor recurso hierárquico para o Chefe de Estado Maior da Armada (CEMA) porque não se conformava com tal decisão – conforme alegou no artigo 37º da petição inicial.

U - E compreende-se porquê: quem na Escola Naval conviveu com o requerente depois do acidente, quer quando elaborou e defendeu a sua tese de mestrado, quer quando fez os estágios teórico-práticos, quer em qualquer outra situação em que o requerente se deslocava à EN, via como o requerente estava recuperado, em boa forma física e psíquica, a aguardar apenas que a junta médica se pronunciasse sobre a sua condição física para poder fazer o estágio de embarque; por isso quando a homologação do parecer da Junta de Saúde Naval foi publicada em 10/12/2019 (ponto 11 dos factos provados) apanhou todos de surpresa.

V - Até ser notificado do Processo Administrativo, já no âmbito da presente Intimação para Protecção de Direitos Liberdades e Garantias, o requerente desconhecia o documento do Comandante da EN que altera o fundamento da decisão de exclusão do requerente, conforme resulta dos pontos 22 e 23 dos factos provados, por isso, toda a explicação que a recorrente Marinha Portuguesa agora dá, para alterar o fundamento do acto de exclusão, não pode proceder porque foi declarado expressamente que a exclusão era por falta de aproveitamento (por falta do estágio de embarque) e o despacho definitivo sobre tal matéria diz expressamente que mantém a decisão de exclusão, sem alterar os fundamentos de facto ou de direito, pelo que tal despacho, de forma inequívoca, manteve também os fundamentos da decisão.

Foi esta decisão que o requerente impugnou!

W - Por outro lado, mesmo que se entenda que o acto de exclusão assentou no facto da incapacidade e no fundamento jurídico da falta de aproveitamento escolar, é sempre manifesto o erro nos pressupostos de direito, em virtude de a norma legal invocada para suportar a exclusão (alínea c) do n.º 1 do artigo 200.º do REN) nada ter que ver com o fundamento de facto que lhe esteve subjacente.

X – Alem disto, a anulação do acto de exclusão do requerente da Escola Naval teve também um problema formal, porque foi tomada sem respeito pelo efeito suspensivo que o recurso hierárquico necessário tem, nos termos do n.º 1 do artigo 110.º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 90/2015, de 29 de Maio e do artigo 189.º, n.º 1, do CPA, porque tendo o recurso hierárquico necessário da decisão homologatória da Junta de Saúde Naval, interposto em 28.01.2020, efeito suspensivo e tendo o acto de exclusão sido proferido em 28.02.2020 – ou seja, antes da homologação da JMRA, ocorrida em 12.03.2020-, foi desrespeitado o referido efeito suspensivo e também por este motivo se impõe a anulação do acto de exclusão.

Y – Em face disto, a Marinha Portuguesa vem alegar que se deve ter em atenção o princípio do aproveitamento do acto administrativo, consagrado no artigo 163º nº. 5 al. c) do CPA, dizendo que se confirmou que, mesmo que o Comandante da EN tivesse aguardado pela decisão da JMRA, a decisão não poderia ter sido outra.

Z – Só que o princípio do aproveitamento do acto administrativo não é sequer equacionável na situação em apreço porque só faz sentido considerar a possibilidade de aproveitamento do acto quando se conclui que o mesmo não padece de erro nos pressupostos, questão que, embora alegada, não chegou a ser analisada por se ter entendido que a incapacidade nem sequer está fundamentada, pelo que o acto de exclusão só poderia ser considerado válido se improcedesse o invocado erro nos pressupostos, relativamente à incapacidade, em que o mesmo assentou, o que não aconteceu, por o Tribunal ter entendido que a própria decisão de incapacidade não está fundamentada para se averiguar se houve erro ou não.

AA – Aliás, caso o erro nos pressupostos venha a ser reconhecido e declarado pelo tribunal, com o seu consequente efeito anulatório, o conteúdo do acto mudará o conteúdo na medida em que o Comandante da Escola Naval declarou no seu despacho de 28/02/2020 (ponto 17 dos factos provados) que, no caso de o órgão competente para avaliar a capacidade do requerente mudar de posição e se a vontade do requerente for de persistir em seguir a vida militar, então poderá exercer o direito previsto no artigo 160º do Regulamento da Escola Naval que consiste em repetir o ano, com a consequente possibilidade de concluir o mestrado, que é a efectiva razão que levou o requerente a requerer a presente Intimação, logo o conteúdo do acto pode efectivamente mudar.

BB - Em face do exposto se conclui que, também à luz do princípio do aproveitamento dos actos administrativos, não é possível manter o acto de exclusão da Escola Naval, pelo que muito bem se decidiu na sentença pela sua anulação por, para além do erro nos pressupostos analisado supra, ter também violado as normas que impõem o efeito suspensivo de que gozava o recurso hierárquico interposto pelo requerente.

CC – Por último, quanto à anulação do acto de indeferimento do pedido de estágio, tal acto tem apenas como fundamento o facto de o requerente não ter sido ainda notificado da exclusão (como resulta dos pontos 15 e 16 dos factos provados), o que é incompreensível; se já na petição inicial o requerente dizia não compreender esta decisão e o seu fundamento, por não se vislumbrar qualquer relação entre a notificação de exclusão e a realização do estágio de embarque, bem como por ser absolutamente ilógico indeferir o estágio de embarque por não ter sido notificada a exclusão, o certo é que o tribunal também não conseguiu apreender o alcance de tais fundamentos e decisão, pelo que, se está perante um caso de manifesta falta de fundamentação por o seu conteúdo não ser inteligível, nem para o destinatário do acto, nem para o tribunal que o deve sindicar.

DD - A recorrente ainda tenta, agora, introduzir uma fundamentação, misturando a falta de aproveitamento escolar com a eventual incapacidade do requerente, mas sem que tal explicação consiga sequer ter suporte no documento, sendo por isso uma inadmissível tentativa de fundamentação a posteriori que não tem correspondência com o conteúdo do acto, nem se mostra assente em qualquer fundamento jurídico, pelo que não pode ser atendível, pelo que também a anulação deste acto deve ser mantida por absoluta falta de fundamentação.

EE - Em face de todo o exposto só pode concluir-se que nada há a apontar às decisões de anular o acto de homologação do resultado da JMRA, por falta de fundamentação; de anular o acto que excluiu o requerente da Escola Naval, por violação de normas; de anular o acto de indeferimento do pedido de realização de estágio, por falta de fundamentação e, consequentemente, de condenar a recorrente a proferir novo parecer e respectivo acto homologatório, bem como nova decisão sobre o pedido de reconhecimento do direito à realização de estágio de embarque sem restrições, pois todas estas decisões que integram a sentença cumprem a lei e estão devidamente fundamentadas, devendo por isso, nesta parte, manter-se a sentença em todos os seus efeitos, tudo nos termos acima expostos (…)”.


*

A Entidade Demandada, ora Recorrida, notificada, veio contra-alegar o recurso interposto pelo Autor, para o que formulou as seguintes conclusões:

“A. Os segmentos decisórios da sentença recorrida favoráveis às pretensões do Recorrente foram objeto de recurso jurisdicional interposto pela Entidade Requerida, o qual foi admitido por despacho proferido em 23.12.2020 e cuja subida a este Venerando Tribunal foi já ordenada,

B. Pelo que os pressupostos em que o aqui Recorrente assenta a sua alegação podem não se manter quando o recurso jurisdicional interposto pela Entidade Requerida for apreciado e decidido.

C. Um estágio que, por caso fortuito ou de força maior ou qualquer outro motivo imprevisível ou inopinado, não tenha incluído qualquer tempo de navegação – o que apenas seria constatado depois de integralmente decorrido o período do concreto estágio realizado – sempre seria bem diferente de um estágio que, artificialmente planeado e preparado com esse intuito, se saiba imperativamente, a priori, não (poder) incluir tempo de navegação, por mais curto que este pudesse ser.

D. A preparação, até mental, exigida ao estagiário que não sabe se vai navegar ou não e a própria disposição deste em função desta incerteza, a pressão psicológica, a ansiedade que a mesma é suscetível de lhe causar, tudo isso – e mais – se perderia se o estagiário soubesse de antemão que, mais do que não haver planeamento de navegação atribuído no período de estágio à unidade naval a bordo da qual realizará esta fase da sua formação militar-naval – planeamento que, pelas mais diversas razões, pode ser alterado a qualquer momento –, iria realizar o seu estágio numa unidade autenticamente impossibilitada de navegar (seja pela sua própria natureza, seja pelo seu estado de reparação/manutenção, seja por determinação judicial ou administrativa).

E. Assim se compreende que é, em abstrato, possível que um estágio de embarque contabilize um tempo total de navegação de apenas quatro dias num período de várias semanas – mas esse facto não seria certo e seguro à partida;

F. Pelo contrário, um estágio à medida, como parece pretender o Recorrente, seria um estágio com garantia de não navegação.

G. Mantendo-se a impossibilidade de o Recorrente permanecer em plataformas instáveis e/ou sujeitas a impactos, nem num navio atracado poderá realizar o estágio de embarque.

H. É falaciosa a argumentação expendida pelo Recorrente, para desvalorizar a importância da realização do estágio de embarque para a formação militar-naval de um oficial de Engenharia Naval, ramo de Mecânica, e sustentar a possibilidade da sua substituição por um estágio em unidade naval sem planeamento de navegação atribuído ou mesmo em unidade em terra da Marinha, de que há oficiais desta área a desempenhar funções em unidades em terra, funções que, por isso, não envolvem qualquer navegação.

I. É que não disse o Recorrente que, pelo menos até ao posto de capitão-tenente, os oficiais de Engenharia Naval, ramo de Mecânica, cumprem comissões de embarque em unidades navais e, enquanto oficiais subalternos, todos alternam comissões em terra com comissões de embarque.

J. Não há, por isso, carreiras de oficial de Engenharia Naval, ramo de Mecânica, que se desenvolvam exclusivamente em unidades em terra,

K. Pelo que os “conhecimentos específicos que lhes são exigidos” e que, nas palavras do Recorrente, “pouco têm a ver com a situação efectiva de navegação” são sempre necessariamente adquiridos/consolidados em, e complementados com, sucessivas comissões de embarque a bordo de navios, com a duração acumulada de vários anos – variando, naturalmente, o tempo de navegação que cada um dos oficiais de Engenharia Naval, ramo de Mecânica, cumpre durante as comissões de embarque.

L. Constituem uma condição especial de promoção, de verificação cumulativa com outras, os tirocínios de embarque, nomeadamente constituídos por tempo de embarque e por tempo de navegação,

M. Contando-se por tempo de embarque “o que é prestado em navios armados e o oficial pertença à guarnição da força ou unidade naval ou, estando embarcado em diligência, desempenhe as funções que competem aos oficiais da respetiva lotação e ainda nas unidades auxiliares da Marinha definidas na lei ou por despacho do CEMA” e “o que é prestado a bordo de navios do Estado Português, de navios estrangeiros em exercício de funções em estado-maior internacional ou a bordo de navios estrangeiros ao abrigo de acordos ou protocolos com outras marinhas, em exercício de funções que competem aos oficiais da respetiva lotação”,

N. E por tempo de navegação “o que for realizado no mar e aquele que, efetuado dentro de barras, rios ou portos fechados, corresponda a navegação preliminar ou complementar da navegação no mar” – cfr. artigo 208.º, n.ºs 1, alíneas a) e b), 2, 3 e 5, do EMFAR.

O. E, por força do disposto no artigo 210.º, n.º 1, do EMFAR, os tirocínios de embarque apenas podem ser dispensados pelo Almirante Chefe do Estado-Maior da Armada a qualquer oficial, num só posto, que, por conveniência excecional do serviço, esteja impedido de os realizar.

P. Tudo isto concorre para a conclusão de que, ao contrário do que o Recorrente pretende fazer crer, não tem cobertura legal a tese de que um oficial de Engenharia Naval, ramo de Mecânica, pode desenvolver normalmente a sua carreira militar prestando serviço exclusivamente em unidades em terra.

Q. Ao contrário do que pretende o Recorrente, não será, de todo, inapropriado afirmar que a navegação é uma atividade nuclear do estágio de embarque,

R. Na medida em que permite ao estagiário consolidar e aplicar os conhecimentos teóricos apreendidos durante a sua formação académica e conhecer-se nas mais diversas situações funcionais em que poderá/deverá ver-se colocado no futuro, ao longo da sua carreira militar,

S. E à Marinha, enquanto ramo das Forças Armadas, necessitada de – e legalmente obrigada a – dotar-se de recursos humanos física e psiquicamente aptos a prestar serviço militar, aferir se o estagiário possui todas as competências intelectuais, técnico-militares, pessoais e sociais adequadas e necessárias ao desempenho de funções como oficial dos quadros permanentes da Marinha.

