Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 2238/18.5 BELSB |
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Secção: | CA |
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Data do Acordão: | 07/14/2022 |
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Relator: | FREDERICO MACEDO BRANCO |
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Descritores: | CERTIFICADOS DE AFORRO RESGATE COMPETÊNCIA MATERIAL DOS TAF |
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Sumário: | I – A adesão à subscrição de certificados de aforro, resulta que o contratualizado não é celebrado ao abrigo de normas de direito administrativo, mas antes ao abrigo de normas de direito privado. Em bom rigor, o contrato resume-se à compra das unidades que o subscritor entenda, ao pagamento dos respetivos juros pelo Estado e, por fim, ao resgate dos certificados de aforro pelo aforrista (recebendo o capital que investiu, ou, se for o caso, no vencimento do título a transmissão do capital para o aforrista). É, pois, incontornável que quando o IGCP comercializa este tipo de produtos financeiros do Estado, atua em equiparação a uma instituição de crédito e ao abrigo de normas de direito privado, conforme resulta do n.º 2 do artigo 1.° dos seus Estatutos (Decreto-Lei n.º 200/2012), em face do que os litígios emergentes das operações de dívida pública direta serão dirimidos pelos tribunais judiciais. II – O artigo 16.° da Lei n.º 7/98 limita-se a remeter para a jurisdição comum a competência para apreciação dos litígios emergentes das operações de dívida pública direta, encontrando-se assim abrangidos os litígios derivados de eventual responsabilidade civil das pessoas coletivas públicas pela prática de eventuais atos ilícitos de gestão privada relacionados com operações de dívida pública. III- A declarada incompetência material dos TAF para julgar Ação conexa com o resgate de Certificados de Aforro, só violaria a alínea f) do n.º 1 do artigo 4.° do ETAF se estivessem em causa atos praticados pelo IGCP ao abrigo de prerrogativas de autoridade, o que não é aqui o caso. IV - No que concerne já aos CTT tenho os mesmos uma intervenção meramente instrumental enquanto intermediário das operações financeiras estabelecidas entre os particulares e o IGCP, são-lhe aplicáveis, mutatis mutandis, nos termos do mesmo artigo 16.º da Lei n.º 7/98 as mesmas regras, não lhe sendo, assim e igualmente, aplicável o estatuído na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, por se não tratar de uma pessoa coletiva de direito público e estar em causa uma atividade de natureza privada e financeira. |
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Aditamento: | ![]() |
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Decisão Texto Integral: | Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul: I Relatório A.... e A...., intentaram Ação Administrativa para efetivação da responsabilidade civil extracontratual por ato ilícito, contra Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública – IGCP, EPE e C….SA, tendente à condenação destes ao pagamento, em regime solidário, da quantia correspondente ao valor dos certificados de aforro que terão sido resgatados, indevidamente, no valor de 981.291,89€. Inconformados com o despacho Saneador-Sentença proferido em 17 de março de 2021, através do qual foi julgada verificada a exceção dilatória de incompetência em razão da matéria, e que obstou à apreciação da ação administrativa por eles intentada, em consequência, absolvendo os Demandados IGCP e C…, S.A. (C..), da instância, vieram interpor recurso jurisdicional da referida decisão, proferida em primeira instância no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa. Formulam os aqui Recorrentes nas suas alegações de recurso, apresentadas em 9 de abril de 2021, as seguintes conclusões: “I – O Tribunal a quo é materialmente competente para os presentes autos por nos mesmos estar em causa a efetivação de responsabilidade civil extracontratual das recorridas. II – Não obstante ser demandada, em simultâneo, sociedade comercial de direito privado – os C… -, mantém-se a competência material do Tribunal a quo, por as recorridas serem solidariamente responsáveis, por