Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2040/17.1BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:05/06/2021
Relator:CATARINA JARMELA
Descritores:NORMA REGULAMENTAR – PARECER DO CONSELHO CONSULTIVO DA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA – ACTO DE APROVAÇÃO DO REGULAMENTO
Sumário:I É uma norma regulamentar o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, homologado pelo Ministro da Saúde e publicado na 2ª Série do Diário da República, que fixa a doutrina ao abrigo da qual as entidades públicas do universo orgânico do Ministério da Saúde podem (devem) decidir as situações concretas que tenham de conhecer relativas à recusa individual por parte dos enfermeiros com título de especialista de exercerem funções incluídas no conteúdo funcional estabelecido legalmente para a categoria de enfermeiro, com o fundamento de não existir diferenciação remuneratória.

II – O acto de homologação referido em I não é um acto administrativo, antes se consubstanciando num trâmite procedimental da fase constitutiva do referido Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, concretamente corresponde à sua aprovação, marcando o momento de perfeição desse regulamento.
Votação:UNANIMIDADE com declaração de voto
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
I – RELATÓRIO

Ordem dos Enfermeiros intentou no Tribunal Administrativo de Círculo (TAC) de Lisboa o presente processo cautelar contra o Ministério da Saúde, no qual peticionou [na sequência de despacho proferido em 12.9.2018, que - dando cumprimento ao Ac. do TCA Sul de 19.4.2018 - ordenou a notificação para efeitos de substituição da petição apresentada, a fim de ser requerida a adopção de providência cautelar, nos termos do art. 110º-A n.º 1, do CPTA]:
- a suspensão da eficácia do acto administrativo de 20.7.2017 que homologou o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República de 19.7.2017, publicado no DR, 2ª Série, de 14.8.2017, com o n.º 18/2017;
- o conhecimento antecipado da acção principal, ao abrigo do art. 121º, do CPTA.

Por despacho de 14.1.2019 o mencionado Tribunal determinou a notificação das partes para, querendo, se pronunciarem sobre a questão que aí foi suscitada nos seguintes termos:
prefigura-se a este Tribunal que o quid sobre o qual o pedido de suspensão de eficácia ora formulado incide pode configurar uma norma (ou conjunto de normas) emitida ao abrigo de disposições de direito administrativo – cuja impugnação e suspensão obedecem, como é sabido, a pressupostos processuais específicos (cf. artigos 72.º, 73.º e 130.º, todos do CPTA) – e não a um acto administrativo, como é ensaiado pela parte.”.

As partes emitiram pronúncia na sequência da prolação deste despacho de 14.1.2019.

Por despacho de 2 de Maio de 2019 do referido Tribunal foi indeferido o pedido de antecipação do juízo sobre a causa principal e, por sentença dessa mesma data, o TAC de Lisboa - e após considerar que o quid sobre o qual o pedido de suspensão da eficácia incide configura uma norma (ou conjunto de normas) emitida ao abrigo de disposições de direito administrativo - declarou-se “materialmente incompetente para conhecer do dissídio, nos termos conjugados do artigo 72.°, n.° 2, do CPTA e do artigo 281.°, n.° 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa” e, em consequência, absolveu o Ministério da Saúde da instância.

Inconformada, a requerente interpôs recurso jurisdicional para este TCA Sul desse despacho e dessa sentença, tendo na alegação apresentada formulado as seguintes conclusões:
«A) Em causa no presente processo está um pedido de suspensão de eficácia do ato de homologação por Sua Excelência o Ministro da Saúde do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, emitido em resposta a um pedido de Sua Excelência o Secretário de Estado da Saúde, sobre o Parecer n.° 54/2017, do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros.
B) A Sentença deu como indiciariamente provados diversos factos, conforme factos elencados na página 7 e seguintes da mesma, não tendo, no entanto, dado como provado factos que para além de estrem também provados (por prova documental) eram relevantes para a decisão da causa.
C) Desde logo, o facto do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República ter como objeto a situação concreta dos Enfermeiros Especialistas de Saúde Materna e Obstétrica que, em inícios de junho de 2017, começaram a enviar aos Conselhos de Administração dos seus Hospitais, bem como a Sua Excelência o Ministro da Saúde, ofício ao abrigo dos quais, a final, avisavam que a partir do mês de julho, passariam a desempenhar apenas cuidados de enfermagem gerais, de acordo com o conteúdo contratual estabelecido no contrato de trabalho.
D) Sendo que, tal facto se encontra corroborado pelos documentos juntos pela ora Recorrente, bem como pelo teor do próprio Parecer que, no Capítulo II, reproduz o pedido de parecer de Sua Excelência o Secretário de Estado da Saúde, "com vista a uma melhor compreensão e enquadramento das questões colocadas”.
E) Para além desse enquadramento reproduzido, resulta ainda claro das perguntas a que o Parecer responde que ser a de saber se “quanto ao enquadramento e consequências da eventual recusa de funções pelos enfermeiros especialistas dos serviços e estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde, pelos motivos supra explanados, sobretudo se dela vier a decorrer impedimento ao normal e adequado funcionamento dos serviços, com o inerente risco para os cidadãos/utentes”.
F) A demonstração desta factualidade é essencial para se demonstrar que o Parecer aqui em causa constitui um ato administrativo, ainda que geral, mas não um ato normativo, na medida em que lhe falta a generalidade e abstração.
G) Para além disso, a Sentença erra ainda quando não obstante reconheça que a ora Recorrente alega ao longo do seu Requerimento Inicial que o Parecer em causa incorre em erros nos pressupostos de facto e de direito, conclui que os tribunais administrativos não são competentes para o presente dissídio, pelo facto de apenas estar invocado o vício da inconstitucionalidade de um ato normativo;
H) No que se refere à matéria de direito, a Sentença recorrida erra na sua aplicação quando decide, num primeiro momento, pela inimpugnabilidade do ato, ao considerar que o mesmo não tem eficácia externa, o que é falso, na medida em que estamos perante um Parecer Vinculativo para todas as instituições que prestam cuidados de saúde e nos quais os Enfermeiros exercem funções, contendo por isso uma pré-decisão e que produz efeitos tanto na esfera jurídica destas instituições, como dos seus trabalhadores.
I) Sem prejuízo, e mesmo que assim não se entendesse, a Sentença, por força dos erros já identificados, nomeadamente na matéria de facto, acaba por também incorrer em erro na aplicação de direito, na medida em que, (i) conclui que o ato em causa - o ato de homologação do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República - não constitui um ato administrativo geral, mas sim um ato normativo, e que (ii) sendo o único fundamento da impugnação desse ato normativo a alegada violação material do artigo 59.° da Lei Fundamental os Tribunais Administrativos não são competentes para o presente dissídio.
(iv) Seguindo os ensinamentos de Paulo Otero, os atos gerais “são atos que, tendo por base uma situação concreta, são de aplicação imediata a um conjunto inorgânico de pessoas determinadas ou determináveis de imediato num certo local, razão pela qual se pode dizer que produzem efeitos plurisubjetivos com eficácia erga omnes", sendo que, “a determinabilidade dos seus destinatários e a circunstância de esgotarem os seus efeitos de imediato, sem possuírem face aos destinatários de cada momento puma aplicação continuada, permite diferenciar os atos administrativos gerais e os atos normativos que têm como característica a generalidade".
J) No mesmo sentido, ensina Diogo Freitas do Amaral que, relativamente aos atos gerais "a designação presta-se a alguma confusão com os atos genéricos, mas trata-se de realidades diferentes. Os «actos gerais» são aqueles que se aplicam de imediato a um grupo inorgânico de cidadãos, todos bem determinados, ou determináveis no local’, sendo que, “estes actos gerais também não devem ser considerados como actos genéricos. Não são normas jurídicas: são ordens concretas dadas a pessoas concretas e bem determinadas, ou imediatamente determináveis. São um feixe de actos administrativos, que se reportam a várias situações individuais e concretas".
K) Da análise do teor do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, resulta claro que, o mesmo, (i) tem subjacente uma situação concreta - o pedido de parecer do Secretário de Estado relativamente aos Enfermeiros detentores do título de Enfermeiros Especialistas que, mediante numerosos requerimentos, manifestaram a sua indisponibilidade para exercerem funções especializadas sem o reconhecimento ou a remuneração correspondente a especialista, e que invocaram como fundamento o Parecer n.° 54/2017, do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiro e relativamente à qual, o Secretário de Estado da Saúde declara que “não se compreendem em que termos é que tal decisão tem suporte legal’, e (ii)Tem aplicação imediata a cada um dos enfermeiros determinados ou determináveis - aqueles que mediante numerosos requerimentos, manifestaram a sua indisponibilidade para exercerem funções especializadas sem o reconhecimento ou a remuneração correspondente a especialista - atenta a posição assumida relativamente ao regime aplicável àquela situação concreta e que não lhe era favorável.
L) Resultando claro que, ao longo do Requerimento Inicial se assaca ao ato (seja ele administrativo ou normativo) o vício de ilegalidade, por erro nos pressupostos de facto e de direito, e reconhecendo o Tribunal a quo, e bem, na Sentença recorrida que, “atenta a natureza especial da ora Recorrente, que a impugnação (e suspensão) da norma de direito administrativo ora em crise tem necessariamente de encerrar uma pretensão de força obrigatória geral: se, por um lado, a Requerente integra inequivocamente o elenco do n.° 2 do artigo 9.° do CPTA, como é afirmado pela própria parte, aplicando-se-lhe, como tal, o disposto nos artigos 73.°, n.° 1, e 130.°, n.° 2, ambos daquele compêndio legal; por outro, não é possível conceber que a impugnação de uma norma visando os enfermeiros detentores de título de especialista pela respectiva ordem profissional, em nome próprio, não detenha essa mesma força obrigatória geral, na medida em que os efeitos da eventual procedência desse mesmo pedido impugnatório não poderão deixar de incidir sobre a totalidade desses mesmos enfermeiros”, então, não é aplicável o disposto no artigo 72.°/2 do CPTA, e como tal os tribunais administrativos são competentes.
M) E isto porque, o artigo 72.°/2 do CPTA apenas se exclui da jurisdição administrativa a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral com qualquer dos fundamentos previstos no n.° 1 do artigo 281.° da Constituição da República Portuguesa, sendo que neste artigo apenas está incluído, para o que ora interessa, a inconstitucionalidade de quaisquer normas, pelo que a ilegalidade dos atos normativos/regulamentos - como é o caso dos autos - é da competência dos tribunais administrativos.
N) A sentença incorre ainda em erro na aplicação do direito quando não reconhece como verificados os pressupostos de que depende o decretamento da providência cautelar.
O) E finalmente, resultando clara a competência dos tribunais administrativos, resulta também claro estarem reunidos os pressupostos para a antecipação da decisão da causa principal, e isto porque, (i) a ação principal de impugnação de ato já foi intentada, correndo em apenso ao presente processo, (ii) já foram trazidos - tanto através do requerimento inicial, como da petição inicial, mas também com a petição inicial de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias - todos os elementos necessários para o efeito, (iii) atenta simplicidade do caso, estão reunidos todos os requisitos para que se possa antecipar o juízo sobre a causa principal. o que desde já se requer.
NESTES TERMOS,
Deve ser concedido provimento ao recurso das Recorrentes, sendo (i) a Sentença recorrida ser revogada por erro na matéria de facto e na aplicação do direito.».