T. Não obstante a referência, no artigo 7.º, n.º 1, do Regulamento de Avaliação dos Discentes dos Ciclos de Estudos da Escola Naval, à existência de estágios em terra no âmbito das atividades externas complementares de ensino, tal não releva para o caso concreto do Recorrente.

U. É que, conjugando o disposto no n.º 1 do referido artigo com o plasmado no quadro 4 do anexo A.4 das normas regulamentares dos ciclos de estudos conducentes ao grau de mestre em Ciências Militares Navais, na especialidade de Engenharia Naval, ramo de Mecânica, conclui-se ser condição essencial para a obtenção do mestrado naquela área a realização do referido estágio de embarque.

V. A redação dada ao n.º 1 do mencionado artigo 7.º, no sentido de considerar a existência de outro tipo de estágios, cabe, isso sim, no escopo do campo referente a outros “Estágios e Tirocínios”, aos quais corresponde um total de 15 ECTS, campo esse previsto no quadro 4 do anexo A.4 das normas regulamentares, e não no campo relativo ao “Estágio Embarque”.

W. Daqui se extrai que, se o autor do referido Regulamento tivesse pretendido abarcar outras situações, designadamente possibilitar que os estágios em terra ou em unidades navais sem planeamento de navegação coubessem no escopo do campo relativo ao “Estágio Embarque”, tê-lo-ia dito de forma clara e expressa no normativo em questão, o que manifestamente não fez.

X. A razão de ser da redação dada ao artigo 7.º, n.º 1, do Regulamento de Avaliação dos Discentes dos Ciclos de Estudos da Escola Naval, conjugada com o estabelecido no quadro 4 do anexo A.4 das normas regulamentares dos ciclos de estudos conducentes ao grau de mestre em Ciências Militares Navais, na especialidade de Engenharia Naval, ramo de Mecânica, impõe, para a conclusão do curso com aproveitamento, a obrigatoriedade de realização do estágio de embarque.

Y. Acresce que a possibilidade de substituição do estágio de embarque nos termos pretendidos pelo Recorrente está literalmente excluída pelo teor do n.º 2 do mencionado artigo 7.º.

Z. Também a possibilidade, num caso como o do Recorrente, de realização do estágio de embarque em terra ou em unidades navais sem planeamento de navegação ao abrigo do estabelecido no Despacho do ALM CEMA n.º 35/17, de 17 de julho, está excluída.

AA. As normas vertidas no identificado despacho são aplicáveis a outro tipo de destinatários, externos à Marinha, e a outro tipo de estágios, concretamente aos estágios curriculares e aos estágios profissionais realizados no âmbito do Programa de Estágios Profissionais na Administração Central (PEPAC),

BB. Extraindo-se, portanto, do normativo em causa que os estágios dos cursos de mestrado integrado ministrados na Escola Naval, como é o caso daquele que o Recorrente teria necessariamente de realizar com aproveitamento para obter os 10 (dez) ECTS no total dos 60 (sessenta) ECTS de que necessita para concluir o curso, não são abrangidos pelo mencionado Despacho do ALM CEMA n.º 35/17, de 17 de julho.”.

Pede que seja negado provimento ao recurso e, em consequência, seja mantida a sentença recorrida quanto ao segmento decisório constante do ponto (vi), com as legais consequências.


*

O Ministério Público, notificado, não emitiu parecer, nada tendo dito ou requerido.

*

O processo vai sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, à Conferência para julgamento, por se tratar de um processo urgente.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelos Recorrentes, sendo o objeto dos recursos delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

As questões suscitadas em relação a cada um dos recursos, são as seguintes:

A. Recurso interposto pela Marinha Portuguesa

1. Erro de julgamento de direito no tocante à falta de fundamentação do ato de homologação do resultado da Junta Médica de Revisão da Armada (JMRA);

2. Erro de julgamento de direito no tocante ao vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito, por errada escolha da norma aplicável, em relação ao ato de exclusão da Escola Naval e ao decidir-se pela não aplicação do princípio do aproveitamento do ato impugnado, nos termos do artigo 163.º, n.º 5 do CPA, quanto ao ato de exclusão, por ter sido decidido quando ainda estava pendente o recurso hierárquico do ato de homologação do parecer da Junta de Saúde Naval (JSN);

3. Erro de julgamento de direito, em relação à falta de fundamentação do ato de indeferimento do pedido de realização do estágio de embarque.

B. Recurso interposto pelo Autor:

1. Nulidade, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, d) do CPC, por ter existido o conhecimento do pedido subsidiário, para o caso de o pedido principal ser julgado improcedente, quando este foi julgado procedente;

2. Erro de julgamento quanto ao conhecimento do pedido subsidiário, por défice instrutório, por falta de produção de prova e violação do artigo 204.º do EMFA e do artigo 88.º do Regulamento da Escola Naval (REN).

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos:

“1. Em 11.10.2013, o Requerente incorporou na Marinha, frequentando, desde então, o curso de mestrado integrado em ciências militares navais, na especialidade de engenharia naval, ramo de mecânica, na EN (cf. cópia do extracto da lista da Armada junta a fls. 239 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

2. Em 04.09.2017, o Requerente foi promovido ao posto actual de aspirante a oficial (cf. cópia do extracto da lista da Armada junta a fls. 239 dos autos no SITAF).

3. Em 06.12.2017, o Requerente sofreu um acidente de viação (cf. cópia da participação do acidente junta a fls. 53-60 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

4. Entre 07.12.2017 e 17.01.2018, o Requerente esteve internado na Unidade de Cuidados Intensivos Neurocríticos do Hospital de São José, daí tendo sido transferido para o serviço maxilo-facial do mesmo hospital, tendo tido alta hospitalar em 23.02.2018 (cf. cópia da nota de alta junta a fls. 61-62 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

5. Por essa ocasião, o Requerente havia frequentado com total aproveitamento os quatro primeiros anos do curso de mestrado integrado em ciências militares navais, na especialidade de engenharia naval, ramo de mecânica (cf. cópia da certidão junta a fls. 72-75 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

6. No ano lectivo de 2018/2019, o Requerente frequentou o 5.º ano do referido curso de mestrado, aí tendo feito, com aproveitamento, os estágios teóricos- práticos previstos no respectivo currículo desse mesmo ano e apresentado a sua dissertação de mestrado (cf. cópia da certidão junta a fls. 72-75 dos autos no SITAF).

7. Para a conclusão do curso de mestrado integrado em ciências militares navais, na especialidade de engenharia naval, ramo de mecânica, ao Requerente falta fazer o “Estágio Embarque”, correspondente a 10 créditos de um total de 60 que tem de obter no 5.º ano, respeitando os créditos remanescentes ao estágio (15) e dissertação (35) a que se aludem no ponto anterior (cf. cópia da estrutura curricular e plano de estudos do curso junta a fls. 76-78 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

8. Nos termos do respectivo plano de estágio, o Estágio de Embarque do curso de mestrado integrado em ciências militares navais, na especialidade de engenharia naval, ramo de mecânica, tem a duração de 7 semanas e visa, essencialmente, “Desenvolver as competências técnico-militares e de liderança em contexto real de trabalho (navio operacional) adequadas ao futuro desempenho do cargo de oficial subalternos a bordo de navios de guerra”, mais se estabelecendo que:

“(…) 3. OBJECTIVOS

O estágio tem como objectivos:

1. Proporcionar aos aspirantes um conhecimento directo dos problemas de organização e de chefia.

2. Praticar os ensinamentos adquiridos durante o curso, a fim de os adaptar gradualmente ao desempenho das funções e às responsabilidades que cabem aos oficiais subalternos da classe de Engenheiros Navais do ramo de Mecânica.

3. Adquirir capacidades e perícias em diferentes áreas designadamente R.H. e material.

4. Desenvolver competências não-técnicas de natureza pessoal, intelectual e social. (…)

5. ORIENTAÇÃO DO ENSINO/ TREINO

a. O estágio é de natureza essencialmente prática e teórico-prática a fim proporcionar aos alunos, em contexto de trabalho, a prática assistida dos aspirantes - com progressiva autonomia - dos conhecimentos e competências adquiridas anteriormente.

b. O oficial em estágio também deverá ser o dinamizador deste processo procurando as oportunidades para acompanhar as diversas situações propícias à aprendizagem

6. AVAI.IAÇÃO

Será privilegiada a avaliação formativa no decorrer do estágio com a finalidade de aferir os conhecimentos e competências adquiridas.

a. Avaliação do Embarque.

(1) O embarque é objecto de avaliação individual quantificada.

(2) A classificação tem a forma de um valor inteiro de 0 a 20 e é atribuída por um júri constituído pelo Comandante do navio e pelos oficiais designados por este.

(3) Para a atribuição desta classificação é considerado o relatório do embarque elaborado e apresentado por cada aluno no final do Estágio, o desempenho da função e a atitude geral.

b. Avaliação da Aptidão Militar-Naval

1. As qualidades militar - navais, cívicas e morais dos alunos são objecto de avaliação contínua, durante o período de embarque.

2. No final do período de embarque é preenchido o Boletim de Avaliação da Aptidão Militar - Naval (BAVAM). de acordo com as regras estabelecidas no PEESCOLNAV 121.

7. VALIDACÃO DO ESTÁGIO

Admite-se que o estágio possa decorrer em navios diferentes tendo em vista permitir a execução das diferentes tarefas listadas.

O estágio não será validado se não forem realizadas as tarefas consideradas nucleares” (cf. cópia do plano de estágio junta a fls. 280-285 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

9. Em 04.11.2019, o Requerente foi sujeito a junta médica, aí tendo sido alvitradas “Restrições permanentes no desempenho”, tendo por base a “INCAPACIDADE PERMANENTE PARA O DESEMPENHO DE ALGUMAS FUNÇÕES RELATIVAS AO POSTO E CLASSE, NOMEADAMENTE TODAS AS TAREFAS QUE IMPLIQUEM ESFORÇOS FÍSICOS DE CONTACTO; PERMANÊNCIA EM PLATAFORMAS INSTÁVEIS E/OU SUJEITAS A IMPACTOS (EMBARQUE); TRABALHO EM ALTURA (RISCO DE QUEDA); TRABALHO EM CONTACTO DIRECTO COM MÁQUINA E O AFASTAMENTO DA REGULAR FREQUÊNCIA DA CONSULTA DE ESPECIALIDADE. MAS APTO PARA O DESEMPENHO DE OUTRAS A VERIFICAÇÃO DA APTIDÃO FÍSICA E PSÍQUICA PARA EFEITOS DE INGRESSO NO QUADRO PERMANENTE, PROMOÇÃO E FREQUÊNCIA DE CURSOS, DE ACORDO COM O ARTIGO Nº 62 ALÍNEA B) DO EMFAR CONJUGADO COM A PORTARIA Nº 730/99 DE 7 DE SETEMBRO, TABELA B E C, É DA COMPETÊNCIA DAS JUNTAS MÉDICAS DA ARMADA” (cf. cópia da ficha de aptidão para o serviço junta a fls. 79 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

10. Em 18.11.2019, o Requerente apresentou um requerimento junto da Requerida, exercendo o seu direito de audiência relativamente à ficha de aptidão a que se alude no ponto anterior, aí defendendo que as conclusões ali formuladas não estão demonstradas com base em factos concretos e que, essencialmente, as mesmas não correspondem com os exames médicos a que o mesmo foi sujeito (cf. cópia do requerimento junta a fls. 80-87 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

11. Em 10.12.2019, foi proferido despacho pelo Senhor Director de Pessoal da Requerida, homologando a opinião da Junta de Saúde de Naval que, em sessão de 05.12.2019, e após a reapreciação da situação clínica do Requerente, reiterou as conclusões a que se aludem no ponto 9. supra (cf. cópia da publicação junta a fls. 88 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

12. Em 28.01.2020, o Requerente interpôs recurso hierárquico do despacho homologatório a que se alude no ponto anterior, aí reclamando uma reavaliação médica por junta médica de revisão por médicos da especialidade de neurologia e neurocirurgia, a revogação do referido acto e a sua substituição por outro que homologue novo parecer que declare que não tem incapacidade para o exercício das suas funções (cf. cópia da petição de recurso junta a fls. 89-104 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

13. Em 10.02.2020, o Requerente foi notificado da intenção da sua exclusão da EN “por não ter realizado estágio de embarque, como aluno do 5º ano do curso “Jorge Álvares” da Escola Naval, considerando as condições de exclusão previstas na alínea c) do n.º 1 do artigo 200º da Portaria n.º 21/2014, de 31 de Janeiro, que publica em anexo o Regulamento da Escola Naval” e instado a, querendo, pronunciar-se por escrito, no prazo de 10 dias (cf. cópia do termo de notificação junta a fls. 110 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).04.03

14. Em 19.02.2020, o Requerente apresentou um requerimento junto da EN, aí pugnando pela sua manutenção na EN e que se aguardasse pela conclusão do recurso hierárquico a que se alude no ponto 12. supra, autorizando-se posteriormente a realização de estágio de embarque e a conclusão do curso de mestrado por a falta de realização de tal estágio não lhe ser imputável (cf. cópia do requerimento junta a fls. 111-116 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

15. Em 19.02.2020, o Requerente apresentou um outro requerimento junto da EN, solicitando autorização para realizar o estágio de embarque em falta “logo que tal lhe seja permitido pela JMRA”, ao abrigo do artigo 160.º, n.os 3 e 5, do REN (cf. cópia do requerimento junta a fls. 117-118 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

16. Em 28.02.2020, foi proferido despacho pelo Senhor Comandante da EN, indeferindo o pedido a que se alude no ponto anterior, na medida em que:

1. Tal como refere no requerimento, o requerente não realizou o estágio de embarque, condição necessária para concluir o curso de Mestrado (…) e nesta sequência reprova por falta de aproveitamento escolar, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 200.º do Regulamento da Escola Naval (…).