terem concorrido para a produção dos danos em causa nos autos. III – Nos autos não está em causa uma operação de divida pública, pelo que não se verifica a previsão do disposto no artº 16º da Lei nº 7/98, de 3 de fevereiro. Termos em que, IV – O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa é materialmente competente para a decisão dos presentes autos. Donde, V - A douta decisão recorrenda viola o disposto, nomeadamente, na alínea f), do nº 1 e nº 2, do artº 4º do ETAF. Termos em que, a douta sentença recorrenda deve ser revogada in totum, sendo o Tribunal a quo declarado materialmente competente para a decisão dos presentes autos, ordenando-se, consequentemente, o prosseguimento dos autos, por assim ser de Justiça!” O Recurso Jurisdicional apresentado veio a ser admitido por Despacho de 11 de outubro de 2021. O aqui Recorrido, Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública – IGCP, EPE veio apresentar contra-alegações de Recurso em 27 de maio de 2021, concluindo: “a) No presente processo não está em causa a eventual responsabilidade civil extracontratual dos Recorridos por atos ilícitos praticados no exercício da função administrativa (atos de gestão pública), nos termos do disposto na Lei n.º 67/2007; b) E por essa via, não pode aplicar-se no caso o disposto na alínea f) - e nas subsequentes alíneas g) e h) - do n.º 1 do artigo 4.° do ETAF, que determina a competência dos tribunais administrativos para julgar as ações relativas a responsabilidade civil extracontratual de pessoas coletivas públicas por atos (ilícitos) praticados no exercício da função administrativa; c) É verdade, no entanto, que a alínea f) do n.º 1 do artigo 4.° do ETAF - para além de abranger a responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas - abrange também a responsabilidade civil extracontratual de pessoas coletivas públicas por atuações (ilícitas) de direito privado, regulada substantivamente no Código Civil (cf. o respetivo artigo 483.° e segs.); d) Mas isso não significa que, no caso sub iudice, sejam os tribunais administrativos os competentes para julgar o litígio em presença; e) No presente caso, está em causa um pedido indemnizatório aos Demandados, ora Recorridos, pelo facto de estes, alegadamente, terem atuado de forma ilícita ao permitirem que os certificados de aforro que haviam sido emitidos pelo IGCP, e que dizem ser da sua propriedade por sucessão, fossem resgatados por terceiro. f) Ficou demonstrado na Sentença a quo - e também nestas contra-alegações - que as atuações dos Recorridos em causa nos presentes atos se tratam manifestamente de atos de gestão privada; g) Com efeito, se atentarmos ao contrato de adesão de subscrição de certificados de aforro, constata-se que o contrato não se celebra ao abrigo de normas de direito administrativo mas sim ao abrigo de normas de direito privado, nas quais o Estado não se coloca numa posição de supremacia em relação ao subscritor e este não fica sujeito à autoridade do Estado, porquanto o aforrista é livre de subscrever certificados de aforro, nas condições que o Estado oferece uniformemente a todos os potenciais subscritores e as cláusulas do contrato de subscrição de certificados de aforro não demonstram qualquer desequilíbrio exorbitante dos direitos do Estado em relação ao particular; h) Ou seja, nestes casos o IGCP atua em equiparação a uma instituição de crédito, ao abrigo de normas de direito privado, e praticando meros atos de gestão privada, como também se entendeu no Acórdão do TCA Sul de 2 de março de 2017 citado nestas alegações e na Sentença recorrida; i) No entanto, a apreciação de questões (incluindo de eventual responsabilidade civil) que envolvam a prática desses atos de gestão privada relativos à emissão e resgate de certificados de aforro não se subsume na competência dos tribunais administrativos por aplicação da alínea f) do n.º 1 do artigo 4° do ETAF; j) Isto porque o Regime Geral de Emissão de Gestão da Dívida Pública constante da Lei n.º 7/98 (de 3.II), no seu artigo 16.