O Ministério da Saúde apresentou contra-alegação de recurso na qual pugnou pela improcedência do recurso.

O Ministério Público junto deste TCA Sul emitiu parecer no sentido da improcedência do presente recurso jurisdicional, posicionamento esse que, objecto de contraditório, não mereceu qualquer resposta.

II – FUNDAMENTAÇÃO
Na decisão recorrida foram dados como indiciariamente provados os seguintes factos:
1. Em data que não foi possível apurar com total exactidão, a Senhora Bastonária da Requerente solicitou ao Conselho Jurisdicional da mesma pessoa colectiva a emissão de parecer incidente sobre o seguinte objecto:
Tem-se verificado, ao nível das entidades de saúde, que a equivalência remuneratória não corresponde à aquisição de competências adquiridas nem ao estatuto atribuído pela Ordem dos Enfermeiros. Que estas mesmas entidades se recusam a atualizar contratos de enfermeiro generalista para enfermeiro especialista, dado não existir na carreira de Enfermagem essa categoria.
Alegam ainda que tendo a Ordem dos Enfermeiros atribuído o título de enfermeiro especialista, a entidade empregadora pode colocar esse enfermeiro a desempenhar essas funções. Tendo o enfermeiro título de especialista atribuído, existe obrigatoriedade de desempenhar funções enquanto enfermeiro especialista, quando o contrato ou a remuneração auferida não está equiparada / actualizada?” (conforme decorre do intróito do parecer CJ 54/2017, cuja cópia se encontra junta a fls. 46-51 dos autos de acção administrativa à qual os presentes autos cautelares se encontram apensados, com o n.º 2040/17.1BELSB-A, no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
2. Em 06.01.2017, o Conselho Jurisdicional da Requerente aprovou o parecer CJ 54/2017, aí concluindo que:
O enfermeiro, nas organizações de saúde, tem apenas a obrigatoriedade de desempenho de acordo com o conteúdo contratual estabelecido (na carreira de enfermagem e/ou no contrato de trabalho), não pode ser obrigado pela organização à prestação de cuidados de enfermagem especializados quando a sua contratação não é relativa a esse título, independentemente de ser titular de título de enfermeiro especialista reconhecido pela Ordem dos Enfermeiros. Quem não “Zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de enfermeiro, promovendo a valorização profissional e científica dos seus membros;” está a desrespeitar o estipulado pelo Ordem dos Enfermeiros. Quando o membro se sentir impotente, para a manutenção da dignidade profissional ou da garantia da qualidade dos cuidados prestados aos clientes, deve “Solicitar a intervenção da Ordem no defesa dos seus direitos e interesses profissionais, para garantia da sua dignidade e da qualidade dos serviços de enfermagem”.
Devido ao reconhecimento da necessidade de cuidados de enfermagem especializados, por parte das organizações de saúde, estas devem vincular os enfermeiros especialistas, com título atribuído pela Ordem dos Enfermeiras, devendo fazer corresponder a categoria profissional e o respectivo reconhecimento salarial, ao seu título.
O conteúdo funcional correspondente à categoria de Enfermeiro, integrando funções objectivamente diferentes em natureza e qualidade, e eventualmente quantidade viola o princípio constitucional a trabalho igual salário igual e o principio da igualdade material.” (cf. cópia do parecer junta a fls. 46-51 dos autos de acção administrativa à qual os presentes autos cautelares se encontram apensados, com o n.º 2040/17.1BELSB-A, no SITAF).
3. Em data que não foi possível apurar com total exactidão, o Requerido solicitou ao Conselho Consultivo da PGR a emissão de parecer incidente sobre o seguinte objecto:
1. O teor do Parecer n.º 54/2017, do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros, designadamente quanto à mencionada violação do Estatuto da mesma Ordem pelos enfermeiros que exerçam funções especializadas, enquadradas nos regimes das correspondentes das carreiras, sem o recebimento de um acréscimo remuneratório específico;
2. Quanto ao enquadramento e consequências da eventual recusa de exercício de funções pelos enfermeiros especialistas dos serviços e estabelecimentos do Serviço Nacional de Saúde, pelos motivos supra explanados, sobretudo se dela vier a decorrer impedimento ao normal e adequado funcionamento dos serviços, com o inerente risco para os cidadãos/utentes.
3. Enquadramento e legitimidade da participação da Ordem dos Enfermeiros em todo este processo, associando a violação dos seus estatutos especificamente a matéria remuneratória/ retributiva, considerando o disposto no n.º 4 do artigo 267.º da Constituição da República Portuguesa” (conforme decorre do intróito do Parecer, cuja cópia se encontra junta a fls. 814-860 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
4. Em 19.07.2017, o Conselho Consultivo da PGR votou o Parecer, por unanimidade (com duas declarações de voto), aí concluindo que:
1.ª O Decreto-Lei n.º 248/2009, de 22 de setembro, que define o regime da carreira especial de enfermagem, estruturou a carreira em duas categorias: enfermeiro e enfermeiro principal, reduzindo assim a duas as anteriores cinco categorias;
2.ª Igualmente o Decreto-Lei n.º 247/2009, de 22 de setembro, que define o regime legal da carreira aplicável aos enfermeiros nas entidades públicas empresariais e nas parcerias em saúde, em regime de gestão e financiamento privados, integrados no Serviço Nacional de Saúde, estruturou a carreira de enfermagem em duas categorias: enfermeiro e enfermeiro principal (cf. n.º 1 do artigo 7.º);
3.ª Os conteúdos funcionais foram também desenhados em termos idênticos nos dois diplomas, incluindo-se no conteúdo funcional da categoria de enfermeiro funções que apenas podem ser desenvolvidas por enfermeiros detentores do título de enfermeiro especialista (cf. artigo 9.º);
4.ª A admissão à categoria de enfermeiro exige a titulação em cédula profissional definitiva atribuída pela Ordem dos Enfermeiros (cf. n.º 2 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 248/2009 e n.º 2 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 247/2009) e a admissão à categoria de enfermeiro principal exige, cumulativamente, a detenção do título de enfermeiro especialista atribuído pela Ordem dos Enfermeiros e um mínimo de cinco anos de experiência efetiva no exercício da profissão (cf. n.º 3 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 248/2009 e n.º 3 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 247/2009);
5.ª O ensino da enfermagem é assegurado através do curso de licenciatura em enfermagem e de cursos de pós-licenciatura de especialização em enfermagem não conferentes de grau académico (cf. artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 353/99, de 3 de setembro);
6.ª O artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa consagra o direito fundamental à retribuição do trabalho e estabelece o princípio de que para trabalho igual salário igual, que a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (n.º 2 do artigo 144.º) e o Código do Trabalho (artigos 270.º e 23.º) concretizam;
7.ª O princípio para trabalho igual salário igual proíbe diferenciações arbitrárias, pelo que o desempenho de trabalho da mesma quantidade, natureza e qualidade, não havendo fatores objetivos de diferenciação, deve ser igualmente remunerado;
8.ª Todavia, o legislador no âmbito da liberdade de conformação que detém, ao definir o conteúdo funcional de uma categoria, e bem assim das categorias que integram uma carreira, está a estabelecer situações de paridade funcional, que, ressalvado o critério da antiguidade, não devem ter tratamento diferenciado;
9.ª No caso vertente, o legislador estruturou a carreira especial de enfermagem e a carreira de enfermagem dos enfermeiros sujeitos ao regime de contrato individual de trabalho em apenas duas categorias, reservando o acesso à categoria de enfermeiro principal aos enfermeiros detentores do título de enfermeiro especialista;
10.ª E, face ao conteúdo funcional da categoria de enfermeiro definido legalmente, tem de se considerar que existe uma situação de paridade funcional relativamente aos que a integram, pelo que a não diferenciação remuneratória dos enfermeiros detentores do título de especialista não implica violação do princípio constitucional de "para trabalho igual salário igual";
11.ª Só por si, a diferença de habilitações não obriga a diferenciação remuneratória;
12.ª O legislador, naturalmente, não está impedido de redesenhar as categorias de enfermeiro, ponderando critérios objetivos relevantes e proporcionais;
13.ª E os profissionais detentores do título de enfermeiro especialista têm legitimidade para defender os seus interesses remuneratórios, tendo, aliás, ao seu alcance a greve - direito fundamental consagrado no artigo 57.º da Constituição e cujo regime jurídico infraconstitucional consta da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas e do Código do Trabalho;
14.ª Todavia, de acordo com os elementos disponíveis, a recusa de prestação de serviço por parte dos enfermeiros com título de especialista, em apreço, não é enquadrável numa greve ou, pelo menos, numa greve em conformidade com a lei, pelo que a não prestação de serviço conduz a faltas injustificadas;
15.ª E, considerando a recusa individual de, no posto de trabalho respetivo, exercer as funções incluídas no conteúdo funcional estabelecido legalmente para a categoria de enfermeiro que integram, com o fundamento de não existir diferenciação remuneratória, os enfermeiros com título de especialista sempre podem/devem ser responsabilizados disciplinarmente;
16.ª Acresce que também não é de afastar a responsabilidade civil dos enfermeiros pelos danos causados aos utentes, quando designadamente não seja salvaguardada a prestação de determinados serviços;
17.ª A Ordem dos Enfermeiros é uma associação pública profissional, cabendo-lhe, em especial, regular o acesso e o exercício da profissão e atribuir o título profissional de enfermeiro e de enfermeiro especialista;
18.ª A Ordem dos Enfermeiros não é uma associação sindical e, por força do disposto no n.º 5 do artigo 3.º do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros, «está impedida de exercer ou de participar em atividades de natureza sindical ou que se relacionem com a regulação das relações económicas ou profissionais dos seus membros»;
19.ª Assim, a Ordem dos Enfermeiros não pode, por exemplo, decidir o recurso a uma greve;
20.ª No que ora releva, a Ordem dos Enfermeiros está sujeita a tutela de legalidade idêntica à exercida pelo Governo sobre a administração autónoma territorial, sendo-lhe aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto na Lei n.º 27/96, de 1 de agosto (cf. n.os 2 e 8 do artigo 45.º da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro);
21.ª A Ordem dos Enfermeiros pode, no âmbito da tutela administrativa, ser sujeita a uma ação inspetiva determinada pelo Ministro da Saúde (cf. n.os 3 e 4 do artigo 45.º da Lei n.º 2/2013 e artigo 123.º do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros), que, sendo caso disso, pode impugnar a legalidade de atos da Ordem nos tribunais administrativos ou fazer a competente comunicação ao Ministério Público para o efeito (cf. artigo 46.º da Lei n.º 2/2013 e artigo 124.º do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros).” (cf. cópia do Parecer junta a fls. 814- 860 dos autos no SITAF).
5. Em 20.07.2017, foi proferido despacho pelo Senhor Ministro da Saúde, homologando o Parecer a que se alude no ponto anterior (cf. cópia do despacho exarado a fls. 814 dos autos no SITAF).
6. Em 14.08.2017, o Parecer a que se alude no ponto 4. supra foi publicado em Diário da República, 2.ª série (cf. cópia do Parecer junta a fls. 142-153 dos autos de acção administrativa à qual os presentes autos cautelares se encontram apensados, com o n.º 2040/17.1BELSB-A, no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).”.