2. Muito embora tendo presente o prazo previsto no n.º 5 do artigo 160.º do REN, cabe informar que na presente data o requerente não foi, ainda, notificado da exclusão, razão pela qual indefiro o pedido” (cf. cópia do despacho junta a fls. 119 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

17. Em 28.02.2020, foi proferido novo despacho pelo Senhor Comandante da EN relativo ao requerimento a que se alude no ponto 14. supra, cujo teor se transcreve parcialmente infra:

1. Mantenho a exclusão do ASP L......., nos termos do artigo 200º do Regulamento da Escola Naval (…), considerando que, o órgão competente, Junta de Saúde Naval, se pronunciou pela incapacidade do AASP L....... para embarcar, atendendo às suas condições físicas e psíquicas, o que consequentemente impossibilitou a realização do respetivo estágio de embarque, condição necessária para concluir o mestrado (…).

2. Mais informo que, na eventualidade do órgão competente para avaliar a capacidade física e psíquica do ASP L....... ser alterada, e a manter- se a vontade do ASP L....... em seguir a vida militar, poderá este exercer o direito previsto no artigo 160.º do REN” (cf. cópia do despacho junta a fls. 120 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

18. Em 04.03.2020, houve lugar a reunião da junta médica de revisão da Armada, composta, entre outros, por médicos das especialidades de neurocirurgia e neurologia, bem como por médico assistente indicado pelo Requerente, a qual, por unanimidade, deliberou que “EM CONFORMIDADE COM A “LEGIS ARTIS” DE ATOS MÉDICOS PERICIAIS EM LOGÍSTICA SANITÁRIA (NAVAL) E ESPECIALIDADES DE NEUROLOGIA E NEUROCIRURGIA, CONCLUI-SE QUE O MILITAR EM APREÇO APRESENTA INCAPACIDADE PERMANENTE PARA O DESEMPENHO DE ALGUMAS FUNÇÕES RELATIVAS AO POSTO E CLASSE, NOMEADAMENTE TODAS AS TAREFAS QUE IMPLIQUEM ESFORÇOS FÍSICOS DE CONTACTO; PERMANÊNCIA EM PLATAFORMAS INSTÁVEIS E/OU SUJEITAS A IMPACTOS (EMBARQUE); TRABALHO EM ALTURA (RISCO DE QUEDA) E O AFASTAMENTO DE CUIDADOS MÉDICOS DIFERENCIADOS PRÓXIMOS”, porquanto:

ALUNO DA ESCOLA NAVAL (ASP. OFICIAL DA CLASSE EN-MEC) COM 24 ANOS DE IDADE.

VÍTIMA DE ACIDENTE DE VIAÇÃO (07DEZ17 – CHOQUE FRONTAL POR MOTOCICLO) DO QUAL RESULTOU TRAUMATISMO CRANIANO (CONTUSÃO CEREBRAL FRONTAL) COM HEMORRAGIA SUBARACNOIDEIA COMPLICADO DE QUADRO DE HIDROCEFALIA E COMA PROLONGADO. COLOCADA DERIVAÇÃO VENTRICULO PERITONEAL DEFINITIVA EM 08JAN18 E REALIZAÇÃO DE TRAQUESTOMIA ENTRE 20DEZ17 E 23JAN18, TENDO HAVIDO COMO INTERCORRENCIA PNEUMONIA DO LOBO INFERIOR DTO. RESULTOU AINDA DO ACIDENTE LESÃO AXONAL DO PLEXO BRAQUIAL ESQ; LESÃO DO OLHO ESQUERDO, FRATURAS MÚLTIPLAS DOS OSSOS DA FACE (PIRÂMIDE NASAL, CORNETOS, SEIOS MAXILAR, ETMOIDAL E ESFENOIDAL, MANDIBULA), FRATURA DO RADIO E CÚBITO (BILATERAL). INTERNAMENTO NA UCIP/NEUROCRITICOS E SERVIÇO DE MAXILO FACIAL (SMF) DO HSJ, TENDO ALTA CLÍNICA DO SMF A 28FEV18. PRESENTE A JSN EM 12/4/18, FOI-LHE ATRIBUÍDA ITA POR 60 DIAS, SEGUIDA DE ITP ATÉ 04NOV19, ALTURA EM QUE É RECONHECIDA IPP.

A EVOLUÇÃO CLÍNICA (CONFORME PLANO DE TRATAMENTO E REABILITAÇÃO PROPOSTO PELA COMPANHIA DE SEGUROS – T.......) É LENTA MAS VERIFICANDO-SE UMA PROGRESSIVA MELHORIA, APESAR DO ESTABELECIMENTO DE ALGUMAS SEQUELAS.

EM SEDE DA PRESENTE SESSÃO DE JUNTA MÉDICA, FORAM APURADAS AS SEGUINTES CONCLUSÕES:

- RISCO PARA O REGRESSO À ATIVIDADE:

- HIDROCEFALIA CRÓNICA(G91) (CONTROLADA ATUALMENTE ATRAVÉS DA COLOCAÇÃO DE DVP E QUE SE CONSIDERA NECESSÁRIA E DEFINITIVA (Z98.2).

ATENTO A LITERATURA MÉDICA, A PRESENÇA DA DVP, IMPLICA UM RISCO DE DISFUNÇÃO DO SISTEMA (AO LONGO DE TODA A VIDA) COM CONSEQUENTE DESCOMPENSAÇÃO DA HIDROCEFALIA PREVIAMENTE CONTROLADA. ESTÁ PUBLICADO UM RISCO DE DISFUNÇÃO NO CASO DE HIDROCEFALIA GERAL (TODAS AS CAUSAS DE HIDROCEFALIA) DE 22% AOS QUATRO ANOS, 46% AOS 9 ANOS E 84% AOS 20 ANOS. NO SUBGRUPO DA HIDROCEFALIA PÓSTRAUMÁTICA, ESTÁ PUBLICADO UM RISCO DE DISFUNÇÃO DE 60% AOS 5 ANOS. ESTES DADOS EM CONTEXTO NÃO MILITAR, DENOTAM POR SI SÓ, A EXISTÊNCIA DE UM RISCO ACRESCIDO DE EVENTUAL NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO CIRÚRGICA URGENTE (PARA REVISÃO DA DVP). ESTA CIRCUNSTÂNCIA É ESPECIALMENTE GRAVE EM SITUAÇÃO DE EMBARQUE, AFASTADO DE CENTRO NEUROCIRURGICO.

A CONDIÇÃO MILITAR IMPLICA UM RISCO ACRESCIDO DE TRAUMATISMO DIRETO SOBRE O SISTEMA DE DVP, NOVAMENTE COM RISCO DE DISFUNÇÃO DO MESMO.

- RISCO AUMENTADO DE EPILEPSIA PÓS-TRAUMÁTICA: AS ALTERAÇÕES ESTRUTURAIS PÓS-TRAUMÁTICAS DOCUMENTADAS EM EXAME DE IMAGEM (LESÕES CLÁSTICAS CORTICO-SUBCORTICAIS E DEPÓSITOS DE HEMOSSIDERINA CORTICAIS) CONDICIONAM RISCO AUMENTADO DE EPILEPSIA FUTURA RELATIVAMENTE À POPULAÇÃO EM GERAL (NA LITERATURA PUBLICADA A PREVALÊNCIA DE EPILEPSIA APÓS UM TRAUMATISMO CRÂNIO-ENCEFÁLICO GRAVE É SUPERIOR A 5%, E O RISCO É PELO MENOS CINCO VEZES SUPERIOR AO DA POPULAÇÃO EM GERAL), RISCO QUE É AGRAVADO TAMBÉM PELA PRESENÇA DA DVP.

ADICIONALMENTE AS CARACTERÍSTICAS DAS MISSÕES DE EMBARQUE TÊM INERENTES CIRCUNSTÂNCIAS QUE PODERÃO FAVORECER ESTE RISCO ACRESCIDO DE BASE, NOMEADAMENTE PELA PRIVAÇÃO DE SONO E STRESS SIGNIFICATIVO QUE IMPLICAM.

- DEVEMOS AINDA CONSIDERAR QUE AS MISSÕES DE EMBARQUE, PELAS SUAS ESPECIFICIDADES, ACARRETAM DIFICULDADES DE ASSISTÊNCIA MÉDICA DIFERENCIADA EM CASO DE OCORRÊNCIA DE QUALQUER DAS COMPLICAÇÕES ACIMA DESCRITAS.

- EVENTUAIS RESTRIÇÕES NO DESEMPENHO:

- PERMANÊNCIA EM PLATAFORMAS INSTÁVEIS E/OU SUJEITAS A IMPACTOS (EMBARQUE)

- ESFORÇOS FÍSICOS DE CONTACTO;

- TRABALHO EM ALTURA (RISCO DE QUEDA)

- AFASTAMENTO DE CUIDADOS MÉDICOS DE PROXIMIDADE.” (cf. cópia da acta junta a fls. 106-109 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

19. Em 12.03.2020, foi proferido despacho pelo Senhor Almirante Chefe do Estado-Maior da Armada, homologando o resultado da junta médica de revisão a que se alude no ponto anterior (cf. cópia da publicação junta a fls. 105 dos autos o SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

20. Em 27.05.2020, a decisão a que se alude no ponto anterior foi objecto de publicação (facto confessado, cf. artigo 13.º da douta resposta apresentada).

21. Em 01.07.2020, o Requerente interpôs recurso hierárquico das decisões a que se aludem nos pontos 16. e 17. supra, aí peticionando a sua revogação e substituição por outras que lhe permitissem realizar o estágio de embarque numa unidade naval sem planeamento de navegação atribuído no período de estágio ou noutra unidade da Marinha (cf. cópia da petição de recurso junta a fls. 121-138 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

22. Em 28.08.2020, o Senhor Comandante da EN remeteu uma nota ao Senhor Almirante Chefe do Estado-Maior da Força Armada, pronunciando-se sobre o recurso hierárquico a que se alude no ponto anterior e aí dando conta de que:

“(…) 6. Dispõe o artigo 200.º do Regulamento da Escola Naval (REN), aprovado pela Portaria n.º 21/2014, de 31 de janeiro, que os alunos são excluídos da frequência daquele estabelecimento de ensino quando, entre outras situações, por faltas ou por incapacidade. No caso em apreço não estamos perante a situação de faltas mas perante situação de incapacidade.

7. Tal situação remete de imediato para o artigo 204º do REN, que dispõe que os alunos que durante a frequência dos cursos revelem falta de aptidão física ou outra incapacidade para a carreira a que se destinam, são submetidos à apreciação da Junta de Saúde Naval, mediante proposta do Comandante, com a eventual consequência de abate por incapacidade para o serviço.