°, estabelece de forma clara que os litígios emergentes das operações de dívida pública direta são dirimidos pelos tribunais judiciais, como também se entendeu na Sentença a quo. k) E, ao contrário do que é entendimento dos Recorrentes, são na verdade todos os litígios que se levantem a propósito de quaisquer atos de gestão privada em matéria de operações de dívida pública direta - incluindo obviamente ações de responsabilidade civil extracontratual derivada desses atos ilícitos de gestão privada - que se encontram sujeitos ao foro civil, nos termos do mencionado artigo 16.° da Lei n.º 7/98; l) E como é evidente, por aplicação do critério previsto no n.º 3 do artigo 7.° do Código Civil, a referida remissão específica e especial para o foro civil contida no artigo 16.° da Lei n.º 7/98 sempre prevalecerá sobre a norma geral posterior da alínea f) do n.º 1 do artigo 4.° do ETAF, no que toca às questões relativas a estes específicos atos de gestão privada. m) Nada há, portanto, para censurar à Sentença recorrida, devendo considerar-se improcedentes as conclusões I a IV das alegações dos Recorrentes; n) Concluindo-se no sentido da manutenção da Sentença a quo, com todas as consequências legais. Nestes termos, e nos demais de Direito, deve o presente recurso jurisdicional ser julgado não provado e totalmente improcedente, com todas as consequências legais. Como é de DIREITO E JUSTIÇA!” O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado em 9 de novembro de 2021, veio a emitir Parecer em 15 de novembro de 2021, pronunciando-se, a final, no sentido de não procedência do recurso. Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento. II - Questões a apreciar Importa apreciar e decidir as questões colocadas pelos Recorrentes, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA, onde se suscita, designadamente, serem os Tribunais Administrativos os materialmente competentes para dirimir a questão suscitada. III – Fundamentação de Facto O Tribunal a quo não fixou qualquer facto como provado ou não provado. IV – Do Direito No que aqui releva, e por forma permitir uma mais eficaz visualização do que aqui está em causa, transcreve-se o essencial do discurso fundamentador da decisão proferida em 1ª Instância: “(…) Como se viu, ambos os RR. vêm suscitar – ainda que em termos não absolutamente coincidentes – a incompetência, em razão da matéria, deste Tribunal para conhecer do dissídio aqui trazido a juízo pelos AA.. (…) Conforme a própria parte dá conta, o entendimento por si advogado corresponde, no essencial, àquilo que foi acordado pelo Tribunal Central Administrativo Sul, em 02.03.2017, no âmbito do processo n.º 1396/16.8BELSB, em que este órgão jurisdicional preconizou que: “Estatui o nº 1 do artigo 1º que “Os tribunais de jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações administrativas e fiscais”. E o artigo 4° do ETAF, enuncia, exemplificativamente, as questões ou litígios, sujeitos ou excluídos do foro administrativo, umas vezes de acordo com a cláusula geral do referido artigo 1°, outras em desconformidade com ela. Aquele normativo define, no âmbito da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, além de outras, a competência para apreciação de litígios que tenham por objeto a tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares diretamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal, ou decorrentes de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal. Ou seja, e em aproximação ao termos do presente litígio, importa averiguar se as normas que estão na base da pretensão do autor são de cariz administrativo e/ou respeitantes a litígios emergentes das relações jurídico-administrativas, pois nesse caso – e só nesse caso - os tribunais administrativos são materialmente competentes. A Agência de Gestão de Tesouraria e da Dívida Púbica – IGCP, EPE, é a entidade pública a quem compete, nos termos do Decreto-Lei n.