Ao abrigo do art. 662º n.º 1, do CPC de 2013, ex vi art. 140º n.º 3, do CPTA (na redacção dada pelo DL 214-G/2015, de 2/10, tal como as demais referências feitas ao CPTA neste acórdão), procede-se ao aditamento da seguinte factualidade:
7. No parecer a que se alude em 4. - e que consta de fls. 811 a 857, dos autos em suporte digital, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido -, refere-se nomeadamente o seguinte:
II
1. Com vista a uma melhor compreensão e enquadramento das questões colocadas, reproduz -se de seguida o texto que as precedeu.
«1. O Ministério da Saúde tem recebido numerosos requerimentos, subscritos por enfermeiros reconhecidos como especialistas pela Ordem dos Enfermeiros, nomeadamente detentores de Cursos de Pós-Licenciatura de Especialização em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica, manifestando a sua indisponibilidade para exercerem funções especializadas sem o reconhecimento ou a remuneração correspondente a especialista (cf. documento anexo).
2. Como fundamento para esta posição remetem para o parecer n.º 54/2017, do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros, cuja cópia se anexa, no qual se conclui, designadamente, que “Quem não “Zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de enfermeiro, promovendo a valorização profissional e científica dos seus membros; “está a desrespeitar o estipulado pela Ordem dos Enfermeiros.”.
3. É, ainda, referido no mesmo parecer que “devido ao reconhecimento da necessidade de cuidados de enfermagem especializados, por parte das organizações de saúde, estas devem vincular os enfermeiros especialistas, com título atribuído pela Ordem dos Enfermeiros, devendo fazer corresponder a categoria profissional e o respectivo reconhecimento salarial, ao seu título.”
(…)
Conclusões:
Face ao atrás exposto, conclui -se o seguinte:
(…)
4. A recusa dos enfermeiros subscritores dos requerimentos anexos ao presente pedido é alicerçada num parecer do Conselho Jurisdicional da Ordem dos Enfermeiros que refere, designadamente:
(…)
2.2. E no requerimento anexado ao pedido de consulta, referindo aquele parecer, os requerentes informam que irão desempenhar apenas cuidados de saúde gerais, «de acordo com o conteúdo contratual actualmente estabelecido no contrato de trabalho, a partir de 01 de agosto de 2017, caso estas situação não seja regularizada, pelas entidades competentes, até à data estabelecida».”.

*
Presente a factualidade antecedente, cumpre entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional.

As questões suscitadas pela requerente, ora recorrente, resumem-se, em suma, em determinar se:
- o despacho que indeferiu o pedido de antecipação do juízo sobre a causa principal enferma de erro;
- a sentença recorrida incorreu em erro:
- na fixação da matéria de facto;
- ao considerar que o acto de homologação descrito em 5., dos factos provados, é um acto inimpugnável;
- ao considerar que o parecer descrito em 4., dos factos provados, é um acto normativo;
- ao concluir que os tribunais administrativos são incompetentes para conhecer do presente dissídio.

Passando à apreciação de cada um destas questões.


Despacho que indeferiu o pedido de antecipação do juízo sobre a causa principal

Argumenta a requerente que se encontram reunidos os pressupostos para a antecipação da decisão da causa principal [i) a acção de impugnação do acto já foi intentada, ii) já foram trazidos todos os elementos necessários para o efeito, iii) atenta a simplicidade do caso], pelo que o despacho proferido em 2.5.2019 incorreu em erro ao indeferir o pedido de antecipação do juízo sobre a causa principal.

Vejamos.

De acordo com o disposto no art. 121º n.º 1, do CPTA, a decisão de antecipar o juízo sobre a causa principal depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:
a) Que exista processo principal já intentado;
b) Que do processo cautelar constem todos os elementos indispensáveis à tomada de decisão do processo principal;
c) Que a urgência na resolução definitiva do caso ou a simplicidade do mesmo o justifique.

O despacho recorrido indeferiu o pedido de antecipação do juízo sobre a causa principal com base na falta de verificação do pressuposto acima enunciado na alínea c).

A requerente não impugna a afirmação constante do despacho recorrido de que não se encontra preenchido o requisito da urgência, mas já põe em causa a conclusão que nele também consta de que não se encontra preenchido o requisito da simplicidade, falecendo-lhe, no entanto, a razão.

Com efeito, e como se escreveu no despacho recorrido, o referido requisito relativo à simplicidade não se encontra preenchido, pois a situação sub judiceenvolvendo a apreciação de um conjunto de questões processuais com assinalável complexidade, bem como questão de mérito que, embora circunscrita, não pode ser qualificada como linear, implicando a avaliação da sua conformidade com o texto constitucional, com tudo o que isso acarreta.”.

Assim, tendo, desde logo, em conta as questões suscitadas no presente recurso jurisdicional - saber se o acto de homologação descrito em 5., dos factos provados, é (ou não) um acto inimpugnável, se o parecer descrito em 4., dos factos assentes, é (ou não) um acto normativo e se os tribunais administrativos são (ou não) incompetentes para conhecer do presente dissídio [as quais também se colocam na apreciação do processo principal] -, não se pode considerar que se encontra preenchido o requisito relativo à simplicidade.

Assim, tem nesta parte de improceder o presente recurso.


Erro na fixação da matéria de facto

Alega a autora que a sentença recorrida incorreu em erro na fixação da matéria de facto, pugnando pelo aditamento aos factos assentes da factualidade indicada na conclusão C), da alegação de recurso.

Apreciando.

Esta questão já se encontra corrigida por este Tribunal, nos termos supra referidos, ao abrigo dos poderes conferidos pelo art. 662º n.º 1, do CPC de 2013 (cfr. facto aditado como 7.).


Sentença recorrida

Na sentença recorrida considerou-se que:
- o acto suspendendo, isto é, o acto do Ministro da Saúde de 20.7.2017 de homologação do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (CCPGR) - descrito em 5., dos factos provados -, é um acto inimpugnável;
- atentos os princípios pro actione e jura novit curia (art. 7º, do CPTA, e art. 5º n.º 3, do CPC), deverá considerar-se que o pedido de suspensão da eficácia incide sobre norma de direito administrativo (e não acto administrativo), concretamente sobre o Parecer do CCPGR - pois a requerente não assaca qualquer ilegalidade ao acto de homologação, antes estribando o peticionado em vício de que padece o referido Parecer -, o qual é um comando geral e abstracto;
- a suspensão (e impugnação) da eficácia da norma ora em causa (Parecer do CCPGR) encerra uma pretensão de força obrigatória geral - aplicando-se o disposto nos arts. 73º n.º 1 e 130º n.º 2, do CPTA -, pelo que, tendo em conta que a única violação que é imputada a tal norma assenta no art. 59º, da CRP, a requerente peticiona uma tutela que não lhe pode ser dada pela jurisdição administrativa por caber, em exclusivo, ao Tribunal Constitucional, nos termos conjugados do art. 72º n.º 2, do CPTA, e do art. 281º n.º 1, al. a), da CRP.

Alega a requerente que a sentença recorrida incorreu em erro ao considerar que:
- o acto de homologação de 20.7.2017 é um acto inimpugnável;
- o Parecer do CCPGR é um acto normativo;
- os tribunais administrativos são incompetentes para conhecer do presente dissídio.

Passando, então, à apreciação destes alegados erros de julgamento.

Na sentença recorrida o Parecer do CCPGR (tendo em conta a sua homologação pelo Ministro da Saúde) foi qualificado como norma regulamentar (nos segmentos impugnados, isto é, nas suas conclusões 9ª a 15ª) obrigatória (face à sua publicação no Diário da República), com base na seguinte fundamentação:
Ora, nos termos da alínea a) do artigo 37.º do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15.10, com as alterações introduzidas por diplomas ulteriores (“EMP”), “Compete ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (…) Emitir parecer restrito a matéria de legalidade nos casos de consulta previstos na lei ou a solicitação do Presidente da Assembleia da República ou do Governo”.
Nestes casos, estatui o artigo 43.º, n.º 1, do sobredito normativo que “Quando homologados pelas entidades que os tenham solicitado ou a cujo sector respeite o assunto apreciado, os pareceres do Conselho Consultivo sobre disposições de ordem genérica são publicados na 2.ª série do Diário da República para valerem como interpretação oficial, perante os respectivos serviços, das matérias que se destinam a esclarecer” – o que, como se antecipa, foi o que sucedeu in casu, com a homologação do Parecer pelo Senhor Ministro da Saúde e a sua publicação em Diário da República, 2.ª série (cf. factos 5. e 6. firmados supra).

Cumpridas tais diligências, o Parecer passou, assim, a valer como “interpretação oficial” das matérias ali tratadas perante os serviços do Requerido (…)
(…)
Assim, a Requerente contrapõe que o Parecer é, na verdade, um acto administrativo geral, já que, pronunciando-se acerca da possibilidade dos enfermeiros suspenderem o título de especialistas (…) destinar-se-ia, então, a regular (i) uma situação geral e concreta (…).
Ora, (…) no que tange àquele primeiro vector enunciado, não é possível concluir que o mesmo vise regular uma situação geral e concreta.
Senão vejamos:
Tal como vinha sendo reconhecido pacificamente pela jurisprudência e doutrina portuguesas, os actos normativos são caracterizados pelas notas da generalidade e da abstracção, por oposição ao acto administrativo, que em tese se revela individual e concreto.
Isto mesmo viria, de resto, a ser positivado, passando o artigo 135.º do CPA 2015 a prever expressamente que “consideram-se regulamentos administrativos as normas jurídicas gerais e abstratas que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos”.