8. Face ao que antecede, o ASPOF não realizou o estágio de embarque por inaptidão confirmada pela JMRA. Sendo este uma unidade curricular do mestrado integrado em ciências militares navais - ramo de engenharia naval requerida para a conclusão com aproveitamento do referido ciclo de estudos, e não estando prevista nenhuma outra forma de compensação pela não realização do estágio, o discente em causa não consegue concluir o mestrado em conformidade com o plano de curso em vigor, pelo que, nos termos do REN, não existe alternativa à exclusão do respetivo curso e consequentemente, por imperativo legal, o abate ao corpo de alunos.” (cf. cópia da nota junta a fls. 312-313 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

23. A nota a que se alude no ponto anterior não foi notificada ao Requerente (cf. processo administrativo).

24. Em 01.10.2019, foi elaborado relatório por médico neurocirurgião do Hospital das Forças Armadas, cujo teor se reproduz parcialmente infra:

O Doente, em epígrafe sofreu em Dezembro de 2017 um grave T.C pelo que foi ventilado e tratado em UCI devido a contusão cerebral frontal bilateral com HSA difusa complicada com uma Hidrocefalia, tendo-lhe sido colocado um Shunt Ventrículo peritoneal.

Recuperou lentamente e hoje apresenta-se autónomo sem aparentes deficites motores ou sensitivos.

A nova R. Magnética feita em julho de 2019, apresenta múltiplas imagens sequelares (vide Relatório) resultantes do referido traumatismo, e que, passados quase 2 anos após o acidente, não irão desaparecer, assim como a necessidade de manter o shunt funcionante.

Em face do exposto, entendemos que o doente não deve ter uma vida militar embarcado, pois existe sempre o risco do shunt deixar de funcionar, subitamente, devido a uma pequena intercorrência, o que exigiria uma intervenção cirúrgica de urgência; de igual modo em situação de stress ou grande consaço [sic] físico há o risco de fazer uma crise convulsiva.” (Cf. cópias do relatório médico e relatório de ressonância magnética juntas a fls. 151-152 dos autos no SITAF, documentos que se dão por integralmente reproduzidos).

25. Em 24.11.2019, foi elaborado relatório por médico neurologista, cujo teor se reproduz parcialmente infra:

Na qualidade de NEUROLOGISTA e sobre e sobre os dois critérios apresentados pela Junta de Saúde Naval como impeditivos do embarque do Aspirante a Oficial N........ N........, considero necessária a análise da fisiopatologia dessas entidades neurológicas, que passo a expor:

1. Sobre a Hidrocefalia, importa dizer que se trata de um quadro patológico caracterizado pelo aumento da quantidade de Líquido Céfalo-Raquidiano (LCR) no Sistema Ventricular Cerebral;

1.1. O Sistema Ventricular Cerebral é constituído por dois Ventrículos Laterais, cavidades situadas no interior dos hemisférios cerebrais, onde é produzido o LCR, que daí passa ao III Ventrículo, saindo deste por um estreito canal, o Aqueduto de Sylvios, para o IV Ventrículo e donde drena finalmente para o exterior do cérebro, para cumprir a sua função de envolvimento protector da estrutura cerebral. Com um volume médio de cerca de 150 mL e uma pressão habitual de cerca de 1/6 do valor da Tensão Arterial sistémica média;

1.2. A Hidrocefalia pode surgir de entre outras causas, pela obstrução à normal circulação do LCR neste sistema, determinando assim a sua acumulação e consequente quadro de Hipertensão Intracraneana (HIC). No caso dos Traumatismos Craneoencefálícos (TCE), essa obstrução pode situar-se no Aqueduto ou nos orifícios ventriculares por coágulos sanguíneos ou pelo edema pós-traumático das paredes do Aqueduto;

1.3. Contudo, ainda que a instalação deste processo possa ser aguda, qualquer que seja a sua etiologia, o seu quadro clínico não surge com grande dramatismo, mas sim de forma multo insidiosa, iniciando-se por cefaleias progressivas, a que se associam posteriormente apatia, sonolência, alterações mentais, vómitos e só mais tarde, alterações da consciência com coma e sinais de disfunção neurovegetativa como hipertensão e bradicardia, conduzindo inexoravelmente à morte, senão solucionado com o procedimento cirúrgico de colocação de um Shunt;

1.4. A duração do processo pode demorar de muitos dias ou até meses, não só devido à baixa pressão do sistema ventricular, assim como à capacidade de compensação através da absorção de algum LCR excessivo por parte do parênquima cerebral;

1.5. Assim é falacioso considerar o risco de aparecimento de Hidrocefalia, qualquer que seja a sua etiologia, seja por disfunção do Shunt Ventrículo- Peritoneal, seja pela ocorrência de um Traumatismo Craneano minor com sangramento intraventricular, como uma emergência com necessidade correcção imediata, já que a sua história natural é de longe mais longa que qualquer tempo de viagem num embarque da Marinha Portuguesa.

2. Sobre a aludida hipótese de Epilepsia, é importante saber que:

2.1. O diagnóstico clínico de Epilepsia exige a existência de mais que uma Crise Convulsiva;

2.1.1. Na ausência de Crises o diagnóstico de Epilepsia é excluído, mesmo com a existência de anomalias eletroencefalográficas (EEG) ou a toma de medicação antiepiléptica.

2.2. A toma de medicação anticonvulsiva, por razões protocolares, ainda que em dose terapêutica, não permite o diagnóstico de Epilepsia ou inferir mesmo das suas consequências;

2.2.1. A prescrição protocolar de anticonvulsivos como o Levetiracetan, nos TCE justifica-se, segundo o Professor Dr. J....... e colaboradores, para o controlo da disfunção bioquímica que se encontra na génese das Crises Convulsivas precoces (até ao fim da 13 semana), cujo mecanismo é distinto do das Crises Convulsivas tardias decorrentes da glíose cicatricial meningo-cerebral e para o qual a citada medicação não possui efeito preventivo;

2.2.2. A toma contínua e prolongada de medicação anticonvulsiva seja por Epilepsia ou outra patologia, obriga à sua supressão gradual, sob pena de originar Convulsões por Abstinência Medicamentosa.

2.3. Por outro lado, é favorável à exclusão do diagnóstico de epilepsia, o facto de o exame de Electroencefalografia (EEG) resultar sem evidência de alterações sugestivas de comicialidade.

2.4. As lesões com potencial epileptogéneo são as localizadas a nível do córtex cerebral;

2.4.1. As lesões Subcorticals ou profundas não têm efeito epileptogéneo;

2.4.2. O Hematoma Subdural, colecção liquida intracraneana e extra cerebral, decorrente de lesões traumáticas pode induzir Crises Convulsivas, mas só se tiverem efeito compressivo sobre o córtex cerebral e consequentemente com indicação de terapêutica cirúrgica;

2.4.3. Os depósitos de Hemossiderina são indicadores da existência no passado de sangue nessa localização e por si só desprovidos de efeito epileptogéneo.

2.5. Assim, após a suspensão progressiva e total da medicação, como é recomendado, o risco de Crise Convulsiva é estatisticamente idêntico ao da população normal, incluindo os casos de convulsões decorrentes de excessos ou abstinência abrupta, de hábitos alcoólicos ou medicamentosos, ou privações significativas do sono;

2.5.1. Isoladamente o “esforço físico", mesmo que exagerado, não é considerado como desencadeador de Crises Convulsivas e apenas se associado a desidratação grave, outras alterações metabólicas ou patológicas, pode ser causa de Convulsões.

Em conclusão e com base no exposto, considero que o Aspirante a Oficial N........ N........, já não apresenta Hidrocefalia obstrutiva e nunca teve Epilepsia, pelo que numa óptica de SAÚDE OCUPACIONAL, informa que o mesmo, não sofre de qualquer tipo de limitação para o desempenho de todas tarefas que impliquem esforços físicas de contacto; permanência em plataformas instáveis e/ou sujeitas a impactos (embarque); trabalho em altura; trabalho em contacto directo com máquina” (cf. cópia do relatório médico junta a fls. 153-154 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

26. Em 24.05.2018, 14.01.2019 e 07.01.2020, o Requerente foi sujeito a uma tomografia computorizada crânio-encefálica e duas ressonâncias magnéticas crânio-encefálicas (cf. cópias dos respectivos relatórios juntas a fls. 155-159 dos autos no SITAF, documentos que se dão por integralmente reproduzidos).

27. Em 24.03.2019, 29.05.2019 e 03.12.2019, o Requerente foi sujeito a três encefalogramas por três médicos neurologistas distintos, os quais concluem pelo “Traçado com características dentro dos limites da normalidade”, pela “ausência de alterações epileptiformes” e que “Não se registou actividade epilética interictal ou ictal (…) ou de outra natureza”, respectivamente (cf. cópias dos relatórios médicos juntas a fls. 160-161 e 163 dos autos no SITAF, documentos que se dão por integralmente reproduzidos).

28. Em 07.11.2019, foi elaborado relatório por médico neurologista do Hospital Lusíadas do Porto, cujo teor se transcreve parcialmente infra:

Para os devidos eleitos declaro que o utente supracitado de 24 anos, aspirante oficial sofreu traumatismo craniano em Dezembro de 2017 do qual recuperou sem sequelas neurológicas, cognitivas ou emocionais, tendo até retomado e completado em Setembro 2019 o plano curricular na Escola Naval, faltando apenas o estagio de embarque.

O utente tem actividade física regular com pratica de desporto sem qualquer limitação. Esta medicado com levetiracetam, e em fase de desmame, por profilaxia de crises convulsiva, nunca tendo havendo registo clinico destas crises. Realizou inclusivamente duas EEG que não revelam qualquer actividade paroxistica.

Para controlo de hidrocefalia pós-traumatica em fase aguda foi realizada DVP em 9 de Janeiro de 2018. A RM cerebral realizada em 18 de Julho de 2019 mostra um sistema ventricular de configuração e tamanho normais. Atendo ao caracter agudo da fisiopatologia da hidrocefalia pós-traumatica, e da sua historia natural, é muito provável que o utente não esteja depende do funcionamento da derivação ventriculo-peritoneal, podendo até esta ser retirada sem qualquer problema adicional, não fazendo contudo sentido submetê-lo a essa cirurgia.

Em conformidade, não existe nem risco acrescido de crise convulsiva nem risco de disfunção de derivação ventriculo-peritoneal com repercussão clinica, pelo que o Nuno L....... apresenta robustez fisica e mental suficiente para poder estar embarcado sem qualquer limitação.” (cf. cópia do relatório médico junta a fls. 162 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

29. Em 29.02.2020, foi elaborado relatório por médico neurologista do Lab- Neurobiologia A......, Lda., o qual conclui que:

1. Não existem critérios para se estabelecer um diagnóstico de Epilepsia, nem indicadores neurofisiológicos específicos de epileptogenicidade;

2. O exame neurológico não evidencia sinais neurológicos focais major e o estudo das funções nervosas superiores é normal (avaliação cognitiva normal).

3. O doente não apresenta risco elevado de vir a desenvolver crises epilépticas - embora o doente tenha tido um TCE grave, não teve crises epilépticas na fase aguda, nem posteriormente nestes últimos 2 anos, não apresenta sinais neurológicos focais ou neurocognitivos, a RM não apresenta áreas focais extensas e a avaliação neurofisiológica (EEG de 24 horas) não apresenta actividade epiléptica.” (cf. cópia do relatório médico junta a fls. 167 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

30. Em 20.02.2020, foi elaborado relatório por médico neurologista da Casa de Saúde de Santa Filomena, o qual declara, entre outras coisas, que o Requerente “Não apresenta qualquer sequela clínica neurológica”, que “Nunca sofreu uma crise epiléptica, foi medicado na altura, por precaução”, que de ressonância magnética recente não resulta “nenhuma lesão cortical ou justacortical que seria de considerar potencialmente eliptogénica” e que nenhum dos exames que realizou revelam “actividade epileptiforme”, não existindo, assim, “limitação de aptidão do utente” (cf. cópia do relatório médico junta a fls. 168-169 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

31. Em 02.03.2020, foi elaborado relatório de perícia médico-legal solicitado pela Comarca de Lisboa Oeste – DIAP / Ministério Público – Oeiras no âmbito do processo n.º 155/17.5PTOER, aí tendo o respectivo médico neurologista concluído que “O exame neurológico [realizado ao Requerente] não concretiza défices neurológicos dignos de registo” (cf. cópia do relatório pericial junta a fls. 170-173 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

32. No curso de mestrado integrado em ciências militares navais, especialidade em Marinha, o estágio de embarque e os estágios e tirocínios a fazer no 5.º ano correspondem a 19,5 e 15 créditos, respectivamente (cf. cópia da estrutura curricular e plano de estudos junta a fls. 175-177 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).