º 200/2012 de 27 de agosto, gerir, de forma integrada, a tesouraria, o financiamento e a dívida pública direta do Estado, a dívida das entidades do sector público empresarial cujo financiamento seja assegurado através do Orçamento do Estado e ainda coordenar o financiamento dos fundos e serviços dotados de autonomia administrativa e financeira. (…) O IGCP, E.P.E., é uma pessoa coletiva de direito público com natureza empresarial, dotada de autonomia administrativa e financeira, e património próprio, e está equiparado a instituição de crédito. (…) Por outro lado, olhando para o contrato de adesão de subscrição de certificados de aforro constata-se que o contrato não se celebra ao abrigo de normas de direito administrativo mas sim ao abrigo de normas de direito privado, que o Estado não se coloca numa posição de supremacia em relação ao subscritor e este não fica sujeito à autoridade do Estado, porquanto o aforrista é livre de subscrever Certificados de Aforro, nas condições que o Estado oferece uniformemente a todos os potenciais subscritores e as cláusulas do contrato de subscrição de Certificados de Aforro não demonstram qualquer desequilíbrio exorbitante dos direitos do Estado em relação ao particular. Em bom rigor, o contrato resume-se à compra das unidades que o subscritor entenda, ao pagamento dos respetivos juros pelo Estado e, por fim, ao resgate dos Certificados de Aforro pelo aforrista (recebendo o capital que investiu, ou, se for o caso, no vencimento do título a transmissão do capital para o aforrista). Tais cláusulas que regem o contrato de subscrição de certificados de aforro constam do respetivo regime jurídico do instrumento financeiro em causa, neste caso certificados de aforro designados da "série B" (Decreto-Lei n.º 172-8, de 30 de junho). Na verdade, tal por si alegado, quando a ora Recorrente comercializa este tipo de produtos financeiros do Estado atua em equiparação a uma instituição de crédito e ao abrigo das normas de direito privado, conforme resulta do n.º 2 do artigo 1.º dos seus Estatutos (aprovados em anexo ao Decreto-Lei n.º 200/2012, de 27 de agosto) e do n.º 1 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de outubro. Donde, neste domínio, o Estado não exerce um qualquer ato de autoridade no âmbito do direito público e do direito administrativo. E no que respeita ao envio dos valores dos CA prescritos para o do Fundo de Regularização da Dívida Pública, tal deriva de os Certificados de Aforro das séries A e B prescreverem a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública (FRDP) no prazo de 5 anos a contar do falecimento do titular, caso este tenha ocorrido antes de 4 de maio de 1997, ou no prazo de 10 anos, no caso de ter falecido depois dessa data (artigos 18.º e 19.º do Decreto-Lei n.º 43.454, de 30.12.1960, na redação do art. 13.º do Decreto-Lei n.º 122/2002, de 4 de Maio e art. 7 do Decreto-Lei n.º 172-B/86, na redação do art. 12.º do referido Decreto-Lei n.º 122/2002). Assim sendo, salvo o devido respeito, não se deteta nem subjetiva nem objetivamente, qualquer elemento de conexão que permita identificar a relação jurídica em causa como relação jurídico-administrativa. Tal como conclui a Recorrente: “22. O Estado aqui exerce um ato de mera gestão quando por meio do direito privado entende comercializar a dívida pública no mercado dos produtos financeiros, em regime de concorrência aberta com outras entidades privadas disputando assim as disponibilidades financeiras dos investidores. // 23. Assim, reiteramos que não estamos perante um litígio emergente de relações jurídicas administrativas e fiscais, como determinada o n.º 3 do artigo 212.º da CRP, e bem assim os artigos 1.º e 4.º do ETAF mas sim perante normas de direito privado.” As relações que aqui ocorrem, circunscrevem-se às normais relações suscetíveis de ocorrer nas instituições financeiras. E se dúvida existisse, sempre não subsistiria à previsão legal contida no artigo 15.º da Lei n.º 7/98, de 3 de fevereiro (na redação da Lei n.º 87-B/98, de 31 de dezembro) diploma que estabelece o regime jurídico da dívida pública, da qual os certificados de aforro são títulos representativos. Aí se dispõe que: “Os litígios emergentes das operações de dívida pública direta serão dirimidos pelos tribunais judiciais, devendo as competentes ações ser propostas no foro da comarca de Lisboa, salvo se contratualmente sujeitas a direito e foro estrangeiro”. Aliás, tal foi a posição expressamente assumida na declaração de voto do Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Dr. A……., no acórdão do STA de 1.10.2015, proc. n.