Neste particular, escrevia, então, DIOGO FREITAS DO AMARAL (in Curso de Direito Administrativo”, Volume II, 2.ª Edição, Almedina, 2014, páginas 180 e 181), ainda com referência ao CPA 1991 mas cujo entendimento continua aqui a deter plena aplicabilidade, que:
Do ponto de vista material, o regulamento administrativo consiste em normas jurídicas.
Quando se afirma que o regulamento tem natureza normativa, estamos a encará-lo enquanto regra de conduta da vida social, dotada das características da generalidade e da abstracção, que, como se sabe, são elemento definidor da norma jurídica.
A característica da generalidade significa que o comando regulamentar se aplica a uma pluralidade de destinatários, definidos através de conceitos ou categorias universais; por seu turno, a característica da abstracção traduz-se na circunstância de o comando regulamentar se aplicar a uma ou mais situações definidas pelos elementos típicos constantes da previsão normativa, isto é, também por conceitos ou categorias universais.
(…)
Diferentemente se passam as coisas com o acto administrativo.
É que o acto administrativo está, em princípio, vocacionado para se aplicar a um único destinatário – um indivíduo, uma pessoa colectiva, uma empresa – e para resolver uma situação concreta, consumindo nela os seus efeitos jurídicos.”.
Recuperando as conclusões do Parecer que aqui se afiguram mais pertinentes, por serem aquelas que, directa ou indirectamente, são contestadas pela Requerente, é ali referido que:
“(…) 9.ª No caso vertente, o legislador estruturou a carreira especial de enfermagem e a carreira de enfermagem dos enfermeiros sujeitos ao regime de contrato individual de trabalho em apenas duas categorias, reservando o acesso à categoria de enfermeiro principal aos enfermeiros detentores do título de enfermeiro especialista;
10.ª E, face ao conteúdo funcional da categoria de enfermeiro definido legalmente, tem de se considerar que existe uma situação de paridade funcional relativamente aos que a integram, pelo que a não diferenciação remuneratória dos enfermeiros detentores do título de especialista não implica violação do princípio constitucional de "para trabalho igual salário igual";
11.ª Só por si, a diferença de habilitações não obriga a diferenciação remuneratória;
12.ª O legislador, naturalmente, não está impedido de redesenhar as categorias de enfermeiro, ponderando critérios objetivos relevantes e proporcionais;
13.ª E os profissionais detentores do título de enfermeiro especialista têm legitimidade para defender os seus interesses remuneratórios, tendo, aliás, ao seu alcance a greve - direito fundamental consagrado no artigo 57.º da Constituição e cujo regime jurídico infraconstitucional consta da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas e do Código do Trabalho;
14.ª Todavia, de acordo com os elementos disponíveis, a recusa de prestação de serviço por parte dos enfermeiros com título de especialista, em apreço, não é enquadrável numa greve ou, pelo menos, numa greve em conformidade com a lei, pelo que a não prestação de serviço conduz a faltas injustificadas;
15.ª E, considerando a recusa individual de, no posto de trabalho respetivo, exercer as funções incluídas no conteúdo funcional estabelecido legalmente para a categoria de enfermeiro que integram, com o fundamento de não existir diferenciação remuneratória, os enfermeiros com título de especialista sempre podem/devem ser responsabilizados disciplinarmente” (sublinhado nosso).
Como se extrai do trecho antecedente, é possível concluir que os comandos transcritos:
(i) São aplicáveis a “uma pluralidade de destinatários”, os quais são definidos “através de conceitos ou categorias universais” (in casu, “enfermeiros com título de especialista”), sendo, como tal, gerais, conforme, de resto, é admitido pela própria Requerente; e
(ii) São sucessivamente aplicáveis a um conjunto de situações, mostrando-se, como tal, abstractos, não sendo possível concluir, como ensaia a Requerente, que se destinem a regular uma qualquer situação concreta.
Com efeito, quer a possibilidade de os enfermeiros especialistas suspenderem os respectivos títulos, quer a possibilidade de marcação de faltas injustificadas e de instauração de procedimentos disciplinares a que ali se alude afigura-se, em tese, de aplicabilidade plúrima, em diferentes situações, espalhadas ao longo do tempo.
(…)
Recuperando, uma vez mais, os ensinamentos de MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA (op. cit., páginas 506 e 510):
A impugnação direta de normas administrativas, desde que possuam eficácia externa e sejam lesivas de direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares, passou a ter consagração constitucional com a revisão de 1997 (artigo 268.º, n.º 5, da CRP). (…)
O requisito de lesividade, que constitui o fundamento da sindicabilidade direta dos regulamentos, parece impor que estes só sejam impugnáveis se possuírem eficácia externa. Só assim se compreende que a legitimidade ativa para a impugnação se encontre atribuída, em primeira linha, a quem seja diretamente prejudicado pela vigência [ou a aplicação] da norma ou possa previsivelmente vir a sê-lo em momento próximo (artigo 73.º, n.ºs 1 e 2).
O contencioso das normas não abrange, por conseguinte, os regulamentos internos, que se dirigem para o interior da própria organização administrativa, sem repercussão direta nas relações entre esta e os particulares”.
Em face do exposto, e ainda que o Requerido assim não o expenda expressamente, poderia, então, considerar-se que o conjunto de comandos de carácter geral e abstracto constantes do Parecer – tornados normas de direito administrativo por força do despacho homologatório que sobre o mesmo incidiu – deteriam unicamente natureza interna, não sendo, por isso, impugnáveis.
Sucede, porém, que tal como escrevem os AUTORES que aqui se vêm acompanhando de perto (op. cit., página 511), “Pode suceder, no entanto, que regulamentos deste tipo [id est, regulamentos internos] extravasem o seu caráter funcional e prescrevam certas disposições respeitantes ao estatuto do pessoal, ao procedimento administrativo, à competência externa dos agentes ou aos direitos e deveres dos particulares em relação aos serviços. Na medida em que se não confinem à estrita relação orgânica ou relação de funcionamento e sejam antes suscetíveis de interferir na relação de serviço ou relação fundamental existente entre a Administração e os funcionários ou de afetar os direitos ou interesses de terceiros, no seu relacionamento com a Administração, essas disposições possuem eficácia externa, pelo que podem ser objeto de impugnação contenciosa” (sublinhado nosso) – entendimento que aqui se acolhe sem reservas.
Ora, analisadas as conclusões do Parecer (homologado), é possível constatar que é precisamente o que sucede in casu: ao aprovar o entendimento de que (i) “a não diferenciação remuneratória dos enfermeiros detentores do título de especialista não implica violação do princípio constitucional de "para trabalho igual salário igual"”; (ii) “a recusa de prestação de serviço por parte dos enfermeiros com título de especialista, em apreço, não é enquadrável numa greve ou, pelo menos, numa greve em conformidade com a lei, pelo que a não prestação de serviço conduz a faltas injustificadas”; e (iii) “considerando a recusa individual de, no posto de trabalho respetivo, exercer as funções incluídas no conteúdo funcional estabelecido legalmente para a categoria de enfermeiro que integram, com o fundamento de não existir diferenciação remuneratória, os enfermeiros com título de especialista sempre podem/devem ser responsabilizados disciplinarmente”, passando então o mesmo a valer como “interpretação oficial, perante os respectivos serviços, das matérias que se destinam a esclarecer”, nos termos e para os efeitos do artigo 43.º, n.º 1, do EMP – ou seja, para as unidades médicas e hospitalares que se encontram sob sua tutela e que são, na prática, as entidades patronais dos enfermeiros detentores do título de especialista que aqui se encontram causa –, inequívoco se torna que tais comandos extravasam claramente o seu “caráter funcional” enquanto instrumento disciplinador do funcionamento dos serviços, indo além da “estrita relação orgânica” existente entre tais entidades e sendo susceptíveis, em tese, de afectar a relação existente entre a Administração, em sentido lato, e esses mesmos enfermeiros.
(…)”.

O entendimento plasmado na sentença recorrida, e ora transcrito, de que as conclusões 9ª a 15ª, do Parecer do CCPGR (homologado pelo Ministro da Saúde), são normas regulamentares - concretamente no segmento em que refere que tais conclusões têm as características de generalidade e abstracção, pois o presente recurso neste segmento restringe-se à impugnação destas questões - , mostra-se acertado face aos argumentos aí elencados, falecendo a razão à requerente quando defende que essas conclusões do Parecer do CCPGR consubstanciam-se num acto administrativo geral, como se passa a demonstrar.

As normas regulamentares - de acordo com o estatuído no art. 135º, do CPA de 2015 (“(…) consideram-se regulamentos administrativos as normas jurídicas gerais e abstratas que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos.”) - caracterizam-se pela generalidade e abstracção [enquanto o acto administrativo é uma decisão individual e concreta - cfr. art. 148º, do CPA de 2015, de acordo com o qual “(…) consideram-se atos administrativos as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta.”].

A generalidade traduz-se na indeterminação dos seus destinatários, sendo certo que, como explica Mário Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo, O Novo Regime do Código do Procedimento Administrativo, 2016, 3ª Edição, pág. 138 “para que exista generalidade, basta (…) que os destinatários não sejam concretamente identificados pelo ato, mas nele apenas surjam definidos por referência a conceitos ou categorias universais” - neste sentido, entre outros, Acs. do STA de 30.1.1992, proc. n.º 29595, 15.1.1997, proc. n.º 20308, 15.6.1999, proc. n.º 44163, 31.10.2002, proc. n.º 48102, 21.5.2008, proc. n.º 162/07, e 14.7.2008, proc. n.º 29319.

A abstracção implica que o comando que se contém no acto (normativo), e como explicita Mário Aroso de Almeida, cit., pág. 139, “não diga exclusivamente respeito à produção de um único efeito jurídico, no qual se esgote, mas seja passível de aplicação ao longo do tempo”, isto é, o respectivo comando não se esgota num acto singular de aplicação, antes é susceptível de ser aplicado a um número indeterminado de casos - neste sentido, entre outros, Acs. do STA de 30.1.1992, proc. n.º 29595, 15.1.1997, proc. n.º 20308, 15.6.1999, proc. n.º 44163, 31.10.2002, proc. n.º 48102, 21.5.2008, proc. n.º 162/07, e 14.7.2008, proc. n.º 29319.