33. O Despacho n.º 35/17, de 17.07, do Almirante Chefe do Estado-Maior da Armada prevê a possibilidade de alunos externos de mestrado em Engenharia Mecânica efectuarem, no âmbito dos do Programa de Estágios Profissionais da Administração Central, um estágio na “Direção de Navios, Departamento de Informação Logística - Base Naval de Lisboa, Alfeite - Almadacom vista à “Definição e desenvolvimento do Sistema de Manutenção Planeada dos equipamentos dos navios da Marinha, considerando a fiabilidade dos mesmos, correlacionada com a informação existente sobre os modos e taxas de falhas.” (cf. cópias da tabela e despacho juntas a fls. 192 e 328-337 dos autos no SITAF, documentos que se dão por integralmente reproduzidos).

34. Nos últimos cinco anos, todos os aspirantes finalistas do mestrado integrado realizaram estágio de embarque, tendo navegado entre 4 e 99 dias, com excepção do Requerente e M. C…….., o qual viria a ser excluído do curso por razões de incapacidade para o serviço (facto confessado pela Requerida, cf. requerimento de fls. 395-396 dos autos no SITAF).

A prova dos factos fixados supra assenta no teor dos documentos juntos aos autos, bem como nas alegações produzidas pelas partes, conforme referido a respeito de cada um deles.

Nada mais foi provado com interesse para a decisão da causa.”.

DE DIREITO

Considerada a factualidade fixada na sentença ora recorrida, importa, agora, entrar na análise dos fundamentos dos recursos jurisdicionais, segundo a sua ordem lógica e prioritária de conhecimento.

A. Recurso interposto pela Marinha

1. Erro de julgamento de direito no tocante à falta de fundamentação do ato de homologação do resultado da Junta Médica de Revisão da Armada (JMRA)

Inconformada com a sentença recorrida, vem a Marinha assacar o erro de julgamento de direito em relação à procedência do vício de falta de fundamentação do ato de homologação da Junta Médica de Revisão da Armada (JMRA), nos termos em que consta dos pontos 18 e 19 do julgamento da matéria de facto.

Invoca que a fundamentação a que se refere a situação controvertida é tendencialmente caracterizada por uma quantificação de risco probabilístico, por os médicos não poderem garantir o que irá acontecer, mas poderem presumir, com adequada margem de certeza, o que irá acontecer, sendo que no caso, a atividade militar a bordo de navio constituirá um risco acrescido e uma probabilidade de agravamento do quadro clínico do Autor.

Defende que existiu todo um processo de avaliação da situação clínica do Autor, ao longo dos meses, que veio a materializar-se na decisão da Junta Médica de Revisão da Armada (JMRA), que corroborou o entendimento prévio da Junta de Saúde Naval (JSN).

Alega que a JMRA, que inclui o médico assistente do Autor, entendeu, por unanimidade, a sua situação médica.

Defende que por estar em causa o resultado de uma Junta Médica, a apreciação da sua atividade insere-se na discricionariedade técnica, que exige a aplicação de critérios de natureza técnica, próprios das ciências médicas.

Por esse motivo, como tem sido entendido, a mesma só é passível de impugnação quanto aos seus elementos vinculados e por erro grosseiro ou manifesto.

Além de os médicos da Marinha conhecerem melhor do que quaisquer outros o impacte físico e psíquico que o desgaste da vida militar e a vida a bordo de navios acarreta para os militares.

Sustenta que no caso, não se extrai que tenha existido um erro grosseiro, que pudesse justificar a anulação da deliberação da JMRA, como o próprio Tribunal o admite.

Entende que o ato se encontra devidamente fundamentado, por um destinatário normal compreender os seus respetivos motivos, tendo o Tribunal andado mal ao entender de modo diferente.

São as Juntas Médicas da Marinha e, em particular, a JMRA, os órgãos legalmente competentes, em função da matéria, para melhor avaliar a capacidade do Autor para a vida militar, os quais não têm de estar de acordo com os pareceres médicos particulares.

Nos termos do parecer emitido foi entendido que a condição do ora Recorrido encerra riscos intoleráveis para a vida, saúde e integridade física da pessoa, mas também para a Marinha, tendo em conta as exigências da carreira militar, por uma eventual ocorrência a envolver o Autor poder condicionar e mesmo colocar em risco a segurança e a integridade de outras pessoas, bens e equipamentos, assim como o cumprimento da própria missão da unidade naval em que se encontre a desempenhar funções.

Tanto que a deliberação se encontra fundamentada, que o Autor a conhece, pelo que, entende pelo erro de julgamento de direito.

Vejamos.

Com vista a dilucidar o fundamento do recurso, não está em causa qualquer eventual erro de julgamento da sentença no que se refere ao juízo de mérito, de natureza médica, subjacente ao ato impugnado, mas tão só aferir se o ato administrativo impugnado, de homologação do parecer emitido pela JMRA enferma do vício de falta de fundamentação, por não permitir descortinar as razões em que alicerça, que determinam a incapacidade permanente para o desempenho de algumas funções do Autor, ora Recorrido.

O que determina que não tenha o julgador de proceder a qualquer apreciação do mérito do ato impugnado, mas apenas aferir da sua validade formal, quanto ao cumprimento do dever legal de fundamentação.

Para tanto, decidiu-se, com relevo, na sentença sob recurso, o seguinte:

(…) Estando aqui em causa a apreciação do resultado de uma junta médica – o qual, como é sabido, materializa aquilo que é vulgarmente designado por “discricionariedade técnica”, na medida em que encerra um juízo de natureza eminentemente técnica cujo controlo jurisdicional se encontra limitado aos seus parâmetros externos ou aos casos de erro grosseiro ou manifesto e violação de princípios fundamentais da actividade administrativa – dita a própria natureza das coisas que o respectivo dever de fundamentação resulte, nestes casos, robustecido, de molde não só a permitir ao respectivo destinatário adquirir, em termos bastantes, o iter cognoscitivo e valorativo prosseguido pela Administração na tomada da decisão (iter esse que tende a revestir uma complexidade assinalável, mercê dos meandros técnicos à luz dos quais aquela é adoptada), como, bem assim, permitir a um qualquer órgão jurisdicional aquilatar da validade dos pressupostos de facto e de direito aí firmados.

Com efeito, e conforme acordado pelo Tribunal Central Administrativo Sul, em 06.06.2019, no âmbito do processo n.º 2788/17.0BELSB, “porque os tribunais terão assim condições reais para aplicar o Direito, o destinatário da decisão administrativa poderá optar, conscientemente, entre concordar com o ato decisório ou promover a tutela jurisdicional efetiva (um direito fundamental), isto é, acionar os meios legais de heterocontrolo, para efeitos de fiscalização da juridicidade em sede de: (i) exigências legais relativas ao sujeito administrativo, (ii) exigências legais relativas ao quid do ato, (iii) exigências legais relativas ao procedimento administrativo, (iv) pressupostos de facto da decisão, (v) pressupostos de direito da decisão e ou (vi) motivos da concreta atuação administrativa. // Em síntese, fundamentar uma decisão de administração pública é, sob pena de ilegalidade, justificá-la quanto aos seus aspetos legalmente vinculados e, ainda, motivá-la ou explicá-la quanto aos seus aspetos não vinculados estritamente pela lei, tudo de modo a que os pressupostos de facto e de direito e os raciocínios explicativos das opções ou valorações feitas possam ser compreendidos e questionados racionalmente” – orientação que aqui se sufraga na íntegra.

Ora, compulsados os autos, entende este Tribunal que os desideratos de que acima se deu conta não foram, in casu, atingidos pela Requerida.

(…)

Primo, e desde logo, mostram-se perfeitamente certeiras as críticas que o Requerente move às “eventuais restrições no desempenho”, as quais são absolutamente omissas quanto aos fundamentos que lhes subjazem, dali não sendo, como tal, possível extrair, em termos minimamente substanciados, em que consistem exactamente tais restrições, porque é que as mesmas existem, em que medida é que a concreta situação clínica do Requerente o coloca em risco acrescido face aos demais colegas ou se (e como) é que tais restrições decorrem causalmente da sua situação clínica.

Secundo, e no que tange ao pretenso aumento de risco de epilepsia, a Requerida em momento algum se reporta à concreta situação do Requerente, o que, adianta-se, não é de aceitar.

Com efeito, e ainda que a análise médica estatística possa encerrar alguma pertinência para a apreciação de um qualquer caso em concreto, a mesma não pode ser apresentada como fundamentação única para uma situação de incapacidade permanente, desgarrada do concreto historial clínico do visado – ainda para mais quando, como sucede no caso concreto, este se encontra na posse de diferentes relatórios médicos que concluem pelo “Traçado com características dentro dos limites da normalidade”, pela “ausência de alterações epileptiformes”, que “Não se registou actividade epilética interictal ou ictal (…) ou de outra natureza” e que “O doente não apresenta risco elevado de vir a desenvolver crises epilépticas” (cf. factos 26., 28. e 29. firmados supra), todos anteriores à reunião da junta médica de revisão e que em momento algum são abordados, rebatidos ou infirmados, por qualquer forma, pela Requerida.

Isto mesmo, de resto, viria a ser acordado pelo Tribunal Central Administrativo Norte, em 28.02.2020, no âmbito do processo n.º 03205/18.4BEPRT, o qual postulou o entendimento em como “Não se mostra devidamente fundamentado o ato administrativo que indefere o pedido de aposentação do Autor quando o mesmo se baseia em parecer da Junta Médica de Recurso que não atende ou rebate a diversa documentação clínica junta pelo Autor tendente a demonstrar a realidade contrária plasmada no apontado parecer” – entendimento que não pode deixar aqui de se subscrever integralmente.

Tertio, a conclusão que antecede é aplicável, mutatis mutandis, à pretensa hidrocefalia crónica que a Requerida imputa ao Requerente: assim, e se, por um lado, também tal questão surge descrita em termos essencialmente estatísticos, o que, como se viu, não pode consubstanciar fundamentação bastante para um juízo técnico de incapacidade permanente de um qualquer destinatário; por outro, o único elemento que, em concreto, é enunciado pela Requerida para justificar a sua conclusão consiste, aparentemente, no relatório médico elaborado por médico neurocirurgião do Hospital das Forças Armadas a que se alude no ponto 23. da matéria de acto que retro se deu por assente, isto sem que a Requerida cuide de rebater (ou se pronunciar sequer) sobre os diferentes relatórios subscritos por diferentes médicos neurocirurgiões, no âmbito dos quais se conclui, prima facie, pela falta de emergência do quadro de hidrocefalia e pela eventual redundância da DVP instalada (cf. factos 24. e 27. firmados supra), tudo circunstâncias que, a verificarem-se, poderão, efectivamente, deter pertinência e, no limite, obstar ao juízo vertido no segmento decisório do acto administrativo aqui em crise.

Em face do que antecede, conclui-se, assim, pela falta de fundamentação do acto homologatório impugnado (…)”.

Assumindo as particularidades do caso, decorrentes de estar em causa a exigência do cumprimento do dever de fundamentação de um ato que tem na sua base a aplicação de critérios que exigem e dependem de conhecimentos técnicos, próprios do foro da atividade médica, relativamente aos quais é mais dificultado o controlo jurisdicional, realizado em grande medida através da aferição do dever legal de fundamentação, para além da apreciação dos demais contornos que caracterizam o presente litígio, atinentes à relevância, absolutamente determinante, de realizar o mais completo e preciso diagnóstico clínico do Autor, por ser este a condicionar todo o demais desfecho da situação jurídica do Autor, é de entender manter o julgamento do Tribunal a quo.

O cumprimento do dever legal de fundamentação deve ser aferido em relação aos factos que foram julgados provados no julgamento da matéria de facto, que não se mostram impugnados por qualquer das partes, o que determina que se deva manter o decidido na sentença recorrida no que respeita ao vício em análise.

Apelando a toda a jurisprudência do STA, acolhida na fundamentação da sentença recorrida, que determina que o grau de exigência em relação ao cumprimento do dever de fundamentação varie consoante a natureza do ato ou da atividade impugnada, assim como, que no domínio da atividade discricionária, submetida a padrões de relativa indeterminabilidade ou a que seja dependente da aplicação de critérios técnicos, que não estritamente jurídicos, como no presente caso, revista particular acuidade a suficiência, congruência e cognoscibilidade da fundamentação, que permitam compreender as concretas razões de facto e de direito invocadas e tidas em consideração pela Administração, enquanto via para assegurar a sua respetiva impugnação contenciosa.