º 619/15, que lapidarmente concluiu que “a jurisdição administrativa é incompetente para julgar o litígio em causa, pois o mesmo emerge de uma relação jurídica de direito privado”. Assim, ao abrigo do disposto nos artigos 13.º do CPTA e 97.º, nº 1, do CPC, Ex vi do artigo 1º do CPTA, terá que declarar-se os Tribunais Administrativos materialmente incompetentes para apreciarem e decidirem o pedido de intimação formulado no presente processo, por a mesma competência pertencer aos Tribunais Judiciais”. Concordando-se com o essencial da orientação postulada pelo Tribunal Central Administrativo Sul – maxime, no que tange à natureza jusprivativa da relação estabelecida entre a IGCP e o subscritor dos certificados de aforro por ocasião da celebração do respetivo contrato de adesão, por força dos motivos ali elencados – importa, no entanto, aferir se a mesma pode ser aplicada de plano à situação sub judice. E, a este respeito, e independentemente de o desfecho vir ou não a ser idêntico ao que ali se consignou, é inegável, para este Tribunal, que, in concretu, a pedra de toque para a boa resolução da questão da (in)competência material dos tribunais administrativos não pode radicar, em exclusivo, na qualificação da relação material controvertida como “jurídico-administrativa” – crivo substantivo que, como é sabido, preside, em grande parte dos casos, à delimitação do escopo da jurisdição administrativa. É que, tal como resulta do aresto que acima se transcreveu, em causa naqueles autos estava uma intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, em que os respetivos autores peticionavam a intimação da IGCP “a reconhecer, sem qualquer reserva, o direito de propriedade plena das Autoras sobre os certificados de aforro”, bem como “a não proferir qualquer ato, adotar qualquer conduta ou operação material que impeça, impossibilite e/ou não permita o normal exercício do direito de propriedade plena sobre os sobreditos certificados de aforro, e, por último, e em consequência, seja intimada a transmitir ou a pagar às Autoras os valores constantes dos certificados de aforro, acrescidos da respetiva remuneração até integral pagamento”. (…) Ora, descendo ao caso dos autos de aqui nos ocupamos, da leitura da douta petição apresentada resulta inequivocamente que os AA. se arrogam a um direito de indemnização, por parte dos RR., pelo facto de estes alegadamente terem atuado de forma ilícita, apelando, por isso, à sua responsabilização civil extracontratual. A este respeito, e para o que aqui releva, o artigo 4.º, n.º 1, alínea f), do ETAF estabelece, sem qualquer margem para dissensos interpretativos, que “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a (…) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público” – isto, acrescenta-se, independentemente do regime legal substantivo aplicável e de essa responsabilidade emergir “de uma atuação de gestão pública ou de uma atuação de gestão privada” (neste sentido, vide MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, in “Manual de Processo Administrativo”, 2016, 2.ª edição, Almedina, páginas 166-167). Nestes casos (de responsabilização extracontratual civil de pessoas coletivas de direito público, como é o caso da IGCP, cf. artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 200/2012, de 27.08), a circunscrição do escopo da jurisdição administrativa abdica, então, do critério teleológico que, normalmente, preside a essa operação para a centrar única e exclusivamente num fator estatutário – isto conquanto, claro está, não exista uma qualquer norma especial que defira essa mesma competência a um qualquer outro órgão jurisdicional que não os tribunais administrativos. É que, como explicita MÁRIO AROSO DE ALMEIDA (op. cit., página 154): “A matéria da delimitação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é regulada pelo ETAF no artigo 4º, sofrendo, entretanto, derrogações resultantes de legislação especial, sempre que, num ou noutro diploma, o legislador entende distribuir de modo diferente os litígios pelos tribunais administrativos e fiscais e pelos tribunais judiciais. Na ausência de determinação expressa em sentido diferente, contida em lei avulsa, valem, no entanto, os critérios do ETAF.” (…) Ora, neste conspecto, o artigo 16.º da Lei n.