Ora, no caso sub judice verifica-se que, e para o que agora interessa (pois são essas as conclusões que a requerente considera que violam o Direito), a interpretação que consta das conclusões 9ª a 15ª, do Parecer do CCPGR - o qual foi homologado pelo Ministro da Saúde e publicado na 2ª Série do Diário da República -, tornou-se obrigatória [atento o disposto no art. 43º n.º 1, do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei 47/86, de 15/10, na redacção da Lei n.º 60/98, de 27/8 (“Quando homologados pelas entidades que os tenham solicitado ou a cujo sector respeite o assunto apreciado, os pareceres do Conselho Consultivo sobre disposições de ordem genérica são publicados na 2.ª série do Diário da República para valerem como interpretação oficial, perante os respectivos serviços, das matérias que se destinam a esclarecer.”)] para as entidades públicas do universo orgânico do Ministério da Saúde sempre que fossem chamadas a tomar decisões sobre as matérias em causa nessas conclusões, isto é, nessas conclusões fixou-se a doutrina ao abrigo da qual tais entidades podiam (deviam) decidir as situações individuais e concretas que tivessem que conhecer.

Nessas conclusões 9ª a 15ª, do Parecer do CCPGR, não se resolve qualquer situação específica, maxime não se resolve a concreta situação dos enfermeiros com título de especialistas (nomeadamente dos detentores de Cursos de Pós-Licenciatura de Especialização em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica) que manifestaram a sua indisponibilidade para exercerem funções especializadas sem a remuneração correspondente a especialista, a partir de 1.8.2017 [o que motivou à solicitação por parte do Ministério da Saúde do Parecer ora em causa], pelo que as mesmas não podem ser qualificadas de acto administrativo (ainda que geral).

Essas conclusões 9ª a 15ª, do Parecer do CCPGR, só poderiam ser qualificadas de acto administrativo se nelas se individualizasse(m) o(s) enfermeiro(s) com título de especialista - ou seja, se aí se procedesse à respectiva identificação -, se indicasse(m) o(s) dia(s) em que ocorreu a recusa (ilegítima) de exercício de funções e se determinasse a marcação de faltas injustificadas e a instauração de processo disciplinar ao(s) mesmo(s), o que manifestamente não ocorre nessas conclusões.

Assim, as referidas conclusões do Parecer do CCPGR têm de ser qualificadas como normas jurídicas, pois, por um lado, as mesmas aplicam-se a um universo potencialmente indeterminado que se encontra definido por categorias abstractas [enfermeiro com título de especialista], sem individualização de pessoas, e, por outro lado, o que se estatui nessas conclusões [é ilegítima a recusa individual por parte dos enfermeiros com título de especialista de exercerem funções incluídas no conteúdo funcional estabelecido legalmente para a categoria de enfermeiro, com o fundamento de não existir diferenciação remuneratória, a qual determina a marcação de faltas injustificadas e a instauração de processo disciplinar] não se esgota numa única aplicação, antes tendo uma vocação de execução permanente/continuada a toda a recusa individual que venha a ocorrer por parte de um qualquer enfermeiro com título de especialista, sendo certo que, logo que ocorra uma concreta recusa por um determinado enfermeiro com título de especialista, e de acordo com o que se determina nessas conclusões, haverá lugar à prática de um acto administrativo que, considerando contrária ao Direito tal recusa, procede à marcação de faltas injustificadas e instaura processo disciplinar ao enfermeiro individualizado nesse acto administrativo.

Aliás, este entendimento - isto é, que as referidas conclusões do Parecer da CCPGR são normas regulamentares e, portanto, os seus destinatários são definidos por conceitos ou categorias universais, sem individualização de pessoas, e o que aí se estatui não se esgota numa única aplicação, antes volta a aplicar-se sempre que no caso concreto concorrem os elementos da previsão - é aceite pela requerente no requerimento inicial [cfr. maxime os respectivos artigos 42º, parte final, e 65º, parte final (“(…) sempre que um Enfermeiro, contratado para exercer funções de Enfermeiro e integrado na categoria de Enfermeiro, entenda deixar de exercer funções para as quais é necessário Título de Enfermeiro Especialista (…) ver-se-á sujeito a faltas injustificadas e a processos disciplinares, não obstante esteja apenas a cumprir o seu contrato (…)”)] e ainda muito recentemente no requerimento que apresentou na sequência do despacho de 23.3.2021.


Com efeito, em 23.3.2021 a Juíza relatora proferiu o seguinte despacho:
Nos artigos 41º e 42º, do requerimento inicial deste processo cautelar (apresentado na sequência do despacho de 12.9.2018), é alegado o seguinte:
41.º
De referir ainda que, não se ignora que, entretanto entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 27/2018, de 27 de abril, diploma que procedeu à primeira alteração ao Decreto-Lei n.º 122/2010, de 11 de novembro, fixando o montante do suplemento remuneratório devido aos trabalhadores enfermeiros que, quando integrados na categoria de enfermeiro, desenvolvam o conteúdo funcional reservado aos enfermeiro detentores do título de enfermeiro especialista, incluindo os abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 247/2009.
42.º
No entanto, não obstante este diploma – que reconhece toda a razão à Ordem dos Enfermeiros e aos Enfermeiros – o Ministério da Saúde não revogou o seu ato de homologação, pelo que se mantém o interesse na suspensão dos seus efeitos, na medida em que, nos termos do mesmo, os Enfermeiros continuam a não poder recusar exercer funções para as quais não estão contratados, nem são remunerados, ficando sujeitos a responsabilidade disciplinar e ao regime de faltas injustificadas.” (sublinhados nossos).
Em 1.6.2019 entrou em vigor o DL 71/2019, de 27/5, o qual:
- introduziu alterações nomeadamente aos arts. 7º (no qual se passou a prever que a carreira de enfermagem estrutura-se em três categorias: enfermeiro, enfermeiro especialista e enfermeiro gestor) e 9º, do DL 247/2009, de 22/9, e aditou a tal diploma legal designadamente o art. 10º-A (o qual regula o conteúdo funcional da categoria de enfermeiro especialista);
- introduziu alterações nomeadamente aos arts. 7º (no qual se passou a prever que a carreira de enfermagem estrutura-se em três categorias: enfermeiro, enfermeiro especialista e enfermeiro gestor) e 9º, do DL 248/2009, de 22/9, e aditou a tal diploma legal designadamente o art. 10º-A (o qual regula o conteúdo funcional da categoria de enfermeiro especialista);
- regula, no seu art. 8º n.º 2, as condições que têm de estar preenchidas pelos trabalhadores enfermeiros titulares da categoria de enfermeiro para poderem transitar para a categoria de enfermeiro especialista e, no seu art. 9º, o reposicionamento na tabela remuneratória e a integração do suplemento remuneratório devido pelo exercício de funções de enfermeiro especialista (e de funções de chefia).
Nestes termos, notifique a requerente, ora recorrente (Ordem dos Enfermeiros), para, no prazo de 5 (cinco) dias, informar se mantém interesse na presente lide cautelar, com a advertência de que, nada dizendo nesse prazo, se entenderá que perdeu interesse na mesma, com a consequente extinção da instância cautelar, por inutilidade superveniente da lide.”.

Na sequência da notificação deste despacho, a requerente veio dizer que mantém o interesse na presente lide cautelar, já que não foi regularizada a situação de todos os enfermeiros que teriam direito à transição para a categoria de enfermeiro especialista, referindo a este propósito nomeadamente o seguinte:
Nesse sentido, e porque todos esses Enfermeiros continuam a exercer funções de especialistas, sem que para tal estejam contratados e sem que para tal sejam remunerados, naturalmente que a Ordem dos Enfermeiros mantém o interesse na suspensão de efeitos da homologação do Parecer emitido pelo Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República em 19.07.2017, na medida em que, nos termos do mesmo, esses Enfermeiros continuam a não poder recusar exercer funções de especialista, nem suspender os seus títulos, ficando sujeitos a responsabilidade disciplinar e ao regime de faltas injustificadas.”.

Ora, deste requerimento decorre que a requerente reconhece que os destinatários das conclusões 9ª a 15ª, do Parecer do CCPGR (homologado pelo Ministra da Saúde e publicado no Diário da República), não são identificados no respectivo texto e o aí estatuído não se esgota numa única aplicação, antes sendo susceptível de ser aplicado num número indeterminado de situações.

Assim, tem de improceder o presente recurso no segmento em que a requerente defende que o Parecer do CCPGR - nas suas conclusões 9ª a 15ª - é um acto administrativo (geral) e que a sentença recorrida errou ao afirmar que o mesmo é uma norma regulamentar.

Na sentença recorrida também se afirma que o despacho do Ministro da Saúde de 20.7.2017 que homologou o Parecer do CCPGR é um acto inimpugnável, invocando a requerente que a mesma enferma de erro, dado que tal despacho homologatório é um acto administrativo impugnável, mas sem razão, como se passa a demonstrar.

Como acima se explicitou, as conclusões 9ª a 15ª, do Parecer do CCPGR, são normas regulamentares.

Assim sendo, o acto praticado em 20.7.2017 pelo Ministro da Saúde de homologação deste Parecer do CCPGR não é um acto administrativo, antes se consubstanciando num trâmite procedimental da fase constitutiva do referido regulamento - concretamente corresponde à aprovação desse Parecer do CCPGR -, sendo que o acto de aprovação marca o momento de perfeição desse regulamento.

Como a este propósito se sumariou no Ac. do STA de 9.6.1999, proc. n.º 44614:
I - No regime do DL 69/90, compete à câmara municipal a elaboração do PDM, melhor se dirá, do projecto ou proposta de PDM, que instrui com os elementos e anexos necessários e relativamente ao qual abre inquérito público.
II - Pondera depois os resultados do inquérito e submete a versão por que concluiu à aprovação da assembleia municipal.
III - É a aprovação que transforma o projecto ou proposta em PDM.
IV - Depois de aprovado, o PDM é submetido a ratificação do Conselho de Ministros, que lhe confere eficácia.
V - A ponderação dos resultados do inquérito público não implica prática de acto administrativo, tanto mais que a câmara municipal não dispõe nessa fase de poderes para o efeito.
VI - O desatendimento de sugestão ou reparo de munícipe na fase de inquérito público não constitui indeferimento de reclamação.
VII - A reclamação é meio impugnatório de acto administrativo perante o seu autor e o projecto de PDM não constitui acto administrativo.
VIII - As fases de elaboração do PDM pela câmara, entre elas, a sujeição a inquérito público, e a aprovação pela assembleia municipal são simples momentos de um procedimento de formação de normas, não actos administrativos.
IX - Nessa medida, tais actos são insusceptíveis de recurso contencioso.” (sublinhados e sombreado nossos).