Fundamentar um ato consiste na indicação dos motivos, das razões de facto e, quando a lei o exija, de direito por que o mesmo se pratica, de modo a que o destinatário possa “deduzir expressamente a resolução tomada das premissas em que assenta, ou em exprimir os motivos por que se resolve de certa maneira e não de outra” (Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Almedina, 10.ª ed., Vol. I, pp. 477.)

Sem esquecer as diferenças entre estrutura da fundamentação e âmbito de fundamentação, no que interessa à delimitação do dever legal orientado em função de cada ato administrativo em concreto (Vieira de Andrade, O dever de fundamentação expressa de actos administrativos, Almedina, 1991, pp. 23 e ss; Mário Esteves de Oliveira, Pedro Gonçalves e Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo, Almedina, pp. 582-586), o que importa é que o destinatário entenda a que propósito aquele ato concreto foi praticado, em que medida afeta a sua esfera jurídica e em que medida pode atacá-lo contenciosamente.

No que respeita à obrigação de fundamentar, expressamente prevista na Constituição, no artigo 268.º, nº 3 CRP e ainda no artigo 152.º do CPA, com destaque para certa tipologia de atos, além dos casos em que a lei especialmente o exija, impõem-se, entre outros requisitos, os de indicação expressa, clara, suficiente e congruente, embora sucinta, dos fundamentos (artigo 153.º CPA).

Logo, não pode ser insuficiente, obscura ou incongruente sob pena de anulabilidade, ressalvando-se as hipóteses de falta absoluta que impliquem, antes, a respetiva declaração de nulidade.

Além de que o ato deve sempre adequar-se aos seus fundamentos – e não estes àquele – o que significa que a fundamentação deva ser sempre contemporânea da prática do ato, salvo nas hipóteses de remissão para fundamentação inserida em parecer ou informações anteriores, o que só não pode suceder nos casos dos laudos de avaliação, porque, nestes casos, a fundamentação é aduzida pelos próprios peritos intervenientes, mediante a explicitação dos critérios utilizados na valoração atribuída.

A delimitação concreta do conteúdo da fundamentação formal no tocante aos critérios gerais de suficiência ou insuficiência formal determinam que “(…) a suficiência terá de ser avaliada na perspectiva do destinatário da declaração. Na realidade, se a fundamentação é uma declaração justificativa, não bastará ter em conta o momento decisório em abstracto, impondo-se a consideração do “auditório” a quem o discurso se destina.”, devendo julgar-se a suficiência da fundamentação, de entre o mais, pela compreensibilidade da fundamentação, que considere um destinatário normal ou razoável, por as razões a ser declaradas deverem ser as determinantes, isto é, aquelas que sejam, ao mesmo tempo, justificativas e decisivas por terem sido entre todas, aquelas que serviram de causa impulsiva do agir da Administração.” (Vieira de Andrade, O dever de fundamentação expressa de actos administrativos, Almedina, 1991, pp. 241 e 247-248.)

Embora o ato impugnado acolha na sua fundamentação o teor do parecer médico emitido que considerou que o Autor, ora Recorrido apresenta uma incapacidade permanente para o desempenho de algumas funções relativas ao posto e classe, nomeadamente, todas as tarefas que impliquem esforços físicos de contacto, permanência em plataformas instáveis e/ou sujeitas a impactos (embarque), trabalhos em altura (riscos de queda) e o afastamento de cuidados médicos diferenciados próximos, não são apresentadas as respetivas razões ou factos concretos, que considere a situação clínica do Autor, nem especificados quaisquer exames ou outros elementos de diagnóstico que permitam sustentar concretamente cada uma das limitações ou incapacidade permanente do Autor indicados, nem em que medida cada um dos exames permita sustentar as conclusões afirmadas.

Não é possível sustentar o ato impugnado se apenas são formulados juízos conclusivos quer sobre a caracterização da doença do Autor ou as limitações que enfrenta, quer sobre os riscos que enfrenta, sem ser especificada a sua concreta situação médica ou clínica, quanto à doença de que padece ou as limitações que a mesma acarreta.

Por isso, não basta invocar as limitações que se considera que o Autor enfrenta, nem fazer constar que existe risco para o seu regresso à atividade, se não são especificados factos concretos relativos à sua situação clínica.

O que se verificando em relação à sua condição física, é ainda manifesto relativamente à condição psicológica do Autor, pois sendo referida a falta de condições físicas e psicológicas do Autor, nenhuma razão é invocada donde se possa alicerçar tal afirmação.

Sem a invocação dos motivos concretos, alicerçados em factos ou em juízos médicos, não é possível concluir pela suficiência da motivação do parecer médico emitido pela JMRA, determinante da situação jurídica do Autor na Escola Naval.

Daí que, sem a devida fundamentação, também não seja possível aferir de qualquer erro grosseiro ou manifesto de fundamentação.

Motivo por que carece de razão convocar a doutrina acerca da limitação da sindicabilidade contenciosa dos atos praticados ao abrigo de discricionariedade técnica.

Termos em que, em face do exposto, será de concluir pela improcedência do fundameno do recurso e em manter o decidido na sentença sob recurso.

2. Erro de julgamento de direito no tocante ao vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito, por errada escolha da norma aplicável, em relação ao ato de exclusão da Escola Naval e ao decidir-se pela não aplicação do princípio do aproveitamento do ato impugnado, nos termos do artigo 163.º, n.º 5 do CPA, quanto ao ato de exclusão, por ter sido decidido quando ainda estava pendente o recurso hierárquico do ato de homologação do parecer da Junta de Saúde Naval (JSN)

No demais, entende a Recorrente que incorre a sentença recorrida em erro de julgamento de direito ao determinar a anulação do ato de exclusão do Autor da Escola Naval.

Sustenta que o quadro clínico do Autor teve impacto no seu percurso na Escola Naval, quer na decisão que conduziu à sua exclusão, quer na de indeferimento do seu pedido de realização do estágio de embarque.

Alega que tendo o Autor ingressado na Escola Naval para frequentar o curso de mestrado integrado em ciências militares navais, especialidade de engenharia naval, ramo de mecânica, o curso tem a duração de cinco anos, findos os quais, existindo aproveitamento, viabiliza o ingresso nos quadros permanentes da marinha, nos termos do artigo 2.º do Regulamento da Escola Naval (REN), para a prestação de serviço militar naval.

Para finalizar o curso é incontornável que o Autor realize o estágio de embarque com aproveitamento, no último ano do curso.

Esse estágio visa desenvolver as competências técnico-militares e de liderança num contexto real de trabalho, a bordo de um navio operacional.

Sustenta que não tendo o Autor realizado o estágio, foi notificado da intenção de exclusão do curso, nos termos do artigo 200.º, n.º 1, c) do REN, aprovado pela Portaria n.º 21/2014, de 31/01 e, embora a citada alínea c) não seja a aplicável, por se referir à exclusão com fundamento na falta de aproveitamento escolar, antes sendo aplicável a alínea d), referente à exclusão por incapacidade, tal deveu-se a um mero lapso, o qual foi corrigido no ato final, que alicerçou a exclusão da Escola Naval na incapacidade do Autor para embarcar, atendendo às suas condições físicas e psíquicas.

Por isso, sustenta que o ato impugnado de exclusão do Autor da Escola Naval foi fundamentado na incapacidade para o desempenho de algumas funções e não na falta de aproveitamento escolar.

Mais alega que tendo o interessado recorrido hierarquicamente para o ALM CEMA dos atos de indeferimento de realização de estágio de embarque e da exclusão da Escola Naval, o recurso hierárquico ainda estava pendente quando existiu a citação.

No entanto, invoca que, como o próprio Tribunal a quo admitiu, em causa está a exclusão fundada na incapacidade para embarcar, pelo que, não está em causa uma errada escolha da norma aplicável, não se verificando o erro nos pressupostos de direito.

Mais sustenta que deverá ter-se em consideração o princípio do aproveitamento do ato, porque mesmo que o Comandante da Escola Naval tivesse aguardado pela decisão da JMRA para tomar a decisão de excluir o Autor, o conteúdo da decisão não poderia ser outro.

Vejamos.

Sobre a questão suscitada decidiu-se na sentença sob recurso, o seguinte:

Como se viu, em 10.02.2020, a Requerida notificou o Requerente da intenção de o excluir da EN “por não ter realizado estágio de embarque, como aluno do 5º ano do curso “Jorge Álvares” da Escola Naval, considerando as condições de exclusão previstas na alínea c) do n.º 1 do artigo 200º da Portaria n.º 21/2014, de 31 de Janeiro, que publica em anexo o Regulamento da Escola Naval” (cf. facto 13. firmado supra).

Em sede de exercício de direito de audiência prévia, viria o Requerente requerer a sua manutenção naquela instituição e que se aguardasse pelos resultados da junta médica de revisão, autorizando-se, então, posteriormente a realização de estágio de embarque e a conclusão do curso de mestrado (cf. facto 14. firmado supra).

Neste conspecto, viria o Senhor Comandante da EN decidir que:

“1. Mantenho a exclusão do ASP L......., nos termos do artigo 200º do Regulamento da Escola Naval (…), considerando que, o órgão competente, Junta de Saúde Naval, se pronunciou pela incapacidade do AASP L....... para embarcar, atendendo às suas condições físicas e psíquicas, o que consequentemente impossibilitou a realização do respetivo estágio de embarque, condição necessária para concluir o mestrado (…).

2. Mais informo que, na eventualidade do órgão competente para avaliar a capacidade física e psíquica do ASP L....... ser alterada, e a manter-se a vontade do ASP L....... em seguir a vida militar, poderá este exercer o direito previsto no artigo 160.º do REN” (cf. facto 17. firmado supra) – sendo este o acto contra o qual a parte agora se vem insurgir, na medida em que, defende, estando a ser aplicado o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 200.º do REN (o qual respeita, em rigor, à “falta de aproveitamento escolar”) sem que lhe tenha sido dada a possibilidade de realizar o estágio de embarque, o acto padeceria de “erro nos pressupostos” – e, adianta-se já, com razão, ainda que com diferentes fundamentos dos que são invocados pelo Requerente.

Apreciando:

Nos termos do n.º 1 do artigo 200.ºdo REN, os alunos são excluídos da frequência da instituição nos casos em que, entre outros, se verifique “falta de aproveitamento escolar” ou “incapacidade”.

Em complemento do que antecede, estatuem os artigos 203.º e 204.º, n.º 1, do mesmo normativo que “Os alunos que não tenham transitado de ano por falta de aproveitamento escolar nem logrado obter autorização para o repetir são excluídos definitivamente do respetivo curso” e que “Os alunos que durante a frequência dos cursos revelem falta de aptidão física ou outra incapacidade para a carreira a que se destinam, são submetidos à apreciação da Junta de Saúde Naval, mediante proposta do Comandante, tendo em vista o seu eventual abate por incapacidade para o serviço”.

Ora, diversamente do que a Requerida refere, por ocasião da manifestação da sua intenção em excluir o Requerente da EN e, bem assim, da prolação do acto de exclusão per se (patente no emprego da expressão “Mantenho”, cf. factos 13. e 17. firmados supra), resulta translúcido, para este Tribunal, que em causa não está uma qualquer situação de falta de aproveitamento escolar, a que se alude na alínea c) do n.º 1 do artigo 200.º do REN, mas sim a possível incapacidade do Requerente, prevista nos artigos 200.º, n.º 1, alínea d), e 204.º, ambos daquele mesmo diploma – o que se mostra perfeitamente consentâneo com a junta médica a que o Requerente foi sujeito (cf. Facto 9. firmado supra).

Assim, e diferentemente do que ensaia o Requerente, o “erro nos pressupostos” de que a decisão padece não se materializa no facto de não lhe ter sido concedida a possibilidade de realizar o estágio de embarque, mas antes na errada escolha da norma aplicável, o que, como é sabido, consubstancia um vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito, devendo, por isso, a mesma ser anulada por força de tal facto, conforme se julgará a final.