º 7/98, de 03.02, estatui que “Os litígios emergentes das operações de dívida pública direta serão dirimidos pelos tribunais judiciais, devendo as competentes ações ser propostas no foro da comarca de Lisboa, salvo se contratualmente sujeitas a direito e foro estrangeiro”. Vindo os AA. reclamar a condenação da IGCP ao pagamento de uma indemnização, pelo facto de a mesma (juntamente com os C...) ter emitido segundas vias dos certificados de aforro em questão e permitido o respetivo resgate por João Fernandes Festas Generoso Rosado, o qual terá utilizado uma procuração cuja invalidade era manifesta mas terá, ainda assim, sido aceite pelos RR. – atuação que aqueles reputam de ilícita e que constitui, como tal, o âmago da causa de pedir por si expendida para suportar o petitório que vêm a juízo reclamar –, entende este Tribunal que o litígio sub judice, nos termos em que é configurado pelos AA., emerge ainda de operações de dívida pública direta, nos termos e para os efeitos do disposto no supracitado artigo 16.º da Lei n.º 7/98. É que se, por um lado, é o que decorre ainda, crê-se, da letra daquele comando legal; por outro, sempre se dirá que seria de difícil compreensão e concatenação, de um ponto de vista da sistematicidade jurisdicional, que o reconhecimento do direito de propriedade de certificados de aforro competisse aos tribunais judiciais, como aventado pelo Tribunal Central Administrativo Sul, no seu acórdão de 02.03.2017, para que depois se concluísse que o reconhecimento de um qualquer direito indemnizatório decorrente da atuação da IGCP nesse contexto caberia já, de forma fragmentada e sem qualquer justificação válida para esse efeito, aos tribunais administrativos (desde logo, pelo facto de, como acima se assinalou, a relação material controvertida ter lugar numa ambiência jusprivativa, à margem do exercício de quaisquer poderes de autoridade ou da aplicação de normas de direito administrativo). Motivo pelo que se conclui, assim, que a competência para dirimir o presente litígio, na parte que tange à atuação da IGCP, impende sobre os tribunais judiciais, nos termos decorrentes do artigo 16.º da Lei n.º 7/98, de 03.02, como se julgará a final. Idêntica conclusão é aplicável, mutatis mutandis, aos C…: por força do disposto no artigo 16.º da Lei n.º 7/98 que acima se transcreveu, mas, também e desde logo, pelo facto de a assinalada alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF não lhe ser aplicável, pelo facto de não prefigurar uma pessoa coletiva de direito público. Nestes casos, efetivamente, há que chamar à colação a alínea h) daquele preceito, segundo a qual cabe “aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: (…) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público”. Em complemento do que antecede, importa, então, compulsar o disposto no artigo 1.º, n.º 5, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, anexo à Lei n.º 67/2007, de 31.12, nos termos do qual “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas coletivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas coletivas de direito privado e respetivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por ações ou omissões que adotem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo”. Ora, em face de todos os considerandos que acima se expenderam – desde logo, aqueles que foram superiormente tecidos pelo Tribunal Central Administrativo Sul, no aresto a que retro se fez alusão e cuja orientação, como se disse, aqui se subscreve, sem reservas – resulta notório, a fortiori sensu, que, à semelhança do que sucede com a IGCP, também no caso dos C… não se verifica aqui “nem subjetiva nem objetivamente, qualquer elemento de conexão que permita identificar a relação jurídica em causa como relação jurídico-administrativa”. Assim, ao permitir o resgate dos certificados de aforro em questão, não se alvitra aí a prática de um qualquer ato com prerrogativas de poder público ou que o seu comportamento surja regulado por normas de direito administrativo, pelo que também neste conspecto não se afigura possível reconhecer a competência material para que este Tribunal conheça do litígio aqui trazido à sua apreciação.” Vejamos: Como se sumariou no citado Acórdão do TCAS nº 1396/16.8BELSB de 02.03.2017: “i) O