Neste aresto escreveu-se designadamente o seguinte:
O recorrente impugnou contenciosamente a decisão da Câmara Municipal da Nazaré que indeferiu reclamação sua contra o Plano Director Municipal dessa cidade e a deliberação da Assembleia Municipal que o aprovou.
O Mm°. Juiz do Tribunal “a quo” rejeitou o recurso por considerar que qualquer desses actos não reveste a natureza de acto administrativo.
É contra esta decisão que o interessado se insurge, defendendo a legalidade na interposição do recurso.
Vejamos então.
(…)
Da resenha efectuada resulta, que os planos municipais, categoria em que, segundo se viu, estão incluídos os planos directores municipais, não dispõem sobre as condições de utilização urbanística de cada parcela do território municipal, conhecida e individualizada, antes contêm regras gerais destinadas a todos os que sejam ou venham a ser titulares de direitos reais sobre imóveis situados no âmbito espacial da sua aplicação, como decorre além do mais, do n° 2 al. a) do artigo 5° que inclui nos objectivos dos planos a definição e estabelecimento dos princípios e regras para a ocupação, uso e transformação do solo.
As suas prescrições são dotadas de generalidade e de abstracção.
(…)
A generalidade e a abstracção são características do acto normativo" (cfr. acórdão do Pleno, de 10/2/99, rec. 30.762).
De concluir, pois, que o plano director municipal, no caso concreto, o da Nazaré, que contém os elementos impostos pelo DL 69/90, constitui não só do ponto de vista formal, mas também materialmente um regulamento.
Nessa medida é um acto único, embora a sua formação seja faseada, e a sua validade só pode ser apreciada globalmente com referência aos seus elementos constitutivos, como se acentua no já citado acórdão de 17/10/95, rec. 35.829.
O desatendimento do reparo feito pelo recorrente ao PDM da Nazaré que tem de haver-se como integrado na ponderação do inquérito referido no artigo 14°, e a aprovação pela Assembleia Municipal mais não seriam do que momentos ou fases da formação dessa unidade de natureza normativa, nessa medida inimpugnáveis contenciosamente.
Mas o recorrente autonomiza esses momentos e elege-os como objecto material do recurso contencioso, insistindo em que configuram actos administrativos lesivos, já que, em sua opinião, “quer o acto da Câmara que rejeitou a reclamação... contra o P.D.M. da Nazaré na fase de inquérito publico quer o acto da Assembleia Municipal que aprovou o mesmo P.D.M. com todas as suas ilegalidades e até inconstitucionalidades são indubitavelmente actos administrativos definitivos e executórios... ".
Perante esta posição, haverá antes de mais que precisar conceitos.
O recorrente caracteriza como reclamação o seu reparo ao PDM. Ora, como é de há muito entendimento assente, agora acolhido no CPA, artigos 158°, n° 2, al. a) e 161°, a reclamação é o meio de impugnação do acto administrativo perante o seu próprio autor.
As observações produzidas na fase de inquérito prevista no artigo 14°do DL 69/90 traduzem uma outra realidade. Correspondem a uma forma de realização do princípio da participação das populações a que o artigo 7°, nº 1, al. b) do CPA faz apelo quando dispõe que os órgãos da Administração Pública devem actuar em estreita colaboração com os particulares, procurando assegurar a sua adequada participação no desempenho da função administrativa, cumprindo-lhe, designadamente, apoiar e estimular as iniciativas dos particulares e receber as suas sugestões e informações.
Não têm natureza impugnatória do PDM, nesta fase ainda em elaboração. Representam antes um modo de participar no procedimento de formação do plano.
Tanto assim é que a legitimidade para apresentar observações e sugestões ao abrigo do artigo 14° não depende da titularidade de um específico interesse em vias de ser lesado, mas antes da simples qualidade de munícipe (cfr. neste sentido o acórdão de 22/11/94, rec. 34.800).
Para além de a intervenção do recorrente não ser configurável como reclamação, também a actuação camarária não pode ser qualificada de indeferimento.
Dos nºs. 1 e 2 do artigo 3° do DL 69/90 resulta que a elaboração dos planos municipais compete à Câmara Municipal. Cabe à assembleia municipal aprová-los.
No exercício da sua competência, a Câmara elabora um projecto que instrui com os elementos previstos nos artigos 10° e 11°, os anexos do artigo 12° e os pareceres impostos pelo artigo 13° e procede depois, por imperativo do n° 1 do artigo 14°, à abertura de inquérito público que, nos termos do n° 2, consiste "na recolha de observações sobre as disposições dos planos municipais, na sequência da exposição destes... ".
Em obediência ao n° 6 do mesmo artigo, findo o período de inquérito público, a câmara municipal pondera os resultados deste antes de submeter os planos à assembleia municipal para aprovação.
Observa-se no acórdão de 17/10/95, rec. 35.829, que é a aprovação que confere validade ao plano. Poder-se-ia também dizer que ela transforma em plano o que até aí era simples projecto ou proposta.
Por último, a ratificação por resolução do Conselho de Ministros, nos termos dos artigos 3°n° 3 e 16°, confere eficácia ao plano director municipal.
De tudo advém que, na sua intervenção após o período do inquérito público, a câmara não defere ou indefere os reparos dos munícipes, porque para tanto não dispõe de poderes. Pondera os resultados do inquérito e a sua ponderação mais não é do que um outro elemento instrutório a considerar pela assembleia municipal quando delibera com vista a aprovar. Assim é porque a câmara não intervém aqui no exercício de poderes de autoridade. Desencadeia o processo de formação do plano, que vem a concluir-se, a nível da administração local, com a aprovação.
A apreciação camarária das observações dos munícipes a respeito do plano não envolve decisão, seja ela de rejeição ou de acolhimento, mas o exprimir de uma opinião sobre a sua atendibilidade, que se insere na instrução do procedimento administrativo.
Em síntese, não se pode falar de reclamação nem de indeferimento.
De reclamação, ao menos em sentido técnico, porque não tem por objecto um acto administrativo.
De indeferimento, porque a câmara nada decide, por para tanto não dispor de poderes, antes emite uma opinião.
Bem se decidiu, pois, ao considerar que o procedimento camarário não constitui um acto administrativo.
O mesmo sucede com a deliberação da Assembleia Municipal, que tem como efeito não a produção de um acto individual e concreto, mas a aprovação de um regulamento.
Em qualquer dos casos estamos, como já se adiantara, perante momentos ou fases de procedimento de formação de normas.
Improcedem, pois, todas as conclusões da alegação.” (sublinhados nossos).

E conforme se sumariou no Ac. do STA de 11.11.2003, proc. n.º 1215/02:
(…)
III - A impugnação da aprovação por Resolução do CM de um PEOT por vícios do procedimento e de fundo refere-se a um momento de formação das normas e a vício das próprias normas respectivamente e não a actos administrativos.
IV - Como contencioso de normas, mesmo quando se impugne apenas a legalidade externa do plano através de vícios relativos ao sujeito ao procedimento e à forma, o objecto da impugnação (no caso declaração de ilegalidade) não pode ser o acto (a Resolução do Conselho de Ministros) mas terá de ser sempre a norma ou as normas do plano, visto que aquele acto não tem outro conteúdo que não seja o plano especial aprovado, tal como não se pede a declaração de inconstitucionalidade formal da deliberação do Conselho de Ministros que aprovou um decreto lei sem observância de uma formalidade exigida, mas sim a declaração de inconstitucionalidade formal das normas de tal diploma” (sublinhados nossos).

Neste aresto esclarece-se a este propósito o seguinte:
A questão prioritária a decidir é a da recorribilidade da deliberação do Conselho de Ministros nos termos em que é recorrida, isto é como acto administrativo.
Comecemos então por enfrentar e decidir esta questão.
O Plano de Ordenamento da Albufeira da Caniçada (POAC) foi objecto de revisão ao abrigo do regime jurídico resultante do DL 380/89, de 22 de Setembro e, uma vez que se trata de um Plano da iniciativa e responsabilidade da Administração Central, do tipo Plano Especial de Ordenamento do Território, (PEOT) a respectiva aprovação é um acto da competência do Conselho de Ministros ao qual as considerações da recorrente sobre a aprovação integrativa da eficácia de outro acto não são aplicáveis, uma vez que se reportam ao acto secundário de aprovação, que pressupõe a prévia adopção por outro ente público de um acto jurídico sobre o qual recai depois a aprovação.
Não está nestas condições a aprovação efectuada pela Resolução impugnada que surge como acto primário que põe termo ao processo especial de revisão do Plano sem se confundir com a aprovação integrativa de eficácia de outro acto. Isto é, a Resolução do Conselho de Ministros adopta a proposta de plano elaborada pela entidade departamento ou serviço que tenha sido designada para o elaborar nos termos do processo genético dos planos especiais de ordenamento regulado pelos artigos 46.º; 47.º; 48.º e 49.º do DL 380/99, de 22 de Setembro a que podemos chamar processo regulamentar em contraposição ao designado processo legislativo.
Assim, a aprovação do POAC pelo Conselho de Ministros contém as opções e a regulação das situações a que se dirige sendo a expressão da vontade administrativa da entidade aprovante.
Importa também determinar como se estrutura a relação deste acto de aprovação com o conteúdo aprovado.