O entendimento que antecede não resulta prejudicado pelo facto de, como chega a ser referido pela Requerida, da nota remetida pelo Senhor Comandante da EN ao Senhor Almirante Chefe do Estado-Maior da Força Armada, em 28.08.2020, decorrer que a exclusão do Requerente assentaria em “situação de incapacidade” (cf. facto 21. firmado supra): se, por um lado, tal menção, porque posterior e divergente daqueloutra ínsita na fundamentação do acto impugnado não pode, por força de tal circunstância, ser agora atendida; por outro, essa mesma nota, enviada em sede de pronúncia do recurso hierárquico interposto pelo Requerente, não foi sequer notificada a este último, pelo que não poderia nunca produzir efeitos quanto à sua pessoa (cf. facto 22. firmado supra).

Em face do corolário explanado, prejudicado fica, como facilmente se infere, o conhecimento dos vícios de violação do artigo 203.º do REN e do artigo 21.º, n.º 1, do RA, uma vez que, contrariamente ao que os mesmos pressupõem, não se está aqui perante uma qualquer situação de falta de aproveitamento escolar.”.

Vejamos.

A questão suscitada como fundamento do recurso tem de ser decidida com base na concreta factualidade julgada provada, devendo o concreto motivo do ato de exclusão do Autor da Escola Naval aferir-se em função do seu concreto teor ou conteúdo.

Extrai-se do ponto 13 da matéria de facto assente que o Autor foi notificado da intenção de exclusão da Escola naval, por não ter realizado o estágio de embarque, nos termos do artigo 200.º, n.º 1, c) da Portaria n.º 21/2014, de 31/01, ou seja, alicerçado na disposição que prevê a exclusão por motivo de falta de aproveitamento escolar.

Exercida a audiência prévia, nela o interessado veio requerer a sua manutenção na Escola Naval e que se aguardasse pela conclusão do recurso hierárquico interposto do despacho de homologação do parecer da JMRA, conforme provado nos factos 11 e 12 do probatório, mais invocando que a falta de realização do estágio de embarque não lhe é imputável, por ter sido impedido pela Junta Médica Naval.

Tal pretensão foi indeferida por despacho do Comandante da Escola Naval, nos termos provados no ponto 17 da matéria de facto, no sentido de se manter a exclusão considerando que a Junta Médica Naval se pronunciou pela incapacidade do aluno para embarcar, o que impossibilita a realização do estágio de embarque.

Antes desse indeferimento o Autor tinha também requerido realizar o estágio de embarque logo que seja permitido pela JMRA, o que mereceu o despacho do Comandante da Escola Naval de indeferimento, com base na reprovação por falta de aproveitamento escolar, nos termos do artigo 200.º, n.º 1, c) da Portaria n.º 21/2014, de 31/01, nos termos que constam do ponto 16 da matéria de facto assente.

Considerando a factualidade julgada provada, nenhuma censura há a formular em relação à sentença recorrida, pois efetivamente embora o despacho final, provado no ponto 17 do julgamento da matéria de facto, não indique especificamente a norma legal em que se baseia para sustentar a exclusão do Autor, se a alínea c) ou a alínea d) do artigo 200.º, n.º 1 do REN, aprovado pela Portaria n.º 21/2014, de 31/01, referindo que a exclusão tem por base o parecer médico da Junta de Saúde Naval, que determina a incapacidade do aluno para embarcar, não deixa de dizer que mantém a exclusão nos termos do citado artigo 200.º.

Não se referindo expressamente à alínea c), do n.º 1 do artigo 200.º, da Portaria n.º 21/2014, de 31/01, como constava do projeto de decisão notificado ao interessado para o exercício do direito de audiência prévia, também não refere especificamente a alínea d) do citado preceito.

Além de que, anteriormente, para indeferir o pedido que consta do ponto 15 da matéria de facto, o mesmo Comandante da Escola Naval fundara a sua decisão de indeferimento do pedido de realização do estágio de embarque na citada alínea c), do n.º 1 do artigo 200.º, da Portaria n.º 21/2014, de 31/01.

Assim, não só o Autor não foi notificado em audiência prévia sobre o enquadramento da sua exclusão da Escola Naval na alínea d), do n.º 1 do artigo 200.º, da Portaria n.º 21/2014, de 31/01, como não é possível extrair da decisão final, proferida após a audiência do interessado, nos termos que consta do ponto 17 do julgamento da matéria de facto, que a Entidade Demandada, ora Recorrente, tenha efetivamente alicerçado o fundamento da exclusão em tal citada alínea do n.º 1 do artigo 200.º e, não na alínea c) do citado preceito, como consta do projeto de decisão.

Pelo que, é de manter o decidido a respeito do erro sobre os pressupostos de direito em que se fundou o ato de exclusão do Autor da Escola Naval, por errada subsunção da situação jurídica do Autor.

Acresce que, como decidido na sentença recorrida, decorre do artigo 204.º, n.º 1, do REN, “Os alunos que durante a frequência dos cursos revelem falta de aptidão física ou outra incapacidade para a carreira a que se destinam, são submetidos à apreciação da Junta de Saúde Naval, mediante proposta do Comandante, tendo em vista o seu eventual abate por incapacidade para o serviço”.

Nos termos conjugados dos artigos 91.º, 92.º, 93.º e 98.º do Decreto Regulamentar n.º 10/2015, de 31/07, a decisão incidente sobre os pareceres da Junta de Saúde Naval é suscetível de recurso hierárquico, cabendo, então, à Junta Médica de Revisão da Armada (JMRA) “estudar e emitir parecer sobre os recursos relativos às decisões das entidades competentes”, os quais, por sua vez, são sujeitos a homologação do Chefe do Estado-Maior da Armada.

Considerando que nos termos do n.º 1 do artigo 110.º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, aprovado pelo D.L. n.º 90/2015, de 29/05, o “recurso hierárquico é necessário” e que, de harmonia com o disposto no artigo 189.º, n.º 1, do CPA, “As impugnações administrativas necessárias de atos administrativos suspendem os respetivos efeitos”, o recurso hierárquico interposto pelo Autor, a que se alude no ponto 12 da matéria de facto, gozava de efeito suspensivo.

Assim, tendo o Requerente interposto o recurso hierárquico em 28/01/2020 e o ato ora impugnado sido proferido em 28/02/2020, o mesmo foi praticado antes do resultado da junta médica de revisão, em 04/03/2020 e antes da sua homologação, em 12/03/2020, e muito antes da respetiva publicação, em 27/05/2020 (cf. factos 12, 17, 18, 19 e 20 do julgamento de facto), ou seja, desconsiderando o efeito suspensivo de que o recurso hierárquico interposto gozava.

Pelo que, o caso em presença não pode ser enquadrado no disposto no artigo 163.º, n.º 5 do CPA, não só porque os seus respetivos pressupostos não se verificam, considerando a natureza da matéria em causa, como também em decorrência do antecedente juízo de se julgar enfermado de falta de fundamentação o ato de homologação do parecer da Junta Médica de Revisão da Armada, determinante da sua respetiva anulação.

Sendo alicerçada a decisão de exclusão do Autor da Escola Naval no facto de o aluno não ter realizado o estágio de embarque, sendo que tal circunstância de falta de realização do estágio se deve ao aluno a isso estar impedido por força do parecer da Junta de Saúde Naval (depois mantido pelo parecer da Junta Médica de Revisão da Armada), sem este parecer se encontrar devidamente consolidado na ordem jurídica, não podem ser tomadas quaisquer decisões definitivas sobre a situação jurídica do ora Recorrido, no âmbito do curso em questão, nem sobre a permanência na Escola Naval.

Por conseguinte, em face do exposto, será de negar provimento ao recurso, por não provados os seus fundamentos, mantendo-se a sentença recorrida.

3. Erro de julgamento de direito, em relação à falta de fundamentação do ato de indeferimento do pedido de realização do estágio de embarque

Por último, sustenta a Recorrente o erro de julgamento de direito, em relação à falta de fundamentação do ato de indeferimento do pedido de realização do estágio de embarque.

Invoca que, embora o despacho do Comandante da Escola Naval tenha indeferido o pedido de realização do estágio de embarque, à data da emissão, com base na falta de aproveitamento escolar do aluno, na verdade, o embarque não foi realizado por, numa fase inicial, persistirem dúvidas relativamente à condição física e psíquica do Autor e, numa fase posterior, por indicação médica da Junta Médica Naval, depois confirmada pela Junta Médica de Revisão da Armada, por motivos de segurança inerentes à integridade física do aluno.

Sustenta que não está em causa a falta de aproveitamento escolar, mas sim uma situação de incapacidade e esta foi mantida por declaração de incapacidade do Requerente, pelo que nunca poderia vir a ser autorizado a realizar o estágio de embarque.

Vejamos.

Sobre a questão suscitada, foi o seguinte discurso fundamentador da sentença recorrida:

A par do que antecede, vem também o Requerente peticionar a anulação do acto que indeferiu o pedido de autorização para realizar o estágio de embarque em falta “logo que tal lhe seja permitido pela JMRA”, nos termos do qual o Senhor Comandante da EN decidiu que “1. Tal como refere no requerimento, o requerente não realizou o estágio de embarque, condição necessária para concluir o curso de Mestrado (…) e nesta sequência reprova por falta de aproveitamento escolar, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 200.º do Regulamento da Escola Naval (…). // 2. Muito embora tendo presente o prazo previsto no n.º 5 do artigo 160.º do REN, cabe informar que na presente data o requerente não foi, ainda, notificado da exclusão, razão pela qual indefiro o pedido” (cf. factos 15. e 16. firmados supra).

Para tanto, sindica o Requerente a sua falta de fundamentação, alegando que o mesmo se estribaria unicamente na falta de notificação da exclusão ao autor e que não se vislumbraria qualquer relação entre essa mesma notificação e a realização do pretendido estágio de embarque – e, também aqui, com razão.

Segundo o artigo 160.º, n.ºs 3 e 5, do REN no qual o Requerente expressamente arrima o seu pedido, “Os alunos que por motivo de doença ou exclusão por faltas percam o ano letivo, são autorizados a repetir a respetiva frequência desde que o requeiram e obtenham deferimento, não sendo considerado o ano letivo da repetição para os efeitos previstos no n.º 1 do presente artigo”, sendo que tais requerimentos “são dirigidos ao Comandante da EN dentro do prazo de vinte dias a partir da data em que os alunos sejam notificados da reprovação”.

Ora, tal como decorre linearmente da sua letra, o pedido de autorização para repetição da frequência por motivo de doença deve ser apresentado no prazo de 20 dias contado da data da notificação da reprovação do ano escolar – acto esse que é perfeitamente autónomo e que não se confunde com a “notificação da exclusão” a que a Requerida expressamente se refere – pelo que o iter cognoscitivo e valorativo prosseguido pela parte na adopção de tal decisão se revela perfeitamente obscuro, não permitindo ao respectivo destinatário (nem, bem assim, a este Tribunal) apreendê-lo em termos minimamente adequados, por forma a permitir a cabal dilucidação dos respectivos termos em que aquela foi tomada, a sua eventual contestação bem como o correspondente controlo jurisdicional sobre a mesma – circunstância que, como se antecipa, não pode deixar de consubstanciar uma violação do dever de fundamentação, com a consequente anulabilidade do acto.”.

Considerando a sucessão de atos praticados pela Entidade Demandada e impugnados na presente intimação, não podem existir dúvidas de que certos atos são consequentes de outros, no sentido de dependerem da verificação de certos pressupostos, os quais, sendo postos em crise, afetam inelutavelmente os pressupostos de facto e/ou de direito dos atos deles dependentes.

É o que se verifica no presente litígio, visto que o desfecho sobre o teor do parecer da Junta Médica de Revisão da Armada é absolutamente determinante para todo o desenvolvimento e definição da situação jurídica do ora Recorrido.

Como se extrai da matéria de facto, não poderiam ter sido praticadas as decisões de indeferimento da realização do estágio de embarque, nem de exclusão do Autor da Escola Naval, enquanto estava pendente o recurso hierárquico interposto do ato de homologação do parecer da JMRA, por ser este a causa ou o fundamento dos demais atos.

Não podendo ser alicerçada a decisão de recusa de realização do estágio de embarque sem o respetivo suporte fundamentador de facto e de direito, sendo que este não estava, como não está, ainda definido, enferma de falta de congruência a respetiva fundamentação aduzida, a qual é, de resto, é também insuficiente, a suportar a decisão proferida.

Pelo que, não enferma a sentença recorrida do erro de julgamento que contra ela é dirigida, sendo de manter o decidido.


*

Pelo exposto, com base nas razões que antecedem, será de negar provimento ao recurso interposto pela Marinha portuguesa, por não provados os seus fundamentos.