IGCP, E.P.E., é uma pessoa coletiva de direito público com natureza empresarial, dotada de autonomia administrativa e financeira, e património próprio, e está equiparado a instituição de crédito, como decorre do seu Estatuto, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 200/2012 de 27 de agosto. ii) A subscrição de certificados de aforro é operada por contrato de adesão que não é celebrado ao abrigo de normas de direito administrativo, mas sim ao abrigo de normas de direito privado. iii) Quando o IGCP, E.P.E., comercializa este tipo de produtos financeiros do Estado, atua em equiparação a uma instituição de crédito e ao abrigo de normas de direito privado, conforme resulta do n.º 2 do artigo 1.º dos seus Estatutos (aprovados em anexo ao Decreto-Lei n.º 200/2012, de 27 de agosto) e do n.º 1 do artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 133/2013, de 3 de outubro. iv) Emergindo a relação jurídica em causa de uma relação jurídica de direito privado, a jurisdição administrativa é materialmente incompetente para julgar o litígio em causa. v) Nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 7/98, de 3 de fevereiro (na redação da Lei n.º 87-B/98, de 31 de dezembro), diploma que estabelece o regime jurídico da dívida pública, da qual os certificados de aforro são títulos representativos: “Os litígios emergentes das operações de dívida pública direta serão dirimidos pelos tribunais judiciais, devendo as competentes ações ser propostas no foro da comarca de Lisboa (…)”. Refira-se, desde já, que a decisão recorrida, é para manter, por não padecer de qualquer dos invocados erros de direito, nomeadamente, por violação do disposto na alínea f) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 4.° do ETAF. Originariamente, vieram os Autores, aqui Recorrentes, peticionar a condenação dos Demandados IGCP e C… no pagamento de uma indemnização de valor correspondente a um conjunto de certificados de aforro que entendem ser da sua propriedade e que os Demandados terão permitido que fossem resgatados ilegitimamente por terceiro. Estaria em causa a responsabilidade civil extracontratual dos Recorridos que, por força da adoção de comportamentos ilícitos, teriam causado um dano aos Recorrentes, pelo que seria aplicável a alínea f) do n.º 1 do artigo 4.° do ETAF que determinaria a competência material da jurisdição administrativa para a apreciação dos litígios que tivessem por objeto questões relativas à responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, como é o caso do IGCP. Não obstante o referido, logo na PI não é identificado qualquer comportamento do IGCP ou dos C… suscetível de equivaler a “ações ou omissões adotadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo” (cf. artigo 1,°, n.º s 1 a 5 da Lei n.º 67/2007). Assim, mostrar-se-ia, desde logo, inaplicável a alínea f), g) ou h) - do n.º 1 do artigo 4° do ETAF, que limita a competência dos tribunais administrativos para julgar as ações relativas a responsabilidade civil extracontratual de pessoas coletivas públicas por atos ilícitos praticados no exercício da função administrativa. É certo que o n.º 1 do artigo 4.° do ETAF atribui ainda à jurisdição administrativa a competência para apreciar os litígios que tenham por objeto questões relativas à responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, independentemente de se tratar de responsabilidade derivada de atos de gestão pública ou de atos de gestão privada. Efetivamente, com a reforma de 2002, o ETAF operou um alargamento da competência contenciosa dos tribunais administrativos, passando a atribuir-lhes também o julgamento das questões de responsabilidade civil extracontratual que envolvam pessoas coletivas públicas, sem qualquer distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada. Assim, a alínea f) do n.º 1 do artigo 4.° do ETAF abrange também a responsabilidade civil extracontratual de pessoas coletivas públicas por atuações ilícitas de direito privado, regulada substantivamente no Código Civil (cf. artigo 483.° e segs.). No entanto, tal não significa que sejam os tribunais administrativos os competentes para julgar o litígio em presença, tal como decidido em 1ª instância, pois que estamos manifestamente perante atos de gestão privada reservados à jurisdição comum. Efetivamente, o IGCP, nos termos do Decreto-Lei n.