Já vimos que não existe para além do ente autor da aprovação - a Resolução do Conselho de Ministros - nenhuma outra entidade que assuma como sua vontade o conteúdo dispositivo do Plano e seu Regulamento, e a Resolução se esgota na adopção voluntária daquele conteúdo, pelo que a sua natureza é determinada por este último e não pela autonomia que possa inteligir-se na existência formal da Resolução, porque não existe autonomia entre o que se aprova (objecto aprovado) e o acto que aprova um conteúdo ainda não adoptado como vontade de nenhum órgão (acto primário de aprovação).
O acto de aprovação do Plano nestas circunstâncias não é susceptível de vícios próprios pois todos os vícios que possam infirmar a Resolução de aprovação são também vícios do conteúdo aprovado, não existem vícios próprios da vontade que não se repercutam no conteúdo objectivável sobre o qual a vontade se manifestou.
Portanto, a Resolução e o seu conteúdo - que é o Plano - são nesta situação específica, apenas a separação entre a manifestação da vontade e o seu conteúdo, mas fazem parte da mesma realidade incindível, e este discurso explicativo apenas surge porque existem aprovações que são actos secundários em que a realidade jurídica é bem diferente, mas cuja análise não importa a esta espécie e, por último, mas igualmente importante, a percepção da estrutura do acto de que nos ocupamos vai permitir tornar claro que o contencioso relativo a eventuais vícios do processo regulamentar bem como do acto final de aprovação destes planos é um contencioso de normas e não de actos, pois apenas as normas regulamentares são resultado e conteúdo daquele processo de produção do regulamento e da sua aprovação final.
Em suma, todos os intervenientes no processo estão de acordo em que o conteúdo voluntário do acto de aprovação por Resolução do Conselho de Ministros é o Plano de Ordenamento da Albufeira da Caniçada (revisto) e as normas do respectivo regulamento.
E assim, como não se encontra nem existe outro conteúdo do acto de aprovação que não sejam as normas e demais conteúdo do Plano o acto impugnado tem a natureza desse Plano que é a de acto normativo e não acto individual e concreto.
(…)
Ou seja, tal como no processo legislativo não se impugna a constitucionalidade da deliberação do Conselho de Ministros que aprova um decreto lei, mas pode impugnar-se uma norma ou todo o diploma legislativo pela existência de vícios verificados no processo legislativo, ou na deliberação final, mas sempre impugnando por inconstitucionalidade (formal) o conteúdo ou resultante do processo legislativo, isto é, as normas do decreto lei, igualmente em relação ao regulamento podem invocar-se vícios formais do processo regulamentar ou da Resolução final os quais afectem as normas regulamentares, ou mesmo vícios materiais de que as normas padeçam enquanto comandos sujeitos a princípios e normas superiores, mas sempre no âmbito do contencioso das normas e não dos actos daquele complexo processo genético cujo termo final foi a aprovação do regulamento.
Como decorre do n.º 2 do artigo 7.ºdo DL 380/99, aos particulares no âmbito dos instrumentos de gestão territorial que são os planos municipais de ordenamento do território e os planos especiais de ordenamento do território é reconhecido o direito de promover a sua impugnação directa, a qual, nos termos dos artigos 66.º e 68.º da LPTA, pode ter lugar, designadamente, quando alguém seja prejudicado pela norma sem dependência de um acto administrativo de aplicação, ou esteja na eminência de ser prejudicado em momento próximo. O meio jurisdicional que a lei aponta para exercer este direito é designado «declaração de ilegalidade de norma», regulado nos artigos 66.º a 68.º da LPTA.
Na espécie em análise o recorrente não dirigiu a impugnação contra a norma que entende causar-lhe prejuízos, mas contra a Resolução que a aprovou, sendo certo que pretende ver apreciados vícios do processo de produção do regulamento e vícios materiais da norma que proíbe a piscicultura na albufeira.
Tais vícios, em qualquer das suas modalidades são reportados pela sociedade recorrente ao conteúdo da Resolução, isto é, à norma regulamentar em causa e não ao acto final de aprovação, como não podia deixar de ser, visto que a Resolução que aprovou o Plano revisto não tem, como vimos antes, outro conteúdo para além das normas que aprovou.
(…)
Isto é, as normas administrativas dos planos podem ser objecto de impugnação judicial directa quando se constate que vinculam directa e imediatamente os particulares, como sucede com os planos com eficácia plurisubjectiva que são os planos municipais e os planos especiais de ordenamento do território, desde logo por imposição expressa dos artigos 11.º da Lei 48/98, de 11 de Agosto e 3.º do DL 380/99, de 22 de Setembro, embora o acto de aprovação não possa ser objecto de impugnação independente da impugnação daquelas normas regulamentares que enformam o seu conteúdo.
Neste mesmo sentido decidiu este STA no Proc.º 44614, de 9.6.99, in APDR p. 3849, a propósito da aprovação pela Assembleia Municipal dos PDM. Como refere aquele Acórdão a deliberação da Assembleia Municipal não tem como efeito a produção de um acto individual e concreto, mas a aprovação de um regulamento, pelo que é um momento ou fase do procedimento de formação de normas. E conclui que como acto é insusceptível de recurso aquela aprovação.
Também no presente recurso tal como está proposto - contra a Resolução do Conselho de Ministros enquanto acto do processo regulamentar – o recurso é ilegal (…)” (sublinhados e sombreados nossos).

Como também a este propósito explica Ana Raquel Gonçalves Moniz, A Aprovação de Um Regulamento é um Acto Administrativo?, Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo (1ª Secção), de 11.03.2010, P. 1172/09, in Estudos sobre os Regulamentos Administrativos, 2013, págs. 166 a 172 e 177:
As questões dogmáticas a dilucidar residem, assim, na determinação da natureza jurídica do acto de aprovação do regulamento e na avaliação do regime da invalidade deste por vícios que afectam actuações ocorridas durante o procedimento regulamentar.
2. Natureza jurídica da aprovação de um regulamento administrativo
O problema da aferição da natureza jurídica da aprovação de um regulamento administrativo implica a correcta impostação do procedimento também no seio desta forma específica de acção administrativa. Já em momento anterior, sublinhámos que, não obstante a escassez de disposições normativas do CPA em matéria de procedimento regulamentar, torna-se viável a identificação de uma tramitação procedimental genérica, no seio da qual é possível individualizar uma fase preparatória (que envolve a iniciativa, a instrução e a participação), uma fase constitutiva e uma fase integrativa de eficácia. A indagação sobre o problema de saber se a aprovação do regulamento consubstancia um acto administrativo implica que se localize esta actuação no âmbito do procedimento regulamentar e se compreenda os respectivos sentido e alcance.
2.1. A polissemia da “aprovação do regulamento”: a aprovação como requisito de perfeição e a aprovação como condição de eficácia
Se compulsarmos a legislação que versa sobre o «vir-a-ser» do regulamento, verificamos que nem sempre a referência à “aprovação do regulamento” possui significado idêntico. (…) impondo claramente a destrinça entre dois tipos de "aprovação": a aprovação como requisito da perfeição do regulamento e a aprovação como condição da sua eficácia.
Não se revela desconhecido, da teoria do acto administrativo, o confronto entre os conceitos de perfeição e eficácia. Nesta acepção, concebe-se como perfeito o acto cujo procedimento de formação se encontra concluído até à fase constitutiva; este momento não coincidirá com o desencadeamento da eficácia se o procedimento contiver ainda uma fase integrativa da eficácia, finda a qual se libertam os efeitos do acto. Eis-nos perante dois conceitos com ressonâncias imediatamente temporais, que nos permitem a adequada intelecção da localização das mencionadas aprovações no contexto da tramitação procedimental. Consoante o sentido das normas atinentes ao procedimento regulamentar, a aprovação pode consubstanciar o culminar do procedimento na fase constitutiva (5 Não se referindo explicitamente à aprovação, Afonso QUEIRÓ («Teoria dos Regulamentos», in: Estudos de Direito Público, vol. II, tomo I, Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 2000, p. 251) indicia a existência de um momento formal da perfeição do regulamento, corporizado, no caso de regulamentos emanados por órgãos individuais, numa decisão e, tratando-se de órgãos colectivos, numa deliberação. Também M. Rebelo de SOUSA/A. Salgado de MATOS (Direito Administrativo Geral, tomo III, Dom Quixote, Lisboa, 2006, p. 250) aludem à aprovação do regulamento como “modo normal da conclusão do procedimento regulamentar".), assumindo-se como o momento em que se perfecciona a fattispecie (formal) que o regulamento administrativo consubstancia (em que aquela perfecta est, na acepção etimológica): nesta hipótese, a aprovação do regulamento materializa o que a doutrina alemã designa como Normsetunzgsakt (ou Rechtsetzungsakt), i. e., o acto de emissão do regulamento administrativo pelo órgão competente, destinado a exprimir o facto que consiste na emissão de uma norma jurídica. Noutras situações, a aprovação assume-se antes como acto integrativo de eficácia que traduz uma sanção hierárquica ou tutelar.
É sobre a aprovação que ocorre na fase constitutiva do procedimento, assumindo-se como requisito de perfeição do regulamento (ou, se preferirmos, enquanto Normsetzungsakt) - afinal, o sentido a que se reporta o aresto em anotação -, que irão incidir as reflexões subsequentes.
2.2. O Normsetzungsakt: acto administrativo?
A concepção da aprovação como requisito de perfeição do regulamento deixa já entrever uma ideia fundamental: antes da aprovação não existe um regulamento administrativo, mas antes um projecto de regulamento. Trata-se, aliás, de uma ideia inerente quer a outras formas de acção administrativa, quer a outras normas jurídicas (não administrativas). Assim acontece, com nitidez, quanto ao acto administrativo, relativamente ao qual se acentua que um acto administrativo não existe como tal (mas apenas como projecto de acto) “enquanto não se perfizer a fase constitutiva do procedimento”. De modo menos claro, embora igualmente visível, a aprovação de actos legislativos representa o momento constitutivo do respectivo iter procedimental, antes do qual não se encontra conformado o acto principal.
Assim, a identificação da aprovação do regulamento no seio do procedimento regulamentar tem a virtualidade de acentuar a relevância dos vícios ocorridos em determinado momento procedimental: pense-se, v. g., nos requisitos necessários à aprovação de regulamentos em órgãos colegiais. Tal não significa, porém, que se revele necessária ou correcta a respectiva configuração como acto administrativo.
Esta questão não assume contornos meramente teóricos. Pelo contrário, a autonomização de um acto administrativo de aprovação do regulamento implica consequências práticas não despiciendas: assim, por exemplo, na hipótese de se verificar um vício na maioria deliberativa exigida (determinante da anulabilidade, nos termos gerais), a configuração da aprovação como acto administrativo determina a sua impugnação dentro do prazo máximo de um ano O prazo de impugnação é, regra geral, de três meses – cfr. art. 58º n.º 1, al. b), do CPTA. ; ultrapassado este lapso temporal, a formação do caso decidido determinará a estabilização do acto na ordem jurídica e, por conseguinte, precludirá a arguição da anulabilidade, a qual não afectará a subsistência do regulamento. Diversamente, se se perfilhar a concepção segundo a qual a aprovação constitui (mais) um trâmite procedimental, destituído de autonomia funcional, um vício daquele tipo implicará a invalidade do regulamento, por vício de procedimento, podendo ser solicitada a respectiva declaração de ilegalidade a todo o tempo Actualmente, um vício de procedimento pode, em regra, ser suscitado no prazo de seis meses – cfr. art. 74º n.º 2, do CPTA, e art. 144º n.º 2, do CPA de 2015..
(…)
Especiais dificuldades concita a indagação sobre a configuração do Normsetzungsakt como acto administrativo. Sem que optemos por um conceito de Rechtsetzungsakt tão amplo como o propugnado por Bettermann - que o identifica com qualquer acto jurídico dirigido à criação, modificação, revogação ou suspensão de normas jurídicas -, seguimos a sua conclusão no que tange à exclusão da natureza de acto administrativo relativamente à aprovação do regulamento. (…)
Desde logo, consideramos não estarem aqui preenchidas as notas características da intensio do conceito de acto administrativo. A dimensão decisória ínsita neste último (corporizada na «estatuição autoritária») pressupõe que o mesmo implique a produção de efeitos jurídicos autónomos, assumindo-se como "acto jurídico regulador, conformador ou concretizador de relações jurídicas externas” - aspecto que permite acentuar a «função definitória imperativa» do acto administrativo. Ora, a aprovação do regulamento, por si só, não introduz qualquer modificação no sistema jurídico, exprimindo, como acertadamente enfatiza a doutrina alemã, o facto de que uma norma jurídica foi emitida. A nova regulação de situações jurídicas decorre não da aprovação, mas antes do regulamento administrativo aprovado. Com esta afirmação não pretendemos escamotear a relevância da aprovação, sem a qual, como principiámos por salientar, o regulamento não existe como tal, por lhe faltar um requisito da sua perfeição.
Uma posição contrária implica ainda a introdução de um dispensável elemento de complexidade na teoria do procedimento regulamentar: quando um regulamento é emitido, absorve a aprovação como um trâmite do procedimento, in casu, do momento constitutivo, não se sentindo qualquer imperativo (substantivo) ou necessidade (processual) de autonomização funcional de um acto administrativo de aprovação do regulamento.
E contra esta perspectiva não se argumente com a existência de vícios susceptíveis de afectar exclusivamente este acto de aprovação (como sucede, por excelência, no âmbito de órgãos colegiais: pense-se, v. g., em vícios relativos à maioria deliberativa, à falta de quorum, à menção na convocatória); a verificarem-se, tais vícios correspondem a ilegalidades ocorridas no procedimento tendente à emissão do regulamento. Eis-nos diante de uma hipótese paralela à do procedimento legislativo (e das inconstitucionalidades das leis), onde também não se apresenta uma autonomização do acto de aprovação face ao diploma aprovado, pelo que as eventuais inconstitucionalidades ocorridas nesse momento implicam a inconstitucionalidade (procedimental) da lei.
Na nossa óptica, os embaraços apenas surgem nas situações em que se verifica uma partilha do exercício do poder regulamentar (não estando reunidas no mesmo órgão a competência para elaborar o diploma e a competência para o aprovar) e o órgão a quem compete a aprovação se recusa a aprovar o regulamento. Nesta hipótese, já se nos afigura legítimo admitir que a recusa (expressa ou implícita) da aprovação de um regulamento consubstancia um acto administrativo. Por um lado, encontramos agora uma verdadeira decisão administrativa, que produz um efeito jurídico próprio, ainda que negativo. Por outro lado, não subsistem agora os óbices relacionados com a fusão da aprovação do regulamento com o próprio diploma - o qual, ex definitione, não chega a existir neste caso, em que o procedimento regulamentar não termina com a criação de um regulamento administrativo, mas, pelo contrário, com uma decisão de não emissão do regulamento.
(…)
4. Conclusões
(…)
1) A aprovação do regulamento não constitui um acto administrativo, consubstanciando antes um trâmite procedimental que, ocorrendo na fase constitutiva, marca o momento de perfeição do regulamento;
(…)” (sublinhados nossos).