B. Recurso interposto pelo Autor

1. Nulidade, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, d) do CPC, por ter existido o conhecimento do pedido subsidiário, para o caso de o pedido principal ser julgado improcedente, quando este foi julgado procedente

Não se conformando com a sentença recorrida, na parte do seu respetivo decaimento, respeitante ao ponto (vi) do dispositivo da sentença, veio o Autor interpor recurso invocando a nulidade decisória, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, d) do CPC, com o fundamento de que o Tribunal ao julgar procedentes os pedidos principais, não poderia ter conhecido do pedido subsidiário.

Sustenta que o pedido subsidiário foi formulado para o caso de se manter a decisão da Junta Médica de Revisão, a qual tendo sido anulada, por falta de fundamentação, nos termos invocados pelo Autor, não poderia ter sido conhecido o pedido subsidiário.

Vejamos.

Insurge-se o Autor em relação ao conhecimento na sentença recorrida do pedido de realização de estágio em unidade naval sem planeamento de navegação ou em terra, por o mesmo ter sido formulado apenas e só no caso de se manter a decisão da Junta Médica de Revisão.

O que não se verificou, por a sentença ter anulado o ato de homologação do resultado da JMRA, que é um dos pedidos principais.

Com relevo, compulsando a petição inicial, nela consta o Autor ter formulado os seguintes pedidos:

a) anulação do ato homologatório da decisão da Junta Médica de Revisão da Armada;

b) anulação dos despachos do Comandante da Escola Naval, de indeferimento da realização do estágio de embarque e de exclusão da Escola Naval;

c) reconhecimento do direito do Autor a realizar o estágio de embarque do 5.º ano sem restrições ou, no caso de se manter a decisão da Junta Médica de Revisão, a realizar tal estágio em terra ou numa unidade naval sem planeamento de navegação atribuído no período de estágio ou noutra unidade da Marinha;

d) condenação da Entidade Demandada a proporcionar ao Autor todas as condições à realização do estágio nos termos antecedentes;

Subsidiariamente, no caso de se entender ser bastante uma providência cautelar,

e) a convolação da presente intimação em providência cautelar de suspensão de eficácia dos atos impugnados e de admissão provisória do autor a realizar o estágio de embarque em unidades navais sem planeamento de navegação ou em terra nos termos acima expostos;

f) que seja antecipado o juízo da causa principal, nos termos do artigo 121.º do CPTA.

Analisados os pedidos, nos termos supra expostos, é de entender no sentido de assistir razão ao Autor, ora Recorrente, porquanto foi conhecido um pedido para além do que havia sido formulado pelo Autor.

De acordo com o teor da alínea c) do petitório, o Autor formulou o pedido de reconhecimento do direito a realizar o estágio de embarque do 5.º ano sem restrições ou, no caso de se manter a decisão da Junta Médica de Revisão, a realizar tal estágio em terra ou numa unidade naval sem planeamento de navegação atribuído no período de estágio ou noutra unidade da Marinha.

Porém, não se verificando o pressuposto em que o Autor fundara o pedido, por o mesmo ser apenas deduzido para o caso de se manter a decisão da Junta Médica de Revisão da Armada, não podia ser conhecido o pedido.

O citado parecer foi julgado enfermado de falta de fundamentação, acarretando a anulação do respetivo ato de homologação, pelo que, não podem existir dúvidas de que não poderia ter existido qualquer pronúncia jurisdicional sobre tal pretensão do Autor.

Segundo o artigo 608.º, n.º 2 do CPC, o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, mas não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes.

Por isso, nos termos do artigo 609.º, n.º 1 do CPC, o juiz não pode julgar ou condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.

Em sequência, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, d) do CPC, está vedado ao juiz conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento, sob pena de nulidade decisória.

É o que se verifica no caso a que respeita a alínea vi) do dispositivo da sentença, com tradução na sua respetiva fundamentação de direito, a páginas 44 e segs. e, em particular, a página 46 e segs..

Assim, pelo exposto, procede o fundamento do recurso, incorrendo a sentença recorrida em nulidade decisória, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, d) do CPC, no respeitante à pronúncia constante da alínea vi) do dispositivo da sentença, a qual, por isso, se anula nesta parte.

2. Erro de julgamento quanto ao conhecimento do pedido subsidiário, por défice instrutório, por falta de produção de prova e violação do artigo 204.º do EMFA e do artigo 88.º do Regulamento da Escola Naval

No demais, vem ainda o Autor impugnar a sentença recorrida na parte impugnada, referente ao pedido subsidiário formulado, com fundamento no erro de julgamento por défice instrutório, por falta de produção de prova e violação do artigo 204.º do EMFA e do artigo 88.º do Regulamento da Escola Naval.

Porém, considerando a anterior pronúncia, de anulação do decidido acerca do pedido subsidiário, por nulidade decisória, por excesso de pronúncia, fica prejudicado o demais alegado pelo Autor, ora Recorrente, a respeito do pedido subsidiário.

De resto, caberia ao Recorrente na sua alegação recursória e respetivas conclusões do recurso, ter delimitado os respetivos fundamentos do recurso, pois apenas seria de admitir a alegação do erro de julgamento, fundado no défice de instrução, no caso de não proceder a nulidade decisória.

No entanto, apesar de o Recorrente não proceder no presente recurso a esta alegação subsidiária dos fundamentos do recurso, é manifesta que a mesma decorre, estando prejudicado o conhecimento do fundamento do recurso respeitante ao erro de julgamento por procedência da causa de nulidade decisória, nos termos do disposto no artigo 608.º, n.º 2 do CPC, ao impor o conhecimento de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

Termos em que, em face do exposto, se julga prejudicado o fundamento do recurso em consequência da procedência da nulidade decisória incidente sobre a mesma pronúncia jurisdicional.


*

Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I. Estando em causa aferir da legalidade de um ato que tem na sua base a aplicação de critérios que exigem e dependem de conhecimentos técnicos, próprios do foro da atividade médica, relativamente aos quais é mais dificultado o controlo jurisdicional, realizado em grande medida através da aferição do dever legal de fundamentação, para além da apreciação dos demais contornos que caracterizam o litígio, atinentes à relevância, absolutamente determinante, de realizar o mais completo e preciso diagnóstico clínico do Autor, por ser este a condicionar todo o demais desfecho da situação jurídica do Autor, é de entender enfermar o ato de homologação da Junta Médica de Revisão da Armada de falta de fundamentação.

II. O grau de exigência do dever de fundamentação varia consoante a natureza do ato ou da atividade impugnada, revestindo de particular acuidade a suficiência, congruência e cognoscibilidade da fundamentação, que permitam compreender as concretas razões de facto e de direito, no domínio da atividade discricionária, submetida a padrões de relativa indeterminabilidade ou a que seja dependente da aplicação de critérios técnicos, que não estritamente jurídicos, enquanto via para assegurar a sua respetiva impugnação contenciosa.

III. Fundamentar um ato consiste na indicação dos motivos, das razões de facto e de direito, importando que o destinatário entenda a que propósito aquele ato concreto foi praticado, em que medida afeta a sua esfera jurídica e em que medida pode atacá-lo contenciosamente.

IV. Embora o ato impugnado acolha na sua fundamentação o teor do parecer médico que considerou que o Autor apresenta uma incapacidade permanente para o desempenho de algumas funções relativas ao posto e classe, nomeadamente, todas as tarefas que impliquem esforços físicos de contacto, permanência em plataformas instáveis e/ou sujeitas a impactos (embarque), trabalhos em altura (riscos de queda) e o afastamento de cuidados médicos diferenciados próximos, não são apresentadas as respetivas razões ou factos concretos, que considere a situação clínica do Autor, nem especificados quaisquer exames ou outros elementos de diagnóstico que permitam sustentar concretamente cada uma das limitações ou incapacidade permanente do Autor indicados, nem em que medida cada um dos exames permita sustentar as conclusões afirmadas.

V. Não é possível sustentar o ato impugnado se apenas são formulados juízos conclusivos quer sobre a caracterização da doença do Autor ou as limitações que enfrenta, quer sobre os riscos que enfrenta, sem ser especificada a sua concreta situação médica ou clínica, quanto à doença de que padece ou as limitações que a mesma acarreta.

VI. Sem a invocação dos motivos concretos, alicerçados em factos ou em juízos médicos, não é possível concluir pela suficiência da motivação do parecer médico emitido pela JMRA, determinante da situação jurídica do Autor na Escola Naval.

VII. Não indicando o ato impugnado de exclusão do Autor da Escola Naval especificamente a norma legal em que se baseia para sustentar a exclusão, se na alínea c) ou na alínea d) do artigo 200.º, n.º 1 do REN, aprovado pela Portaria n.º 21/2014, de 31/01, constando expressamente do projeto de decisão notificado ao interessado para o exercício do direito de audiência prévia, a menção à alínea c), do n.º 1 do artigo 200.º, não é possível extrair da decisão final que a Entidade Demandada tenha efetivamente alicerçado o fundamento da exclusão na alínea d) do n.º 1 do artigo 200.º.

VIII. Nos termos dos artigos 91.º, 92.º, 93.º e 98.º do Decreto Regulamentar n.º 10/2015, de 31/07, a decisão sobre os pareceres da Junta de Saúde Naval é suscetível de recurso hierárquico, cabendo à Junta Médica de Revisão da Armada (JMRA) emitir parecer sobre o recurso, o qual é sujeito a homologação do Chefe do Estado-Maior da Armada.

IX. Sendo o recurso hierárquico necessário, por força do artigo 110.º, n.º 1 do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, aprovado pelo D.L. n.º 90/2015, de 29/05 e extraindo-se do artigo 189.º, n.º 1, do CPA, que as impugnações administrativas necessárias de atos administrativos suspendem os respetivos efeitos, o recurso hierárquico interposto pelo Autor, gozava de efeito suspensivo.

X. O caso em presença não permite configurar a verificação dos pressupostos para o aproveitamento do ato, nos termos do artigo 163.º, n.º 5 do CPA, não só considerando a natureza da matéria em causa, como também em decorrência do antecedente juízo de se julgar enfermado de falta de fundamentação o ato de homologação do parecer da Junta Médica de Revisão da Armada, determinante da sua respetiva anulação.

XI. Sendo alicerçada a decisão de exclusão do Autor da Escola Naval no facto de o aluno não ter realizado o estágio de embarque, sendo que tal circunstância de falta de realização do estágio se deve a isso estar impedido por força do parecer da Junta de Saúde Naval (depois mantido pelo parecer da Junta Médica de Revisão da Armada), sem este parecer se encontrar devidamente consolidado na ordem jurídica, não podem ser tomadas quaisquer decisões definitivas sobre a situação jurídica do ora Recorrido, no âmbito do curso em questão, nem sobre a permanência na Escola Naval.

XII. Considerando a sucessão de atos praticados pela Entidade Demandada e ora impugnados, não podem existir dúvidas de que certos atos são consequentes de outros, no sentido de dependerem da verificação de certos pressupostos, os quais, sendo postos em crise, afetam inelutavelmente os pressupostos de facto e/ou de direito dos atos deles dependentes.

XIII. No presente litígio o desfecho sobre o teor do parecer da Junta Médica de Revisão da Armada é absolutamente determinante para todo o desenvolvimento e definição da situação jurídica do Autor.

XIV. Incorre a sentença em nulidade decisória, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, d) do CPC ao julgar procedentes os pedidos principais e, ainda assim, conhecer do pedido subsidiário, formulado apenas no caso de o principal não proceder.

XV. Resulta prejudicado o conhecimento do fundamento do recurso invocado de erro de julgamento, em relação a pronúncia jurisdicional anulada, por nulidade decisória.


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Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em:

1. Negar provimento ao recurso interposto pela Marinha Portuguesa, por não provados os seus fundamentos e, em consequência, manter a sentença recorrida;

2. Conceder provimento ao recurso interposto pelo Autor e, em consequência, anular a pronúncia decisória correspondente à alínea vi) do dispositivo da sentença recorrida, mantendo-a em tudo o demais decidido.

Sem custas – artigo 4.º, n.º 2, b) do RCP.

Registe e notifique.

A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 01/05, tem voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Juízes integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores, Pedro Marchão Marques e Alda Nunes, embora o 1.º Desembargador Adjunto faça a seguinte declaração: “Voto a decisão, mas não subscrevo integralmente os seus fundamentos.”.


(Ana Celeste Carvalho - Relatora)