º 200/2012 (de 27.VIII), é uma pessoa coletiva pública com natureza empresarial, dotada de autonomia administrativa e financeira, património próprio e com equiparação a instituição de crédito. Na controvertida situação, está em causa um pedido indemnizatório decorrente de alegadamente os Demandados, aqui Recorridos, terem atuado de forma ilícita, permitindo que certificados de aforro emitidos pelo IGCP, tivessem sido irregularmente resgatados por individuo terceiro, sem legitimidade para o efeito. Como evidenciado em 1ª Instância e decorria já do precedente e citado acórdão deste TCAS face a questão análoga, logo no contrato de adesão de subscrição de certificados de aforro, resulta que o contratualizado não é celebrado ao abrigo de normas de direito administrativo, mas antes ao abrigo de normas de direito privado. Como afirmado no citado Acórdão do TCAS nº 1396/16.8BELSB de 02.03.2017, “em bom rigor, o contrato resume-se à compra das unidades que o subscritor entenda, ao pagamento dos respetivos juros pelo Estado e, por fim, ao resgate dos certificados de aforro pelo aforrista (recebendo o capital que investiu, ou, se for o caso, no vencimento do título a transmissão do capital para o aforrista). É, pois, incontornável que quando o IGCP comercializa este tipo de produtos financeiros do Estado, atua em equiparação a uma instituição de crédito e ao abrigo de normas de direito privado, conforme resulta do n.º 2 do artigo 1.° dos seus Estatutos (o citado Decreto-Lei n.º 200/2012). Como igualmente se afirmou na Sentença proferida no Tribunal a quo, o Regime Geral de Emissão de Gestão da Dívida Pública constante da Lei n.º 7/98 (de 3.II), no seu artigo 16.°, estabelece que “os litígios emergentes das operações de dívida pública direta serão dirimidos pelos tribunais judiciais (...)”. Como mais se refere na Sentença a quo, “... seria de difícil compreensão e concatenação, de um ponto de vista de sistematicidade jurisdicional, que o reconhecimento do direito de propriedade de certificados de aforro competisse aos tribunais judiciais, como aventado pelo Tribunal Central Administrativo Sul, no seu acórdão de 02.03.2017, para que depois se concluísse que o reconhecimento de um qualquer direito indemnizatório decorrente da atuação da IGCP nesse contexto caberia já, de forma fragmentada e sem qualquer justificação válida para esse efeito, aos tribunais administrativos (desde logo, pelo facto de, como acima se assinalou, a relação material controvertida ter lugar numa ambiência jusprivativa, à margem do exercício de quaisquer poderes de autoridade ou da aplicação de normas de direito administrativo”. Na realidade, o artigo 16.° da Lei n.º 7/98 não distingue, limitando-se a remeter para a jurisdição comum a competência para apreciação dos litígios emergentes das operações de dívida pública direta, encontrando-se assim abrangidos os litígios derivados de eventual responsabilidade civil das pessoas coletivas públicas pela prática de eventuais atos ilícitos de gestão privada relacionados com operações de dívida pública. Assim sendo, apenas haveria violação da alínea f) do n.º 1 do artigo 4.° do ETAF se estivessem em causa atos praticados pelo IGCP ao abrigo de prerrogativas de autoridade, o que não é aqui o caso. No que concerne já aos C…, como igualmente se afirmou em 1ª instância e tenho os mesmos uma intervenção meramente instrumental enquanto intermediário das operações financeiras estabelecidas entre os particulares e o IGCP, são-lhe aplicáveis, mutatis mutandis, nos termos do mesmo artigo 16.º da Lei n.º 7/98 as mesmas regras, não lhe sendo, assim e igualmente, aplicável o estatuído na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, por se não tratar de uma pessoa coletiva de direito público e estar em causa uma atividade de natureza privada e financeira. Assim, confirmar-se-á a sentença Recorrida. * * * Deste modo, em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao Recurso, confirmando-se a Sentença Recorrida. Custas pelos Recorrentes Lisboa, 14 de julho de 2022 Frederico de Frias Macedo Branco Alda Nunes Lina Costa |