Do exposto decorre, portanto, a inimpugnabilidade do acto de homologação de 20.7.2017, pois este não é um acto administrativo, antes se consubstanciando num trâmite procedimental da fase constitutiva do regulamento ora em causa (Parecer do CCPGR).

Mesmo que, assim, não se entenda, ou seja, caso se considere que o referido acto de homologação é um acto administrativo, verifica-se que o mesmo sempre seria inimpugnável, já que este só seria impugnável por vícios próprios e in casu a requerente não invoca vícios específicos desse acto de homologação antes alegando vício próprio das conclusões desse Parecer do CCPGR (violação do art. 59º, da CRP) - neste sentido, entre outros, Ac. do STA de 11.3.2010, proc. n.º 1172/09.

Assim, tem de improceder o presente recurso no segmento em que a requerente defende que o acto de homologação de 20.7.2017 é um acto administrativo impugnável e que a sentença recorrida errou ao afirmar que o mesmo é um acto inimpugnável.

Na sentença recorrida afirma-se ainda que a suspensão da eficácia (e a impugnação) da norma ora em causa (Parecer do CCPGR, concretamente das suas conclusões 9ª a 15ª) encerra uma pretensão de força obrigatória geral - aplicando-se o disposto nos arts. 73º n.º 1 e 130º n.º 2, do CPTA -, pelo que, tendo em conta que a única violação que é imputada a tal norma assenta no art. 59º, da CRP, a requerente peticiona uma tutela que não lhe pode ser dada pela jurisdição administrativa por caber, em exclusivo, ao Tribunal Constitucional, nos termos conjugados do art. 72º n.º 2, do CPTA, e do art. 281º n.º 1, al. a), da CRP.

A requerente não põe em causa que, caso se conclua que o Parecer do CCPGR se consubstancia numa norma regulamentar, a pretensão de suspensão da eficácia (e de impugnação) dessa norma seja de força obrigatória geral, nem que a declaração de inconstitucionalidade de normas regulamentares com força obrigatória geral está subtraída à justiça administrativa, encontrando-se reservada ao Tribunal Constitucional, nos termos do art. 72º n.º 2, do CPTA, e do art. 281º n.º 1, al. a), da CRP.

A requerente alega, no entanto, que a sentença recorrida incorreu em erro ao considerar que a única violação que é imputada às conclusões 9ª a 15ª, do Parecer do CCPGR, assenta no art. 59º, da CRP, argumentando que assacou a essas normas o vício de ilegalidade, por erro nos pressupostos de facto e de direito, mas sem razão, pelos motivos a seguir indicados.

Conforme decorre nomeadamente da conjugação dos artigos 37º, 58º, 60º, 61º e 62º, do requerimento inicial, a requerente invocou que o Parecer do CCPGR viola o art. 59º, da CRP, ao determinar que é ilegítima a recusa individual por parte dos enfermeiros com título de especialista de exercerem funções incluídas no conteúdo funcional estabelecido legalmente para a categoria de enfermeiro, com o fundamento de não existir diferenciação remuneratória.

Para demonstrar a violação desse art. 59º, da CRP - no segmento em que determina que a “trabalho igual, salário igual” -, a requerente alude ao art. 9º n.º 1, als. j) a p), dos DLs 247/2009 e 248/2009, ambos de 22/9, a fim de explicar em que medida os enfermeiros com título de especialista exercem funções distintas, isto é, não prestam trabalho igual aos enfermeiros sem título de especialista, mas esta explicação, por si só, não equivale à alegação de qualquer vício, visto que a mesma necessita de ser conjugada com a invocação de inexistência de diferenciação remuneratória entre os enfermeiros com título de especialista e os enfermeiros sem título de especialista, a qual permite alicerçar a alegação da violação do art. 59º, do CRP, ou seja, e como se afirma na sentença recorrida, a violação que é imputada no requerimento inicial às normas constantes das conclusões 9ª a 15ª, do Parecer do CCPGR, assenta em exclusivo no art. 59º, da CRP, concretamente no princípio fundamental aí vertido de que “para trabalho igual salário igual”.

Assim sendo, e uma vez que nos termos do art. 281º n.º 1, al. a), da CRP, e do art. 72º n.º 2, do CPTA, só o Tribunal Constitucional tem competência para proceder à fiscalização abstracta da constitucionalidade de normas, nomeadamente regulamentares, não incorreu a sentença recorrida em erro ao declarar a incompetência material.
*

Do exposto decorre que deverá ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional, mantendo-se o despacho que indeferiu o pedido de antecipação do juízo sobre a causa principal e a sentença recorrida, assim ficando prejudicado o conhecimento da questão suscitada na conclusão N), da alegação de recurso [ou seja, do erro imputado à sentença recorrida no segmento em que apreciou, a título subsidiário, o requisito relativo ao periculum in mora].
*
Uma vez que a requerente, ora recorrente, ficou vencida, deverá suportar as custas do presente recurso jurisdicional (cfr. art. 527º n.ºs 1 e 2, do CPC de 2013, ex vi art. 1º, do CPTA).
III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em:
I – Negar provimento ao presente recurso jurisdicional.
II – Condenar a requerente, ora recorrente, nas custas do presente recurso jurisdicional.
III – Registe e notifique.
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Lisboa, 6 de Maio de 2021


Catarina Gonçalves Jarmela [relatora que, nos termos do disposto no art. 15º-A, do DL 10-A/2020, de 13/3, na redacção do DL 20/2020, de 1/5, atesta que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Juízes Adjuntos, Juízes Desembargadores Paula de Ferreirinha Loureiro (1ª adjunta) e Jorge Pelicano (2º adjunto) nos termos das declarações de voto a seguir consignadas:


- “Declaração de Voto
Acompanhamos o sentido da decisão final contida no dispositivo do Acórdão, especificamente no concernente ao juízo de inimpugnabilidade do ato, mas não a totalidade da fundamentação que a estriba.
Efetivamente, quanto a nós, a interpretação jurídica veiculada no parecer homologado vincula apenas os serviços e entidades integrantes do Ministério da Saúde, constituindo parâmetro de autovinculação administrativa. Por conseguinte, no nosso entendimento, a solução mais afeiçoada ao caso versado será a de considerar que está em causa um regulamento interno, que convoca os efeitos e consequências jurídicas típicas deste ato normativo, conformemente ao ensinado, entre outros, por ANA RAQUEL GONÇALVES MONIZ (A Recusa de Aplicação de Regulamentos pela Administração com Fundamento em Invalidade- contributo para a Teoria dos Regulamentos, maio, 2012, Almedina, pp. 90 a 211) e HANS J. WOLFF, OTTO BACHOF e ROLF STOBER (Direito Administrativo, Volume 1, julho de 2006, Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 332 a 339) - Paula Cristina Oliveira Lopes de Ferreirinha Loureiro”;

- Declaração de voto
Entendo que o parecer do Conselho Consultivo não é impugnável. Voto o sentido da decisão” - Jorge Pelicano.